Continuamos aqui nossa
resposta ao artigo católico. Abaixo, vamos abordar a importante pesquisa do
historiador protestante a respeito do papado.
Philip
Schaff e o papado
Schaff é outro historiador
protestante citado pelo católico. Creio já ter evidenciado que ele não
contradiz as teses defendidas em meus artigos. A citação de Schaff sobre
Agostinho é exemplar. As citações de Schaff na resposta católica são
irrelevantes, pois apenas apresentam as tentativas dos bispos romanos de fazer
avançar sua jurisdição sobre a Igreja. Em nenhuma delas, Schaff afirma que a
jurisdição de Roma era exercida sobre a Igreja universal. Na verdade, nem
poderia, pois ele expressou o oposto na mesma fonte. Todas as citações abaixo
são do capítulo 5 da obra História da Igreja (disponível online aqui).
Recomendo
a todos a leitura do capítulo inteiro, que é bem documentado e apresenta boas
informações sobre as questões aqui discutidas. Referindo-se aos séculos IV e V,
ele apresenta a divisão da Igreja em patriarcados:
O
sistema patriarcal referia-se principalmente à igreja imperial, mas
indiretamente afetava também os bárbaros, que recebiam o cristianismo do
império. No entanto, mesmo dentro do império, vários metropolitanos,
especialmente o bispo de Chipre na igreja oriental e os bispos de Milão Aquileia e Ravena no Ocidente, mantiveram durante esse período sua
autocracia com relação aos patriarcas e as dioceses as quais eles pertenciam
geograficamente (...) Os bispos do norte da África também, com todo o respeito
pela sé romana, mantiveram o espírito de independência de Cipriano e o
concílio, em 393, protestou contra títulos como princeps sacerdotum, summus
sacerdos, assumido pelos patriarcas, e
estava disposto apenas a permitir o título de sedis episcopus [sede epicospal].
Roma era o único patriarcado
do Ocidente. Ainda assim, não exercia jurisdição sobre porções importantes da
Igreja latina como Norte da África, Milão, Aquileia e Ravena no séc. IV. Esta
afirmação também é atestada por Klaus Schatz. Schaff menciona sobre o cânon 6
de Niceia:
Os
bispados de Alexandria, Roma e Antioquia foram
colocados substancialmente em pé de igualdade (...) Os bispos de Roma,
Alexandria e Antioquia aparecem aqui em relação aos outros bispos simplesmente como primos inter pares [primeiro entre
os iguais], ou como metropolitanos de primeira ordem, nos quais a mais elevada
eminência política se uniu aos mais elevados eclesiásticos.
Ou seja, além de os três
patriarcados terem sido considerados iguais em Niceia, isto não implicava que
eles tinham jurisdição sobre todo o restante da Igreja. Havia porções independentes
da Igreja não sujeitas a nenhum patriarcado. Schaff menciona a criação oficial
do patriarcado de Constantinopla, no segundo concílio ecumênico, que ocorreu
contra a vontade de Roma:
Entre
o primeiro e o segundo concílio ecumênico surgiu o novo patriarcado de
Constantinopla, ou Nova Roma (...) e no quinto século tornou-se o mais poderoso
rival do bispo da antiga Roma. Esse novo patriarcado foi oficialmente
reconhecido no primeiro Concílio Ecumênico, realizado em Constantinopla em 381,
e a ele foi concedido "a precedência em honra, ao lado do bispo de
Roma". Muitos gregos consideraram isso como uma afirmação formal da
igualdade do bispo de Constantinopla com o bispo de Roma, entendendo
"próximo" ou "depois" (metav) como referindo-se apenas ao
tempo, e não à hierarquia. Mas é mais
natural considerar isso como concessão de uma primazia de honra, que a
visão romana poderia reivindicar em bases diferentes. Os papas, como mostra o
protesto subsequente de Leão, não
ficaram satisfeitos com isso (...)
Observem que a preeminência de
Roma (séculos IV e V) era meramente de honra e não jurídica. Schaff menciona
que ”Nectario, que não foi eleito até depois daquele Concílio [Constantinopla
I], reivindicou a presidência em um sínodo em 394, sobre os dois patriarcas que
estavam presentes, Teófilo de Alexandria e Flaviano de Antioquia, tendo decidido
o assunto quase sozinho, e assim foi o
primeiro a exercer a primazia sobre todo o Oriente”.
Ele também menciona o cânon 28
de Calcedônia que foi aprovado, ainda que contra o desejo de Roma: “O quarto
concílio ecumênico, realizado em Calcedônia em 451, confirmou e ampliou o poder
do bispo de Constantinopla, ordenado no celebrado vigésimo oitavo cânon”.
Schaff detalha a extensão dos direitos concedidos a Constantinopla:
A
primeira parte atribui ao bispo de Constantinopla a segunda posição entre os
patriarcas, sendo simplesmente uma repetição e confirmação do terceiro cânon do
Concílio de Constantinopla. A segunda
parte vai além e sanciona a supremacia, já exercida por Crisóstomo e seus
sucessores, do patriarca de Constantinopla (...) Posteriormente, um decreto
do imperador Justiniano, em 530, acrescentou-lhe a prerrogativa especial de
receber apelos dos outros patriarcas e, portanto, de governar todo o Oriente.
Sobre as opiniões do bispo de
Roma a respeito do cânon referido:
(...)
[o cânon] ao mesmo tempo, despertou o ciúme do bispo de Roma, para quem um
rival em Constantinopla, com
prerrogativas iguais, era muito mais perigoso do que um rival em Alexandria
ou Antioquia (...) a igreja oriental entrou em conflito com a ocidental, o que
continua até hoje. Os delegados papais
protestaram contra o vigésimo oitavo cânon do concílio de Calcedônia, no
local, na décima sexta e última sessão do concílio, mas em vão (...) a
prerrogativa concedida à igreja de Constantinopla é confirmada pelo concílio,
apesar do protesto dos legados de Roma.
Especificamente sobre o
desenvolvimento histórico do papado:
O papado é inegavelmente o
resultado de um longo processo histórico.
Séculos foram empregados na sua
construção, e séculos já foram envolvidos em sua destruição parcial. A
luxúria de honra e poder, e até mesmo a
fraude aberta, contribuíram para o
seu desenvolvimento, pois a natureza humana está escondida sob vestes episcopais,
com sua firme inclinação para abusar do poder que lhe é confiado. Quanto maior
o poder, mais forte é a tentação e pior o abuso.
Os limites da jurisdição
novamente:
Como
metropolita ou arcebispo, o bispo de
Roma tinha jurisdição imediata sobre os sete bispos sufragâneos, depois
chamados de bispos cardeais, das vizinhanças: Ostia, Portus, Silva candida,
Sabina, Praeneste, Tusculum e Albanum. Como patriarca, ele legitimamente estava em pé de igualdade com os quatro patriarcas do
Oriente, mas tinha um distrito muito maior e a primazia da honra.
Sobre o desenvolvimento do
papado novamente:
Mas
esse poder patriarcal [de Roma] não foi
desde o início uniformemente reconhecido em todo o Ocidente. Somente na
última parte do século VI alcançou a altura que descrevemos acima. Não era uma instituição divina, imutável
desde o início e para todos os tempos, como um artigo bíblico de fé, mas o
resultado de um longo processo histórico - uma instituição eclesiástica humana
sob direção providencial. Como prova temos os seguintes fatos incontestáveis:
Em
primeiro lugar, mesmo na Itália, vários metropolitanos mantiveram, até o final
do período, sua própria liderança
suprema, independente da jurisdição romana e de todas as outras jurisdições.
Os arcebispos de Milão, que rastrearam sua igreja até o apóstolo Barnabé, não tiveram nenhum contato com o papa até a
última parte do sexto século, e
foram ordenados sem ele. Gregório I, em 593, durante a devastação dos
longobardos, foi o primeiro que se empenhou em exercer ali os direitos
patriarcais: reinstaurou um presbítero excomungado, que lhe atraíra. Os
metropolitas de Aquileia, que derivaram sua igreja do evangelista Marcos, e
cuja cidade foi elevada por Constantino o Grande a capital de Venécia e Ístria,
competiram com Milão e até mesmo com
Roma, chamando-se "patriarcas" e recusando a submissão à jurisdição
papal, mesmo sob Gregório Magno. O bispo de Ravenna também, depois de 408,
quando o imperador Honório selecionou aquela cidade para sua residência, tornou-se um poderoso metropolita, com jurisdição sobre quatorze bispados.
Sobre a Igreja Norte-Africana
dos tempos de Agostinho:
Os
bispos e concílios norte-africanos no
início do século V, com toda reverência tradicional pela Sé Apostólica, repetidamente protestaram, no espírito de Cipriano, contra as
invasões de Roma, e até proibiram
que todos os apelos nas controvérsias da igreja fossem deles para um tribunal
transmarino ou estrangeiro, sob pena de excomunhão.
Schaff também cita o caso de
Apiário já abordado. Ele traz as palavras do sínodo de Cartago em 424 a
Celestino I:
Apiário
pediu um novo julgamento e os seus grosseiros erros foram assim trazidos à luz.
O legado papal, Faustino, em face disto, de uma maneira muito severa exigiu a recepção deste homem na comunhão
dos africanos, porque ele apelou para o papa e foi recebido em comunhão por ele,
mas isso nem mesmo deveria ter sido feito. Finalmente, o próprio Apiário
reconheceu todos os seus crimes. O papa
deve daqui em diante não mais dar prontamente audiência àqueles que vierem da
África para Roma, como Apiário, nem receber os excomungados na comunhão da
igreja, sejam eles bispos ou sacerdotes, como o concílio de Niceia (cânon 5)
ordenou, em cuja direção os bispos estão incluídos. A pretensão do apelo à Roma é uma transgressão dos direitos da igreja
africana, e o que foi [por Zósimo e seus legados] apresentado como uma
ordenação de Niceia para ele, não é
Niceno, e não pode ser encontrado nas cópias genuínas dos Atos de Niceia,
os quais foram recebidos de Constantinopla e Alexandria. Portanto, o papa, no
futuro, não envie mais juízes para a
África e, como Apiário já foi excluído por suas ofensas, o papa certamente não esperará que a igreja
africana se submeta mais aos aborrecimentos do legado Faustino. Que Deus, o
Senhor, por muito tempo preserve o papa, e que o papa ore pelos africanos
".
Este caso será ainda mais
detalhado por mim em outro artigo. Roma
apresentou cânones do concílio de Sardica como se fossem de Niceia com o
fim de justificar sua intervenção na África. Os africanos corretamente
informaram que aqueles cânones não eram de Niceia e sustentaram sua autonomia.
Observem que Roma precisou apelar ao concílio ecumênico de Niceia para
justificar sua intervenção. Isto evidencia que até mesmo o bispo de Roma estava
consciente de que sua autoridade para intervir na Igreja Africana dependia do
concílio. Ainda sobre os africanos:
Na
controvérsia pelagiana, o fraco Zósimo que, em oposição ao julgamento de seu
antecessor, Inocêncio, havia
inicialmente se manifestado favoravelmente aos hereges, foi até compelido pelos
africanos a ceder. A Igreja do Norte
da África manteve esta posição sob a liderança do maior dos padres latinos,
Santo Agostinho, que em outros aspectos contribuiu mais do que qualquer
outro teólogo ou bispo para a construção do sistema católico.
Schaff menciona também como a
Igreja da Gália resistiu, com a liderança de Hilário de Arles, às
interferências romanas. Ele menciona que, no século VIII, a “Ilíria do Leste
foi finalmente separada da diocese romana e incorporada ao patriarcado de
Constantinopla”. É neste contexto que surge uma das citações do artigo
católico:
“A ideia do papado e
suas reivindicações ao domínio universal da igreja foram claramente
apresentadas, é verdade, tão cedo quanto o período anterior a nós. [311-600]”
A citação apenas se refere aos
bispos romanos que passaram a defender a primazia jurídica. Contudo, vejamos a
citação em seu contexto:
Finalmente,
o bispo romano, com base em sua instituição divina, e como sucessor de Pedro, o
príncipe dos apóstolos, apresentou sua
pretensão de ser primaz de toda a igreja e representante visível de Cristo, que
é o chefe supremo invisível do mundo cristão. Este é o sentido estrito e
exclusivo do título, papa. Corretamente falando, essa afirmação nunca foi plenamente realizada e permanece até hoje
uma maçã de discórdia na história da igreja. A cristandade grega nunca reconheceu isso, e a latina, somente com múltiplos protestos, que finalmente
predominou na Reforma, e privou o papado para sempre da melhor parte de seu
domínio. A falácia fundamental do sistema romano é que ele identifica o papado
com a igreja e, portanto, para ser consistente, deve desatrelar não somente o
protestantismo, mas também toda a igreja oriental desde a sua origem. Pela
"una sancta catholica apostolica ecclesia" do credo
niceno-constantinopolitano deve-se entender todo o corpo dos cristãos
católicos, dos quais a ecclesia romana, como as igrejas de Alexandria,
Antioquia, Jerusalém e Constantinopla, é apenas um dos ramos mais proeminentes.
A ideia do papado e suas reivindicações
ao domínio universal da igreja foram claramente apresentadas, é verdade, tão
cedo quanto o período anterior a nós, mas não puderam tornar-se boas além dos limites do Ocidente.
Consequentemente, o papado, como um fato
histórico, ou até onde foi reconhecido, é propriamente nada mais que o
patriarcado latino dirigido à monarquia absoluta.
Observem como a citação em
contexto transmite uma ideia diferente e mais completa. O papado foi apenas,
após muitos séculos, reconhecido no ocidente. Schatz afirma que até o ano 700
havia igrejas ocidentais que não estavam em comunhão com Roma:
A
consequência foi o cisma no Ocidente, que acusou o papa de ter traído
Calcedônia. Um cisma que foi traduzido
na excomunhão do pontífice por um sínodo de bispos Norte Africano e no
rompimento da comunhão com Roma por parte das províncias de Milão e Aquileia
(Milão voltaria a unidade com Roma cinquenta anos depois, e Aquileia somente no ano 700, ou seja, depois de um século e
meio). (Schatz, p. 88)
É difícil dizer precisamente
quando o papado foi totalmente imposto no Ocidente, mas na melhor das
hipóteses, não foi antes séc. VIII. Já no Oriente, não foi aceito e continua
não o sendo até hoje. Schaff desenvolve nos parágrafos seguintes ótimos
argumentos contra a primazia de Pedro e do bispo romano. Ele, inclusive, fez
uso de um argumento usado por mim no artigo anterior:
Mas,
mesmo concedendo estes dois elos intermediários da cadeia da teoria papal, a
dupla questão ainda permanece em aberto: primeiro, se o bispo romano é o único sucessor de Pedro, ou compartilha essa
honra com os bispos de Jerusalém e Antioquia, lugares nos quais Pedro
confessadamente residiu. E, se a primazia ao mesmo tempo envolve uma
supremacia de jurisdição sobre toda a Igreja ou é apenas uma primazia honorária
entre Patriarcas de igual autoridade e hierarquia. A primeira era a visão romana; o último era a grega.
Ele também comenta sobre
Cipriano:
Um
bispo Africano, Cipriano († 258), foi o primeiro a dar para a passagem de
Mateus 16, inocentemente como era, e sem suspeita do uso futuro e abuso de sua
visão, uma interpretação papista, e para apresentar claramente a ideia de uma
cátedra perpétua de Pedro. O mesmo Cipriano, no entanto, consistentemente ou
não, foi ao mesmo tempo animado com a
consciência da igualdade episcopal e independência. Depois, na verdade, saiu em oposição a Estevão numa
controvérsia doutrinária sobre a validade do batismo herético, e persistiu
neste protesto até a sua morte.
Sobre Ambrósio de Milão:
Ambrósio
de Milão (397) fala de fato em termos muito elevados da igreja romana, e
concede a seus bispos uma magistratura religiosa similar ao poder político dos
imperadores da Roma pagã. Contudo, ele chama a primazia de Pedro apenas "primazia de confissão, não de honra, de fé,
não de posição" e coloca o apóstolo Paulo em igualdade com Pedro. Nenhum traço é encontrado de qualquer
dependência de Ambrósio ou dos bispos de Milão em geral, durante os primeiros seis séculos, da jurisdição de Roma.
Sobre Jerônimo:
Ele
reconhece no bispo romano o sucessor de Pedro, mas em outros lugares defende a igualdade de direitos dos bispos,
e deriva até mesmo o ofício episcopal, não de instituição divina direta, mas do
uso da igreja e da presidência do presbitério. Portanto, ele pode ser citado como testemunha no
máximo de um primado de honra e não de uma supremacia de jurisdição.
Schaff também comenta sobre
Agostinho, cuja citação já foi apresentada em outra seção deste artigo. Sobre
os pais gregos:
Mas,
em primeiro lugar, eles [os pais gregos] entendem por tudo isso simplesmente uma primazia honorária de
Pedro, a quem o poder foi antes cometido, e o Senhor depois conferiu a
todos os apóstolos. Em segundo lugar, de
modo algum favorecem uma transferência exclusiva dessa prerrogativa para o
bispo de Roma, mas reivindicavam também para os bispos de Antioquia, onde Pedro, de acordo com Gálatas II,
peregrinou muito tempo, e onde, segundo a tradição, ele foi bispo e nomeou um
sucessor.
Sobe os concílios:
Finalmente,
em relação aos quatro grandes concílios ecumênicos, o primeiro de Niceia, o
primeiro de Constantinopla, o de Éfeso e o de Calcedônia: já apresentamos sua
posição sobre essa questão em conexão com sua legislação sobre o sistema
patriarcal. Vimos que eles concedem ao
bispo de Roma uma precedência de honra entre os cinco patriarcas
oficialmente iguais, e assim o reconheceram como primus inter pares [primeiro
entre os iguais], mas, por essa mesma concessão, desaprovam suas reivindicações de supremacia de jurisdição e de
autoridade monárquica sobre a igreja inteira. Todo o sistema patriarcal não era monarquista, mas oligarquista. É,
portanto, um fato histórico inegável, que
as maiores autoridades dogmáticas e legislativas da antiga igreja decidiram
contra as reivindicações papais específicas do bispado romano, e a favor de
seus direitos patriarcais e uma primazia honorária na oligarquia patriarcal. A subsequente
separação da igreja grega da latina prova até hoje que ela nunca esteve disposta a sacrificar sua independência para Roma,
ou se afastar dos decretos de seus maiores concílios.
É somente depois dessa gama de
argumentos e afirmações históricas contra as reivindicações do papado que
Schaff passa apresentar as pretensões autoritárias afirmadas por alguns bispos
de Roma. O apologista católico corta esta seção do restante e apresenta Schaff
como um ponto de apoio. De fato, Roma tentou, mas como o historiador atesta, as
tentativas foram rechaçadas tanto no Oriente como Ocidente, e Roma só iria
depois de muitos séculos impor o papado ao Ocidente. Sobre os concílios:
Acima
dos patriarcas, mesmo acima do patriarca
de Roma, estavam os concílios
ecumênicos ou gerais, os mais altos
representantes da unidade e autoridade da antiga igreja católica.
E:
Eles
[os concílios ecumênicos] foram a maior e a última manifestação do poder da
igreja grega, que em geral assumiu a
liderança na primeira era do cristianismo, e foi a principal sede de toda
atividade teológica.
E também:
A
jurisdição dos concílios ecumênicos cobriu toda a legislação da igreja, todas
as questões de fé e prática cristãs (fidei et morum) e todas as questões de
organização e adoração. Os decretos doutrinários eram chamados dogmata ou
symbola; o disciplinar, canones. Ao mesmo tempo, os concílios exerceram, quando
a ocasião exigiu, a mais alta autoridade
judicial, excomungando bispos e patriarcas. A autoridade desses concílios na decisão de todos os pontos de
controvérsia era suprema e final.
Ele também atesta que o
imperador e não o bispo romano foi o maior responsável pela convocação e
imposição dos concílios ecumênicos:
(...)
o imperador greco-romano cristão é indispensável para um concílio ecumênico no
sentido antigo do termo; sua cabeça
temporal e sua força legislativa. De acordo com a rígida teoria hierárquica
ou papista, realizada na Idade Média, e ainda afirmada pelos clérigos romanos,
o papa somente, como chefe universal da igreja, pode convocar, conduzir e
confirmar um concílio universal. Mas a história dos primeiros sete, ou, como no
cálculo romano, oito concílios ecumênicos, de 325 a 867, atribui esse poder triplo aos imperadores bizantinos. Isto é
colocado, além de toda contradição, pelos
editos ainda existentes dos imperadores, os atos dos concílios, os relatos de
todos os historiadores gregos e as fontes latinas contemporâneas. No caso
do Concílio de Nicéia e o primeiro de Constantinopla, a convocação foi feita sem prévio aviso ou consentimento do bispo de
Roma. No concílio de Calcedônia, em 451, a influência papal é pela primeira
vez decididamente proeminente, mas mesmo assim aparece em virtual subordinação à autoridade superior do concílio, que não se
deixou perturbar pelo protesto de Leão contra seu vigésimo oitavo cânon em
referência à posição do patriarca de Constantinopla.
(...) O segundo e o quinto concílios
gerais foram os únicos em que o imperador não estava representado, e neles a presidência estava nas mãos dos
patriarcas de Constantinopla.
Ainda
sobre o papel do imperador:
Finalmente, dos imperadores veio a
ratificação dos concílios. Em parte, por suas assinaturas, em parte por editos
especiais, eles deram aos decretos a validade legal do concílio. Eles os
elevaram às leis do reino; esforçaram-se por observá-los e puniram os
desobedientes com deposição e banimento. Isso foi feito por Constantino o
Grande pelos decretos de Niceia; por Teodósio o Grande pelos de Constantinopla;
por Marciano para aqueles de Calcedônia. O segundo concílio ecumênico solicitou
expressamente ao imperador tal sanção, uma vez que ele não estava presente nem
pessoalmente nem por comissão. A
confirmação papal, pelo contrário, não foi considerada necessária, até depois
do quarto concílio geral, em 451. E, apesar disso, Justiniano rompeu os decretos do quinto concílio, de 553, sem o
consentimento, e de fato apesar da recusa declarada do Papa Vigílio.
Schaff
foi citado no artigo católico apenas para apresentar as reivindicações de
autoridade dos bispos romanos a partir do séc. IV. No entanto, como atestado
acima, estas reivindicações foram sistematicamente rejeitadas por outras partes
da Igreja. O historiador protestante comenta sobre as pretensões dos bispos de
Roma no período anterior a Niceia:
Na maioria dos primeiros bispos de Roma, a
pessoa é eclipsada pelo ofício. O
espírito da época e da opinião pública governam os bispos, não os bispos a eles.
No período precedente, Victor na controvérsia da Páscoa, Calixto na restauração
dos que caíram, e Estevão no batismo herético, foram os primeiros a sair com
arrogância hierárquica. No entanto, foram um tanto prematuros e encontraram resistência vigorosa em
Irineu, Hipólito e Cipriano.
Especificamente
sobre a questão da controvérsia pascal no séc. II e as posições de Irineu a
respeito da sé romana:
Isso [a opinião de Irineu] certamente deve ser entendido como uma
precedência apenas de honra, não de jurisdição, pois quando o papa Vitor,
por volta do ano 190, em arrogância hierárquica e intolerância, rompeu a
comunhão com as igrejas da Ásia Menor, não por outra razão senão porque
aderiram à sua tradição concernente à celebração da Páscoa, o mesmo Irineu,
embora concordando com ele no próprio ponto disputado, repreendeu-o muito enfaticamente como um perturbador da paz da igreja,
e declarou-se contra uma uniformidade forçada em assuntos tão não essenciais.
Nem as igrejas asiáticas se deixaram intimidar pela ordem de Vitor. Eles responderam à tradição romana apelando
as suas próprias sedes apostólicas. A diferença continuou até que o
concílio de Niceia finalmente estabeleceu a controvérsia em favor da prática
romana, mas mesmo depois as antigas
igrejas britânicas diferiram da prática romana na observância da Páscoa até a
época de Gregório I.
Eu
argumentei em maior detalhe sobre a controvérsia pascal na seção sobre Irineu (aqui). Em suma, não há
evidências de que Vítor tentou agir como um papa. Ele poderia ter agido dessa
forma apenas com base na ideia de que a tradição correta precisaria ser
defendida. No séc. II, Estevão tentaria subjugar a Igreja norte-africana. Ainda
assim, não há evidência de que ele reivindicou jurisdição sobre toda a Igreja.
No máximo, pode-se dizer que ele pretendeu jurisdição sobre o Norte da África.
Embora as opiniões de Roma tenham saído vencedoras, e tenhamos em mente que não
eram apenas de Roma, mas da maior parte da Igreja, percebe-se que Roma não foi
capaz de impô-las apelando a sua própria autoridade. Na questão da páscoa, foi
necessário a decisão de um órgão de autoridade superior para decidir a questão
– o Concílio de Niceia. Isto evidencia novamente que o Concílio de Niceia tinha
mais autoridade do que o bispo romano. Schaff também comenta sobre Leão:
Leão, assim, fez de um primado de graça e de aptidão pessoal uma primazia de
direito e de sucessão (...) Enquanto Pedro, em Antioquia, humildemente se
submete à repreensão do apóstolo Paulo, Leão declara que a resistência à sua
autoridade é orgulho ímpio e o caminho seguro para o inferno. A obediência ao
papa é, portanto, necessária à salvação. Aquele que, diz ele, não está com a sé
apostólica, isto é, com a cabeça do corpo, de onde todos os dons da graça
descem por todo o corpo, não está no corpo da igreja e não tem parte em sua
graça. Esta é a terrível, mas legítima lógica do princípio papal, que confina o
reino de Deus às linhas estreitas de uma organização particular e torna o reino
espiritual universal de Cristo dependente de uma forma temporal e de um órgão
humano. Contudo, em sua primeira
aplicação, essa proibição papal provou ser um brutum fulmen [uma ameaça
ineficaz], quando, a despeito disso, o arcebispo galicano Hilário, contra quem foi dirigida, morreu universalmente
estimado e amado, e depois foi canonizado. A impraticabilidade desse princípio, que excluiria todos os cristãos
gregos e protestantes do reino dos céus, é uma refutação do próprio princípio.
As
reivindicações de Leão foram resistidas no próprio Ocidente e obviamente não
foram aceitas pelo Oriente:
(...) na Gália ele conheceu, como já vimos, um antagonista vigoro em Hilário de Arles,
e embora ele tenha chamado o poder secular em seu auxílio, e obtido do
imperador Valentiniano um decreto inteiramente favorável as suas
reivindicações, ele conseguiu apenas uma
vitória parcial. Menos bem-sucedido
foi seu esforço em estabelecer sua primazia no Oriente e impedir que seu
rival em Constantinopla fosse elevado, pelo famoso vigésimo oitavo cânon de
Calcedônia, à igualdade oficial consigo mesmo. Seu sério protesto contra esse decreto não produziu nenhum efeito
duradouro.
Schaff
comenta que mesmo ao proeminente bispo de Roma Gregório faltava uma consciência
papal mais firme:
O primeiro Leão e o primeiro Gregório são
os dois maiores bispos de Roma nos primeiros seis séculos. Entre eles, nenhum
personagem importante aparece na cadeira de Pedro; e no decorrer desse século,
a idéia e o poder do papado não fazem progresso material. Na verdade, eles
foram mais longe na mente de Leão do que no de Gregório. Leão pensava e agia
como um monarca absoluto; Gregório como
o primeiro entre os patriarcas; mas ambos sob a total convicção de que eles
eram os sucessores de Pedro.
Outro
episódio que mostra a jurisdição limitada de Roma:
O papa Felix II, ou, de acordo com outra
avaliação, III (483-492), continuou a guerra de seu antecessor contra o
monofisismo do Oriente, e rejeitou o Henoticon do imperador Zeno, como uma
intrusão injustificável de um leigo em matéria de fé, e se aventurou até mesmo
na excomunhão do bispo Acácio de Constantinopla. Acácio respondeu com um contra anátema com o apoio dos outros
patriarcas orientais e o cisma entre as duas igrejas durou mais de trinta anos
até o pontificado de Hormisdas.
Sobre
Gelásio:
Gelásio (492-496) claramente anunciou o
princípio de que o poder sacerdotal está acima do real e do imperial, e que das
decisões da cadeira de Pedro não há apelo. No
entanto, deste papa, temos, por outro lado, um notável testemunho contra o que
ele pronuncia ser o "sacrilégio" de reter a taça dos leigos, a
communio sub una specie [comunhão com uma espécie].
Roma
iria séculos depois adotar a comunhão sob uma espécie. Sobre as deposições e eleições de alguns
papas:
Sobre Vigílio:
Vigílio,
uma criatura manipulada por Teodora, subiu à cadeira papal sob a proteção
militar de Belisário (538-554). A
imperatriz lhe prometera este cargo e uma quantia em dinheiro, com a condição
de anular os decretos do concílio de Calcedônia e pronunciar Anthimos e
seus amigos ortodoxos. O prelado ambicioso e de língua dupla aceitou a condição
e realizou a deposição e talvez a morte de Silverio. Em seu pontificado ocorreu a violenta controvérsia dos três capítulos e
o segundo concílio geral de Constantinopla (553).
Schaff não detalha a
controvérsia dos três capítulos, por isso, convém citar Schatz:
A "disputa dos três
capítulos" se relaciona com a intenção do Imperador Justiniano de
restaurar a unidade com os monofisitas, ao condenar os escritos de três
teólogos (Teodoro de Mopsuéstia, Tedodoreto de Cirro e Ibas de Edessa) que
pertenciam à linha de Antioquia. O imperador pensava que Calcedônia não poderia
ser livre da suspeita dos monofisitas de ser um concílio "nestoriano"
a menos que estes três teólogos, autênticas bestas negras para os monofisitas,
fossem considerados ortodoxos. Para fazer isto, naturalmente, tinha que
convencer o Papa Vigílio (537-555), que, pouco amigo de conflitos, se rendeu em
primeira instância por "judicatum" (548) e condenou os três capítulos. Dada à onda de indignação que surgiu
no Ocidente, onde se dizia que o papa
tinha traído Calcedônia, este
modificou seu julgamento e anulou a condenação ("Constitutum"
553). O Imperador, por sua vez, convocou
um concílio em Constantinopla (Constantinopla n, 553), que, composto unicamente
por inimigos dos três capítulos, não somente condenou estes, mas também
excomungou o papa. Este é o único caso em que um concílio ecumênico tomou
abertamente a postura contra um papa e não teve o mesmo destino de Éfeso II,
mas acabou sendo recebido e até mesmo papalmente reconhecido como legítimo. O Concílio poderia superar a oposição do
Papa apelando para Mt 18:20 ("Onde dois ou três estiverem reunidos em
meu nome... "), segundo o qual nenhum indivíduo pode prevalecer
sobre a decisão da igreja universal. Embora este argumento não fosse
robusto, uma vez que o Papa não estava sozinho, mas teve o apoio de todo o Ocidente, que, no entanto, não estava
representado no concílio, o fato é que derrotado, Virgílio terminou
capitulando após o encerramento do concílio e deu a aprovação para a condenação
dos três capítulos. O resultado foi um cisma no Ocidente, acusando
o papa de ter traído Calcedônia, que resultou na excomunhão do pontífice por um
sínodo de bispos norte-africanos e a ruptura da comunhão com Roma pelas
províncias de Milão e Aquileia (Milão retornaria à unidade com Roma
cinquenta anos mais tarde, e Aquileia não iria até o ano 700, ou seja, depois
de um século e meio). Também manifestaram sua oposição os bispos da
Gália. Por seu lado, a Igreja espanhola, embora não tenha se separado de Roma,
não reconheceu o concílio durante a Idade Média. (Schatz,
p. 52-53)
Sobre o papa Pelágio:
Pelágio
(554–560), por ordem de Justiniano, cujo favor, que ele anteriormente havia
obtido como legado papal em Constantinopla, tornou-se sucessor de Vigilio, mas encontrou apenas dois bispos prontos
para consagrá-lo. Sua estreita ligação com o Oriente e sua aprovação do
quinto concílio ecumênico, que era considerado uma concessão parcial à
cristologia eutiquiana e, até agora, um impeachment da autoridade do concílio
de Calcedônia, alienou muitos bispos
ocidentais, mesmo na Itália, e induziu uma suspensão temporária de sua conexão
com Roma.
O apologista católico comentou
a respeito de Schaff e outros historiadores protestantes:
Ora, Philip Schaff,
J.N.D. Kelly, Donato Valentini, Dave Armstrong, Ybarra, Alister
(principalmente) e eu concordamos. Como vemos, historiadores “católicos” e,
“protestantes” discordam de outros
historiadores “católicos” citados pelo apologeta …
Tirando os apologistas
católicos citados (Amstrong e Ybarra), os historiadores citados estão em amplo
acordo com a historiografia padrão sobre o papado.
Note-se que os autores, nas páginas protestantes em que são usados,
páginas como a do Bruno, sofrem geralmente de bipolaridade: hora defendem uma
coisa, depois se descobre que eles defendiam outra.
Como
já visto, não há bipolaridade alguma. O apologista católico citou fontes fora
do contexto. Na verdade, a maior parte das citações sequer precisaria de
contexto para se perceber que não endossam o que a apologética católica
defende.
O dicionário Oxford da Igreja Cristã
Esta obra é citada em conexão
com as citações de Philip Schaff:
Veja o que diz o Dicionário Oxford da Igreja Cristã que concorda com
Schaff, começando com o Papa Victor I [r. 189-198], e resumindo as realizações
de muitos outros papas.
É um
dicionário com vários verbetes sobre termos importantes para a história da
Igreja. Em relação aos papas, o dicionário apenas apresenta resumos sobre a
vida dos papas e seus feitos. O artigo católico repete o mesmo argumento. Ele
pega várias citações isoladas que apenas expressam as ideias dos bispos romanos
e apresenta como evidência do papado. Vejamos:
“Todo o incidente [unificação da comemoração da Páscoa na época de
São Vitor] é um passo importante na história da supremacia papal. F. L. Cross,
& E. A. Livingstone, editors (p. 1437)”, The Oxford Dictionary of the
Christian Church, Oxford: Oxford University Press, 2nd edition, 1983.
Já
vimos a posição de Schaff, que nega qualquer possibilidade de Vitor ter
exercido o poder monárquico papal. O dicionário tampouco afirma algo diferente.
O contexto da citação pode ser visto aqui. A
fonte menciona também que Vitor voltou atrás de sua decisão, o que obviamente
só ocorreu porque outros bispos da Igreja resistiram à ele:
Ele próprio reuniu um sínodo em Roma e
ameaçou Polícrates de Éfeso e outros bispos da Ásia Menor com a excomunhão se
eles não se recusassem de desistir da prática de manter a páscoa em 14 de Nisan
ao invés do domingo seguinte. Quando ele de fato cumpriu sua ameaça, St. Irineu e outros bispos condenaram sua
severidade, mas o fato de que as Igrejas na Ásia Menor permaneceram em
comunhão com Roma sugeriria que o papa
retrocedeu de sua sentença. Todo o
incidente é um importante passo na história da supremacia papal. (F.
L. Cross, & E. A. Livingstone, p. 1705)
O
incidente em seu tempo apenas evidenciou as limitações do poder do bispo
romano, tanto é que esta controvérsia só foi finalmente resolvida no concílio
de Niceia. Ou seja, é uma evidência da autoridade maior deste concílio em
relação ao bispo romano. Este incidente se tornaria importante na história do
papado não porque Vitor de fato exerceu qualquer primado jurídico universal,
mas porque teólogos e papas de séculos seguintes utilizariam este episódio para
afirmar os poderes de Roma. O mesmo dicionário afirma sobre o papado:
O primado papal nunca foi formalmente aceito pelas Igrejas Orientais (...)
(F. L. Cross, & E. A. Livingstone, p. 1215)
“Dâmaso fez muito para fortalecer a posição da sé de Roma (Decreto
de Graciano, 378).”, Cross, p. 374
Veja o
contexto aqui. Trata-se de uma
citação irrelevante na medida em que esta era apenas a posição de Dâmaso e
“fortalecer a posição da sé de Roma” não implica em primado papal. Na verdade,
o primeiro bispo de Roma a reivindicar a primazia papal em termos claros foi Leão
I (séc. V). Ademais, há outra controvérsia que mostra as limitações do poder de
Dâmaso. No final do século IV havia uma disputa sobre quem era o legítimo bispo
de Antioquia. O bispo romano apoiou Paulino. Outros apoiaram Melécio. O
primeiro Concílio de Constantinopla foi presidido por Melécio. Este é um dos
concílios ecumênicos que ocorreu sem qualquer ciência de Roma. O próprio
concílio se opôs a Roma. O pai da igreja Basílio, que apoiou Melécio em
oposição a Roma, disse o seguinte sobre uma carta do bispo de Roma escrita em
apoio a Paulino:
Mas um
novo rumor chegou a mim que você está em Antioquia, e estão negociando em
conjunto com as principais autoridades. E, além disso, eu ouvi dizer que os
irmãos que são do partido do Paulino estão entrando em alguma discussão com
Vossa Excelência sobre o tema da união conosco; e por "nós" eu quero
dizer aqueles que são simpatizantes do abençoado homem de Deus, Melécio.
Eu ouço, além disso, que os Paulinianos estão levando uma carta do ocidente
[de Roma], atribuindo-lhe o episcopado da Igreja em Antioquia, mas falando sob
uma falsa impressão de Melécio, o admirável bispo da verdadeira Igreja de
Deus. Eu não acuso ninguém; Eu rezo para que eu possa ter amor a todos, e
especialmente, àqueles que são da família da fé [Gálatas 6:10], e por isso
felicito aqueles que receberam a carta de Roma. E, apesar de ser um grande
testemunho em seu favor, eu só espero que a verdade seja confirmada
pelos fatos. Mas eu nunca serei capaz de ignorar Melécio baseado nestes
motivos, nem esquecer a Igreja que está sob ele, nem trata-lo como pequeno
e de pouca importância para a verdadeira religião, por questões que deram
origem à divisão. Eu nunca irei consentir a ceder, apenas porque alguém
está muito entusiasmado com uma carta recebida de homens. Mesmo que tivesse
descida do céu em si, mas se não concorda com o som da doutrina da fé,
eu não posso olhar para isto como em comunhão com os santos. (Epístola
214:2)
Schatz
comenta:
Porém,
como aconteceria nos próximos séculos, a expectativa de encontrar apoio
em Roma era maior do que a capacidade de satisfazê-lo. Muitas vezes faltava
em Roma competência e o conhecimento suficiente para lidar com os difíceis
problemas do Oriente, assim como a força efetiva para impor-se realmente.
O pai da igreja Basílio sabia por experiência própria: ‘Roma dá facilmente
cartas de comunhão aos bispos, inclusive àqueles que estão separados entre si’.
Ele reclama especialmente do bispo Dâmaso, a quem considerou soberbo e
arrogante, e o acusa de fazer julgamentos do alto sem saber a completa situação
do Oriente: ‘Que ajuda pode vir do Ocidente?’ (Schatz,
p. 54)
Sobre
Siricio:
“Seu pontificado é importante para marcar um novo estágio no
desenvolvimento da autoridade papal.”, Cross, p. 1280
O
dicionário também menciona:
Ele foi responsável por um sínodo em Roma
(386) que passou nove cânones sobre disciplina eclesiástica que foram enviados para a Igreja Africana.
(F.
L. Cross, & E. A. Livingstone, p. 1506)
Já
vimos o desenvolvimento dessas intervenções na igreja africana. Os africanos
não raras vezes afirmaram sua autonomia perante Roma. Sobre Inocente I:
“Ele insistiu que os principais casos de disputa deveriam ser
levados ao julgamento da Sé Apostólica. Sua determinação em exercer autoridade
no Oriente e no Ocidente se reflete em seu apoio a São João Crisóstomo contra
seus adversários […]”, Cross, p. 703
Vejamos
a continuação da citação:
No entanto, ele foi incapaz de salvar João Crisóstomo do exílio.
A
Igreja de Alexandria estava contra Roma nesta também. Eles apoiaram a deposição
de Crisóstomo. Dessa forma, além de não ter mudado o destino de João
Crisóstomo, a opinião de Roma não foi vista como vinculante por Alexandria. Eu
vou abordar esta controvérsia em maiores detalhes no próximo artigo. O
dicionário também menciona a controvérsia pelagiana:
Na controvérsia com Celéstio, Pelágio e
seus apoiadores, Inocente tomou o lado de St. Jerônimo contra João, bispo de
Jerusalém, e apoiou as doutrinas dos concílios africanos.
O
destaque é que a decisão de Inocente não foi final. Seu sucessor, Zósimo,
retrocederia da condenação ao pelagianismo. Após, Zósimo mudaria de ideia
novamente e condenaria a heresia. Contudo, mesmo depois dessas condenações, o
pelagianismo não foi condenado num sínodo na Palestina e a questão só seria
definida formalmente no Concílio de Éfeso. Mais detalhes serão vistos no
próximo artigo sobre o Concílio de Éfeso. Sobre Leão:
“Seu papado é notável principalmente pela enorme extensão com que
ele avançou e consolidou a influência da sé romana. Em um momento de desordem
geral, ele procurou fortalecer a Igreja por um governo central energético,
baseado na firme crença de que a supremacia de sua sé era de autoridade divina
e bíblica, e ele pressionou suas reivindicações à jurisdição na África, Espanha
e Gália. Ele também garantiu a Valentinian III um rescrito que reconheceu sua
jurisdição sobre todas as províncias ocidentais.”, Cross, p. 811
Já
vimo na seção sobre Schaff como essas pretensões foram resistidas no Ocidente.
O exemplo notório foi o bispo Hilário de Arles. O próprio dicionário afirma
também logo após a citação acima:
No entanto, sua jurisdição não foi reconhecida no Oriente (...)
O
dicionário traz muitos outros verbetes que relatam os fatos já trazidos por
Schaff.
O conciliarismo e o papado
Como vemos, não há uma corrente conciliarista no primeiro milênio,
parece que a doutrina da ideia conciliar é muito mais protestante, absorvida
por historiadores e teólogos católicos num intuito ecumênico.
Dizer
que o conciliarismo é uma doutrina protestante não faz sentido, pois houve o
movimento conciliarista do final do período medieval. Mas, principalmente, há
várias fontes do primeiro milênio como a Igreja Oriental e até autores
ocidentais como Agostinho advogando que as decisões de um concílio universal
são superiores a qualquer bispo individual. Além disso, o argumento dele
repousou somente em citar os bispos de Roma, mas a história relata que os
concílios universais sistematicamente aprovaram cânones contra a vontade de
Roma ou que expressaram a autoridade limitada desta Igreja. Dizer que os
historiadores que advogam esta posição o fazem por serem ecumênicos é só um ad hominem vazio.
O conciliarismo no Ocidente é uma corrente de pensamento dos séculos
XII e XIII. Este é uma ideia tardia, pois as fontes desse pensamento estão
Marsílio de Pádua, de Nicolas de Cusa e Erasmo de Roterdam (que teve uma
disputa séria com Lutero).
Ele
limitou a afirmação ao Ocidente por razões óbvias – a Igreja Oriental sempre
enxergou os concílios universais como o ápice da autoridade da Igreja, logo não
há primado jurídico universal de Roma neste período. Além disso, ele usa um
argumento anacrônico. Quando eu me referi ao conciliarismo de Agostinho, não
estava em vista o movimento conciliarista do fim do medievo. São momentos
históricos distintos e ideias diferentes também. Eu já escrevi sobre o
conciliarismo medieval (aqui).
Neste,
o conciliarismo surge como uma reação à monarquia papal que já estava
solidificada no Ocidente. O contexto de Agostinho era distinto pois
não havia monarquia papal estabelecida, mesmo no Ocidente. A ideia de que o
concílio era o órgão supremo de autoridade da Igreja é anterior ao próprio
papado que levaria séculos ainda para prevalecer completamente na parte
ocidental. O Concílio de Niceia é evidência disto. Ele foi aceito pela Igreja
como padrão da ortodoxia para as gerações seguintes e ao mesmo tempo afirmou a
autoridade apenas regional dos patriarcados.
Na Igreja dos Primeiros Séculos não existia o conceito que
utilizamos de Concílio Universal com jurisdição especial, pois, como diz, por
exemplo, Giuseppe Alberigo, no seu livro História dos Concílios Ecumênicos,
Nicéia se torna universal conforme as igrejas aderiam a este concílio. Isso
levou décadas.
Nem eu
afirmei o contrário. No entanto, a atividade sinodal já era comum na igreja
pré-nicena. Já vimos o exemplo de Cipriano que convocou um sínodo regional em
Cartago e condenou as interferências do bispo de Roma. A Igreja de fato só pôde
se reunir em concílios gerais a partir do momento em que o cristianismo deixou
de ser perseguido. Novamente, tenho que relembrar que o artigo respondido pelo
católico se referia às posições de Agostinho. Nos tempos do bispo de Hipona, o
concílio de Niceia já era reconhecido como ecumênico. Tudo indica também que
Agostinho reconhecia um outro concílio como ecumênico, que não faz parte da lista
atual dos concílios ecumênicos. Eno afirma que ele se referiu às decisões de um
concílio ecumênico contra os donatistas. Por isso, Cipriano poderia ser
desculpado, enquanto os donatistas não. Isto atesta a visão agostiniana de que
o concílio era a instância suprema da Igreja na resolução de controvérsias
teológicas:
A fonte da garantia de Agostinho era
simplesmente esta: círculos católicos na
África acreditavam que havia tal concílio. Esta crença nem era uma invenção
de suas imaginações nem uma invenção de propaganda zelosa. A base factual pode
ter sido o oitavo cânon do concílio de Arles. Ao longo dos anos, essa modesta base foi ampliada para a
crença de que houve uma decisão clara da questão a partir de um concílio
plenário da Igreja universal. (Doctrinal Authority In Saint
Augustine, Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 162)
E com os esforços “ecumênicos” alguns historiadores católicos
voltaram a defendê-la. Principalmente teólogos como Hans Kung e Yves Congar
voltam se voltam para ela, muitas vezes exagerando na crítica interna, não
preciso dizer que eles eram/são extremamente progressistas.
Hans
Kung não defende uma visão conciliarista. A eclesiologia dele estaria mais
próxima da protestante. Em relação ao Yves Congar, ele é contrário ao centralismo
papal, mas também não abraçou uma visão conciliarista. Chamá-los de
progressistas não tira a autoridades desses teólogos. Congar é bastante
respeitado mesmo nos círculos católicos romanos mais tradicionais, inclusive
pelos últimos papas. Além disso, não são apenas esses dois. A historiografia
padrão vai no caminho desses autores. Se os católicos vão demitir todos os seus
historiadores por não concordarem as visões difundidas pela apologética
católica, não vai sobrar quase ninguém.
Na verdade é a seletividade de fontes para uma crítica contra a
Igreja Católica, porque, dependo da seita protestante, a idéia de concílio nem
pode ser evocada para sua tradição.
Não há
seletividade, pois é a posição padrão. Aqueles que defendem a posição
minoritária apelando a apologistas católicos como “historiadores” é que estão
sendo seletivos. Os protestantes não validam sua tradição a partir dos
concílios, mas da Escritura. O apelo aos concílios é secundário.
O pior é supostamente defender conciliarismo e só aceitar os cinco
primeiros da Igreja. Outro erro é ainda achar que o primado papal implica
rejeição da autoridade conciliar.
Qual
Igreja Protestante defende o conciliarismo? A eclesiologia protestante tem
nuances bem diferentes. Muito menos eu defendo esta ideia. Ao afirmar que um
determinado pai da Igreja defendeu certa ideia, estou apresentando as ideias do
autor, não as minhas próprias.
Mas vejo com certa
estranheza, por não dizer deboche, um protestante usando tanto os argumentos
até de ortodoxos contra uma política católica há séculos consolidada.
Uma
política que nunca foi aceita pela Igreja Universal e que não é antiga o
suficiente pois não remonta ao ensino dos apóstolos, logo deve ser rejeitada.
Quer dizer que se um ortodoxo usar o argumento “X”, eu necessariamente estou
impedido de usá-lo? A verdade é a verdade independente de quem a vocaliza.
A ênfase no poder dos Concílios e nas interpretações modernas se dá
porque a leitura das FONTES cristãs patrísticas representam severo incômodo
para o protestantismo militante.
Ocorre
que não é uma leitura protestante, mas a opinião padrão de estudiosos da Igreja
de diferentes tradições. O que as fontes dizem é um problema para a apologética
católica que sistematicamente utiliza “os óculos de Roma” para interpretá-las.
Ainda, sabemos que a jurisdição de Roma se desenvolveu com o tempo,
mas desenvolver não significa que não existisse, como pensam muitos apologetas
empolgadinhos.
Vejamos.
O católico admite que Roma não exerceu o primado jurídico universal em certos
períodos da Igreja, o que é uma condição necessária do papado. Mas, ao mesmo
tempo, essa jurisdição existiu desde sempre? Isto me parece um “quadrado
redondo”. A jurisdição de Roma era limitada, logo não havia papado como Roma
historicamente defendeu. Um primado de jurisdição não é uma implicação de um primado
de honra. Admitir que Roma foi “primeiro entre os iguais” implica
necessariamente que Roma não tinha jurisdição universal.
Essas fontes primárias dizem claramente sobre um primado de Roma,
desta exercer “presidindo na caridade” (expresso por Santo Inácio de Antioquia,
que está longe de minimizar a influência romana) que não é uma idéia para
sustentar uma falta de jurisdição, pois mostra exatamente outra.
Um
primado de honra não serve para a causa papal. Utilizar estas citações que não
tem em vista qualquer jurisdição universal para endossar o papado é evidência
de quão frágil a teoria é. Inácio nem de longe endossou este tipo de jurisdição
romana. Suas cartas apontam o sentido contrário (aqui).
Então, nós temos novamente aqui uma ideia de primado, a primeira
entre os pares (primus inter pares), local onde se resolvia muitas disputas
teológicas e políticas.
O
primeiro entre os iguais é apenas uma posição de honra, logo ao apelar a esta
ideia, o apologista reconhece que não havia papado conforme definido igreja
romana. Roma não poderia prover uma decisão vinculante para toda a Igreja apelando
apenas à sua própria autoridade. Roma não era um tribunal final, então, mais
uma vez, isto só enfraquece o argumento papal.
E não devemos deixar de pensar que ascensão política jurídica de
Roma levou séculos para se consolidar, mas como mostram as fontes existia bem
antes da consolidação da Reforma Gregoriana ou do Cisma Oriental.
Isto
ocorreu apenas no Ocidente depois de séculos após os apóstolos. Enquanto as
cartas de Paulo e o Novo Testamento como um todo falam exaustivamente sobre a
questão da autoridade, nós devemos, segundo o católico, acreditar que uma ideia
simples como papado só foi entendida por uma parcela da Igreja após séculos
desenvolvimento. Se os apóstolos tivessem de fato ensinado que um bispo em
particular seria a cabeça suprema da Igreja, não haveria dúvidas sobre isso,
nem a necessidade de recorrer a uma teoria que não representa historicamente os
termos pelos quais Roma defendeu o papado. Dizer que apenas uma parcela da
Igreja entendeu muito tempo depois a doutrina papal é jogar fora a tradição em
nome da inovação – uma contradição explícita para quem sempre defendeu suas
doutrinas com base naquilo que supostamente a “Igreja teria ensinado desde os
apóstolos”.
Sucessão apostólica
Quando falamos de sucessão apostólica não estamos dizendo que outros
Patriarcados não tinham, consideramos diversas igrejas como legítimas
sucessoras dos apóstolos, como a armênia, por exemplo, fundada por Santo André.
Este
argumento da sucessão apostólica falha porque há outras Igrejas cuja sucessão é
reconhecida por Roma, porém, que ensinam doutrinas diametralmente opostas. A
própria doutrina da sucessão apostólica é um exemplo, na medida em que o papado
é parte indispensável da doutrina romana da sucessão. Além disso,
historicamente, Roma ensinou que essas igrejas não eram igrejas de fato e que
seus membros não poderiam ser salvos a não ser que se submetessem ao papa. Eu
já escrevi bastante sobre sucessão apostólica do ponto de vista bíblico e
histórico (AQUI). Ademais, eu apenas apelei a sucessão de outras igrejas porque
um argumento popular entre os católicos é afirmar que se um autor antigo
acreditava que o bispo de Roma era sucessor de Pedro, ele pode ser contado como
testemunha do papado. O problema é que autores antigos também consideraram o
bispo de Antioquia um sucessor de Pedro. Dessa forma, o argumento católico é
falacioso. É necessário demonstrar que o pai da Igreja acreditava no primado
jurídico e universal de Pedro e que este foi transmitido exclusivamente ao
bispo de Roma. Simplesmente dizer que o bispo romano era sucessor de Pedro não
implica necessariamente em nenhuma das premissas acima.
Aliás, nem sei qual seita Bruno participa, mas a maioria das Igrejas
evangélicas brasileiras nem de longe tem cheiro de sucessão apostólica.
Eu
faço parte da seita dos nazarenos. Sobre a necessidade da sucessão apostólica
para validade de uma igreja, veja aqui.
Conclusões
Creio ter evidenciado
suficientemente que:
(1) A resposta católica usou
argumentos falaciosos ao tirar conclusões a partir apenas dos bispos de Roma de
determinado período, sem considerar como o resto da Igreja reagiu a essas
reivindicações;
(2) Eles
citaram autores protestantes de forma irrelevante ou descontextualizada em
apoio ao papado;
(3) A
supremacia do bispo de Roma foi contestada mesmo no ocidente e levou séculos
para se consolidar nesta região, o que ocorreu por contingências históricas e
políticas;
(4) O
Oriente nunca aceitou o primado jurídico e universal do bispo romano;
(5)
Quando a Igreja passou a se reunir em concílios gerais e, na medida em que tais
assembleias foram reconhecidas como ecumênicas, estas se tornaram o ápice da autoridade da Igreja, sendo um fato que cânones de concílios
ecumênicos foram aprovados contra a vontade do bispo de Roma.
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