quinta-feira, 13 de junho de 2019

Resposta à Apologética Católica sobre o Papado e a História da Igreja (Parte 1)



Questão preliminares

O apologista católico Rogério Fernandes elaborou uma resposta ao meu último artigo sobre Agostinho e o papado (veja aqui meu artigo). Ele resolveu expandir a discussão para várias outras citações sobre o papado e quase não aborda Agostinho, ao menos nesta resposta. Dessa forma, vamos expandir a discussão e abordar os outros períodos históricos. As citações do apologista estarão em vermelho. Vou publicar a segunda parte amanhã. Ele também publicou recentemente a tradução de um artigo apologético sobre Celestino e o Concílio de Éfeso. Como este é um assunto ainda não abordado neste blog, pretendo publicar um artigo específico sobre o tema até no máximo semana que vem. Após, vou publicar outro artigo sobre Agostinho e a autoridade da Igreja.

Sobre os historiados citados na resposta

O apologista disse em sua primeira resposta:

Bruno Lima é outro farsante que não conhece nada de Patrística ou de doutrina da Igreja Católica. Ele deveria ler livros sobre o assunto ao invés de só se informar em sites de apologética estrangeiros. O choro é livre.

Eu então o respondi, e como de costume apresentei a "nata" dos historiadores e teólogos católicos romanos apoiando minhas teses. Estamos falando de pessoas com reconhecimento na academia e que lecionam nas melhores Universidades Católicas do mundo. Boa parte desses autores tiveram o imprimatur e/ou Nihil obstat e são amplamente reconhecidos no meio acadêmico católico romano como autoridades em história da Igreja e patrística. Contudo, em sua última resposta:

Essa refutação se baseia em dois artigos, cujos autores são Dave Armstrong e Erick Ybarra.

Ele baseia a resposta em dois apologistas católicos de sites estrangeiros. Na verdade, a resposta é uma cópia de um artigo que ele traduziu (aqui) e de outro do Armstrong (aqui).  O que ocorreu com “Ele deveria ler livros sobre o assunto ao invés de só se informar em sites de apologética estrangeiros”? Mas não para por aí. Os dois autores citados são apenas militantes católicos. Eles não possuem qualquer reconhecimento na comunidade acadêmica e se dedicam a escrever apologética popular. Até onde sei, eles não têm sequer formação acadêmica em história da Igreja. Quando um dos lados do debate pode citar um “caminhão” de historiadores católicos e o máximo que você consegue são apologistas populares, a implicação é que suas teses são pobres e carecem de apoio até mesmo daqueles que teriam algum viés para apoiá-lo.

O Rogério cita historiadores protestantes como Philip Schaff, Alister McGrath, J.N.D Kelly e Jaroslav Pelikan contra as minhas teses, mas nenhum deles nem remotamente me contradizem. Pelo contrário, eles me apoiam fortemente. Demonstrarei mais à frente como o apologista católico os citou fora do contexto e tirou conclusões totalmente falaciosas das suas obras. Obviamente ele sequer os leu, pois apenas reproduziu citações dos artigos dos apologistas católicos que tem por prática citar esses autores fora do contexto. Os historiadores em questão possuem forte consonância com os demais historiadores da Igreja quando afirmam que o papado é fruto de contingências históricas e que o bispo de Roma não exerceu uma autoridade soberana sobre toda a Igreja no período patrístico. Ele afirmou:

Vamos estudar as premissas de Bruno contra o Primado Petrino. Pois sua tese se baseia em “historiadores católicos” escolhidos seletivamente; e por algum imprimatur de bispo.

Observem como ele menospreza os autores ao se utilizar das aspas. Isso é típico da apologética católica. Qualquer autor que não concorda com os apologistas de internet é automaticamente dispensado. É neste ponto que os católicos não levam a sério sua própria igreja. Para eles, o fato de um órgão da igreja ter dado o imprimatur ou até o nihil obstat é irrelevante. É impressionante como pessoas que se esmeram em defender o magistério de sua igreja o desprezam quando é conveniente. Nós não deveríamos considerar a opinião desses autores que receberam alguma certificação da Igreja de Roma, mas deveríamos considerar com igual peso a opinião de católicos leigos da internet. O apologista faz uso de vários ataques para negar a autoridade dos historiadores citados por mim:

A ideia de conciliarismo também é ridícula historicamente e existe muito mais por um retorno na historiografia moderna com tendência ecumênica. Tal historiografia, inclusive católica, foi muito influenciada pelo método crítico protestante que surgiu no final do século XIX, e alimentada pelo marxismo e neomarxismo. Com ela muitas heresias entraram pela porta de teólogos e “historiadores católicos”.

É neste ponto que a apologética católica se assemelha ao movimento terraplanista. Quem já teve a oportunidade de debater com um terraplanista sabe que todo o consenso científico é rejeitado em nome de uma grande conspiração. Quando citam alguma fonte, geralmente trata-se de um apologista do próprio movimento. O argumento acima usa o mesmo estratagema. O Rogério sequer conhece a maioria dos historiadores que eu citei. Como ele sabe que eles são marxistas? Ele teria que no mínimo conhecer a obra desses autores, provar que eles são marxistas e mostrar que a ideologia política os levou a conclusões históricas erradas. O apologista não fez nada disso, portanto, seu argumento é apenas uma desqualificação sem fundamento.

A autoridade de um historiador pode ser questionada. Mas, para fazê-lo, é preciso mais do que um ataque vazio sem qualquer evidência. Qualquer pessoa que deseja engajar-se num debate sobre história da Igreja precisa interagir com as autoridades acadêmicas envolvidas. Por exemplo, ainda que cite uma fonte primária como a obra “Contras as Heresias” de Irineu, eu estou indiretamente apelando à autoridade do tradutor ou do crítico textual. Como sabemos que Irineu disse aquelas palavras? Qual versão do texto é mais confiável? Por último, meus apelos a autoridade dos historiadores não são seletivos, pois a posição que defendo é majoritária na historiografia. Ao contrário, quem precisa recorrer a apologistas de internet e citar historiadores protestantes de forma descontextualizada é que está sendo seletivo.

A citação totalmente fora de contexto de Alister McGrath

O Rogério afirmou sobre Alister McGrath:

Não bastando isso, segundo o “historiador anglicano” Alister E. McGrath, que não é nem um pouco favorável ao catolicismo, ao escrever sobre o Cisma Oriental, mostra que no período antes deste Roma era o árbitro final das questões doutrinárias, como eu mesmo já havia dito isso na minha postagem do Facebook (que tanto magoou Bruno):

“Era amplamente aceito que o árbitro final em todas as disputas doutrinárias dentro da igreja era o papa.”, Alister E. McGrath (p. 25), Reformation Thought: An Introduction, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 2nd edition, 1993. Grifo nosso.

Preste atenção na citação do Alister, essa demonstra que um historiador pode ver na definição de arbítrio de Roma como parte de sua jurisdição primitiva.

Assim que li esta citação, percebi que algo não estava certo. Eu tenho este livro do McGrath e sabia que ele não havia feito tal comentário em relação ao cisma Oriental (a separação entre as Igrejas do Ocidente e Oriente em 1054). Além de claramente não conhecer o contexto desta citação, o católico tirou conclusões absurdas como afirmar que a suposta citação sobre o período anterior ao cisma Oriental se referia a uma “jurisdição primitiva”. Nenhum historiador da igreja classificaria o período do cisma como primitivo. Esta nomenclatura é geralmente empregada à Igreja do primeiro século, quando muito à Igreja até o período de Niceia (325). Vejamos o contexto na página 30 desta edição do livro:

A questão crucial era esta: como poderia a disputa sobre quem era realmente o papa ser resolvida? Foi amplamente aceito que o árbitro final em todas as disputas doutrinária dentro da igreja era o papa - mas qual papa poderia resolver essa disputa? Eventualmente, foi acordado que um Concílio deveria se reunir com autoridade para resolver o litígio. O Concílio de Constança (1414–1417) foi convocado para escolher entre os três candidatos rivais para o papado (Gregório XII, Bento XIII, e João XXII). O Concílio convenientemente resolveu a questão depondo todos os três, e escolhendo seu próprio candidato (Martin V). Parecia que um princípio geral foi estabelecido: os Concílios têm autoridade sobre o papa. Mas Martin V pensava o contrário. (Fonte)

Mcgrath se refere ao evento conhecido como grande cisma do Ocidente (séc. XV), na qual três papas simultaneamente reclamavam o papado. Não há qualquer relação com o cisma do Oriente (1054). O católico comentou:

O mais interessante nesses apologetas de internet é essa citação de livros em inglês. O erro não é citar uma obra em outra língua, mas fazer citação da citação (alguns vivem de provar o que dizem sem nunca ler a obra citada).

Ele faz acusações que se aplicam a si mesmo.

A citação de Jaroslav Pelikan

Pelikan é um reconhecido historiador da Igreja também citado pelo católico:

[…] A doutrina ocidental já havia se movido inconfundivelmente na direção da monarquia papal, que deveria atingir seu clímax no século XIII. Na fórmula de Isidore, o papa, como supremo pontífice, era “o chefe dos sacerdotes. . . o sumo sacerdote ”; foi ele quem nomeou todos os outros sacerdotes da igreja e quem tinha todos os ofícios eclesiásticos à sua disposição. Portanto, mesmo tão vigoroso defensor das reivindicações especiais e da autonomia administrativa dos metropolitanos como Hincmar, o arcebispo de Reims no século IX, apontou, em sua própria defesa dessas alegações, que “a solicitude por todas as igrejas foi confiada à santa igreja romana, em Pedro, o príncipe dos apóstolos. ”Suas brigas eram com os incumbentes individuais do papado sobre assuntos particulares de política e administração eclesiástica, nunca com o status de Roma como a principal sede da cristandade. A igreja de Roma era “a mãe e a professora {mater et magistra}”, cuja autoridade deveria ser consultada sobre todas as questões de fé e moral, e suas instruções deviam ser obedecidas. Pelikan, 48

Observem a irrelevância dessa citação para o debate. Pelikan está se referindo à doutrina ocidental, ou seja, à Igreja Ocidental. Além disso, o clímax da monarquia papal só ocorreria no séc. XIII – um período em que obviamente o papa reinava na Igreja Ocidental, apesar de que esta autoridade seria desafiada pelo movimento conciliarista. Pelikan ainda cita o arcebispo de Reims, do séc. IX – período que sequer abrange o patrístico, que tradicionalmente vai até João Damasceno. Tenham em mente que ele está respondendo um artigo sobre Agostinho (séc. IV-V). O problema é que a opinião de um arcebispo ocidental, no séc. IX, passa longe de evidenciar que o bispo de Roma exerceu primazia jurídica sobre toda a Igreja. Pelikan também afirma:

Na controvérsia entre o oriente e o ocidente (...) o caso de Honório serviu como prova a Potius de que os papas não só não tinham autoridade sobre os concílios da igreja, mas também eram falíveis em questões de dogma; pois Honório havia abraçado a heresia dos monotelitas. (Jaroslav Pelikan, The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine [Chicago: University of Chicago, 1974], Volume Two, pp. 150–151)

Ou seja, Pelikan afirma a posição padrão: os Orientais não aceitavam a jurisdição de Roma e acreditavam que o concílio estava acima daquele bispo. Ele também diz que no Oriente:

(...) a autoridade dos concílios, como na verdade a dos doutores e até mesmo da Escritura, era a autoridade da única verdade imutável (...) os primeiros concílios da Igreja foram convocados com a autoridade do imperador, não a dos bispos. O direito dos bispos, especificamente do bispo de Roma, de convocar ou validar um concílio ecumênico foi uma questão de controvérsia entre o Oriente e o Ocidente. (Pelikan, p. 48)

O concílio de Constantinopla, de 681, condenou a epístola de Honório [bispo de Roma], junto com as epístolas de Sérgio, como “estanhas às doutrinas apostólicas, às definições dos santos concílios e de todos os pais aceitos”. (Pelikan, p. 172)

Observem como o bispo de Roma não estava entre as principais autoridades da doutrina. Pelikan também afirma que um dos pontos de discordância entre os Orientais e Roma, no período do cisma, era:

(...) a relação entre o papa e o concílio ecumênico como árbitro da doutrina e da prática (...) era possível sustentar que, no séc. I, quando foi necessário a adjudicação de uma disputa, nenhum apóstolo determinou a resposta certa, mas o assunto era entregue a um concílio apostólico. Tinha de ser assim ao longo da história da Igreja: Roma não legislava unilateralmente sobre assuntos que afetava a igreja como um tudo (...) Este princípio conciliar sugeria um consenso entre os patriarcas apostólicos, análogo ao alcançado pelos próprio apóstolos no concílio descrito no capítulo 15 do livro de Atos dos Apóstolos. A estipulação de que nenhum concílio tinha a priori um título de legitimidade ou ecumenicidade excluía qualquer definição simplista de um concílio apropriado como aquele que era convocado ou validade pela sé de Roma – ou por qualquer outra sé episcopal. Muito menos permitiria a pretensão da sé de Roma ou de qualquer outra sé da função legislativa historicamente exercida pelos concílios. Ao contrário, conforme disse ironicamente Nicetas de Nicomédia: “Porque precisamos do conhecimento das Escrituras ou do estudo da literatura ou da disciplina doutrinal dos mestres ou das mais nobres realizações dos sábios gregos?  (Pelikan, p. 186-187)

Pelikan menciona outra controvérsia do séc. IX entre o Oriente e o Ocidente a respeito da ecumenicidade de Constantinopla II (787). O bispo de Roma afirmara que o concílio não era válido porque havia sido realizado sem “a autoridade da sé apostólica”. Pelikan traz que “embora também não tenha havido um ato formal de aprovação Oriente, o concílio em geral foi reconhecido como oficial. Por isso, Fócio expressou uma percepção oriental comum quando defendeu a autoridade e a ecumenicidade do “sétimo” concílio ecumênico (...) Com referência ao fato histórico, os concílios não eram habitualmente convocados pelo bispo da Antiga Roma, mas pelo imperador da Nova Roma [Constantinopla]. Todos se lembravam que isso fora verdade em relação a Constantino I no Primeiro Concílio de Niceia e a Justiniano no Segundo Concílio de Constantinopla e que os dois imperadores também tomaram parte nas deliberações dos concílios; mas os outros também foram imperais, bem como ecumênicos (Pelikan, p. 187-188).

Pelikan também menciona a questão do filioque, na qual os Orientais estavam contra Roma. Em seu favor, os gregos citavam os antigos concílios ecumênicos como autoridade definidora da questão (Pelikan, p. 209-210). Segundo os gregos: “na hierarquia de autoridade, o testemunho de alguns pais era claramente superior ao de outros, mas, acima de todos eles, permaneciam os concílios ecumênicos da Igreja. O dogma do Espírito Santo foi definido para a igreja pelo segundo concílio; repetido pelo terceiro; confirmado pelo quarto; estabelecido pelo quinto; proclamado pelo sexto; e selado pelo sétimo” (p. 209).

Os gregos rejeitaram a interpretação de Roma do credo, apelando ao texto dos concílios. Enfim, no Oriente, não havia qualquer dúvida quanto a superioridade da autoridade do concílio ecumênico sobre o bispo de Roma. Pelikan também afirmou no volume I da coleção sobre os embates de Cipriano e o bispo de Roma:

A unidade da igreja, como sua santidade, tinha de ser encontrada nos bispos, na união deles uns com os outros, afirmada pelas palavras de Jesus para Pedro, conforme registradas em Mateus 16.18:19. Nenhuma passagem dos escritos de Cipriano recebe atenção mais minuciosa que as duas versões da exegese das palavras do capítulo 4 de sua obra “A unidade da Igreja” (Cipr. Cap. 4): uma versão parece afirmar a primazia de Pedro como pré-requisito para a unidade entre os bispos, enquanto a outra parece tratar a primazia de Pedro apenas como uma representação dessa unidade. Parece que a primeira dessas versões veio cronologicamente primeiro, enquanto a segunda foi um esclarecimento dela feito pelo próprio Cipriano porque Roma estava fazendo mais de suas palavras do que ele tinha pretendido. (A tradição cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: o surgimento da tradução católica (100-600), volume 1, p. 172)

Embora o apologista católico tenha apresentado uma citação irrelevante de Pelikan, esta foi uma oportunidade para mostrar como esse estudioso apoiou as teses defendidas pelos historiadores católicos que citamos.

O Salmo de Agostinho

O apologista católico gasta um bom tempo tentando desqualificar meus artigos por causa de um erro de digitação que cometi ao citar o Salmo 109, no qual escrevi 199. O fato é que a citação existe e o erro de digitação não depõe em nada contra o argumento, mas o apologista, diante da sua pobreza argumentativa, precisa se apegar a algo para dar ao seu texto a aparência de uma refutação genuína. Se o fato de eu cometer um erro de digitação depõe contra o meu argumento, o que poderia se dizer então do texto de um indivíduo que apresenta problemas com o uso de sua própria língua materna? O que seria de alguém, que ao fazer um vídeo de resposta a um apologista protestante, diz coisas como: “Defrorando”, “compricado”, “várias pastores protestantes”, “bibrica”, “bibria”. O próprio texto inicial do sr. Rogério tem erros básicos de português como neste trecho: “Se há um ponto central de há erro na crença de Agostinho, ele deveria ter usado isso”. Eu obviamente não acredito que seus argumentos sejam falsos por ele apresentar tais problemas. Os argumentos são falsos porque são contrários à evidência histórica. No entanto, caso o sr. Rogério aplique a si a mesmo a técnica argumentativa que usa contra mim, estará refutando a si próprio. Ele ainda cita a tradução da coleção patrística da Paulus:

Mas, vejamos agora, se possível, com o auxílio do Senhor, como tudo isso pode convir também ao povo judaico, cujas inimizades e ódio pertinaz permaneceram contra o Senhor. Dissemos que Judas figurava este povo, como o apóstolo Pedro era um símbolo da Igreja. “Suscita contra ele o pecador e o diabo se levante a sua direita”.

O argumento é que ao se referir a Pedro, Agostinho teria utilizado o termo símbolo e não figura como na minha tradução. Símbolo para Agostinho teria o significado de regra da fé e não representante da Igreja como eu defendi. E também o salmo em questão seria o 108 e não 109 como eu pensei. Primeiro, eu não sigo a tradução da Paulus que já é famosa por seu viés para beneficiar doutrinas católicas. Minha tradução vem da edição do Philip Schaff, que é inclusive utilizada pelo site católico New Advent (aqui).  Nesta edição, o Salmo é 109. Numa outra tradução (aqui) o salmo é 108, mas também coloca Pedro como representante da Igreja:

Se, no entanto, nós tentamos interpretar tudo que é dito nos Salmos sobre o homem mau como se referindo ao indivíduo somente, Judas, nós podemos dificilmente, se em tudo, produzir uma exposição convincente. Por outro lado, se nós entendemos tudo que é dito aqui como se referindo mais genericamente a um tipo de pessoa – os inimigos de Cristo, isto é, os judeus ingratos – tudo a mim parece levar a uma explicação mais clara. Assim como certas coisas que são ditas nos Evangelhos são aparentemente ditas para Pedro pessoalmente, mas não podem ser completamente compreendidas a não ser que se refiram à Igreja, pois ele a representou pela razoes do primado que tinha entre os apóstolos.

Esta outra edição, que é católica (aqui), diz “ter figurativamente representado” como Salmo 109. Esta outra (aqui), como Salmo 109, diz “ter figurativamente representado”. Esta outra que contou com a colaboração de Newman usa a mesma expressão (aqui). Até mesmo livros apologéticos em defesa do papado traduzem da mesma forma (aqui). O único lugar em que encontrei a tradução como sendo símbolo foi na coleção da Paulus. Todas as outras passam a ideia de representante da Igreja. Para o bem do debate, vamos supor que símbolo seja a tradução apropriada. Ainda assim, o argumento não se sustenta, pois Agostinho não usa o termo sempre com o mesmo significado. É um fato notório entre os pais da Igreja faziam uso de polissemia. Na mesma obra (aqui) – Exposição dos Salmos – ele diz:

Assim, o céu, que já nos Salmos proclama a glória e justiça de Deus, é o símbolo dos evangelistas, profetas e pregadores.

Agora, o que é o cordeiro? É o símbolo de Cristo.

Nós podemos mesmo dizer que o cordeiro era o símbolo de Cristo.

Veja outros exemplos aqui. Nos casos acima, a ideia de símbolo como regra de fé não faria qualquer sentido. De fato, ele usou a palavra símbolo mais no sentido de representar do que como regra da fé. Quando ele usou como significando a regra de fé, o contexto é bem claro:

Recebam meus filhos a regra de fé, que é chamada de símbolo [ou credo]. Quando o receberem, escrevam-no em seu coração, e diariamente repitam-no para vocês mesmos (...) Pois esse é o credo que vocês devem repetir e responder. (Sobre o Credo de Nicéia: um sermão aos catecúmenos, 1)

Observem que o contexto é radicalmente diferente. No caso da citação em disputa, este significado simplesmente não se encaixa:

Assim como certas coisas que são ditas nos Evangelhos são aparentemente ditas para Pedro pessoalmente, mas não podem ser completamente compreendidas a não ser que se refiram à Igreja, pois ele a representou pela razoes do primado que tinha entre os apóstolos.

Seria como dizer que Pedro era o símbolo (a regra da fé) da Igreja. Isto seria estranho até para a teologia católica. Pedro e os papas são os transmissores e guardiões da regra da fé, mas se referir a eles como a regra seria até mesmo herético. O contexto aponta para uma tipologia. Os Salmos não falam explicitamente sobre Jesus, Pedro, Judas ou a Igreja, mas o bispo de Hipona os encontra através da tipologia. O contexto imediato do comentário e da obra como um todo é formado em grande parte pelo uso de tipologia. Percebam que o paralelo entre Judas e Pedro também só faz sentido a partir desta forma. Judas representou os Judeus, enquanto Pedro representou a Igreja. Dessa forma, além do uso do termo “símbolo” ser altamente disputável, todo o contexto aponta para ideia de representação como o significado apropriado.

Os termos do debate e os concílios ecumênicos

No meu artigo anterior, eu comecei definindo os termos do debate. Isto é vital para qualquer debate sério, especialmente no caso do papado:

“Para apoiar a doutrina papal usando Agostinho, é preciso provar que o teólogo acreditava que Pedro tinha primazia jurídica sobre os demais Apóstolos (...) Alguns Pais da Igreja concedem a Pedro o que teólogos ortodoxos, protestantes e católicos romanos chamam de primado de honra. Contudo, existe uma distância abissal entre primado de honra e primado jurídico.”

E

“Suponha para o bem do debate que o apologista tenha evidenciado que Pedro de fato tinha primazia jurídica no colégio apostólico. Isto, por si só, ainda seria insuficiente para suas pretensões. Ele precisaria evidenciar que o bispo de Roma, de forma exclusiva, herdou tal primazia e atuaria como chefe de toda a Igreja. O bispo de Roma seria então a instância máxima de autoridade na Igreja. Além disso, ele precisaria provar que Agostinho acreditava em algum tipo de infalibilidade do bispo de Roma, pois este é um conceito chave para a doutrina papal. Sobre este último ponto, ele sequer argumentou”.

Em sua resposta, o católico então foge pela tangente e tenta mudar os termos do debate. Ele toma qualquer atribuição de autoridade ao bispo Romano como evidência do papado. Ele é sempre evasivo ao tratar do tema. O apologista evita se expressar em termos precisos, pois assim ele pode pegar qualquer primado de honra oferecido à Roma e apresentar como evidência favorável ao papado. Ele ainda atribuiu a mim as seguintes proposições:

O Primado petrino romano não exercia jurisdição efetiva sobre outras igrejas nos primeiros séculos;

Trata-se de um espantalho. Eu afirmei que o bispo de Roma não exercia primado jurídico sobre TODA a igreja. Obviamente, o bispo de Roma exercia primado jurídico sobre algumas igrejas, caso contrário, ele sequer poderia ser um bispo. De forma semelhante, o patriarca de Constantinopla exercia jurisdição sobre algumas Igrejas, o bispo de Antioquia também e etc. Eles também seriam líderes soberanos? O bispo romano passou a exercer em meados do séc. II jurisdição sobre as igrejas da Itália, mas não exercia primazia jurídica sobre as Igrejas Orientais por exemplo. E mesmo no Ocidente, ainda no séc. IV, a jurisdição de Roma era limitada. Se o apologista deseja provar a tese papal, ele precisa evidenciar o primado jurídico do bispo de Roma sobre toda a Igreja, e não apena sobre uma parcela menor, haja vista que a maior parte dos cristãos estavam na parte oriental. O antigo epítome do cânon VI do Concílio de Niceia dizia:

O bispo de Alexandria terá jurisdição sobre o Egito, Líbia e Pentápolis; assim como o bispo Romano sobre o que está sujeito a Roma. Assim, também, o bispo de Antioquia e os outros, sobre o que está sob sua jurisdição. Se alguém foi feito bispo contrariamente ao juízo do Metropolita, não se torne bispo. No caso de ser de acordo com os cânones e com o sufrágio da maioria, se três são contra, a objeção deles não terá força. (Cânon VI de Niceia)

O historiador e PhD católico romano Joseph F. Kelly, cuja obra sobre os concílios pode ser vista aqui, interpreta o cânon 6 como uma referência a autoridade regional de Roma (p. 23-24).  Ele se refere a outros estudiosos católicos que o ajudaram no processo de pesquisa e edição do livro (p. 11). Ele contrasta o atual papel dos papas nos concílios ecumênicos com seu envolvimento no passado (p. 2, 5), observando, por exemplo, que "o segundo concílio ecumênico de Constantinopla chamado em 381, reuniu-se, decidiu as questões e encerrou-se sem informar o papa Damaso I (366-384) de que um concílio estava acontecendo" (p. 5). Ele se refere à rejeição do papado durante a era patrística no norte da África (p. 16, 31). Mesmo alguns bispos da Itália no século VI "entraram em cisma e não se reconciliaram com Roma até o século VII" (p.54). Ainda sobre o contexto de Niceia, escreve: "Então, como agora com as igrejas ortodoxas, os bispos orientais não reconheceram nenhuma autoridade jurisdicional romana sobre suas igrejas" (p. 24).

Klaus Schatz – outro reconhecido historiador católico romano – comenta sobre o Cânon 6:

Para os concílios ecumênicos, bem como para determinadas questões discutidas ao mais alto nível, os "patriarcados" constituam as instâncias mais importantes. A designação "patriarcas" ou "patriarcados" foi introduzida no quinto século e tornou-se comum no século VI. Sua origem é a tríade das principais igrejas: Roma, Alexandria e Antioquia. O Cânon 6 do Concílio de Niceia (325) tinha expressamente confirmado "o antigo uso", pelo qual estes três bispos deviam ter em seus respectivos territórios uma jurisdição eclesiástica, embora isso não seja determinado de outra maneira precisa. A importância de Alexandria como a segunda sede tinha sido reforçada pela crise ariana do quarto século. Contudo, pouco a pouco outra sede eclesial é aberta: Constantinopla, que na sua capacidade de nova capital do Império, pretendia exercer autoridade eclesial nas três eparquias da Trácia (Heráclea), na Ásia (Éfeso) e Ponto (Cesareia); isto é, sobre a Anatólia, a leste da atual Bulgária e a parte europeia da Turquia. Com isto estava servido o confronto entre Alexandria e Constantinopla para alcançar a supremacia no Oriente; este conflito constitui uma constante controvérsia eclesial na primeira metade do quinto século.

Schatz expressa a visão compartilhada pelos historiadores católicos de que o cânon 6 afirmava a autoridade regional dos patriarcados, sendo que o terreno Oriental viria a ser disputado entre Constantinopla e Alexandria. Temos ainda o cânon 3 do Concílio de Concílio de Constantinopla I (381). Schatz comenta:

A oposição de Roma ao cânon foi um completo fracasso, como foi a sua objeção três séculos mais tarde à separação da Grécia e da Ilíria. Aqui ficou surpreendentemente claro que Roma não poderia impor sua maneira em questões de organização da Igreja no Oriente, pelo menos não quando os interesses comuns da Igreja bizantina eram contra ela. Apesar da resistência romana, Constantinopla tornou-se a segunda Sé somente porque os patriarcas de Antioquia e especialmente Alexandria foram enfraquecidas pela dominância do monofisismo em suas regiões. É verdade que, em tempos de tensão, Roma repetia continuamente seu protesto contra o posto eclesial de Constantinopla (pela última vez no século XI sob Leão IX), e recordava a ordem imutável e eterna de Roma, Alexandria e Antioquia. Mas isso não mudou a realidade, e quando as boas relações com Constantinopla estavam no lugar ou tinha sido restauradas, Roma abandonou seus protestos e pelo menos manteve silêncio sobre Constantinopla e sua posição no ranking. (Klaus SCHATZ. Papal Primacy: From Its Origins to the Present. Collegeville, Minnesota: Liturgical Press, 1996, p. 48)

Em outras palavras, o bispo de Roma teve que aceitar o cânon 3 contra sua vontade. Se ele exercia o primado jurídico sobre toda a Igreja, como isto seria possível? O apologista prossegue:

Os concílios (e sínodos regionais, talvez) eram a autoridade máxima;

Primeiramente, eu argumentei que Agostinho considerava o concílio universal uma instância superior ao bispo de Roma. Toda a discussão era sobre as posições de Agostinho. Esta obviamente não poderia ser a posição de todos os pais da Igreja, pois o primeiro concílio ecumênico só viria a ocorrer no séc. IV. Não há como afirmar, e de fato não afirmei que Irineu por exemplo acreditava nisto, afinal não havia no séc. II a possibilidade de um concílio universal. Contudo, a partir do momento que a igreja passou a se reunir em concílios ecumênicos, este se tornaria a instância máxima de autoridade na Igreja universal, e isto só foi possível porque nenhum bispo em particular detinha autoridade jurídica sobre toda a Igreja. Obviamente, na medida em que as reivindicações de poder do bispo de Roma se consolidaram no Ocidente, a questão da autoridade dos concílios tornou-se objeto de controvérsia, mas, no Oriente não foi aceito a ideia de que Roma estava acima dos concílios ecumênicos. Essa divergência foi, inclusive, dentre outras, razão do cisma Oriental (1054).

Portanto, o Primado não exercia jurisdição e nenhuma referência para o arbítrio da Igreja Universal.

Primeiro, que tipo de primado? Segundo – quais os limites dessa jurisdição? E onde eu afirmei “nenhuma referência de arbítrio”? O apologista está consciente das dificuldades de defender o papado usando os pais da Igreja e está tentando defender qualquer coisa diferente. Os termos do papado são bem claros – o bispo de Roma detém primado jurídico sobre toda a Igreja, sendo em última instância o responsável por manter a igreja imune do erro doutrinal, graças ao carisma da infalibilidade. Estes são os termos que ele precisa defender.

A opinião de Newman e o ensino histórico de Roma

Isso me parece meio óbvio que a jurisdição petrina primitiva não é igual a do século XIX, que historiador em sã consciência vai fazer um paralelo desse? Poderia ter escrito algo mais coerente. Ao que me parece são citações esporádicas, ao bel-prazer, para transparecer uma coerência artificial no texto.

De fato, nenhum historiador em sã consciência faz afirmações como essa. O problema é que a Igreja Romana historicamente defendeu o papado nestes termos. Ele acaba de afirmar que um historiador em sã consciência não deveria defender a doutrina católica da forma que sua igreja historicamente a defendeu. O Concílio Vaticano I afirmou:

1822. Ensinamos, pois, e declaramos, segundo o testemunho do Evangelho, que Jesus Cristo prometeu e conferiu imediata e diretamente o primado de jurisdição sobre toda a Igreja ao Apóstolo S. Pedro (...) A esta doutrina tão clara das Sagradas Escrituras, tal como sempre foi entendida pela Igreja Católica, opõe-se abertamente as sentenças perversas daqueles que, desnaturando a forma de governo estabelecida na Igreja por Cristo Nosso Senhor, negam que só Pedro foi agraciado com o verdadeiro e próprio primado de jurisdição, com exclusão dos demais Apóstolos, quer tomados singularmente, quer em conjunto. (Fonte)

Jesus teria conferido a Pedro um primado de jurisdição sobre a toda a Igreja. Contudo, o mais importante é que esta foi a forma como a Igreja SEMPRE entendeu o primado.  Então, ao defender que o primado de Pedro foi inicialmente entendido como um primado de honra ou uma posição de destaque no colégio apostólico, sem incluir jurisdição sobre os demais apóstolos, o apologeta está contradizendo o magistério da sua própria igreja. A encíclica papal Satis Cognitum (aqui) também disse:

Portanto, no decreto do Concílio do Vaticano quanto à natureza e à autoridade do primado do Romano Pontífice, nenhuma opinião recém-concebida é apresentada, mas a crença venerável e constante de todas as idades. (Seção IV., Cap. 3)  

O papa Pio X em seu famoso juramento contra o modernismo (aqui) também disse:

Eu sinceramente mantenho que a Doutrina da Fé nos foi trazida desde os Apóstolos pelos Padres ortodoxos com exatamente o mesmo significado e sempre com o mesmo propósito. Assim sendo, eu rejeito inteiramente a falsa representação herética de que os dogmas evoluem e se modificam de um significado para outro diferente do que a Igreja antes manteve.

Ou seja, dizer que Pedro ou o bispo de Roma tinha um certo tipo de primado, que, como a maioria dos historiadores defendem, não era jurídico, foi considerado pelo Papa Pio X uma “falsa representação herética”. Quando apologistas católicos mais sofisticados apelam ao desenvolvimento da doutrina para defender o papado, eles precisam lidar com o fato de que os papas e concílios da Igreja Romana historicamente defenderam que esta doutrina foi crida pela igreja desde sempre. Sobre esse assunto, veja mais aqui. Ademais, o comentário do católico foi em cima desta citação do Arcebispo de Vancouver:

Nas primeiras gerações, o pleno significado, autoridade e importância do ministério petrino não estava imediatamente evidente. Parece que a Igreja de Roma e as outras Igrejas da koinonia compreendiam pouco sobre o significado do ministério de Pedro ou como ele iria funcionar (...). Enquanto o ministério petrino está em causa, o papel do papa evoluiu dentro de um conjunto de fatores históricos complexos. Parece que ele não usou autoridade primacial completamente desde o início. Sem anacronismo, não podemos dizer que os primeiros papas exerceram a sua jurisdição no sentido solenemente definido no Concílio Vaticano I, em 1870. Só no processo de cumprir a sua missão é que a Igreja reconheceu as implicações mais amplas do ofício de Pedro. No início, o ministério petrino foi pelo menos parcialmente "adormecido" (...) O Oriente, portanto, amplamente aceitou Pedro como corifeu (cabeça) do colégio apostólico, o primeiro dos discípulos que confessou a verdadeira fé em nome de todos. No entanto, como o teólogo ortodoxo John Meyendorff explica, os orientais "simplesmente não consideravam este louvor e reconhecimento como relevante de qualquer forma para as reivindicações papais." Enquanto os padres gregos reconheceram a liderança de Pedro na comunidade primitiva, eles negaram que ele teve um papel de direção que envolvia exercer poder sobre os outros apóstolos. Por instituição divina, Pedro teve uma preeminência e uma dignidade acima dos outros, mas não teve jurisdição sobre eles. Louvado embora estivesse no oriente, Pedro tinha apenas uma primazia de honra e proeminência. Os orientais respeitavam Pedro pelo seu testemunho da fé apostólica, e não por seu poder de jurisdição. (MILLER, Michael. The Shepherd and the Rock. Huntington, Indiana: Our Sunday Visitor, 1995, p. 71-72, 116)

Dessa forma, Pedro exerceu na opinião dos pais da Igreja orientais apenas um primado de honra. Um primado de jurisdição é algo radicalmente distinto. A afirmação de que Pedro exerceu primazia jurídica sobre os demais apóstolos não é uma implicação da afirmação de que ele exerceu um papel de destaque entre os apóstolos. Dessa forma, se tudo o que o apologeta pode provar é um primado de honra de Pedro, segue-se que ele falha em evidenciar a primeira premissa do papado. Ele também afirma que usei equivocadamente a seguinte citação de Newman:

Enquanto os Apóstolos estavam na terra, não havia bispo ou papa. (Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã, Cap. 4, Seção 3)

O que Newman quis dizer é que nem os apóstolos nem Pedro estavam conscientes da primazia jurídica do pescador. Só depois de séculos de desenvolvimento é que a Igreja chegou a esta verdade até então escondida. O apologeta então traz a opinião de Newman a favor do desenvolvimento do papado. Agora, me diga no meu texto onde eu neguei isto. É óbvio que ele cria no papado. No entanto, o processo pelo qual essa doutrina teria se desenvolvido é amplamente contrário as opiniões da apologética católica padrão e da defesa histórica do papado pela Igreja de Roma. Não é por acaso que setores mais tradicionalistas ou sedevacantistas da Igreja Romana consideram Newman um herege modernista (aqui). Vejam o que escrevi após citar Newman:

Esta é apenas uma pequena amostra. Muitos outros historiadores católicos romanos poderiam ser citados. A ideia de que Pedro tinha autoridade jurídica sobre os demais apóstolos é amplamente desacreditada pelos acadêmicos católicos romanos.

Newman apoiou esta ideia. Pedro de fato não exerceu no séc. I a primazia jurídica, pois ele sequer estava consciente da existência desta prerrogativa.

A primazia jurídica de Pedro

Eis que como um oásis no deserto o meu oponente cita um acadêmico católico chamado Donato Valentini:

Sinteticamente: se dá um primado de Pedro”. E mais: “Mt 16,16-19, Jo 21 e a 1 e 2Pd mostram a consciência por parte da segunda geração cristã, da função de símbolo de unidade de Pedro em relação às três correntes judeu-cristã, paulina e joanina do Cristianismo primitivo.”, Valentini, D. “Papa”. In: Barbaglio, G. – Bof, G. – Dianich, S. Dizionario di Teologia. Milano: San Paolo, 2002.

Eu tenho quase certeza que ele retirou a citação deste artigo da PUC (aqui). Quem se der o trabalho de ler a seção “O Primado Petrino no Novo Testamento: base comum?” perceberá que o autor do artigo, ao citar Donato Valentini, não está defendendo um primado jurídico. Ele defende as posições trazidas pelos historiadores que eu citei. A opinião do artigo acima é compatível com a de Hans Kung:

Na Igreja primitiva, sem dúvida, Pedro teve uma autoridade especial. No entanto, ele não a possuía sozinho, mas sempre colegialmente com os outros. Ele estava muito longe de ser um monarca espiritual ou até mesmo um único governante. Não há nenhum vestígio de qualquer quase monárquica autoridade exclusiva como líder. (KUNG, Hans. The Catholic Church: A Short History Modern Library, 2001, p. 19)

A citação acima do historiador italiano nos indica que a segunda geração apostólica percebia que havia um primado de Pedro. O Primado Petrino é inegável, sua questão jurídica sim é alvo de disputa historiográfica.

Uma disputa desigual eu diria, na medida em que a esmagadora maioria dos historiadores católicos romanos afirma que não havia primado jurídico. Ainda, o apologista não trouxe a opinião de qualquer historiador em favor do primado jurídico do apóstolo. Algo merece ser ressaltado: Pedro teve sem dúvidas um papel de destaque entre os 12, mas não frente ao apóstolo Paulo. A atitude de Paulo em suas cartas, nas quais sua autoridade apostólica é frequentemente defendida, é de total igualdade aos demais apóstolos, inclusive com relação a Pedro. Paulo não acreditava que sua pregação dependia, sob qualquer forma, da autoridade de qualquer outro apóstolo, pois quem lhe revelou a mensagem foi o próprio Cristo. Cabe aqui mencionar a comissão formada por teólogos católicos e protestantes que produziu um estudo conjunto sobre Pedro no Novo Testamento (aqui). O lado católico foi liderado pelo maior erudito bíblico da Igreja Romana no séc. XX – Raymond Brown. Como era esperado, eles chegaram a conclusões bem distintas do ensino histórico de Roma. Na opinião da comissão, o Novo Testamento não apresenta a ideia de uma primazia jurídica de Pedro.

Cipriano (séc. III), Agostinho (séc. V) e a Igreja Norte-Africana

O artigo apresenta citações de bispos de Roma em defesa de sua própria supremacia. Ora, o problema básico desse argumento é que ninguém nega que os bispos romanos tentaram, pelo menos a partir do séc. IV, impor algum tipo de supremacia sobre outras igrejas. Obviamente, eles estavam agindo em interesse próprio. Contudo, a grande questão é como o resto da Igreja reagiu. Eles sempre aceitaram as imposições do bispo romano? A Igreja Universal via essas intervenções do bispo romano como o legítimo exercício de um primado jurídico de direito divino sobre toda a igreja? A resposta é não. Longe de endossar o papado, a história evidencia que essas tentativas mostram a luta de outras Igrejas por sua autonomia. Ele cita o seguinte texto do meu artigo com o recorte abaixo:

“O bispo de Roma não poderia ser uma instância de julgamento melhor do que um concílio de bispos do norte da África.”

No entanto, vejamos a citação completa do meu texto:

Observem que mesmo uma Igreja como a norte-africana, que não poderia reivindicar fundação apostólica, proibiu o envio de recursos à Roma. Ainda, a justificativa não era apenas prática, mas teológica – o bispo de Roma não poderia ser uma instância de julgamento melhor do que um concílio de bispos do norte da África.”

Ou seja, eu estava tratando de um caso específico ocorrido no séc. IV com a Igreja norte-africana (a Igreja de Agostinho). Esse comentário surgiu após esta citação de Klaus Schatz:

A igreja africana preservou sua autonomia de modo ainda mais decidido no terreno da jurisdição. Nos concílios de Cartago realizados em 419 e 424, se chega a proibir o recurso a Roma. O contexto dessa medida foi o caso do presbítero Apiario, que tinha sido excomungado pelo seu bispo e, em Roma (sem o conhecimento da situação) foi reabilitado em seus direitos. Os norte-africanos reagiram, por um lado, concedendo aos presbíteros a possibilidade de uma instância de recurso (o julgamento de seu bispo pelo concílio norte-africano de Cartago), com o qual se satisfazia o desejo de segurança jurídica. Por outro lado, se defenderam energicamente contra uma intervenção de Roma: ela de longe incorria em julgamentos errados, pela simples razão de que em tais processos judiciais era impossível fazer chegar da África as testemunhas necessárias. Além disso, é impensável que Deus conceda o espírito de juízo justo a um particular, isto é, ao bispo de Roma, e não a todo um concílio de bispos. Por isso, os norte-africanos proibiram para o futuro qualquer recurso "ultramarino", mesmo para o caso dos bispos, opondo-se assim os cânones de Sárdica. Essa proibição tinha um precedente no caso de um bispo afastado de sua comunidade, mas que Roma tinha amparado. Por causa disso, o mesmo Agostinho ameaçou se demitir. A instância de recurso era apenas o concílio norte-africano de Cartago. Este caso repetidamente fornecido ao longo da história oferece o exemplo para apoiar a resistência episcopalista das igrejas nacionais contra o centralismo romano. (Papal Primacy, Minnesota: The Liturgical Press, 1996, p. 35-36)

Ao invés do apologista católico explicar como o bispo de Roma poderia ter primazia jurídica sobre toda a Igreja se mesmo no ocidente havia igrejas resistindo a estas intervenções, ele pula para outros períodos históricos que não tem qualquer relação com o caso concreto trazido. Lembremos seus comentários na primeira resposta:

“Só em último caso Agostinho falava em recorrer ao concílio para poder reverter um SUPOSTO mau juízo romano, mas vemos que acreditava que Roma era a primeira a julgar”

O erro básico dele foi afirmar que Roma era a primeira a julgar. Se era a primeira, não era a última, logo Roma não poderia ser neste caso uma instância de autoridade acima do sínodo regional norte-africano. No entanto, eu nunca defendi que Roma não poderia reverter as decisões de todo e qualquer sínodo local. O que defendi foi que, na visão agostiniana, o concílio universal era a maior instância de autoridade dentro da Igreja. Em todo o caso, é um fato histórico que a Igreja Norte-Africana apresentou desde cedo (séc. III)  uma postura de defesa de sua autonomia. No caso africano, até um sínodo local poderia se opor ao papa, como ocorreu no caso citado por Schatz e como ocorreu também no séc. III sob os auspícios de Cipriano. Como o especialista em Agostinho e católico romano Robert Eno afirmou:

Em outro lugar eu argumentei em detalhes a visão de Agostinho sobre a autoridade na Igreja e que, na minha opinião, o concílio [não o Papa] foi o principal instrumento para resolução de controvérsias (...) Eu acredito que Agostinho tinha grande respeito pela igreja romana cuja antiguidade e origens apostólicas ofuscou, de longe, outras igrejas no Ocidente. Mas, assim como em Cipriano, a tradição colegial e conciliar africana foi preferida na maioria das vezes. (The Rise of the papado [Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1990] p. 79)

Lembremos que Agostinho citou com aprovação palavras proferidas por um concílio em Cartago liderado por Cipriano:

Portanto, se Pedro, sobre como fazendo isso, é corrigido pelo seu mais tarde colega Paulo, e ainda é preservada [a amizade de Paulo] pelo vínculo da paz e da unidade até que ele é promovido ao martírio, quanto mais prontamente e constantemente devemos preferir, ao invés da autoridade de um único bispo ou o concílio de uma única província, a regra que foi estabelecida pelos estatutos da Igreja universal? (...) [citando Cipriano]  Pois nenhum de nós coloca-se como um bispo de bispos, nem por terror tirânico alguém força seu colega à obediência obrigatória; visto que cada bispo, de acordo com a permissão de sua liberdade e poder, tem seu próprio direito de julgamentoe não pode ser julgado por outro mais do que ele mesmo pode julgar um ao outro. Mas esperemos todos o julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, que é o único que tem o poder de nos designar no governo de Sua Igreja, e de nos julgar em nossa conduta nela. (Sobre o Batismo, contra os donatistas, 2:1-2)

Estas palavras foram dirigidas ao então bispo de Roma em defesa da autonomia da Igreja Norte-Africana. Cipriano e o concílio local estão negando qualquer pretensão papal do bispo Romano. Agostinho, escrevendo no séc. V, não iria concordar com Cipriano nesta controvérsia (a questão do rebatismo). Mas, ele iria desculpar Cipriano porque, segundo ele, não houve nesse período qualquer concílio universal para decidir a questão. Agora, reflita um pouco. Cipriano está indo contra o bispo de Roma e Agostinho afirma que ele poderia ser desculpado porque não havia neste período um concílio universal decidindo a questão. Qual a implicação disso? Isto implica que as decisões do concílio universal estavam acima do bispo de Roma nas visões tanto de Agostinho como Cipriano. Robert Eno afirma:

Agostinho argumentou que Cipriano não deveria ser culpado por cometer um erro em uma questão complexa. Ele viveu antes que um concílio plenário ou universal pudesse decidir a questão. Se tal decisão tivesse sido tomada durante sua vida, não há dúvida de que ele teria aceitado desde que ele, ao contrário dos donatistas, era amante da unidade da Igreja. (Doctrinal Authority In Saint Augustine, Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 161)

Cabe aqui sumarizar a visão agostiniana, como Eno afirma:

É claro que Agostinho tinha um respeito genuíno pela posição da igreja de Roma na Igreja universal. Na verdade, seus pontos de vista eram provavelmente mais amigáveis do que os de muitos de seus colegas africanos. Agostinho, afinal de contas, tinha um conhecimento pessoal da cidade, bem como de alguns clérigos romanos. Não obstante, sua ação na crise pelagiana não alterou sua visão básica do concílio plenário como a última instância em disputas na Igreja, nem a sua visão da atividade conciliar em geral como o caminho comum para resolver problemas intra-eclesiais além do nível da igreja local (...) (Doctrinal Authority In Saint Augustine, Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 171)

Sobre a “vergonha” de afirmar que Agostinho não cria no primado jurídico e universal do bispo romano

A posição “vergonhosa” é amplamente defendida pelos historiadores e eruditos patrísticos. Tomemos os comentários dos historiadores citados pelo apologista católico. J.N.D Kelly, cuja autoridade em patrística é inquestionável, afirmou sobre Agostinho:

As três cartas referentes ao pelagianismo que a igreja africana enviou em 416 a Inocêncio I, das quais Agostinho foi o redator, sugerem que ele atribuía ao papa uma autoridade pastoral e didática que se estendia sobre toda a Igreja, tendo encontrado base para isso nas Escrituras. Ao mesmo tempo, não existem dados de que ele estivesse disposto a atribuir ao bispo de Roma, em sua condição de sucessor de Pedro, um magistério doutrinário soberano e infalível. Por exemplo, quando apelou a Inocêncio em sua controvérsia com Juliano de Eclano, sua concepção era que o papa seria apenas o porta-voz de verdades que a igreja romana, desde épocas antigas, sustentava em harmonia com outras igrejas católicas. Em assuntos práticos, ele também não estava disposto a abri mão, mesmo em questões insignificantes, da independência disciplinar da igreja africana, que Cipriano havia defendido com tanta intrepidez em sua época. A verdade é que a doutrina da primazia romana desempenhou um papel secundário em sua eclesiologia, como também em seu pensamento religioso pessoal. (J.N.D Kelly, Patrística, Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã (Editora Vida Nova, 1994), pág. 318)

Philip Schaff afirma algo similar:

Agostinho sem dúvida compreendia por igreja a Igreja Católica visível, descendente dos apóstolos, especialmente a partir de Pedro, através da sucessão de bispos, e de acordo com o uso de seu tempo, ele considerou a igreja romana como tendo eminência entre as sedes apostólicas. Mas, por outro lado, como Cipriano e Jerônimo, ele insiste na unidade essencial do episcopado, e insiste que as chaves do reino dos céus foram dadas não a um único homem, mas a toda igreja, que Pedro estava apenas representando. Com esta visão concorda a posição independente da igreja norte-africana no tempo de Agostinho em relação a Roma, como já observado no caso do recurso de Apiario, e como ela aparece na controvérsia pelagiana, de que Agostinho era o líder. Este pai, portanto, pode de fato ser citado apenas como um testemunho da autoridade limitada da cadeira romana. E deve também justamente ser observado, que em seus numerosos escritos, ele raramente fala dessa autoridade, e em sua maior parte incidentalmente, mostrando que ele dava muito menos importância a esse assunto do que os teólogos romanos. (The Master Christian Library [Albany, Oregon: AGES Software, 1998], History of the Christian Church, Vol. 3, p. 246)

Como o apologista não pode refutar este fato, ele passa a reproduzir espantalhos das minhas teses sem apontar em meus artigos qualquer trecho que corrobore suas afirmações:

O pior de tudo é o apologeta mirim (que significa literalmente pequeno) falando de teólogo latino como Santo Agostinho, dizendo que Agostinho negava a autoridade de Roma. Chega ser ridículo. Já que Roma era o único Patriarcado do Ocidente. Vergonhoso. Pode até questionar a autoridade de Roma para as igrejas Orientais, mas usar Agostinho para esse argumento é falta de leitura.

No primeiro artigo, eu afirmo:

“Ele tinha a igreja romana em alta conta, mas não considerava seu bispo uma autoridade soberana e infalível

E no segundo:

“Ele precisaria evidenciar que o bispo de Roma, de forma exclusiva, herdou tal primazia e atuaria como chefe de toda a Igreja. O bispo de Roma seria então a instância máxima de autoridade na Igreja. Além disso, ele precisaria provar que Agostinho acreditava em algum tipo de infalibilidade do bispo de Roma, pois este é um conceito chave para a doutrina papal.”

Como ele não consegue me responder nos termos acima, simplesmente toma qualquer citação em apoio a ideia de que Roma possuía algum tipo de autoridade como evidencia do papado. O problema é que as reivindicações papais são muito mais profundas. E o mais impressionante é que, na longa resposta que ele elaborou, não há um mísero historiador contradizendo qualquer das minhas teses ou afirmando que o bispo de Roma atuou como o chefe soberano de toda a Igreja nos séculos discutidos em meus artigos.

Inácio de Antioquia, Irineu de Lyon e a controvérsia pascal (séc. II)

Ele cita estes dois pais da Igreja superficialmente. Apologistas católicos frequentemente os citam fora do contexto para apoiar o papado, mas longe de endossar tal doutrina, estes autores completamente desconheciam o papado. Eu já tratei desses temas em detalhes (aqui e aqui). Até para não tornar a resposta demasiadamente longa, recomendo a leitura das seções de Inácio e Irineu dos respectivos artigos. Na parte II, vou explorar principalmente as citações de Philip Schaff trazidas pelo artigo católico. Este grande historiador da Igreja nos oferece um relato precioso a respeito da história do papado.

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