Recentemente tomei
conhecimento das postagens de um apologista católico chamado Rogério
endereçadas a minha série de artigos sobre Agostinho e o Catolicismo Romano
(aqui).
Há
pouquíssimos argumentos a serem rebatidos, pois o apologista dedica a maior
parte de seu texto a desferir ataques pessoais, fazendo um amplo uso de
falácias ad hominem e falácias genéticas. Eu mantenho este blog há mais
de três anos, e ainda que desenvolver um debate com um apologista católico que
seja minimamente polido seja tão difícil quanto achar uma agulha no palheiro,
iremos manter o compromisso de manter as discussões num nível mais elevado.
Dessa forma, vou me ater aos poucos argumentos apresentados que tentam fazer
crer que Agostinho cria no papado. O texto do católico estará em vermelho.
A
primazia de Pedro
Para apoiar a doutrina papal
usando Agostinho, é preciso provar que o teólogo acreditava que Pedro tinha
primazia jurídica sobre os demais Apóstolos. É aqui que os apologistas começam
a se fazer de desentendidos e tentam provar demais. Geralmente, eles selecionam
citações nas quais o pai da igreja elogiou a Pedro ou cometeu ao Apóstolo
alguma posição de destaque no círculo apostólico. Alguns Pais da Igreja
concedem a Pedro o que teólogos ortodoxos, protestantes e católicos romanos
chamam de primado de honra. Contudo, existe uma distância abissal entre primado
de honra e primado jurídico. O último implica que Pedro tinha uma autoridade
jurídica concedida por Cristo sobre os demais, o primeiro implica apenas que o
pescador tinha uma posição privilegiada no colégio apostólico, mas ainda assim
não poderia impor suas decisões a despeito dos demais. Richard McBrien - um
proeminente padre católico e professor de Teologia na Universidade de Notre Dame
– escreveu a respeito:
Pedro
era uma figura de importância central
entre os discípulos do Senhor (...) No entanto, os termos primazia e jurisdição é provavelmente melhor evitar ao
descrever o papel de Pedro no Novo Testamento. Eles são pós-bíblicos, de fato. (MCBRIEN,
Richard P. Catolicism. San Francisco: Harper, 1994, p. 753)
J. Michael Miller - o
arcebispo de Vancouver - foi nomeado pelo papa para presidir como Secretário da
Congregação da Educação Católica, um alto escalão da Cúria Romana. Em seu livro
The Shepherd and the Rock, com o Nihil obstat e o Imprimatur, escreveu de forma
detalhada sobre a diferença entre primado de honra e primado jurídico:
Nas
primeiras gerações, o pleno significado, autoridade e importância do ministério
petrino não estava imediatamente evidente. Parece que a Igreja de Roma e as
outras Igrejas da koinonia compreendiam pouco sobre o significado do ministério
de Pedro ou como ele iria funcionar (...). Enquanto o ministério petrino está
em causa, o papel do papa evoluiu dentro de um conjunto de fatores históricos
complexos. Parece que ele não usou
autoridade primacial completamente desde o início. Sem anacronismo, não podemos dizer que os primeiros papas exerceram a
sua jurisdição no sentido solenemente definido no Concílio Vaticano I, em 1870.
Só no processo de cumprir a sua missão é que a Igreja reconheceu as implicações
mais amplas do ofício de Pedro. No início, o ministério petrino foi pelo menos
parcialmente "adormecido" (...) O
Oriente, portanto, amplamente aceitou Pedro como corifeu (cabeça) do colégio
apostólico, o primeiro dos discípulos que confessou a verdadeira fé em nome de
todos. No entanto, como o teólogo ortodoxo John Meyendorff explica, os
orientais "simplesmente não
consideravam este louvor e reconhecimento como relevante de qualquer forma para
as reivindicações papais." Enquanto os padres gregos reconheceram a
liderança de Pedro na comunidade primitiva, eles negaram que ele teve um papel de direção que envolvia exercer
poder sobre os outros apóstolos. Por instituição divina, Pedro teve uma preeminência e uma dignidade
acima dos outros, mas não teve jurisdição sobre eles. Louvado embora estivesse
no oriente, Pedro tinha apenas uma
primazia de honra e proeminência. Os orientais respeitavam Pedro pelo seu
testemunho da fé apostólica, e não por seu poder de jurisdição”
(MILLER, Michael. The Shepherd and the Rock. Huntington, Indiana: Our Sunday
Visitor, 1995, p. 71-72, 116)
O também renomado teólogo
católico romano Hans Kung escreveu:
Na
Igreja primitiva, sem dúvida, Pedro teve uma autoridade especial. No entanto, ele não a possuía sozinho, mas sempre
colegialmente com os outros. Ele estava muito longe de ser um monarca
espiritual ou até mesmo um único governante. Não há nenhum vestígio de qualquer
quase monárquica autoridade exclusiva como líder.
(KUNG, Hans. The Catholic Church: A Short History . Modern Library, 2001, p.
19)
Cardeal Newman, cuja
importância para o catolicismo moderno é difícil de exagerar, também escreveu:
Enquanto
os Apóstolos estavam na terra, não havia
bispo ou papa. (Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã,
Cap. 4, Seção 3)
Esta é apenas uma pequena
amostra. Muitos outros historiadores católicos romanos poderiam ser citados. A
ideia de que Pedro tinha autoridade jurídica sobre os demais apóstolos é
amplamente desacreditada pelos acadêmicos católicos romanos. Especificamente
sobre Agostinho, meu oponente defendeu:
Todavia, vamos às
afirmações do artigo onde ele induz o leitor ao erro. Por quê? Por usar de
forma parcial uma afirmação de Agostinho como se o autor fosse contra a
Primazia Petrina.
Santo Agostinho
acreditava que Pedro representa toda a igreja, Sermão 295:2+. J1526, 391 A.D.
'Antes de sofrer, o
Senhor Jesus Cristo, como você sabe, escolheu Seus discípulos, a quem chamou
apóstolos. Entre esses apóstolos, em quase toda parte, só Pedro mereceu
representar toda a Igreja. Para representar toda a Igreja, o que ele sozinho
poderia fazer, ele mereceu ouvir: "Eu te darei as chaves do reino dos céus
(Mt 16:19)."'
Ou seja, como Pedro, na visão
de Agostinho, foi escolhido para representar toda a Igreja e recebeu as chaves,
ele teria a primazia jurídica e seria um papa. Há uma falácia clara neste
raciocínio. Porque Pedro ter sido escolhido o representante da Igreja implica
num primado jurídico e não apenas num primado de honra? Uma analogia jurídica
pode ser útil aqui. Órgãos colegiados possuem um presidente, que vota
juntamente com os demais. Apesar de o presidente representar o colegiado e ter
uma função de destaque, ele não pode decidir sozinho, nem contra o colegiado. O
fato de Pedro ter tido, segundo Agostinho, a honra de ser o representante da
Igreja no recebimento das chaves, não implica que ele detinha a primazia
jurídica sobre os demais. Vejamos a continuação desta citação:
Antes
de Sua paixão, o Senhor Jesus, como você sabe, escolheu aqueles discípulos dos
Seus, os quais chamou apóstolos. Entre aqueles foi somente a Pedro que em quase
toda a parte foi dado o privilégio de representar toda a Igreja. Foi na pessoa de toda a Igreja, que ele
sozinho representou, que ele foi
privilegiado em ouvir: “Dar-te-ei as chaves dos céus” (Mateus 16:19).
Depois de tudo, não foi somente um homem
que recebeu aquelas chaves, mas a Igreja em sua unidade. Assim, está é a razão da preeminência reconhecida
de Pedro, de que ele estava representando a universalidade e unidade da
Igreja, quando lhe foi dito “A você estou confiando”, que de fato tem sido confiado a todos.
(Sermão 295)
A preeminência de Pedro não
envolve qualquer autoridade jurídica sobre outros apóstolos, mas sim um
privilégio especial de ter atuado como representante de toda a Igreja. O
apologista católico também ignora uma porção importante para as pretensões
papais. Ao atuar como representante de todos, toda a Igreja em unidade teria
recebido as chaves e não apenas o bispo de Roma. Observem que ele aplica o dito
“A você estou confiando” a todos quando diz “que de fato tem sido confiado a
todos”. A visão Agostiniana é similar à de Cipriano. Lembremos que ele era um
bispo norte-africano, portanto, bastante influenciado pela teologia de
Cipriano. O bispo de Cartago, tendo vivido no séc. III, foi um grande oponente
das tentativas de supremacia do bispo de Roma sobre a Igreja norte-africana.
Ele também acreditava que Pedro atuou como um representante de toda a Igreja ao
receber as chaves, mas contra as pretensões do bispo de Roma, afirmou que todos os bispos eram detentores do
poder das chaves concedido a Pedro (aqui). O apologista também ignora
porções centrais do meu artigo que apontam a crença agostiniana segundo o qual
a rocha na qual a Igreja fora fundada não era a pessoa Pedro, mas Cristo:
Numa
passagem neste livro, eu disse sobre o Apóstolo Pedro: “Sobre ele, como uma
pedra, a Igreja foi construída” (...) Mas eu sei que mui frequentemente em um
tempo atrás, eu expliquei que o Senhor disse: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei minha Igreja”, que é para ser
entendido como construída sobre Ele, a
quem Pedro confessou dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Assim
Pedro, chamado depois esta pedra, representou
a pessoa da Igreja que é construída sobre esta pedra, e recebeu “as chaves
do reino do céu”. Porque “Tu és Pedro” e
não “Tu és a pedra” foi dito a ele. Mas “a pedra era Cristo”, em quem confessando, como também toda a Igreja confessa, Simão foi chamado Pedro. (The
Fathers of the Church (Washington D.C., Catholic University, 1968), Saint
Augustine, The Retractations Capítulo 20.1)
Dessa forma, Pedro era figura
da Igreja e atuou como seu porta-voz, mas a rocha não era Pedro, caso
contrário, seria ilógico acreditar que a Igreja ali representada no apóstolo
fora fundada sob si mesma. A rocha era o Cristo a quem Pedro (a Igreja)
confessa. O bispo de Hipona voltaria a condenar a ideia de que a rocha poderia
ser Pedro em outros escritos:
Previamente,
é claro, ele foi chamado Simão. Este nome de Pedro lhe foi concedido pelo
Senhor, e isto com a intenção simbólica
de sua representatividade da Igreja. Porque
Cristo, você vê, é a petra ou pedra. Pedro, ou Rochoso, é o povo Cristão.
(Sermão 76)
Novamente, Pedro é destacado
em sua posição como representante da Igreja. Ao confessar Jesus como o filho de
Deus, ele representou a confissão que todo cristão faz, mas o fundamento era
Cristo. Agostinho prossegue:
Porque os homens que desejavam
edificar sobre homens,
diziam, ‘Eu sou de Paulo; e eu de Apolo; e eu de Cefas, que era Pedro. Mas outros que não desejavam edificar sobre
Pedro, mas sobre a Pedra, diziam, ‘Mas eu sou de Cristo'. E quando o
Apóstolo Paulo averiguou que ele foi escolhido, e Cristo desprezado, ele disse,
‘Está Cristo dividido? Foi Paulo crucificado por vós? Ou fostes vós batizados
em nome de Paulo?' E, como não no nome de Paulo, assim nem também no nome de
Pedro; mas no nome de Cristo: que Pedro
deveria ser edificado sobre a Pedra, não a Pedra sobre Pedro. Este mesmo
Pedro, portanto, que tinha sido declarado ‘bem-aventurado' pela Pedra, carregando a figura da Igreja.
(Philip Schaff, Nicene and Post-Nicene Fathers (Grand Rapids: Eerdmans, 1956),
Volume VI, St. Augustin, Sermon XXVI.1-4, pp. 340-341).
Ainda no mesmo sentido, Agostinho
escreveu:
Porque,
como algumas coisas são ditas que parecem peculiarmente se aplicar ao Apóstolo
Pedro, e todavia não são claras em seu
significado, a menos quando se refere à Igreja, a quem ele é reconhecido ter figurativamente representado, por causa
da primazia que ele tinha entre os Discípulos; como está escrito,
‘Dar-te-ei as chaves do reino dos céus', e outras passagens de propósito
semelhante: assim Judas representa
aqueles Judeus que eram inimigos de Cristo.
(Exposição sobre o Livro de Salmos, Salmos 199)
Observem a natureza da
analogia. Da mesma forma que Pedro atuou como representante da Igreja (e esta
era a primazia de Pedro), Judas atuou como representante dos judeus que eram
inimigos de Cristo. Agora, isto permitiria afirmar que Judas era chefe jurídico
dos Judeus? Obviamente não. O mesmo raciocínio se aplica a Pedro. A questão que
se coloca é se tal interpretação é apenas uma elaboração de um humilde
apologista de internet como eu ou possui lastro nos especialistas em história
da Igreja. John Rotelle,
especialista em Agostinho e editor da série Católica Romana dos sermões de
Agostinho, faz estas observações:
Pedro
existia, e ele não tinha sido ainda confirmado na pedra: Isto é, em Cristo,
como participante em seu “rochedo” pela fé. Isto não significa confirmado como
a pedra, porque Agostinho nunca pensou
de Pedro como a pedra. Jesus, apesar de tudo, não lhe chamou de fato a
pedra (...) mas “rochoso”. A pedra na qual ele construiria sua Igreja era, para
Agostinho, tanto o próprio Cristo como a
fé de Pedro, representando a fé da Igreja. (John
Rotelle, Ed., The Works of Saint Augustine (New Rochelle: New City, 1993),
Sermons, Sermon 265D.6, p. 258-259, n. 9)
W.H.C. Frend – outro
especialista em Agostinho – escreveu:
Agostinho
(...) rejeitou a ideia de que “o poder das chaves” tinha sido confiado somente a Pedro. Sua primazia era simplesmente uma questão de privilégio pessoal, e não
um ofício. Similarmente, ele nunca
reprovou os Donatistas por não terem comunhão com Roma, mas pela falta de
comunhão com a visão apostólica como um todo.
(W.H.C. Frend, The Early Church (Philadelphia: Fortress, 1965), p. 222)
A
primazia jurídica do bispo de Roma
Suponha para o bem do debate
que o apologista tenha evidenciado que Pedro de fato tinha primazia jurídica no
colégio apostólico. Isto, por si só, ainda seria insuficiente para suas
pretensões. Ele precisaria evidenciar que o bispo de Roma, de forma exclusiva,
herdou tal primazia e atuaria como chefe de toda a Igreja. O bispo de Roma seria então a instância máxima de
autoridade na Igreja. Além disso, ele precisaria provar que Agostinho
acreditava em algum tipo de infalibilidade do bispo de Roma, pois este é um
conceito chave para a doutrina papal. Sobre este último ponto, ele sequer
argumentou. O apologista disse:
Santo Agostinho
acreditava na sucessão apostólica em Roma, Carta a Generosus 53:1:2. J1418, 400
A.D.
“Se a própria ordem
da sucessão episcopal deve ser considerada, quanto mais seguramente,
verdadeiramente, e com segurança, os numeramos desde o próprio Pedro, a quem,
como um representante de toda a Igreja, o Senhor disse: "Sobre esta rocha
eu edificarei a Minha Igreja, e as portas do inferno não a vencerão (Mt 16:18).
"Pedro foi sucedido por Linus, Linus por Clemente, Clemente por Anacletus,
etc”
O argumento se desfaz na
medida em que Pedro atuou como representante de toda a Igreja e não apenas de
Roma. Dessa forma, as chaves que ele recebeu, como já demonstrado, foram
passadas a toda a Igreja e não apenas a Roma. Nenhuma das prerrogativas de
Pedro são exclusivamente passadas para Roma. Além disso, se a simples crença de
que Pedro deixou uma sucessão de bispos em Roma implica no papado romano, o
mesmo deveria ser dito de Antioquia, pois era acreditado pelos pais da Igreja
do período que Pedro também deixou uma sucessão de bispos em Antioquia. A lista
de bispos de Antioquia pode ser vista aqui.
Ademais, a lista de Agostinho (Pedro, Lino, Clemente, Anacleto....) é diferente
da lista oficial adotada pela Igreja Romana (aqui). O
apologista então comenta em cima da citação que eu já apresentei na qual
Agostinho afirma que não Pedro, mas Cristo era a rocha:
Novamente a sucessão
e primazia, o apologeta mirim diz que Agostinho estava errado em acreditar que
Pedro foi bispo de Roma. Caraca, Bruno está tentando desqualificar o primado
dos sucessores de Pedro? Porque Pedro não foi bispo de Roma, infelizmente (para
Bruno) um grupo expressivo de autores patrísticos acreditavam em Pedro como
bispo de Roma. Se há um ponto central de há erro na crença de Agostinho, ele
deveria ter usado isso. Por que não começou a partir daí? Então, Agostinho
acreditava que Pedro foi bispo de Roma? Para o rapaz, sim. “Algo errado não
está certo”. Parece-me muito seletivo isso. Percebe-se no texto que, para o
autor, alguns argumentos de Santo Agostinho estão certos, outros errados. Ele
fica somente com aqueles que combinam com sua ideias.
Quando ele diz “novamente a
sucessão e primazia”, falha em não perceber que não há primazia jurídica em
vista e que as prerrogativas de Pedro não são adquiridas exclusivamente pelo
bispo de Roma. O teólogo e cardeal católico romano Yves Congar afirmou a
respeito da interpretação patrística de Mateus 16:18:
Às
vezes aconteceu que alguns Padres entendiam a passagem de uma maneira que não está de acordo com o ensinamento da
Igreja mais tarde. Um exemplo: a interpretação da confissão de Pedro em
Mateus 16:16-19. Exceto em Roma, esta
passagem não foi aplicada pelos Padres para o primado papal; eles
trabalhavam fora de uma exegese ao nível do seu próprio pensamento
eclesiológico, mais antropológica e
espiritual do que jurídica. (CONGAR, Yves. Tradição e
tradições. New York: Macmillan, 1966, p. 398)
Com exceção de Roma, os demais
teólogos (inclui Agostinho) não aplicaram Mateus 16 ao primado papal e
aplicaram uma exegese “espiritual” e não uma interpretação jurídica, ou seja,
eles não viram primado jurídico nesta passagem. O apologista então passa a
reclamar porque eu disse que Agostinho e outros pais da Igreja estariam errados
em acreditar que Pedro foi bispo Roma e lá deixou uma sucessão de bispos. Ao
apresentar as visões de um pai da igreja, eu não estou vinculado a elas. Eu
posso discutir sobre as opiniões de qualquer teólogo sem endossá-las. Isto vale
inclusive para a Igreja de Roma. O teólogo católico romano Peter Stravinskas
admite:
Apesar
da tremenda influência de Agostinho, várias
de suas opiniões nunca ganharam aceitação na Igreja. Entre elas, podemos
destacar as seguintes teorias: que Deus
condenaria crianças não batizadas ao inferno, simplesmente por causa da herança
do pecado original; que Deus justamente condena adultos que nunca tiveram a
oportunidade de serem apresentados ao Evangelho, mais uma vez, devido
unicamente ao pecado original contraído por eles; que algumas pessoas sofreriam condenação eterna por nenhuma outra razão
do que a falta de interesse de Deus em salvá-las. Ao refletirmos sobre
essas posições agostinianas, devemos lembrar do fato de que só porque alguém é um santo ou mesmo um doutor da Igreja não torna
todo seu corpo de ensinar aceitável, somente o Magistério da Igreja pode
decidir o que é ou não é conforme sua compreensão da verdade de Cristo.
(Envoy, Setembro/Outubro de 1998)
A respeito do fato de que
Pedro não foi bispo de Roma e de que não havia bispos monárquicos em Roma até
meados do séc. II, já apresentei argumentos em outro artigos (aqui)
e principalmente (aqui) onde me baseio na obra do renomado eclesiologista católico romano Francis
Sullivan .
Além
disso, a visão de que Roma não possui bispos monárquicos no princípio é
amplamente defendida pelos historiadores católicos romanos. Você pode ver aqui uma amostra de vários enunciando esta visão (aqui).
O fato de Agostinho acreditar
que o pescador foi bispo de Roma e lá deixou uma sucessão de bispos é
insuficiente para pretensão papal e perfaz uma tentativa de provar demais.
Contudo, o momento em que sua defesa fica mais frágil é quando ele tenta
explicar as posições conciliaristas de Agostinho apresentadas na citação
abaixo:
Bem,
vamos supor que aqueles bispos que decidiram o caso em Roma não eram bons
juízes, ainda resta o concílio plenário
da Igreja universal, em que esses juízes podem apresentar sua defesa, de
modo que, se eles foram condenados por erro, as suas decisões podem ser revertidas.
(Carta 43:19)
O católico comentou:
Essa citação que ele
até faz no artigo talvez seja pior de todas. Fecha o caixão. Como todo
apologista que odeia a Igreja Bruno age talvez por ingenuidade ou
mau-caratismo. Possível ver a falcatrua ao usar esta fonte primária. Quando ele
cita Carta 43, que foi escrita de Santo Agostinho, nela Agostinho criou uma
hipótese sobre um POSSÍVEL erro de julgamento e não defendendo o conciliarismo,
pois em primeira instância crer no juízo de Roma. Só em último caso Agostinho
falava em recorrer ao concílio para poder reverter um SUPOSTO mau juízo romano,
mas vemos que acreditava que Roma era a primeira a julgar, ou seja, um local de
decisões sobre a Igreja Universal. Falha de interpretação e leitura apaixonada.
(1) Ele afirma que esta
citação aponta que Roma era “um local de decisões sobre a Igreja Universal”.
Mais uma vez tenta provar demais. Provavelmente por desconhecer o contexto
desta carta (aqui), ele
desconheça que o pano de fundo é a controvérsia donatista, ou seja, algo
restrito à Igreja Ocidental. Por isso, era natural que a sé romana fosse
consultada. O mesmo já não poderia ser dito a respeito de controvérsias da
Igreja Oriental, pois Roma não era uma instância recursal de toda a Igreja
neste período. Mas até mesmo em relação à Igreja norte-africana (parte da
Igreja Ocidental), Agostinho quis manter sua autonomia. O renomado historiador
católico romano Klaus Schatz atesta:
A igreja africana preservou
sua autonomia de modo ainda mais decidido no terreno da jurisdição. Nos concílios de Cartago realizados em
419 e 424, se chega a proibir o recurso
a Roma. O contexto dessa medida foi o caso do presbítero Apiario, que tinha
sido excomungado pelo seu bispo e, em
Roma (sem o conhecimento da situação) foi reabilitado em seus direitos. Os
norte-africanos reagiram, por um lado, concedendo
aos presbíteros a possibilidade de uma instância de recurso (o julgamento de
seu bispo pelo concílio norte-africano de Cartago), com o qual se satisfazia o
desejo de segurança jurídica. Por outro lado, se defenderam energicamente contra uma intervenção de Roma: ela de
longe incorria em julgamentos errados, pela simples razão de que em tais
processos judiciais era impossível fazer chegar da África as testemunhas
necessárias. Além disso, é
impensável que Deus conceda o espírito de juízo justo a um particular, isto é, ao
bispo de Roma, e não a todo um concílio de bispos. Por isso, os norte-africanos
proibiram para o futuro qualquer recurso "ultramarino", mesmo para o
caso dos bispos, opondo-se assim os cânones de Sárdica. Essa proibição
tinha um precedente no caso de um bispo afastado de sua comunidade, mas que
Roma tinha amparado. Por causa disso, o
mesmo Agostinho ameaçou se demitir. A instância de recurso era apenas o
concílio norte-africano de Cartago. Este caso repetidamente fornecido ao longo
da história oferece o exemplo para apoiar a resistência episcopalista das
igrejas nacionais contra o centralismo romano.
(Papal Primacy, Minnesota: The Liturgical Press, 1996, p. 35-36)
Observem que mesmo uma Igreja
como a norte-africana, que não poderia reivindicar fundação apostólica, proibiu
o envio de recursos à Roma. Ainda, a justificativa não era apenas prática, mas
teológica – o bispo de Roma não poderia ser uma instância de julgamento melhor
do que um concílio de bispos do norte da África.
(2) O católico também enfatiza
que Agostinho tratou apenas de uma hipótese, mas observem que conforme relato
de Schatz, isto não ficou apenas no campo das possibilidades. Ainda sem
perceber, ele assassinou sua própria premissa neste trecho: “Só em último caso Agostinho falava em recorrer ao concílio
para poder reverter um SUPOSTO mau juízo romano, mas vemos que acreditava que
Roma era a primeira a julgar”. Se Roma funcionava como instância inicial, segue-se que ela não era uma
instância final, logo seria uma instância inferior. Surpreende que ela não siga
o seu próprio raciocínio. Se alguém afirma que tribunal x é a primeira
instância, segue-se que há outras instâncias superiores cujas decisões sobrepujam
a deste tribunal. O raciocínio implica que o concílio universal era a instância
superior, e não o bispo de Roma. Ele também ignorou outras citações do meu
artigo inicial que inequivocamente demonstram o conciliarismo agostiniano:
Portanto, se Pedro, sobre como fazendo isso,
é corrigido pelo seu mais tarde colega Paulo, e ainda é preservada [a amizade
de Paulo] pelo vínculo da paz e da unidade até que ele é promovido ao martírio,
quanto mais prontamente e constantemente
devemos preferir, ao invés da autoridade de um único bispo ou o concílio de uma
única província, a regra que foi estabelecida pelos estatutos da Igreja
universal? (...) [citando Cipriano] Pois
nenhum de nós coloca-se como um bispo de bispos, nem por terror tirânico alguém
força seu colega à obediência obrigatória; visto que cada bispo, de acordo com
a permissão de sua liberdade e poder, tem seu próprio direito de julgamento,
e não pode ser julgado por outro mais do
que ele mesmo pode julgar um ao outro. Mas esperemos todos o julgamento de
nosso Senhor Jesus Cristo, que é o único que tem o poder de nos designar no
governo de Sua Igreja, e de nos julgar em nossa conduta nela. (Sobre o Batismo, contra os donatistas, 2:1-2)
Esta citação não poderia ser mais clara. Percebam que mesmo com Pedro em
vista, Agostinho defende a ideia de que a autoridade de um único bispo não é
maior do que a de um concílio universal. Como alguém que era papista poderia
fazer tal afirmação? Na continuação da citação, ele cita Cipriano. O contexto
desta citação de Cipriano é bastante relevante para este debate. Estas foram as
palavras do sétimo concílio de Cartago liderado por Cipriano. As palavras se
dirigem a Estevão (bispo de Roma no séc. III) que desejava impor o costume
romano à Igreja norte-africana. Em sua reação, Cipriano faz a famosa defesa de
que todos os bispos eram igualmente sucessores de Pedro e que nenhum bispo
poderia se colocar como “bispo dos bispos”, ou seja, um papa. Para mais
detalhes (aqui).
O já citado historiador católico romano Klaus Schazt elucida este ponto:
A questão aqui era o 'reconhecimento de uma
autoridade superior pertencente aos sucessores de Pedro, que não podiam ser adequadamente descritas em termos jurídicos. Em
princípio, o bispo romano não tinha mais
autoridade do que qualquer outro bispo, mas na hierarquia de autoridades, sua
decisão tomou o lugar mais importante. Por outro lado, Cipriano considerava cada bispo como sucessor de Pedro, titular das chaves do reino dos céus e
possuidor do poder de ligar e desligar. Para ele, Pedro encarna a unidade
original da Igreja e do escritório episcopal, mas, em princípio, esses também estavam presentes em cada
bispo. Para Cipriano, a
responsabilidade por toda a Igreja e a solidariedade de todos os bispos também
poderia, se necessário, voltar-se contra Roma. Há um exemplo marcante desta
relação no mesmo período envolvendo dois bispos espanhóis, Basilides e Marcial.
Durante a perseguição não tinham sacrificado aos ídolos, mas como muitos outros
cristãos, haviam subornado funcionários para obter "certificados de
sacrifício" (libelli). Como resultado, eles haviam perdido credibilidade
em suas congregações e tinham sido expulsos. No entanto (na opinião de Cipriano
por deturpar os fatos), eles conseguiram obter o reconhecimento de Estevão de
Roma. Cipriano reagiu imediatamente
chamando um Sínodo Africano para avisar as duas comunidades que rejeitassem a
decisão de Estevão e se recusassem a readmitir os dois bispos. (Papal Primacy, Minnesota: The Liturgical
Press, 1996, p. 35-36, pp. 20-21)
Observem que a tradição conciliarista de Agostinho não era uma inovação,
mas fora recebida das mãos de Cipriano. Na visão desses pais da Igreja, até
mesmo um concílio local da Igreja Norte-Africana tinha precedência sobre as
decisões do bispo de Roma. Não por acaso, a sé romana foi diversas vezes
contrariada pela igreja africana. Robert Eno – um historiador católico romano e
especialista em Agostinho – atesta em duas de suas obras:
Em outro lugar eu argumentei em detalhes a
visão de Agostinho sobre a autoridade na Igreja e que, na minha opinião, o concílio [não o Papa] foi o principal
instrumento para resolução de controvérsias (...) Eu acredito que Agostinho
tinha grande respeito pela igreja romana cuja antiguidade e origens apostólicas
ofuscou, de longe, outras igrejas no Ocidente. Mas, assim como em Cipriano, a tradição colegial e conciliar africana
foi preferida na maioria das vezes. (The Rise of the papado [Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1990]
p. 79)
É claro que Agostinho tinha um respeito
genuíno para a posição da igreja de Roma na Igreja universal. Na verdade, seus pontos de vista eram provavelmente
mais amigáveis do que os de muitos de seus colegas africanos. Agostinho,
afinal de contas, tinha um conhecimento pessoal da cidade, bem como de alguns
clérigos romanos. Não obstante, sua ação na crise pelagiana não alterou sua visão básica do concílio
plenário como a última instância em disputas na Igreja, nem a sua visão da
atividade conciliar em geral como o caminho comum para resolver problemas
intra-eclesiais além do nível da igreja local (...) (Doctrinal Authority In Saint Augustine,
Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 171)
W.H.C. Frend expressa o mesmo:
Sua visão do governo da Igreja era que
questões menos importantes deveriam ser resolvidas por concílios provinciais, grandes questões em concílios gerais. (W.H.C. Frend, The Early Church
(Philadelphia: Fortress, 1965), p. 222)
Há uma importante questão em que ausência de uma visão papista fica evidente
em Agostinho. Nos debates entre católicos romanos e protestantes, o cânon é um
item frequente. Eles nos dizem que precisamos do papado para saber qual é o
cânon correto. O bispo de Hipona, por outro lado, expressou visão distinta:
Agora, a respeito das Escrituras canônicas, deve-se seguir o julgamento do maior número
de igrejas católicas; e entre estas, é claro, um lugar de destaque deve ser dado ao que se achar digno de ser a sede
de um apóstolo ou receber epístolas. Consequentemente, entre as Escrituras
canônicas deve-se julgar de acordo com a seguinte regra: preferir aqueles que são recebidos por todas as igrejas católicas
do que aqueles que alguns não recebem. Entre aqueles, novamente, que não são
recebidos por todos, deve-se preferir
aqueles que têm a sanção do maior número e daqueles de maior autoridade, do
que aqueles que são recebidos pelo menor número e os de menos autoridade. Se,
contudo, se achar que alguns livros são tidos pelo maior número de igrejas e
outros pelas igrejas de maior autoridade (apesar de isto não ser algo muito
provável de acontecer), eu acho que em
tal caso a autoridade dos dois lados deve ser considerada igual. (On Christian Doctrine, Livro 2, seção VIII
(Nova York: Liberal Arts Press, 1958), p. 41)
Agostinho estabelece um conjunto de critérios que apela ao consenso da
Igreja, sem sequer mencionar qualquer papel do bispo de Roma. Ele cita as
igrejas de maior autoridade, mas entre elas, Roma não era única. Estariam aí as
igrejas fundadas por apóstolos ou que receberam epístolas de apóstolos. No
entanto, ele contrabalanceia as igrejas de maior autoridade com as igrejas que
poderiam estar me menor número. Neste caso “a autoridade dos dois lados deve
ser considerada igual”. O fato de ele não atribuir ao bispo de Roma nenhum
papel exclusivo e superior é indicativo da ausência de uma mentalidade papal
neste período. Numa última tentativa, o católico romano traz a famosa citação
na qual o bispo de Hipona diz:
Eu não creria no Evangelho, se a isso não me
levasse a autoridade da Igreja católica. (Contra a Carta de Mani 5,6)
Eu já tratei do contexto desta citação em outro artigo (aqui).
O que importa mencionar é que esta citação não tem qualquer relação com o
bispo de Roma. Agostinho tem em vista a autoridade da Igreja Universal, que ele
invocou contra os donatistas. E, como já extensivamente demonstrado, o órgão
máximo de autoridade da Igreja não era o bispo de Roma e sim o concílio universal.
Por isso, esta citação em nada endossa o papado. O também teólogo católico
romano Hans Kung afirma o consenso acadêmico:
Para
Agostinho, em qualquer caso, todos os
bispos eram fundamentalmente iguais, embora ele pensasse que Roma era o
centro do império e da Igreja, ele não
deu impulso ao papismo. Ele não achava de qualquer forma, ele não pensava em termos de uma primazia
de governo ou jurisdição de Roma. Pois, não foi sobre Pedro como uma pessoa
(ou até mesmo seu sucessor), que a Igreja foi fundada, mas sobre Cristo e a fé
Nele. O Bispo de Roma não era a
autoridade suprema na Igreja. A
autoridade suprema era o concílio ecumênico, como era para o conjunto do oriente
cristão, e Agostinho não atribuiu qualquer autoridade infalível, mesmo para
esse. (Hans Kung. The Catholic Church: A Short History . Modern
Library, 2001, p. 51-52)
Considerações Finais
O apologista católico em questão começou a sua resposta apontando o fato
de eu ter linkado um artigo
protestante na primeira parte da série,
o
qual afirma que Agostinho não acreditava na eficácia na ex opere operato dos sacramentos. Segundo ele, ao trazer a
perspectiva do blog protestante que havia iniciado a discussão inspiradora da
minha série, eu estaria necessariamente endossando tudo o que o blog disse. Ocorre,
que em nenhum lugar da série eu abordo a questão. Mesmo no artigo que trata
especificamente dos sacramentos (aqui), eu não a abordo. Ao observarmos os argumentos
do apologista, fica óbvio porque ele necessita destacar um ponto sobre o qual
não argumentei ao invés de focar naquilo sobre o qual de fato escrevi, afinal
os argumentos por ele apresentados são frágeis e sequer interagem com a maior
parte do meu artigo. Agora, o mais contraditório é o trecho seguinte:
Bruno Lima é outro
farsante que não conhece nada de Patrística ou de doutrina da Igreja Católica.
Ele deveria ler livros sobre o assunto ao invés de só se informar em sites de
apologética estrangeiros. O choro é livre.
O meu blog fala por si. Quem leu meus artigos sabe que eles são
fartamente documentados com citações (como este artigo), e em sua maioria de
renomados historiadores católicos romanos. É no mínimo estanho que a pessoa que
me deu esse conselho não tenha fundamentando sua tese do Agostinho papista com
nenhuma citação de qualquer historiador. Ou seja, o problema do nobre
apologista não é comigo, mas com os melhores teólogos e historiadores da sua
própria denominação. Encerro aqui sumarizando os dois pontos em que a
apologética católica tem falhado em evidenciar: (a) a primazia jurídica de
Pedro e; (b) a primazia jurídica do bispo de Roma sobre toda a Igreja.
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