Nesta terceira parte, vou
abordar aquela que considero a evidência mais clara e inequívoca de que o
magistério de Roma mudou seu ensino doutrinal. Vamos abordar os concílios
medievais e o Concílio de Trento que teriam definitivamente exposto a doutrina
sobre a salvação fora da Igreja. O primeiro documento a ser analisado é a Bula
Unam Sanctam do Papa Bonifácio VIII (texto na íntegra aqui).
Vejamos:
Una,
santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já
que é isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com
simplicidade testemunhamos. Fora dela
não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o esposo no
Cântico: "Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe
que a gerou" (Ct 6:9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é
Cristo e Deus é a cabeça de Cristo. Nela existe "um só Senhor, uma só fé e
um só batismo" (Ef 4:5). De fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do
dilúvio; ela foi a figura antecipada da única Igreja; encerrada com "um
côvado" (Gn 6:16), teve um único piloto e um único chefe: Noé. Como lemos,
tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.
A
esta única Igreja, nós a veneramos, como diz o Senhor pelo profeta: "Salva
minha vida da espada, meu único ser, da pata do cão" (Sl 21:21). Ao mesmo
tempo que Ele pediu pela alma - ou seja, pela cabeça - também pediu pelo corpo,
porque chamou o seu corpo como único, isto é, a Igreja, por causa da unidade da
Igreja no seu esposo, na fé, nos sacramentos e na caridade. Ela é a veste sem
costura (Jo 19:23) do Salvador, que não foi dividida, mas tirada à sorte. Por
isso, esta Igreja, una e única, tem um só corpo e uma só cabeça, e não duas
como um monstro: é Cristo e Pedro, vigário de Cristo, e o sucessor de Pedro,
conforme o que disse o Senhor ao próprio Pedro: "Apascenta as minhas
ovelhas" (Jo 21:17). Disse "minhas" em geral e não
"esta" ou "aquela" em particular, de forma que se
subentende que todas lhe foram confiadas. Assim, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e aos seus
sucessores, é necessário que reconheçam que não fazem parte das ovelhas de
Cristo pois o Senhor disse no evangelho de São João: "Há um só rebanho e
um só Pastor" (Jo 10:16). ("Bula Unam Sanctam"
MONTFORT Associação Cultural)
O último parágrafo da Bula não
deixa margem para dúvidas:
Por
isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar
sujeita ao romano pontífice.
A bula também expõe a teoria
das duas espadas, segundo a qual a Igreja detém a espada espiritual, a qual
exerce diretamente, e a temporal, a qual exerce por intermédio do Estado. Em
síntese, o Papa estava defendendo seu poder sobre os reis, pois ele era o
vigário de Cristo e autoridade suprema não somente em assuntos espirituais, mas
também temporais. Sullivan traz os comentários:
Uma
Bula é uma carta papal que é selada com uma bulla, que é um tipo especial de
selo anexado a documentos de importância particular. A bula Unam Sanctam começa
com uma profissão de fé na unidade da igreja, fora da qual não há salvação. Ele enfatiza, mais do que as
declarações papais e conciliares anteriores a esta doutrina haviam feito, o papel
do papa como cabeça sob Cristo desta única igreja.
Deve-se
notar que, ao enunciar a doutrina
tradicional sobre a necessidade de estar na igreja para a salvação, Bonifácio
VIII enfatiza particularmente o papel do papa como cabeça da igreja, com a consequência
de que aqueles não podem ser membros do rebanho de Cristo se não estão
submetidos ao seu pastor visível.
Na
nota histórica que Adolf Schonmetzer, o erudito editor das edições recentes de
Denzinger, ofereceu a esta bula, ele
afirma que apenas essa sentença final é uma definição dogmática. Ele a
interpreta à luz dos primeiros parágrafos da bula, que afirmam a necessidade de pertencer à Igreja Católica para a salvação,
em vez de definir a teoria da supremacia do espiritual sobre o poder temporal
de Bonifácio. Em apoio a essa interpretação, Schonmetzer observa que a sentença final é tirada de uma obra de São
Tomás, onde a necessidade de sujeitar-se ao Romano Pontífice é simplesmente
outra maneira de expressar a necessidade de estar na comunhão da Igreja
Católica para ser salvo. (Contra errores graecorum, 2,
cap. 32 (ed. Parma 15 :25 7)
A
nota histórica de Schonmetzer reflete a
interpretação mais comum da bula entre os teólogos católicos, a saber, que o
Papa Bonifácio, sem dúvida, sustentava e ensinava a teoria medieval da
supremacia do espiritual sobre o poder temporal, e o que ele definiu
solenemente na sentença final nada mais é do que a doutrina clássica de que não
há salvação fora da Igreja Católica. No entanto, um estudo recente da
questão, de George Tavard, oferece uma abordagem diferente. Tavard insiste que
a sentença final deve ser entendida à luz do tema principal da Bula, que é a
supremacia papal sobre os governantes temporais. Por outro lado, Tavard
acredita que faltava uma condição essencial para uma definição dogmática, uma
vez que, mesmo na época de Bonifácio, não havia consenso sobre essa doutrina na
igreja, e ela não sobreviveu como parte do patrimônio de fé da igreja. (George
Tavard, “The Bull Unam sanctam of Boniface VIII,” in Papal Primacy and the
Universal Church (Lutherans and Catholics in Dialogue, V), Minneapolis:
Augsburg, 1974, pp. 105—119)
Sem
tentar decidir qual dessas duas interpretações é preferível, podemos concluir
observando que nenhum teólogo católico sustenta agora que a teoria de Bonifácio
sobre a supremacia do espiritual sobre o poder temporal é um dogma da fé
católica. É seguro dizer que se a Bula
definia alguma coisa, era simplesmente a doutrina tradicional de que não há
salvação fora da Igreja Católica. (F.A Sullivan, p. 65-66)
Em suma, a Bula define
dogmaticamente a doutrina tradicional, segundo a qual ninguém poderia ser salvo
estando fora da Igreja. Estar na igreja tinha uma consequência inevitável, que
era se submeter ao bispo de Roma. Observem que a divergência interpretativa em
relação ao texto da bula não se refere a doutrina da salvação fora da igreja.
Sobre isto, não resta dúvida. A divergência é sobre a doutrina da submissão dos
governantes ao papa. A maioria dos teólogos católicos concordam que Bonifácio
estava dogmaticamente definindo isto também – o Papa considerava que o poder
temporal também deveria ser submeter ao seu comando. Dessa forma, a bula contradiz
o atual ensino de Roma nesses dois aspectos: a impossibilidade de salvação dos
que não estão sob o domínio do papa, bem como a submissão do poder temporal a
ele.
Eu já presenciei todo tipo de
malabarismo para tentar conciliar a Bula com o ensino moderno de Roma, mas não
há para onde escapar – submissão explícita ao papa é condição indispensável
para salvação. Observem que o documento cita os “gregos”. Oram, estes eram os
cristãos ortodoxos orientais que não se submetiam ao papa. A bula os cita como
exemplo de grupo que estava perdido. Agora, imaginem a situação dos mulçumanos,
judeus e outros que sequer cristãos eram.
Outro documento que não deixa
margem para dúvidas é o Decreto dos Jacobitas do Concílio de Florença, que fora
concluído em 1445. Segue os comentários de Sullivan juntamente com o texto do
decreto:
O
concílio que é comumente chamado de Florença começou em Basileia em 1431, foi
transferido para Ferrara em 1438, para Florença em 1439 e, finalmente, para
Roma, onde foi concluído em 1445. O principal esforço deste concílio era trazer
a reunião com as igrejas orientais separadas. Vários decretos de união foram
promulgados, mas os eventos subsequentes provaram que a maioria deles era
ineficaz para uma união duradoura. Entre esses decretos estava o da união de
várias igrejas coptas, cujos membros também eram chamados de Jacobitas. O
decreto tinha a forma de uma profissão de fé católica, à qual os jacobitas eram
obrigados a declarar sua adesão. Entre outros artigos estava o seguinte:
A
Igreja crê firmemente, professa e prega que
todos aqueles que estão fora da Igreja Católica, não só pagãos, mas também
judeus ou hereges e cismáticos, não podem compartilhar a vida eterna e irão
para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos, a menos que
eles estejam ligados à Igreja Católica antes do final de suas vidas, pois a
unidade do corpo eclesiástico é de tal importância que somente aqueles que
recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo jejuns,
obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o
quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de
Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica. (Decreto
dos Jacobitas – Concílio de Florença)
O
leitor atento reconhecerá, sem dúvida, a primeira sentença deste decreto
conciliar como uma que citamos anteriormente de uma obra do discípulo do século
VI de Santo Agostinho - Fulgêncio de Ruspe. A frase final é também uma citação
da mesma obra de Fulgêncio. Como vimos acima, Fulgêncio seguiu Agostinho mesmo
em suas teorias mais extremas sobre as consequências do pecado original (...)
[Nós]
Temos boas razões para entender este decreto à luz do que era então a crença comum de que todos os pagãos, judeus,
hereges e cismáticos eram culpados do pecado da infidelidade, com base no fato
de que eles se recusaram culposamente a aceitar a verdadeira fé ou permanecer
fiel a ela. Vimos como São Tomás distinguiu três tipos de descrença
pecaminosa: a dos pagãos, a dos judeus e a dos hereges e cismáticos cristãos. Os bispos em Florença estavam apenas
esboçando a conclusão lógica do ensinamento de São Tomás sobre esses pecados de
infidelidade. Seu decreto não pode ser entendido, exceto à luz de seu julgamento sobre a grave culpabilidade de todos
aqueles que eles declararam que seriam condenados para o inferno.
Temos
que tentar entender o fato de que simplesmente não ocorreu à mente medieval que
pessoas como os judeus, vivendo no meio da cristandade, pudessem persistir em sua crença judaica e sua rejeição da fé cristã, e
não serem culpados desse pecado. Ainda menos podiam os cristãos medievais
acreditar na inculpabilidade dos
muçulmanos, que eram os inimigos da cristandade contra os quais as cruzadas
haviam sido travadas, e que até na época do Concílio de Florença estavam
ameaçando conquistar a cidade de Constantinopla, a última fortaleza do
cristianismo no leste (...)
A conclusão inescapável é que
eles devem ter acreditado que todos pagãos, judeus, hereges e cismáticos eram
culpados e merecedores de punição eterna.
Podemos concordar com eles que o grave pecado do não arrependimento contra a fé
excluiria as pessoas da salvação eterna. No entanto, não podemos concordar com o julgamento deles de que todas aquelas
pessoas eram indubitavelmente culpadas por tais pecados.
Ao
mesmo tempo, temos que admitir que esse
julgamento, aprovado pelo Concílio de Florença em 1442, representa o que havia
sido o pensamento comum dos cristãos durante toda a Idade Média sobre o estado
pecaminoso dos que estavam fora da igreja. Podemos aqui tomar um tempo para
refletir sobre as consequências práticas da aprovação de tal julgamento para as
várias categorias de pessoas que os cristãos julgaram culpadas do pecado da
infidelidade. Para St. Tomás, como vimos, a heresia é o tipo mais grave de
infidelidade e, de fato, era considerada não apenas um pecado, mas um crime,
punível tanto pela Igreja quanto pelo Estado, mesmo com pena capital. Como a
unidade na fé cristã era um elo essencial da unidade da sociedade cristã, a heresia
e o cisma eram vistos como crimes contra a sociedade, bem como contra a
religião.
Os judeus também foram
julgados culpados de descrença pecaminosa.
A mente medieval não podia conceber como
poderiam ser inocentes em sua rejeição a Cristo, já que o cristianismo
parecia ter sido tão abundantemente provado ser a verdadeira religião, até pelo
fato de que a grande massa da sociedade a aceitara. Os judeus eram vistos como
um povo amaldiçoado por Deus, condenados a vagar pelo mundo sem uma pátria
própria como punição pelo crime de deicídio. Como os cristãos julgavam que eles
eram um povo sob a condenação de Deus, destinados ao fogo eterno do inferno a
menos que aceitassem a fé cristã e fossem batizados, não é de surpreender que o tratamento dado aos judeus refletisse esse
tipo de julgamento. É verdade que a prática da fé judaica não era
considerada crime punido por lei, como era a heresia dos cristãos. Foram apenas
os judeus que aceitaram o batismo cristão e, posteriormente, retornaram às
práticas judias, que eram passíveis de serem punidos pelo crime de apostasia. Mas as várias formas de incapacidade civil
impostas aos judeus na Europa medieval, e os massacres que eles sofreram de tempos
em tempos, especialmente nas mãos dos cruzados enquanto marchavam pela Europa a
caminho do Leste, eram certamente influenciados pelo comum julgamento de que os
judeus estavam sob a condenação de Deus e destinados à punição eterna por seu
pecado de rejeição da verdadeira fé.
Enquanto,
para St. Tomás e os cristãos medievais em geral, a incredulidade daqueles que,
como os muçulmanos, não eram nem hereges cristãos nem judeus, era um pecado
menos grave, ainda resultava que eles
fossem destinados ao castigo eterno por Deus, uma vez que foi tomado por
concedido que eles sabiam o suficiente sobre a fé cristã para serem culpados
por terem a rejeitado. De fato, eles eram os inimigos jurados da religião
cristã, contra os quais, a partir do ano 1095, sucessivas cruzadas foram
travadas. A justiça de empreender a
guerra contra os “infiéis” era óbvia para a mente medieval, tanto pela ocupação
da terra santa como pela rejeição pecaminosa de Cristo e da religião cristã.
(F.A
Sullivan, p. 68-69)
Um fato importante para nosso
estudo é o descobrimento da América. A partir deste fato, ficou evidente que
não apenas indivíduos isoladamente eram ignorantes sobre a fé cristã, mas
nações inteiras nunca receberam o evangelho. Obviamente, isto suscitou
questionamento sobre a situação dos povos indígenas. Apologistas católicos
costumam dizer que como a Igreja Medieval não sabia da existência desses povos,
era aceitável a solução anterior. Portanto, a nova doutrina seria resultante
das informações as quais a Igreja agora dispõe. Esta desculpa incorre em sérios
problemas.
(1) Uma vez que a Igreja é
infalivelmente guiada pelo Espírito Santo, ignorância não pode ser invocada,
afinal o Espírito Santo detém todo conhecimento;
(2) Definições dogmáticas são
irreformáveis, logo, se falta de conhecimento é aceitável, todos os dogmas da
Igreja passariam a ser reformáveis ma medida que novo conhecimento é adquirido.
Isto inclusive reflete a opinião de alguns teólogos católicos que sugerem um
novo entendimento sobre as doutrinas da Eucaristia e da virgindade no parto de
Maria, pois o conhecimento científico atual tornaria o entendimento tradicional
inaceitável;
(3) Os primeiros teólogos a
lidarem com o problema dos indígenas se mantiveram fiéis à solução medieval
(sacramentada por Aquino, a Bula Unam Sanctam e o Concílio de Florença).
Levaria séculos até que o atual ensino de Roma se tornasse o padrão. Isto é
problemático para uma igreja que apela à tradição para validar seus ensinos.
Como já evidenciado, o atual é ensino de Roma é uma inovação dos tempos
modernos e não pode ser rastreado sequer até o século XV, que dirá até os
Apóstolos. Abaixo, vamos apresentar as opiniões dos teólogos católicos a
respeito dos índios americanos. Sullivan escreve:
Como
a Espanha foi a primeira nação europeia a estabelecer colônias na América, não
é de surpreender que os dominicanos espanhóis que ensinaram na faculdade de
teologia da Universidade de Salamanca estivessem entre os primeiros teólogos a lidar
com esse problema. Vamos agora ver o progresso que três deles fizeram em
direção à sua solução. Os três cuja contribuição ao nosso tópico consideraremos
são Francisco de Vitória (1493-1546), Melquior Cano (1505-1560), e Domingo Soto
(1524-1560). Esses homens estavam lecionando na Universidade de Salamanca
durante o primeiro meio século da colonização espanhola da América Latina. Eles
estavam cientes do fato de que havia um grande número de pessoas na América que
nunca ouviram a mensagem cristã antes da chegada dos missionários. No entanto,
sendo fiéis seguidores de St. Tomás, como todos os dominicanos seriam, eles tiveram
que lidar com seu ensino que não havia salvação sem a fé explícita em Cristo, e
sem pelo menos o desejo de ser batizado e entrar na igreja (...)
O
primeiro desses teólogos dominicanos [Francisco de Vitória] na verdade não
ofereceu uma nova solução para o problema de como Deus teria providenciado a
salvação dos nativos da América antes que os missionários chegassem para pregar
o evangelho a eles. Ele continuou a sustentar, com São Tomás, que na era do
Novo Testamento não havia salvação sem fé explícita em Cristo. Sobre a questão
da vontade salvífica de Deus em relação às pessoas que não tiveram chance de
ouvir o evangelho, ele seguiu a solução que São Tomás deu. Eis como Vitoria
afirmou:
“Quando
postulamos a ignorância invencível sobre o tema do batismo ou da fé cristã, não
se segue que uma pessoa possa ser salva sem o batismo ou a fé cristã. Os
aborígenes, a quem nenhuma pregação da fé ou religião cristã veio, serão
condenados pelos pecados mortais ou pela idolatria, mas não pelo pecado da
incredulidade. No entanto, como São Tomás diz, se eles fazem o que podem,
acompanhado por uma boa vida de acordo com a lei da natureza, é consistente com a providência de Deus que
ele irá iluminá-los em relação ao nome de Cristo". (De Indis et de
Iure Belli Relectiones, ed. E. Nys, tr. J.P. Bates (The Classics of
International Law), Washington, 1917, p. 142.) (F.A
Sullivan, p. 69-70)
A solução de Francisco era a
mesma de Aquino. Os indígenas teriam uma revelação privada que lhes permitiria
responder positivamente ao Evangelho. Fé explícita continuava necessária.
Sullivan comentou a respeito da solução de Cano:
Ele
[Cano] concluiu que seria mais razoável acreditar que tais pessoas teriam recebido iluminação suficiente para
fazer um ato de fé em Deus, como descrito em Hebreus 11: 6, a qual, como
São Tomás ensinara, implicitamente continha a fé em Cristo como mediador da
salvação. Desta linha de raciocínio ele concluiu que uma fé meramente implícita em Cristo deveria ter sido suficiente
para justificar as pessoas na América que haviam "feito o que estava
em seu poder" para manter a lei natural. (F.A
Sullivan, p. 74)
Cano apresentou alguma
inovação, pois agora bastava a fé em Deus para que alguns fossem salvos.
Todavia, a manifestação de fé explícita continuava indispensável e a iluminação
interior proposta por Aquino continuava a vigorar. Soto, por sua vez,
apresentaria solução semelhante à de Cano:
Soto
concluiu que a fé implícita em Cristo,
que São Tomás reconheceu como suficiente para a salvação dos gentios que
viveram antes de Cristo, também deveria
ser reconhecida como tendo sido suficiente para a salvação do povo do novo
mundo durante os séculos anteriores ao evangelho ser pregado a eles. (Opera,
ed. Cologne, 1678, pp. 753ff) (F.A Sullivan, p. 76)
Sullivan traz a posição de
Albert Pigge (1490-1452), que escreveu a obra “Do Livre Arbítrio do Homem e a
Divina Graça” contra a doutrina da predestinação defendida por Calvino. Pigge
continuava a manter a solução tradicional de que os povos americanos poderiam
receber alguma iluminação e expressar fé explícita em Deus e assim serem
salvos. Contudo, ele foi o primeiro a aplicar este mesmo raciocínio a um
mulçumano:
Até
onde pude constatar, ele [Pigge} foi o primeiro pensador cristão a sugerir que a falta de fé cristã de um muçulmano
poderia realmente ser inculpável e que ele poderia ser salvo por sua fé em Deus
(...) Parece claro que foi o estímulo de ter que refletir sobre o estado de
ignorância inculpável dos povos recém-descobertos da América e das Índias, e sua conclusão de que para eles a fé em
Deus, sem fé em Cristo, deveria ser suficiente para salvação, que levou
Albert Pigge a tirar uma conclusão que, até onde eu sei, nenhum cristão havia
traçado antes dele: que os muçulmanos também podiam ser inculpavelmente
ignorantes da verdade da religião cristã, e podiam encontrar a salvação através
de sua fé sincera em Deus (...) É uma impressionante coincidência que esta obra
do teólogo católico Albert Pigge tenha
sido publicada exatamente cem anos depois do Concílio de Florença ter declarado
que os católicos devem acreditar que qualquer pessoa que morresse fora da
Igreja Católica estaria inevitavelmente condenada ao fogo eterno do inferno.
(F.A
Sullivan, p. 80-81)
Pigge continuou a adotar a
solução tomista para os índios americanos. A inovação seria a aplicação da
mesma solução para os mulçumanos. Sullivan reconhece que Pigge estava inovando
e contradizendo o Concílio de Florença. Avançando um pouco, chegamos ao século
XVI, quando ocorreu a reforma protestante e a contrarreforma. Sullivan atesta
como os reformadores estavam de acordo com o ensino tradicional. Martinho
Lutero declarou em seu Catecismo:
Pois
onde Cristo não é pregado, não há o Espírito Santo para criar, chamar e reunir
a Igreja Cristã, e fora dela ninguém pode ir ao Senhor Cristo (...) Mas fora da
Igreja Cristã (isto é, onde o Evangelho não existe) não há perdão e, portanto, não há santidade. (Large Catechism, II,
45, 56)
Isto explica porque o Concílio
de Trento não contém o slogan “Fora da Igreja não é salvação”. Esta era uma
doutrina já estabelecida na igreja que não fora questionada pelos reformadores.
Como o concílio ocorreu em meio às controvérsias da Reforma, não haveria porque
reafirmar uma doutrina não contestada. Contudo, Trento afirmaria doutrinas que
são absolutamente incompatíveis com a ignorância invencível como a necessidade
da fé e do batismo (ainda que de desejo) para a salvação:
A
causa instrumental [da justificação] é o sacramento do batismo, que é o
sacramento da fé, sem o qual [fé] ninguém
jamais foi justificado. (DS 1529)
Após
a promulgação do Evangelho, essa transição [do estado em que o homem nasce
filho do primeiro Adão até o estado de adoção como filho de Deus] não pode ocorrer sem o banho da regeneração
ou do desejo dele, como está escrito: “A menos que alguém nasça da água e
do Espírito, ele não pode entrar no reino de Deus (Jo 3: 5)”. (DS
1524)
Um expediente comum na
teologia católica é reinterpretar os concílios passados a luz do ensino atual
para assim dirimir as contradições. Obviamente esta solução comete o erro
crasso de não considerar o que a fonte originalmente diz - o espírito do
Concílio e de seus membros. Dessa forma, além dos textos conciliares, temos as
ideias dos teólogos da época que expressam o pensamento do período. Nenhum
exemplo poderia ser melhor do que Roberto Belarmino. Ele foi um grande opositor
da Reforma e trouxe pensamentos claros a respeito do tema em questão:
Dizemos
“em algum momento e lugar”, porque aqui não determinamos se tal ajuda está
disponível em todos os momentos da vida de uma pessoa (...) Estamos dizendo que
não há ninguém que, em algum momento, não receba tal ajuda. Então, nós dizemos
“mediata ou imediatamente”, porque
acreditamos que aqueles que têm o uso da razão recebem inspirações sagradas de
Deus, e assim, sem outra mediação, eles têm graça capacitadora e se cooperarem
com isso, eles podem ser dispostos para a justificação e, eventualmente,
chegarem à salvação. (De gratia et libero arbitrio, lib. 2,
cap. 5, ed. Giuliano, vol. 4, p. 301)
Belarmino então apresenta a
objeção a sua posição:
O
começo da salvação é a fé (...) Mas muitos não têm ajuda suficiente de Deus
para vir à fé, uma vez que o evangelho
ainda não foi pregado a eles e muitos outros no passado não tiveram tal ajuda,
visto que a pregação do evangelho ainda não havia chegado até eles.
Ele então responde:
Este
argumento prova apenas que nem todos recebem a ajuda pela qual podem ser imediatamente
convertidos e acreditar, mas não prova que algumas pessoas simplesmente não têm
ajuda suficiente para salvação. As pessoas a quem o evangelho ainda não foi
pregado podem saber através da criação
que Deus existe, e então elas podem ser movidas pela graça preveniente a crer
que Deus existe e recompensa aqueles que o buscam. A partir de tal fé elas podem ser dirigidas e ajudadas por Deus ao
caminho da oração e das obras de caridade, e desta forma podem obter através da
oração uma maior luz da fé, que Deus irá comunicar facilmente a eles, por si
mesmo, ou através da mediação de anjos ou homens. (Ibid)
Belarmino expressa a ideia
tomista. O não evangelizado seria levado diretamente por Deus, ou até mesmo
através de anjos ou homens a uma “maior luz da fé”. Esta maior luz da fé
começaria apenas com a revelação da natureza, mas se desenvolveria até um
estágio de maior conhecimento. É um fato que este importante teólogo e doutor
da Igreja está apenas expressando a doutrina católica de seu tempo – ninguém
poderia ser salvo estando ignorante a respeito da fé. Sullivan comenta:
(...)
é certo que Belarmino sustentou, juntamente com São Tomás, que a fé explícita em Cristo era necessária
para salvação de todos na era neotestamentária. (Sullivan, p. 91)
Para concluir, é preciso dizer
que é impossível afirmar que Roma não alterou seu ensino doutrinal quando se
leva em conta o atual ensino a respeito da salvação fora da Igreja. Roma mudou
radicalmente o significado do slogan e abarcou ideias incompatíveis com seu
ensino histórico.
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