quinta-feira, 16 de maio de 2019

Salvação Fora da Igreja: A Igreja de Roma Antiga vs A Igreja de Roma Atual (Parte 3)



Nesta terceira parte, vou abordar aquela que considero a evidência mais clara e inequívoca de que o magistério de Roma mudou seu ensino doutrinal. Vamos abordar os concílios medievais e o Concílio de Trento que teriam definitivamente exposto a doutrina sobre a salvação fora da Igreja. O primeiro documento a ser analisado é a Bula Unam Sanctam do Papa Bonifácio VIII (texto na íntegra aqui). Vejamos:

Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já que é isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o esposo no Cântico: "Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe que a gerou" (Ct 6:9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo e Deus é a cabeça de Cristo. Nela existe "um só Senhor, uma só fé e um só batismo" (Ef 4:5). De fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada da única Igreja; encerrada com "um côvado" (Gn 6:16), teve um único piloto e um único chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.

A esta única Igreja, nós a veneramos, como diz o Senhor pelo profeta: "Salva minha vida da espada, meu único ser, da pata do cão" (Sl 21:21). Ao mesmo tempo que Ele pediu pela alma - ou seja, pela cabeça - também pediu pelo corpo, porque chamou o seu corpo como único, isto é, a Igreja, por causa da unidade da Igreja no seu esposo, na fé, nos sacramentos e na caridade. Ela é a veste sem costura (Jo 19:23) do Salvador, que não foi dividida, mas tirada à sorte. Por isso, esta Igreja, una e única, tem um só corpo e uma só cabeça, e não duas como um monstro: é Cristo e Pedro, vigário de Cristo, e o sucessor de Pedro, conforme o que disse o Senhor ao próprio Pedro: "Apascenta as minhas ovelhas" (Jo 21:17). Disse "minhas" em geral e não "esta" ou "aquela" em particular, de forma que se subentende que todas lhe foram confiadas. Assim, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e aos seus sucessores, é necessário que reconheçam que não fazem parte das ovelhas de Cristo pois o Senhor disse no evangelho de São João: "Há um só rebanho e um só Pastor" (Jo 10:16). ("Bula Unam Sanctam" MONTFORT Associação Cultural)

O último parágrafo da Bula não deixa margem para dúvidas:

Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice.

A bula também expõe a teoria das duas espadas, segundo a qual a Igreja detém a espada espiritual, a qual exerce diretamente, e a temporal, a qual exerce por intermédio do Estado. Em síntese, o Papa estava defendendo seu poder sobre os reis, pois ele era o vigário de Cristo e autoridade suprema não somente em assuntos espirituais, mas também temporais. Sullivan traz os comentários:

Uma Bula é uma carta papal que é selada com uma bulla, que é um tipo especial de selo anexado a documentos de importância particular. A bula Unam Sanctam começa com uma profissão de fé na unidade da igreja, fora da qual não há salvação. Ele enfatiza, mais do que as declarações papais e conciliares anteriores a esta doutrina haviam feito, o papel do papa como cabeça sob Cristo desta única igreja.

Deve-se notar que, ao enunciar a doutrina tradicional sobre a necessidade de estar na igreja para a salvação, Bonifácio VIII enfatiza particularmente o papel do papa como cabeça da igreja, com a consequência de que aqueles não podem ser membros do rebanho de Cristo se não estão submetidos ao seu pastor visível.

Na nota histórica que Adolf Schonmetzer, o erudito editor das edições recentes de Denzinger, ofereceu a esta bula, ele afirma que apenas essa sentença final é uma definição dogmática. Ele a interpreta à luz dos primeiros parágrafos da bula, que afirmam a necessidade de pertencer à Igreja Católica para a salvação, em vez de definir a teoria da supremacia do espiritual sobre o poder temporal de Bonifácio. Em apoio a essa interpretação, Schonmetzer observa que a sentença final é tirada de uma obra de São Tomás, onde a necessidade de sujeitar-se ao Romano Pontífice é simplesmente outra maneira de expressar a necessidade de estar na comunhão da Igreja Católica para ser salvo. (Contra errores graecorum, 2, cap. 32 (ed. Parma 15 :25 7)

A nota histórica de Schonmetzer reflete a interpretação mais comum da bula entre os teólogos católicos, a saber, que o Papa Bonifácio, sem dúvida, sustentava e ensinava a teoria medieval da supremacia do espiritual sobre o poder temporal, e o que ele definiu solenemente na sentença final nada mais é do que a doutrina clássica de que não há salvação fora da Igreja Católica. No entanto, um estudo recente da questão, de George Tavard, oferece uma abordagem diferente. Tavard insiste que a sentença final deve ser entendida à luz do tema principal da Bula, que é a supremacia papal sobre os governantes temporais. Por outro lado, Tavard acredita que faltava uma condição essencial para uma definição dogmática, uma vez que, mesmo na época de Bonifácio, não havia consenso sobre essa doutrina na igreja, e ela não sobreviveu como parte do patrimônio de fé da igreja. (George Tavard, “The Bull Unam sanctam of Boniface VIII,” in Papal Primacy and the Universal Church (Lutherans and Catholics in Dialogue, V), Minneapolis: Augsburg, 1974, pp. 105—119)

Sem tentar decidir qual dessas duas interpretações é preferível, podemos concluir observando que nenhum teólogo católico sustenta agora que a teoria de Bonifácio sobre a supremacia do espiritual sobre o poder temporal é um dogma da fé católica. É seguro dizer que se a Bula definia alguma coisa, era simplesmente a doutrina tradicional de que não há salvação fora da Igreja Católica. (F.A Sullivan, p. 65-66)

Em suma, a Bula define dogmaticamente a doutrina tradicional, segundo a qual ninguém poderia ser salvo estando fora da Igreja. Estar na igreja tinha uma consequência inevitável, que era se submeter ao bispo de Roma. Observem que a divergência interpretativa em relação ao texto da bula não se refere a doutrina da salvação fora da igreja. Sobre isto, não resta dúvida. A divergência é sobre a doutrina da submissão dos governantes ao papa. A maioria dos teólogos católicos concordam que Bonifácio estava dogmaticamente definindo isto também – o Papa considerava que o poder temporal também deveria ser submeter ao seu comando. Dessa forma, a bula contradiz o atual ensino de Roma nesses dois aspectos: a impossibilidade de salvação dos que não estão sob o domínio do papa, bem como a submissão do poder temporal a ele.

Eu já presenciei todo tipo de malabarismo para tentar conciliar a Bula com o ensino moderno de Roma, mas não há para onde escapar – submissão explícita ao papa é condição indispensável para salvação. Observem que o documento cita os “gregos”. Oram, estes eram os cristãos ortodoxos orientais que não se submetiam ao papa. A bula os cita como exemplo de grupo que estava perdido. Agora, imaginem a situação dos mulçumanos, judeus e outros que sequer cristãos eram.

Outro documento que não deixa margem para dúvidas é o Decreto dos Jacobitas do Concílio de Florença, que fora concluído em 1445. Segue os comentários de Sullivan juntamente com o texto do decreto:

O concílio que é comumente chamado de Florença começou em Basileia em 1431, foi transferido para Ferrara em 1438, para Florença em 1439 e, finalmente, para Roma, onde foi concluído em 1445. O principal esforço deste concílio era trazer a reunião com as igrejas orientais separadas. Vários decretos de união foram promulgados, mas os eventos subsequentes provaram que a maioria deles era ineficaz para uma união duradoura. Entre esses decretos estava o da união de várias igrejas coptas, cujos membros também eram chamados de Jacobitas. O decreto tinha a forma de uma profissão de fé católica, à qual os jacobitas eram obrigados a declarar sua adesão. Entre outros artigos estava o seguinte:

A Igreja crê firmemente, professa e prega que todos aqueles que estão fora da Igreja Católica, não só pagãos, mas também judeus ou hereges e cismáticos, não podem compartilhar a vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos, a menos que eles estejam ligados à Igreja Católica antes do final de suas vidas, pois a unidade do corpo eclesiástico é de tal importância que somente aqueles que recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo jejuns, obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica. (Decreto dos Jacobitas – Concílio de Florença)

O leitor atento reconhecerá, sem dúvida, a primeira sentença deste decreto conciliar como uma que citamos anteriormente de uma obra do discípulo do século VI de Santo Agostinho - Fulgêncio de Ruspe. A frase final é também uma citação da mesma obra de Fulgêncio. Como vimos acima, Fulgêncio seguiu Agostinho mesmo em suas teorias mais extremas sobre as consequências do pecado original (...)

[Nós] Temos boas razões para entender este decreto à luz do que era então a crença comum de que todos os pagãos, judeus, hereges e cismáticos eram culpados do pecado da infidelidade, com base no fato de que eles se recusaram culposamente a aceitar a verdadeira fé ou permanecer fiel a ela. Vimos como São Tomás distinguiu três tipos de descrença pecaminosa: a dos pagãos, a dos judeus e a dos hereges e cismáticos cristãos. Os bispos em Florença estavam apenas esboçando a conclusão lógica do ensinamento de São Tomás sobre esses pecados de infidelidade. Seu decreto não pode ser entendido, exceto à luz de seu julgamento sobre a grave culpabilidade de todos aqueles que eles declararam que seriam condenados para o inferno.

Temos que tentar entender o fato de que simplesmente não ocorreu à mente medieval que pessoas como os judeus, vivendo no meio da cristandade, pudessem persistir em sua crença judaica e sua rejeição da fé cristã, e não serem culpados desse pecado. Ainda menos podiam os cristãos medievais acreditar na inculpabilidade dos muçulmanos, que eram os inimigos da cristandade contra os quais as cruzadas haviam sido travadas, e que até na época do Concílio de Florença estavam ameaçando conquistar a cidade de Constantinopla, a última fortaleza do cristianismo no leste (...)

A conclusão inescapável é que eles devem ter acreditado que todos pagãos, judeus, hereges e cismáticos eram culpados e merecedores de punição eterna. Podemos concordar com eles que o grave pecado do não arrependimento contra a fé excluiria as pessoas da salvação eterna. No entanto, não podemos concordar com o julgamento deles de que todas aquelas pessoas eram indubitavelmente culpadas por tais pecados.

Ao mesmo tempo, temos que admitir que esse julgamento, aprovado pelo Concílio de Florença em 1442, representa o que havia sido o pensamento comum dos cristãos durante toda a Idade Média sobre o estado pecaminoso dos que estavam fora da igreja. Podemos aqui tomar um tempo para refletir sobre as consequências práticas da aprovação de tal julgamento para as várias categorias de pessoas que os cristãos julgaram culpadas do pecado da infidelidade. Para St. Tomás, como vimos, a heresia é o tipo mais grave de infidelidade e, de fato, era considerada não apenas um pecado, mas um crime, punível tanto pela Igreja quanto pelo Estado, mesmo com pena capital. Como a unidade na fé cristã era um elo essencial da unidade da sociedade cristã, a heresia e o cisma eram vistos como crimes contra a sociedade, bem como contra a religião.

Os judeus também foram julgados culpados de descrença pecaminosa. A mente medieval não podia conceber como poderiam ser inocentes em sua rejeição a Cristo, já que o cristianismo parecia ter sido tão abundantemente provado ser a verdadeira religião, até pelo fato de que a grande massa da sociedade a aceitara. Os judeus eram vistos como um povo amaldiçoado por Deus, condenados a vagar pelo mundo sem uma pátria própria como punição pelo crime de deicídio. Como os cristãos julgavam que eles eram um povo sob a condenação de Deus, destinados ao fogo eterno do inferno a menos que aceitassem a fé cristã e fossem batizados, não é de surpreender que o tratamento dado aos judeus refletisse esse tipo de julgamento. É verdade que a prática da fé judaica não era considerada crime punido por lei, como era a heresia dos cristãos. Foram apenas os judeus que aceitaram o batismo cristão e, posteriormente, retornaram às práticas judias, que eram passíveis de serem punidos pelo crime de apostasia. Mas as várias formas de incapacidade civil impostas aos judeus na Europa medieval, e os massacres que eles sofreram de tempos em tempos, especialmente nas mãos dos cruzados enquanto marchavam pela Europa a caminho do Leste, eram certamente influenciados pelo comum julgamento de que os judeus estavam sob a condenação de Deus e destinados à punição eterna por seu pecado de rejeição da verdadeira fé.

Enquanto, para St. Tomás e os cristãos medievais em geral, a incredulidade daqueles que, como os muçulmanos, não eram nem hereges cristãos nem judeus, era um pecado menos grave, ainda resultava que eles fossem destinados ao castigo eterno por Deus, uma vez que foi tomado por concedido que eles sabiam o suficiente sobre a fé cristã para serem culpados por terem a rejeitado. De fato, eles eram os inimigos jurados da religião cristã, contra os quais, a partir do ano 1095, sucessivas cruzadas foram travadas. A justiça de empreender a guerra contra os “infiéis” era óbvia para a mente medieval, tanto pela ocupação da terra santa como pela rejeição pecaminosa de Cristo e da religião cristã. (F.A Sullivan, p. 68-69)

Um fato importante para nosso estudo é o descobrimento da América. A partir deste fato, ficou evidente que não apenas indivíduos isoladamente eram ignorantes sobre a fé cristã, mas nações inteiras nunca receberam o evangelho. Obviamente, isto suscitou questionamento sobre a situação dos povos indígenas. Apologistas católicos costumam dizer que como a Igreja Medieval não sabia da existência desses povos, era aceitável a solução anterior. Portanto, a nova doutrina seria resultante das informações as quais a Igreja agora dispõe. Esta desculpa incorre em sérios problemas.

(1) Uma vez que a Igreja é infalivelmente guiada pelo Espírito Santo, ignorância não pode ser invocada, afinal o Espírito Santo detém todo conhecimento;

(2) Definições dogmáticas são irreformáveis, logo, se falta de conhecimento é aceitável, todos os dogmas da Igreja passariam a ser reformáveis ma medida que novo conhecimento é adquirido. Isto inclusive reflete a opinião de alguns teólogos católicos que sugerem um novo entendimento sobre as doutrinas da Eucaristia e da virgindade no parto de Maria, pois o conhecimento científico atual tornaria o entendimento tradicional inaceitável;

(3) Os primeiros teólogos a lidarem com o problema dos indígenas se mantiveram fiéis à solução medieval (sacramentada por Aquino, a Bula Unam Sanctam e o Concílio de Florença). Levaria séculos até que o atual ensino de Roma se tornasse o padrão. Isto é problemático para uma igreja que apela à tradição para validar seus ensinos. Como já evidenciado, o atual é ensino de Roma é uma inovação dos tempos modernos e não pode ser rastreado sequer até o século XV, que dirá até os Apóstolos. Abaixo, vamos apresentar as opiniões dos teólogos católicos a respeito dos índios americanos. Sullivan escreve:

Como a Espanha foi a primeira nação europeia a estabelecer colônias na América, não é de surpreender que os dominicanos espanhóis que ensinaram na faculdade de teologia da Universidade de Salamanca estivessem entre os primeiros teólogos a lidar com esse problema. Vamos agora ver o progresso que três deles fizeram em direção à sua solução. Os três cuja contribuição ao nosso tópico consideraremos são Francisco de Vitória (1493-1546), Melquior Cano (1505-1560), e Domingo Soto (1524-1560). Esses homens estavam lecionando na Universidade de Salamanca durante o primeiro meio século da colonização espanhola da América Latina. Eles estavam cientes do fato de que havia um grande número de pessoas na América que nunca ouviram a mensagem cristã antes da chegada dos missionários. No entanto, sendo fiéis seguidores de St. Tomás, como todos os dominicanos seriam, eles tiveram que lidar com seu ensino que não havia salvação sem a fé explícita em Cristo, e sem pelo menos o desejo de ser batizado e entrar na igreja (...)

O primeiro desses teólogos dominicanos [Francisco de Vitória] na verdade não ofereceu uma nova solução para o problema de como Deus teria providenciado a salvação dos nativos da América antes que os missionários chegassem para pregar o evangelho a eles. Ele continuou a sustentar, com São Tomás, que na era do Novo Testamento não havia salvação sem fé explícita em Cristo. Sobre a questão da vontade salvífica de Deus em relação às pessoas que não tiveram chance de ouvir o evangelho, ele seguiu a solução que São Tomás deu. Eis como Vitoria afirmou:

“Quando postulamos a ignorância invencível sobre o tema do batismo ou da fé cristã, não se segue que uma pessoa possa ser salva sem o batismo ou a fé cristã. Os aborígenes, a quem nenhuma pregação da fé ou religião cristã veio, serão condenados pelos pecados mortais ou pela idolatria, mas não pelo pecado da incredulidade. No entanto, como São Tomás diz, se eles fazem o que podem, acompanhado por uma boa vida de acordo com a lei da natureza, é consistente com a providência de Deus que ele irá iluminá-los em relação ao nome de Cristo". (De Indis et de Iure Belli Relectiones, ed. E. Nys, tr. J.P. Bates (The Classics of International Law), Washington, 1917, p. 142.) (F.A Sullivan, p. 69-70)

A solução de Francisco era a mesma de Aquino. Os indígenas teriam uma revelação privada que lhes permitiria responder positivamente ao Evangelho. Fé explícita continuava necessária. Sullivan comentou a respeito da solução de Cano:

Ele [Cano] concluiu que seria mais razoável acreditar que tais pessoas teriam recebido iluminação suficiente para fazer um ato de fé em Deus, como descrito em Hebreus 11: 6, a qual, como São Tomás ensinara, implicitamente continha a fé em Cristo como mediador da salvação. Desta linha de raciocínio ele concluiu que uma fé meramente implícita em Cristo deveria ter sido suficiente para justificar as pessoas na América que haviam "feito o que estava em seu poder" para manter a lei natural. (F.A Sullivan, p. 74)

Cano apresentou alguma inovação, pois agora bastava a fé em Deus para que alguns fossem salvos. Todavia, a manifestação de fé explícita continuava indispensável e a iluminação interior proposta por Aquino continuava a vigorar. Soto, por sua vez, apresentaria solução semelhante à de Cano:

Soto concluiu que a fé implícita em Cristo, que São Tomás reconheceu como suficiente para a salvação dos gentios que viveram antes de Cristo, também deveria ser reconhecida como tendo sido suficiente para a salvação do povo do novo mundo durante os séculos anteriores ao evangelho ser pregado a eles. (Opera, ed. Cologne, 1678, pp. 753ff) (F.A Sullivan, p. 76)

Sullivan traz a posição de Albert Pigge (1490-1452), que escreveu a obra “Do Livre Arbítrio do Homem e a Divina Graça” contra a doutrina da predestinação defendida por Calvino. Pigge continuava a manter a solução tradicional de que os povos americanos poderiam receber alguma iluminação e expressar fé explícita em Deus e assim serem salvos. Contudo, ele foi o primeiro a aplicar este mesmo raciocínio a um mulçumano:

Até onde pude constatar, ele [Pigge} foi o primeiro pensador cristão a sugerir que a falta de fé cristã de um muçulmano poderia realmente ser inculpável e que ele poderia ser salvo por sua fé em Deus (...) Parece claro que foi o estímulo de ter que refletir sobre o estado de ignorância inculpável dos povos recém-descobertos da América e das Índias, e sua conclusão de que para eles a fé em Deus, sem fé em Cristo, deveria ser suficiente para salvação, que levou Albert Pigge a tirar uma conclusão que, até onde eu sei, nenhum cristão havia traçado antes dele: que os muçulmanos também podiam ser inculpavelmente ignorantes da verdade da religião cristã, e podiam encontrar a salvação através de sua fé sincera em Deus (...) É uma impressionante coincidência que esta obra do teólogo católico Albert Pigge tenha sido publicada exatamente cem anos depois do Concílio de Florença ter declarado que os católicos devem acreditar que qualquer pessoa que morresse fora da Igreja Católica estaria inevitavelmente condenada ao fogo eterno do inferno. (F.A Sullivan, p. 80-81)

Pigge continuou a adotar a solução tomista para os índios americanos. A inovação seria a aplicação da mesma solução para os mulçumanos. Sullivan reconhece que Pigge estava inovando e contradizendo o Concílio de Florença. Avançando um pouco, chegamos ao século XVI, quando ocorreu a reforma protestante e a contrarreforma. Sullivan atesta como os reformadores estavam de acordo com o ensino tradicional. Martinho Lutero declarou em seu Catecismo:

Pois onde Cristo não é pregado, não há o Espírito Santo para criar, chamar e reunir a Igreja Cristã, e fora dela ninguém pode ir ao Senhor Cristo (...) Mas fora da Igreja Cristã (isto é, onde o Evangelho não existe) não há perdão e, portanto, não há santidade. (Large Catechism, II, 45, 56)

Isto explica porque o Concílio de Trento não contém o slogan “Fora da Igreja não é salvação”. Esta era uma doutrina já estabelecida na igreja que não fora questionada pelos reformadores. Como o concílio ocorreu em meio às controvérsias da Reforma, não haveria porque reafirmar uma doutrina não contestada. Contudo, Trento afirmaria doutrinas que são absolutamente incompatíveis com a ignorância invencível como a necessidade da fé e do batismo (ainda que de desejo) para a salvação:

A causa instrumental [da justificação] é o sacramento do batismo, que é o sacramento da fé, sem o qual [fé] ninguém jamais foi justificado. (DS 1529)

Após a promulgação do Evangelho, essa transição [do estado em que o homem nasce filho do primeiro Adão até o estado de adoção como filho de Deus] não pode ocorrer sem o banho da regeneração ou do desejo dele, como está escrito: “A menos que alguém nasça da água e do Espírito, ele não pode entrar no reino de Deus (Jo 3: 5)”. (DS 1524)

Um expediente comum na teologia católica é reinterpretar os concílios passados a luz do ensino atual para assim dirimir as contradições. Obviamente esta solução comete o erro crasso de não considerar o que a fonte originalmente diz - o espírito do Concílio e de seus membros. Dessa forma, além dos textos conciliares, temos as ideias dos teólogos da época que expressam o pensamento do período. Nenhum exemplo poderia ser melhor do que Roberto Belarmino. Ele foi um grande opositor da Reforma e trouxe pensamentos claros a respeito do tema em questão:

Dizemos “em algum momento e lugar”, porque aqui não determinamos se tal ajuda está disponível em todos os momentos da vida de uma pessoa (...) Estamos dizendo que não há ninguém que, em algum momento, não receba tal ajuda. Então, nós dizemos “mediata ou imediatamente”, porque acreditamos que aqueles que têm o uso da razão recebem inspirações sagradas de Deus, e assim, sem outra mediação, eles têm graça capacitadora e se cooperarem com isso, eles podem ser dispostos para a justificação e, eventualmente, chegarem à salvação. (De gratia et libero arbitrio, lib. 2, cap. 5, ed. Giuliano, vol. 4, p. 301)

Belarmino então apresenta a objeção a sua posição:

O começo da salvação é a fé (...) Mas muitos não têm ajuda suficiente de Deus para vir à fé, uma vez que o evangelho ainda não foi pregado a eles e muitos outros no passado não tiveram tal ajuda, visto que a pregação do evangelho ainda não havia chegado até eles.

Ele então responde:

Este argumento prova apenas que nem todos recebem a ajuda pela qual podem ser imediatamente convertidos e acreditar, mas não prova que algumas pessoas simplesmente não têm ajuda suficiente para salvação. As pessoas a quem o evangelho ainda não foi pregado podem saber através da criação que Deus existe, e então elas podem ser movidas pela graça preveniente a crer que Deus existe e recompensa aqueles que o buscam. A partir de tal fé elas podem ser dirigidas e ajudadas por Deus ao caminho da oração e das obras de caridade, e desta forma podem obter através da oração uma maior luz da fé, que Deus irá comunicar facilmente a eles, por si mesmo, ou através da mediação de anjos ou homens. (Ibid)

Belarmino expressa a ideia tomista. O não evangelizado seria levado diretamente por Deus, ou até mesmo através de anjos ou homens a uma “maior luz da fé”. Esta maior luz da fé começaria apenas com a revelação da natureza, mas se desenvolveria até um estágio de maior conhecimento. É um fato que este importante teólogo e doutor da Igreja está apenas expressando a doutrina católica de seu tempo – ninguém poderia ser salvo estando ignorante a respeito da fé. Sullivan comenta:

(...) é certo que Belarmino sustentou, juntamente com São Tomás, que a fé explícita em Cristo era necessária para salvação de todos na era neotestamentária. (Sullivan, p. 91)

Para concluir, é preciso dizer que é impossível afirmar que Roma não alterou seu ensino doutrinal quando se leva em conta o atual ensino a respeito da salvação fora da Igreja. Roma mudou radicalmente o significado do slogan e abarcou ideias incompatíveis com seu ensino histórico.

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