sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Infalibilidade Papal – Resumo do livro do Brian Tierney (Parte I)

 


A obra do medievalista católico Brian Tierney sobre a origem da doutrina da infalibilidade papal é considerada uma das maiores, se não a maior sobre o tema. O livro pode ser acessado aqui. Já temos um artigo sobre o tema, que pode ser visto aqui. A proposta é trazer um resumo desta importante pesquisa histórica que demonstra cabalmente a inovação desta doutrina católica romana. Publicaremos uma série de artigos nos próximos dias sobre o livro em questão. A tese principal de Tierney é que a infalibilidade papal é uma invenção do século XIII, que surgiu entre franciscanos radicais heterodoxos, tendo sido a princípio condenada pelo papa da ocasião. A doutrina só seria mais tarde aceita por papas e teólogos católicos porque se mostrou conveniente diante das ameaças do conciliarismo e do protestantismo.

Os problemas do apelo moderno à infalibilidade papal

Tierney explora no capítulo introdutório a falta de definição sobre quais declarações papais foram infalíveis. Ele afirma que há várias teorias contraditórias para identificar quando os papas decretaram algo infalivelmente e denuncia a arbitrariedade dos critérios usados:

“A única regra de interpretação consistente que podemos ter certeza de encontrar é esta: sempre que um teólogo discorda de algum ensinamento antigo ou de nova determinação de um papa, ele achará boas razões teológicas para decidir que aquele pronunciamento papal foi não infalível (...) Toda a moderna doutrina da infalibilidade, em sua forma “pickwickiana”, pode ser resumida no princípio geral: Todos os decretos infalíveis são certamente verdadeiros, mas nenhum decreto é certamente infalível. (p. 4)

Esta inclusive foi a estratégia adotada por alguns apologistas católicos a respeito da mudança recente da Igreja de Roma no ensino sobre a pena de morte. Sempre que há uma contradição, afirma-se a não infalibilidade daquele ensino, o que torna o apelo ao magistério “infalível” vazio. Diante disto, o autor documenta como Pio XII sentiu a necessidade de defender a obrigatoriedade do assentimento ao magistério ordinário na encíclica Humani Generis:

“Não se deve pensar que matérias propostas em cartas encíclicas não exijam, em si mesmas, o assentimento, porque (nas encíclicas) os pontífices não exercem o supremo poder do seu magistério. Pois essas coisas são ensinadas pelo magistério ordinário, ao qual também se aplica a expressão: ‘Quem vos ouve, a Mim ouve’.

Ele comenta este documento de Pio XII:

“A referência de Pio XII à autoridade do magistério ordinário levou alguns teólogos a insistir, mais uma vez, que o decreto do Concílio Vaticano I significa exatamente o que diz — que o papa é infalível sempre que se pronuncia sobre matérias de fé e moral “no exercício do ofício de pastor e doutor de todos os cristãos”. A dificuldade dessa posição é que os pronunciamentos papais, mesmo os dos papas modernos, às vezes se contradizem mutuamente (p.ex., no tema da tolerância religiosa). Por isso, alguns teólogos sustentam a infalibilidade dos decretos contemporâneos sem darem séria consideração à possibilidade de estes entrarem em conflito com decretos anteriores”. (p. 4)

Não é incomum ouvir católicos dizerem que papas não falam infalivelmente em encíclicas, mas isto é mera especulação. Diante das inúmeras contradições entre os decretos papais ao longo da história, Tierney elenca outra estratégia, além dessa abordagem de arbitrariamente definir o que é ou não infalível, que é basicamente reinterpretar decretos papais do passado a luz do ensino presente:

Outros teólogos, de modo ainda mais censurável (do ponto de vista de um historiador), criaram princípios hermenêuticos tão engenhosos que os documentos antigos jamais os comprometem. Aplicando tais princípios, podem reinterpretar qualquer pronunciamento doutrinário, independentemente do seu conteúdo real, para significar aquilo que julgarem que seus autores deveriam ter querido dizer. A doutrina infalível do passado permanece infalível, mas é despojada de todo conteúdo objetivo (...) O princípio geral que sustenta essa segunda grande abordagem ao problema da infalibilidade poderia resumir-se assim: “Todos os pronunciamentos infalíveis são irreformáveis — até que seja conveniente mudá-los”. Parece justo acrescentar que a maior parte dos teólogos católicos continua a optar por alguma versão da posição relativamente simples e direta, à maneira “pickwickiana”. Quando do Concílio Vaticano II, a teologia católica da infalibilidade já se havia tornado um emaranhado de paradoxos e evasões. Os teólogos haviam-se enredado num beco sem saída intrincado. (p. 5)

Ou seja, a outra abordagem é reinterpretar o passado a luz do presente, fazendo com que o dogma deixe ter qualquer conteúdo objetivo, estando a doutrina sempre aberta a novos significados. Já trouxemos neste blog a citação do teólogo católico Raymond Brown:

“Essencial para uma interpretação crítica dos documentos da igreja é a percepção de que a Igreja Católica Romana não altera sua posição oficial de forma direta. As declarações passadas não são rejeitadas, mas são citadas com elogios e depois reinterpretadas ao mesmo tempo. (Raymond Brown, “The Critical Meaning of the Bible” New York, NY: Paulist Press ©1981, Nihil Obstat and Imprimitur, page 18 footnote 41)

Infalibilidade versus Soberania

“Por vezes [os defensores modernos da infalibilidade] mostram-se até um pouco perplexos por não encontrarem a infalibilidade proclamada nos escritos dos papalistas mais radicais da Alta Idade Média — homens como Giles de Roma, James de Viterbo, Henry de Cremona, Agostinho Triunfo. Na verdade, as premissas que os historiadores habitualmente levaram em conta tornam toda a história antiga da infalibilidade papal ininteligível. A verdade é que os primeiros defensores da doutrina estavam muito mais interessados em limitar o poder do papa do que em ampliá-lo”. (p. 6)

A citação acima é relevante, pois, demonstra que os defensores mais radicais do absolutismo papal não viam uma conexão direta entre soberania e infalibilidade. É digno de nota o fato de que os mais ferrenhos defensores da jurisdição do papa nos séculos XII e XIII nada sabiam sobre a infalibilidade. Como veremos nos próximos artigos, os primeiros papas viram na infalibilidade uma limitação de sua soberania, pois os vincularia aos decretos papais anteriores.

O testemunho dos canonistas dos séculos XII-XIII

Os canonistas eram os estudiosos da lei canônica e foram responsáveis pela criação de uma espécie de jurisprudência da lei da Igreja. Eles serão de grande importância para o estudo da doutrina da infalibilidade porque produziram muitas discussões sobre a autoridade da Igreja, até mais do que teólogos escolásticos:

“O que pode ser provado é que nenhuma afirmação pública da infalibilidade do papa foi transmitida aos canonistas dos séculos XII e XIII, em cujas obras, pela primeira vez, abundantes fontes para a investigação de toda essa questão se tornaram disponíveis. Os comentadores do Decreto de Graciano conheciam todos os textos mais importantes — genuínos ou forjados — relativos à autoridade do papa e à indefectibilidade da Igreja Romana. Eles não associaram esses textos a nenhuma doutrina de infalibilidade papal. Eles não mostraram consciência de que qualquer um de seus predecessores tivesse jamais associado tais textos com essa doutrina. Nós argumentaremos que os teólogos do século XIII não poderiam ter derivado a doutrina da infalibilidade papal da tradição canônica da Igreja, porque a doutrina simplesmente não existia nos escritos dos canonistas”. (p. 12)

Uma das teses que veio a ser defendida por Dollinger é de que a doutrina da infalibilidade teria entrado na Igreja de Roma através dos canonistas que recepcionaram falsificações (principalmente pseudo-Isidoro) usadas para estabelecer o poder papal. Os teólogos posteriores, sob influência dos canonistas, teriam então recebido essa doutrina com origem em documento forjados. Tierney não apoia essa tese e argumenta de forma convincente que os canonistas nada sabiam sobre essa ideia.

Eles conheciam inclusive textos que falavam da indefectibilidade da fé de Roma: fórmula do papa Hormisdas do século VI (“na Sé Apostólica a religião católica foi sempre preservada imaculada”) e do papa Agatão do século VII (“desde o princípio, recebeu a fé cristã dos seus fundadores, os príncipes dos Apóstolos de Cristo, e permanece incontaminada até o fim”), mas não derivavam delas qualquer noção de infalibilidade do bispo romano.  De fato, até o século XIV, em meio a controvérsia com o conciliarismo, nenhum autor cristão enxergou nessas fórmulas qualquer evidência da infalibilidade papal, uma vez que estas fórmulas falam da fé da Igreja de Roma, e não do papa pessoalmente. Por isso, o apelo feito a estas fórmulas como evidência da infalibilidade no Concílio Vaticano I (séc. XIX) carecem de fundamentação histórica.

Os canonistas e a relação entre Escritura e Tradição

Tierney também discute a visão dos canonistas sobre a relação entre Tradição e Escritura. Ele documenta que, até o século XIII, a visão quase uníssona não referendava a ideia da tradição como um suplemento doutrinário (teoria das duas fontes). Ou seja, toda doutrina cristã estava necessariamente contida nas Escrituras:

Contudo, antes do século XIII, há poucos indícios em suas obras da visão de que a Tradição constituía uma fonte de revelação divina separada da Escritura (...) Quando os teólogos do século XII observavam — como às vezes faziam — que muitas coisas eram mantidas pela Igreja e não se encontravam nas Escrituras, pareciam ter em mente apenas costumes litúrgicos ou práticas piedosas. (p. 15-16)

Na página 31, Tierney afirma que não havia "o menor traço em suas obras [dos canonistas] da teoria das duas fontes". A chamada teoria das duas fontes ganharia impulso durante o período da Reforma e foi abraçada por teólogos como Melchior Cano como parte do esforço para combater o protestantismo. No entanto, ela encontra pouco apoio no período patrístico ou no período escolástico. É interessante notar que há um paralelo entra a teoria das duas fontes e a infalibilidade papal, pois, a necessidade de “autenticar” doutrinas que foral legadas apenas oralmente (sem suporte bíblico) deu impulso a ideia de que o papa poderia infalivelmente exercer esse papel autenticador. Os canonistas também não tinham qualquer noção sobre a irreformabilidade de decretos papais, o que implica numa visão não infalibilista:

“A essência de sua [dos canonistas] doutrina era que o papa poderia revogar leis antigas e fazer novas (...) Um papa poderia revogar as decisões de seus predecessores” (...) Ele [o papa] não estava vinculado por qualquer tradição concebida como uma fonte de revelação". (p. 30)

Como mencionado, a visão dos canonistas sobre a soberania papal incluía o fato de que eles não estavam subordinados aos decretos de seus antecessores.

Os Canonistas e a Infalibilidade da Igreja

Um ponto importante é que como os canonistas entendiam a ideia da infalibilidade da Igreja, sem qualquer noção de um privilégio pessoal concedido ao papa:

“Eles [os canonistas] discutiram repetidas vezes o problema de manter a fé inerrante da igreja e invariavelmente chegaram à conclusão de que o papa sozinho não poderia fornecer uma garantia adequada para a estabilidade dessa fé. “Seria perigoso demais confiar nossa fé ao julgamento de um único homem”, escreveu um deles. (Glossa Palatina ad Dist. 19 c. 9, “... periculosum erat fidem nostram committere arbitrio unius hominis). [Os canonistas aplicaram] em sentido disjuntivo, ou seja, implicando uma distinção entre toda a comunidade cristã, cuja fé nunca poderia falhar, e a pessoa de um papa individual, que era apenas um homem mortal e falível, e assim apenas um símbolo imperfeito da Igreja. Normalmente, eles explicavam que frases que descrevem uma “sé apostólica” ou “igreja romana” infalível só poderiam fazer sentido se fossem entendidas não como se referindo ao papa sozinho, mas a toda a congregação dos fiéis. Hugucio comentou sobre um texto (atribuído por Graciano ao papa Eusébio):

(A igreja apostólica nunca errou): Existe uma objeção relacionada a Anastácio. Mas talvez esse (papa) tenha vindo antes. Ou talvez, e isso é melhor, ele fale da fé da Igreja universal, que nunca errou. Pois, embora a Igreja de Roma às vezes tenha errado, isso não significa que a Igreja romana — entendida não como (apenas) o papa, mas como todos os fiéis, pois a Igreja é o conjunto dos fiéis — tenha errado. Se ela não existe em Roma, existe nas regiões da Gália ou onde quer que os fiéis estejam. A Igreja pode, de fato, deixar de ser, mas isso nunca acontecerá, pois foi dito a Pedro e, na pessoa de Pedro, à Igreja universal: ‘que a tua fé não desfaleça”. Em outro lugar, Hugucio escreveu: “Onde quer que haja cristãos fiéis, ali está a Igreja romana” (para outras expressões similares em Hugucio, veja Foundations, pp. 41-42; Summa Animal est substantia ad C. 24 q. 1 c. 9; Summa Omnis qui iuste ad C. 24 q. 1 c. 9 – “Pope and Council” pp. 214, 213).

Tais visões eram comumente expressas pelos Decretistas. Um canonista francês anônimo observou que a “Igreja romana” infalível era a “Igreja universal” e um autor inglês anônimo dizia que a Igreja não poderia errar simultaneamente “em seu corpo inteiro” (Glossa Palatina ad C. 24 q. 1 c. 9 – Foundations, pp. 43-44). Laurentius escreveu: “Embora o papa, que pode ser julgado por heresia, tenha errado, a Igreja romana ou Igreja católica — entendida como a congregação de católicos — não errou” (Appar. Iura naturali ad C. 24 q. 1 c. 6, citado por J. A. Watt, “The Early Medieval Canonists and the Formation of Conciliar Theory,” Irish Theological Quarterly, 24). De modo semelhante, Alain de Lille: “Mesmo que o papa tenha errado, a fé perdura na Igreja, que é a congregação dos católicos”. (p. 37)

O texto acima é muito importante pois traz vários exemplos de como os canonistas (ex. Alano e Huguccio) entendiam a ideia da infalibilidade da Igreja, ou da fé de Roma ou de que Roma não poderia errar. Eles entendiam como significando que a Igreja Universal (ou seja, toda a comunhão dos fiéis) não poderiam errar, embora, o papa individualmente poderia errar (ser herege). Há também a leitura que situa essa inerrância nos bispos, mas, a maioria se referia a toda a Igreja em comunhão com Roma. Eles não argumentavam que um cabeça infalível fosse necessária para sustentar a fé da Igreja. Ao contrário, afirmavam que, por mais que a cabeça pudesse errar, a providência divina sempre impediria que toda a Igreja fosse levada ao erro.

Os canonistas e a possibilidade do papa herege

Outro aspecto importante do nosso estudo é que os canonistas davam como certa a possibilidade de um papa herege. De fato, até os próprios papas reconheciam isto. O papa Inocêncio III (séc. XII) afirmou:

“Para esse fim, a fé me é tão necessária que, embora eu tenha como juiz somente a Deus pelos demais pecados, é unicamente por um pecado cometido contra a fé que posso ser julgado pela Igreja”. (Sermão 2, In Consecratione, publicado em Patrologia Latina 218:656, citado em Tierney, p. 24)

Na mesma página, Tierney afirma que para Alain de Lille, em caso de discordância do papa com os bispos ou a maioria deles numa matéria de fé, deveria prevalecer a opinião dos bispos.

Os canonistas foram levados a adotar essa atitude em parte pela natureza do material-fonte que formava a base de sua ciência. No grande compêndio de textos canônicos de Graciano, retirados de todos os períodos do passado da Igreja, eles não encontraram nenhuma afirmação de que papas individuais fossem infalíveis, mas encontraram vários casos de pontífices particulares acusados de terem pecado e errado em questões de fé. Graciano também incluiu no Decreto um texto afirmando que a imunidade do papa contra o julgamento humano não se estendia a casos em que ele fosse encontrado desviando-se da fé. O caso específico que mais atraiu atenção dos Decretistas dizia respeito ao Papa Anastácio II (496–498). Esse Anastácio foi um pontífice relativamente irrepreensível. Reinou numa época em que as igrejas de Roma e Constantinopla estavam divididas pelo cisma acaciano, que surgiu de uma variação tardia da heresia monofisita patrocinada pelo patriarca grego Acácio. Anastácio foi tão longe em tentar reconciliar os hereges que, segundo seus inimigos, terminou manchado pela heresia. Após a morte do papa, registraram no Liber Pontificalis que ele havia sido “ferido pela vontade divina” Graciano incorporou essa passagem ao Decreto e ela foi amplamente aceita durante a Idade Média como historicamente exata e canonicamente autoritativa. Os canonistas medievais nada sabiam sobre o Papa Honório (625–638), que realmente cometeu um grave erro ao lidar com os detalhes obscuros da controvérsia monotelita e cujo caso deu origem a intermináveis discussões nos debates do século XIX sobre a infalibilidade papal. Nos debates medievais, Anastácio servia como uma espécie de substituto de Honório. (Dante, de fato, encontrou um lugar para ele no Inferno). Embora os Decretistas medievais conhecessem casos de papas errantes, também tinham diante de si todo o conjunto de textos (genuínos e forjados) a partir dos quais a teoria posterior da infalibilidade papal seria construída. (p. 33)

Ou seja, os canonistas não desenvolveram uma teoria da infalibilidade papal por que tiveram acesso a amplo material da história da Igreja que mostrava os papas errando. Eles então desenvolveram a ideia de que a providência divina impedia que toda a Igreja caísse em erro, mas, não que o papa fosse pessoalmente infalível. Interessante notar que eles não conheciam o caso de Honório, condenado como herege pelo Concílio Ecumênico de Constantinopla III, mas, eles acreditavam na história de que Anastácio teria cedido, durante o cisma de Acácio (séculos V e VI), à heresia monofisita.

O decreto de Graciano foi a principal complicação da lei canônica da Igreja. Dessa forma, é um documento de valor inestimável para nosso estudo.  Importa mencionar que muitas falsificações foram incluídas no decreto, quem seria mais tardes usadas para defender a infalibilidade do papa, inclusive no Concílio Vaticano I (séc. XIX). Tierney demonstra como passagens utilizadas para afirmar a infalibilidade no mencionado concílio também foram utilizadas pelos canonistas, mas como um sentido diferente:

A primazia necessariamente incluía um magistério infalível ao citar Lucas 22:32 (“Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça”). Exatamente essa mesma justaposição de textos ocorre no Decretum em Dist. 21 ante c. 1. Pastor aeternus apresentou a fórmula do Papa Hormisdas: “Na sé apostólica, a religião católica sempre foi mantida sem mancha” como evidência de que a infalibilidade papal sempre havia sido ensinada pela Igreja. Graciano incluiu a mesma fórmula no Decretum junto com outros textos afirmando que a Igreja Romana nunca havia errado “do caminho da tradição apostólica”. Para os teólogos ultramontanos do século XIX, parecia evidente que um católico que aceitasse esses textos escriturísticos e canônicos deveria também aceitar a doutrina da infalibilidade papal. Os Decretistas medievais mostraram, porém, como uma eclesiologia católica totalmente diferente poderia ser construída sobre a base dessas mesmas passagens.

A chave para o entendimento dessa eclesiologia decretista está na exegese conservadora e inspirada nos Pais da Igreja de Lucas 22:32 feita pelos canonistas. Teóricos da infalibilidade papal da Idade Média tardia em diante geralmente assumiram que a oração de Cristo por Pedro tinha a intenção de garantir a fé infalível dos sucessores de Pedro no papado. Os Decretistas não conheciam tal interpretação. Um comentário típico é este de Hugucio:

“Que tua fé não desfaleça” é entendido como significando de forma final e irrevogável, pois, embora tenha falhado por um tempo, depois foi tornada mais fiel. Ou na pessoa de Pedro entende-se a Igreja, e na fé de Pedro a fé da Igreja universal, a qual nunca falhou como um todo, nem falhará até o dia do juízo”.

Para Hugúcio e seus contemporâneos, as palavras de Lucas 22:32 não conferiam qualquer dom de infalibilidade ao próprio Pedro, muito menos aos pontífices subsequentes. Eles frequentemente notavam que a fé de Pedro realmente “falhou por um tempo” geralmente referindo-se à sua negação de Cristo após a última ceia". (p. 34)

O texto de Lucas 22:32 foi o principal trecho bíblico usado em apoio da doutrina, mas, durante 1300 anos ninguém afirmou tal interpretação. Nenhum Pai da Igreja ou qualquer outro teólogo do primeiro milênio defendeu tal interpretação. Os canonistas também citavam o mesmo texto e já mencionada fórmula de Hormisdas, mas, sem qualquer vinculação a doutrina que seria definida no século XIX.

“Eles também às vezes recordavam que Pedro havia errado em sua política judaizante e que Paulo teve de repreendê-lo a esse respeito. De acordo com sua interpretação, Cristo não prometeu a Pedro imunidade contra o erro em sua liderança da Igreja, mas sim a graça da perseverança final na fé. Mesmo que Lucas 22:32 tivesse sido aplicado aos sucessores de Pedro no papado, dificilmente poderia ter formado a base de uma teoria de infalibilidade papal, desde que fosse entendido nesse sentido. Mas, de fato, Hugúcio e seus contemporâneos não aplicaram o texto aos sucessores de Pedro. Eles reconheceram que duas interpretações eram possíveis. As palavras de Cristo poderiam ser tomadas como referentes apenas a Pedro ou poderiam receber uma interpretação mais ampla. Mas, no último caso, referiam-se não aos futuros papas, mas à fé da Igreja universal. Esta era a doutrina comum dos Decretistas. Encontra-se repetidamente em suas obras e estava incluída na glossa ordinaria universalmente aceita de Johannes Teutonicus. Além disso, quando os Decretistas escreviam que a Igreja universal, ou a fé da Igreja, não iria “falhar”, eles não estavam pensando em “infalibilidade” no sentido moderno, mas em indestrutibilidade. A promessa de Cristo a Pedro era entendida simplesmente como significando que a Igreja sempre sobreviveria; significava que a verdadeira fé sempre viveria, ao menos em algum pequeno remanescente, mesmo em uma era de apostasia em massa. Isso é destacado mais claramente em outro comentário de Hugucio (sobre Mateus 16:18):

“As portas do inferno” Vícios e pecado mortal... nunca prevalecerão de modo que não haja boas pessoas na Igreja, motivo pelo qual Cristo disse a Pedro, como símbolo da Igreja: “Eu roguei por ti para que a tua fé não desfaleça...” ou “portas do inferno” significam heresias e cismas... que, do mesmo modo, nunca prevalecerão contra a Igreja de modo a contaminá-la completamente. (p. 35)

Na página 35 fica ainda mais evidente que eles não acreditavam na infalibilidade da Igreja, mas na indefectibilidade ou indestrutibilidade da Igreja. Ou seja, que ela nunca deixaria de existir. Ele cita Hugucio para afirmar justamente a ideia de que um remanescente fiel sempre seria mantido. Especificamente sobre Pedro, eles admitiam as duas interpretações: como se referindo a fé de Pedro ou a Igreja representada em Pedro. Em ambas, não se aplicava ao sucessor de Pedro (o bispo de Roma). Essa interpretação está de acordo com a visão protestante da indefectibilidade da Igreja. Não há aqui a ideia bastante difundida hoje de que a hierarquia visível da Igreja tivesse uma proteção absoluta contra o erro.

É evidente que os canonistas medievais estavam se movendo em um clima de pensamento muito diferente daquele dos teólogos ultramontanos do século XIX. Os canonistas acreditavam que os papas podiam errar e erravam em sua capacidade oficial como sumos pontífices (como no caso de Anastácio). Claro que os teólogos modernos não negam que o papa possa errar. Mas, quando os teólogos católicos precisam levar em conta os erros promulgados por papas como chefes da Igreja, eles discriminam entre pronunciamentos oficiais infalíveis e pronunciamentos oficiais não infalíveis. Os canonistas medievais não conheciam tais distinções. Para eles, não havia tentativa de distinguir entre o papa que poderia errar — e errava em qualquer um de seus pronunciamentos, tanto quanto sabiam — e a Igreja universal, cuja fé não poderia falhar. Ideias semelhantes à doutrina moderna da infalibilidade papal simplesmente nunca lhes ocorreram. (p. 38)

Os Canonistas sobre os Papas e os Concílios

Além de não considerarem o papa infalível, muitos canonistas consideram o concílio superior ao papa para definir uma questão de fé:

“A partir disso, vários deles [canonistas] tiraram a conclusão explícita de que, quando se tratava de questões de fé, um concílio geral possuía uma autoridade intrinsecamente superior à de um papa individual. Essa visão foi transmitida para a Idade Média tardia por João Teutônico em um texto muito influente da glossa ordinaria:

“Parece que o papa é obrigado a convocar um concílio de bispos, o que é verdadeiro quando se trata de uma questão de fé, e então um concílio é superior ao papa (15 dist. Sicut)”

(...) [os canonistas] certamente consideravam os cânones de um concílio, apoiados pelo consenso da Igreja, como um guia mais seguro para as verdades da fé do que as declarações de um papa individual. (p. 46)

Tierney prossegue articulando a visão dos canonistas sobre o papa e o concílio:

“No que diz respeito à autoridade de um concílio geral, os Decretistas, em sua maior parte, deixaram apenas indícios para que os pensadores conciliaristas posteriores seguissem. Mas em um ponto importante que envolvia o papa, o concílio e a defesa da verdadeira fé, eles se aprofundaram em detalhes intrincados. Este era o problema de depor um papa herege. Aqui, os Decretistas articularam de forma vívida todos os argumentos conciliaristas (e anti-conciliaristas). Todos reconheciam que um papa poderia errar na fé e todos concordavam que um papa que se tornasse um herege obstinado tinha que ser de alguma forma deposto de sua posição”. (p. 49)

Nas páginas 50 a 53, ele vai discutir as teorias que os canonistas criaram para lidar com o papa herege. Três teorias: (1) não havia órgão judicial acima do papa; (2) o concílio reunido juntamente com o papa era superior ao papa individualmente; (3) o concílio agindo sem o papa poderia depor o herege.

“Alanos, portanto, levou seu argumento um passo adiante. Se surgisse uma disputa entre o papa e os membros de um concílio ou entre o papa e os cardeais sobre uma questão de fé, então, segundo Alanos, a decisão dos padres conciliares ou dos cardeais deveria ser preferida à do papa (...) Dado que os cardeais ou bispos possuíam uma jurisdição superior à do papa no âmbito da doutrina da igreja, era possível argumentar que poderiam condenar um papa por qualquer desvio da verdadeira fé sem necessidade de distinguir entre uma heresia previamente condenada e uma nova. Esta foi a conclusão a que Alanus chegou: “É verdade que, por este único crime de heresia, um papa pode ser julgado mesmo contra sua própria vontade. Isso ocorre porque, em questões que dizem respeito à fé, ele é inferior ao colégio de cardeais ou a um concílio geral de bispos”. (p. 52)

A citação de Alanos é muito clara no sentido de que o Concílio era superior ao papa quando se tratava de doutrina. Tierney continua no mesmo assunto:

“Defensores posteriores da doutrina da infalibilidade papal argumentaram que Deus não poderia impor a todos os católicos a obrigação de obedecer ao papa e, ao mesmo tempo, permitir que o papa errasse na fé. Os canonistas argumentaram que, visto que era evidente que um papa poderia errar, a obrigação de obedecer não poderia ser incondicional (...) Como os canonistas não aderiam a uma doutrina de infalibilidade papal, seria de se esperar que a doutrina paralela da irreformabilidade também estivesse ausente em suas obras. E de fato é o caso. Desenvolver tal doutrina teria sido contrário à sua teoria jurídica de soberania com seu princípio central — par in parem non habet imperium (um igual não tem poder sobre outro igual). Os canonistas, é claro, acreditavam que certas verdades de fé eram irreformáveis; mas essas eram verdades derivadas da Escritura e das interpretações da Escritura apresentadas nos cânones dos concílios gerais, não em pronunciamentos de pontífices individuais”. (p. 52-53)

Além do princípio do direito romano de que o príncipe está isento das leis ou acima delas, os canonistas também entendiam que um igual não tem poder sobre outro igual. Isto implica não haver irreformabilidade em decretos papais, o que só era possível por não haver uma noção de infalibilidade do papa.

Conclusão de Tierney sobre os canonistas

“Não havia uma doutrina estrita de irreformabilidade — como gerações posteriores entenderiam o termo — nos escritos Decretistas. Como os canonistas acreditavam que os pronunciamentos doutrinários de um papa poderiam estar errados e, portanto, precisariam ser corrigidos por um papa posterior, eles não poderiam ter desenvolvido tal doutrina sem uma grave contradição. Em todas as áreas de pensamento que consideramos, parece haver um abismo entre a eclesiologia dos canonistas medievais e a eclesiologia do Concílio Vaticano I. Os canonistas não apresentaram a Tradição como uma fonte de revelação divina separada da Escritura. Eles não conheciam nenhum magistério conferido a Pedro com o poder das chaves. Eles acreditavam que, em questões de fé, um concílio geral era maior que o papa. Eles não sustentavam que os pronunciamentos papais eram irreformáveis ex sese. Acima de tudo, os canonistas não ensinavam que o papa era infalível. Os textos que citamos, contrastando a fé infalível da Igreja com a falibilidade dos pontífices individuais, parecem representar uma posição que era geralmente aceita. Nenhum canonista, tanto quanto sabemos, ensinou o contrário. Nem os teólogos, em seus comentários muito mais escassos sobre tais questões, divergiam da doutrina dos canonistas. A Igreja do século XII simplesmente não acreditava que o papa “possuía aquela infalibilidade com a qual o divino Redentor quis que sua Igreja fosse dotada”. (p. 57)

Encerramos aqui esta primeira parte que explorou especialmente o testemunho dos canonistas do século XII. Nos próximos dias, estaremos publicando a continuação desse tema.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

A Pena de Morte: A anatomia de mais uma contradição da Igreja de Roma


Neste artigo, vamos explorar em detalhes o ensino histórico dos Pais da Igreja, Teólogos e Papas sobre a pena de morte. O objetivo é demonstrar que a mudança do catecismo da Igreja Romana contradiz sua própria tradição, fundamentada em seus doutores e papas. Trata-se de um texto baseado no livro dos autores católicos Edward Feser e Joseph Bessette (aqui)  que traz uma defesa da aplicabilidade da pena de morte. Sempre que eu me referir ao livro, citarei Feser.

Pais da Igreja (séculos II ao V)

Atenágoras de Atenas (séc. II) parece indicar que em caso de acusações justas, a punição (que incluía a pena capital) poderia ser aplicada:

“Se, de fato, alguém pode nos convencer de um crime, seja pequeno ou grave, não pedimos isenção de pena, mas estamos dispostos a suportar as mais agudas e implacáveis punições”. (Petição em favor dos Cristãos, cap. II)

Tertuliano (séc. III), apesar de ser considerado um pacifista, escreveu:

“Portanto, aquelas almas devem ser consideradas como passando um exílio no Hades— aquelas que as pessoas tendem a ver como arrancadas pela violência, especialmente pelas torturas cruéis, tais como na cruz, pelo machado, pela espada e pelo leão; mas não consideramos como mortes violentas aquelas que a justiça impõe, aquele vingador da violência”. (Tratado sobre a Alma – 56)

Lactâncio (séc. III) também diz:

“Enganam-se profundamente aqueles que, por temor de parecer cruéis, condenam toda censura — humana ou divina — afirmando que só quem causa dor pode ser chamado de ilícito. Se assim fosse, seriam as leis perversas por estabelecerem punições para os que pecam, e seriam culpados os juízes que decretam a pena capital contra condenados por crimes”. (Tratado sobre a Ira de Deus 17)

Clemente de Alexandria (séc. III):

“Mas, quando [a lei] vê que alguém se encontra em condição tal que parece incurável, avançado ao último estágio da maldade, então, em sua solicitude pelo restante, para que não venha a ser destruído por ele (assim como ao amputar uma parte para preservar o corpo inteiro), condena tal indivíduo à morte, por ser este o meio mais propício à saúde.” (Stromata, I, 27)

Agostinho (séc. IV-V), pela sua importância, sempre merece destaque especial:

“Após o exposto acima, alguns homens santos (...) puniram certos pecados com a pena de morte, tanto porque os vivos eram atingidos por um temor salutar, quanto porque não era a morte em si que penalizava os condenados, mas o pecado, o qual se agravaria se continuassem a viver. Não decidiram com precipitação sobre aqueles a quem Deus havia conferido tal poder de julgar.” (Comentário ao Sermão da Montanha I, 20, 64).

Agostinho também afirma que o mandamento “não matarás” quando a autoridade aplica a pena capital:

“Todavia, há exceções feitas pela autoridade divina à sua própria lei, para que alguns homens não sejam mortos (...) Aqueles que fizeram guerra em obediência ao mandato divino, ou em conformidade com Suas leis, representaram, em suas pessoas, a justiça pública ou a sabedoria de governo, e, nessa condição, executaram sentenças capitais a homens perversos; tais pessoas de modo algum violaram o mandamento ‘Não matarás’.” (Agostinho, A Cidade de Deus, Livro I, cap. 24).

Optato de Milevo (séc. IV) também escreve:

“Como se ninguém jamais merecesse morrer pela vindicação de Deus (..) Seja qual for o sofrimento que [os executados] possam ter padecido, se é mal ser morto, eles são causa do seu próprio mal (...) Acuse primeiro Moisés, o próprio legislador, que, tendo descido do Monte Sinai, quase antes de as tábuas da Lei terem sido colocadas à vista, nas quais estava escrito ‘Não matarás’, ordenou a morte de três mil pessoas num único momento.” (Contra os donatistas, Livro 3)

Jerônimo (séc. IV-V), ao comentar a passagem de Jeremias diz que:

“(...) punir assassinos, sacrílegos e envenenadores não é derramamento de sangue, mas dever das leis” (Comentário sobre Jeremias, Livro 4)

Ele também diz:

“Quem mata o homem cruel não é cruel.” (Comentário sobre o Profeta Isaías).

Feser traz vários testemunhos de Pais da Igreja do século IV:

“Após o tempo de Constantino, passa a ser corrente a opinião de que até mesmo as autoridades governamentais cristãs podem recorrer à pena de morte, embora a leniência também seja frequentemente recomendada. Eusébio afirmou que a execução, por Constantino, de seu rival Licínio foi a justa punição de um tirano (Eusébio, Vita Constantini, Livro I, cap. 53). Em suas Homilias sobre as Estátuas, São João Crisóstomo elogia o imperador Teodósio por abstiver-se, com misericórdia, daquilo que teria sido um “massacre justificável” como castigo pelas ações sediciosas dos cidadãos de Antioquia e observa que “ainda que vocês fossem condenados à morte, ou qualquer outra coisa que resolvessem fazer, jamais teriam sobre nós a vingança que merecemos” (João Crisóstomo, Homilias sobre as Estátuas, Homilia II, §§ 37–38). São Gregório Nazianzeno, embora também recomende clemência, admite que os malfeitores podem ser punidos com a pena de morte (Gregório de Nazianzo, Orationes, Oração 17). São Efrém da Síria (m. 373) sustenta que as mulheres que praticam aborto merecem a morte (Efrém, De Timore Dei X). São Hilário (m. 368) afirma que é lícito matar quando se exerce o ofício de juiz (citado em Robert Bellarmino, De Laicis, p. 55). São Ambrósio de Milão (c. 340–397), apoiando-se na autoridade de São Paulo, reconheceu em princípio a legitimidade da pena capital (Ambrósio, Cartas 90).  (p. 114-115)

Em consonância com o exposto, Feser frequentemente cita um autor católico contrário a pena de morte chamado E. Christian Brugger (aqui) que afirma:

“Para os Pais da Igreja Primitiva, a autoridade do Estado para matar malfeitores é dada como garantida. As opiniões diferem se os cristãos poderiam ocupar cargos cuja responsabilidade incluía o julgamento e aplicação de penas capitais. Os autores pré-constantino diriam que não, já os escritos após 313 disseram que eles poderiam – mas o princípio da legitimação da própria punição nunca foi questionado”. (Feser, p. 111; Brugger, p. 74)

Como se vê, há um consenso dos Pais da Igreja a respeito do assunto. Neste sentido, é oportuno trazer a posição histórica da Igreja de Roma a respeito do consenso dos Pais da Igreja, embora, a adoção mais recente da teoria do desenvolvimento tenha minado esse apelo. Os Concílios de Trento e Vaticano I utilizam linguagem forte em condenação a interpretação da Escritura contrariamente ao consenso dos Pais, embora as doutrinas peculiares de Roma não contem com esse apoio:

“Para refrear as pessoas insolentes e astutas, o sínodo decreta que ninguém que confie em seu próprio juízo em matéria de fé e moral — o que diz respeito à edificação da doutrina cristã —, e que ninguém que distorça as Sagradas Escrituras segundo suas próprias opiniões, ouse interpretar a Sagrada Escritura em sentido contrário ao que é mantido pela Santa Mãe Igreja, cujo dever é julgar o verdadeiro sentido e a interpretação das Sagradas Escrituras, ou mesmo em contradição com o consentimento unânime dos Padres.” (Concilio de Trento, Sessão IV, Decreto sobre a Sagrada Escritura)

“Em matérias de fé e moral, uma vez que fazem parte da doutrina cristã, o significado das Sagradas Escrituras a ser tido como o verdadeiro deve ser aquele que a Santa Mãe Igreja sustentou e sustenta, uma vez que tem o direito de julgar o verdadeiro sentido e a interpretação da Sagrada Escritura. Em consequência, não é permissível a ninguém interpretar a Sagrada Escritura em sentido contrário a este, ou em oposição ao consentimento unânime dos Pais.” (Concílio Vaticano I, Dei Filius, cap. 3)

O teólogo católico G. Van Noort afirma que:

“O acordo unânime dos Pais sobre uma doutrina revelada é um argumento seguro para a Tradição Divina”. (Van Noort, Dogmatic Theology, vol. 3, p. 172)

A posição dos Doutores da Igreja Romana (séculos XIII a XVII)

Comecemos com o principal – Tomás de Aquino (séc. XIII):

“É lícito ao príncipe, como ministro da comunidade civil, impor a pena de morte aos malfeitores, para que o bemestar dos inocentes seja protegido.” (Suma Teológica, I-II, Q. 108, Art. 4, resp.)

“Assim como ao médico é permitido amputar um membro corrupto para preservar o corpo, com maior razão ao juiz é lícito extirpar pela morte aquele cuja perversidade é incurável, a fim de garantir a segurança de toda a cidade.” (Suma Teológica, I-II, Q. 108, Art. 4, ad 2um)

Ao comentar o “poder da espada” mencionado por Paulo em Romanos 13:4, ele diz:

“Pelo ‘gládio’ entende-se aqui o poder punitivo temporal, sobretudo a pena de morte, com o qual o magistrado extermina os malfeitores. ” (Comentário à Epístola aos Romanos, Livro IV, cap. 20)

Respondendo ao argumento de que a pena capital seria demasiada, ele retoma Rom 13,4:

“…pois ‘não traz em vão a espada’, isto é, o poder de impor a morte não é vã nem inútil, mas justo instrumento para punir quem pratica o mal.” (Suma Teológica I-II, q. 108, a. 4, ad 2um)

Pedro Canísio (séc. XVI) reponde, em seu catecismo, perguntas sobre como o homicídio voluntário deveria ser tratado apontando passagens como Gênesis 9,6 (“Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado”) e Salmo 55,23 (“"Mas tu, ó Deus, farás descer à cova da destruição aqueles assassinos e traidores, os quais não viverão a metade dos seus dias; quanto a mim, porém, confio em ti.”) (Catecismo, sobre Genesis 9:6 e Salmos 55:23). Afonso de Ligório (séc. XVIII) defende a pena de morte “se for necessária para a defesa da república” ou “para preservar a ordem da lei” (Theologia Moralis III, 4,1). Roberto Belarmino (séc. XVI-XVII) argumenta que:

É lícito ao magistrado cristão punir com a morte os que perturbam a paz pública; prova-se isso, primeiramente, pelas Escrituras, pela lei natural, por Moisés e pelos Evangelhos, nos quais temos preceitos e exemplos. “Pois Deus diz: ‘Aquele que derramar o sangue do homem, pelo homem será derramado o seu sangue.” Essas palavras não podem ser mera profecia — porque uma profecia desse tipo muitas vezes se revelaria falsa — mas constituem um decreto e um preceito. Em segundo lugar, isso se prova pelo testemunho dos Pais. Por fim, se demonstra pela razão; pois é dever de um bom governante, a quem foi confiado o cuidado do bem comum, impedir que os membros que existem para o bem de todos o prejudiquem, e, portanto, se ele não pode preservar todos unidos, deve antes cortar um do que permitir que o todo seja destruído — assim como o lavrador poda ramos e brotos que prejudicam a vinha ou a árvore, e o médico amputa membros que possam ferir o corpo inteiro”. (Tratado sobre o Governo Civil, cap. 13)

Percebam como ele defende a pena capital como um decreto e um preceito, ou seja, é um dever do Governo aplicar a pena quando justo. Os demais doutores da Igreja seguem a mesma tendência. Feser escreveu:

Diante do testemunho uniforme dos Pais e Doutores da Igreja, não surpreende que os mais eminentes teólogos católicos, desde a Idade Média até hoje — dentre eles o Bemaventurado João Duns Scotus (1266–1308), o Cardeal Caetano (1469–1534), Francisco de Vitoria (1492–1546), Francisco Suárez (1548–1617), Juan de Lugo (1583–1660), CharlesRené Billuart (1685–1757) e os autores dos manuais eclesialmente aprovados de teologia moral nos séculos XIX e XX — também tenham afirmado a legitimidade da pena capital. Se a pena capital fosse realmente, afinal, sempre e intrinsecamente imoral, isso implicaria numa ruptura massiva no Magistério ordinário da Igreja por dois milênios e, consequentemente, lançaria dúvidas sobre sua confiabilidade geral. (Feser, p. 121)

Este consenso que envolve Pais e Doutores é extremamente sério. Um conhecimento manual de teologia católica afirma:

“Se… [os teólogos] concordam em declarar que uma doutrina é suficientemente certa e demonstrada, seu consentimento não constitui prova formal do caráter católico da doutrina; entretanto, a existência desse consentimento mostra que a doutrina pertence ao entendimento da Igreja (catholicus intellectus), e, consequentemente, sua negação incorreria na censura de imprudência. Estes princípios da autoridade dos teólogos foram fortemente sustentados por Pio IX em Gravissimas inter (cf. infra § 29), e são consequências evidentes da doutrina católica da Tradição. Embora a assistência do Espírito Santo não seja prometida diretamente aos teólogos, não obstante, a assistência prometida à Igreja exige que Ele os livre, como corpo, de cair em erro; caso contrário, os fiéis que seguem a eles seriam todos desviados. O consentimento dos teólogos implica o consentimento do episcopado, segundo o ditado de São Agostinho: “Não resistir a um erro é aprová-lo — não defender uma verdade é rejeitá-la” (Agostinho, A Cidade de Deus, I, 21). A Igreja estima quase da mesma forma os Doutores medievais e os Padres antigos. A substância dos ensinamentos dos Escolásticos e seu método de tratamento foram ambos fortemente aprovados pela Igreja.” (Wilhelm e Scannell, A Manual of Catholic Theology, vol. 1, p. 79)

O conhecido cardeal Dulles (citando Melchior Cano) também escreveu:

“Excepcionalmente, Pais da Igreja podem errar individualmente, mas, de acordo com Cano, é impossível que todos os Pais errem em matéria de fé. Assim como para os teólogos escolásticos, seria próximo a heresia, ele afirma, contradizer a opinião unânime em matéria de fé e moral.” (Magisterium: Teacher and Guardian of the Faith. Naples, FL: Sapientia Press, 2007, p. 43)

O papa Pio IX (séc. XIX) também escreveu sobre o consentimento dos teólogos:

“A sujeição que deve ser manifestada por um ato de fé divina (...) não precisaria ficar limitada àquelas matérias que foram definidas por decretos expressos dos Concílios ecumênicos, ou dos Pontífices Romanos e desta Sede, mas teria de se estender também àquelas matérias que são transmitidas como divinamente reveladas pelo poder de ensino ordinário de toda a Igreja espalhada pelo mundo, e, portanto,  também pelo consentimento universal e comum sustentado por teólogos católicos como pertencentes à fé. Não basta aos católicos aceitar e venerar os dogmas antes mencionados da Igreja, mas (...) é também necessário sujeitar-se (...) àquelas formas de doutrina que são mantidas pelo consentimento comum e constante dos católicos como verdades teológicas e conclusões, de modo tão certo que opiniões opostas a essas mesmas formas de doutrina, embora não possam ser chamadas heréticas, merecem, não obstante, alguma censura teológica.” (Tuas Libenter, carta de 1863 ao Arcebispo de Munique-Freising)

Ou seja, a Fé da Igreja Romana não estaria restrita apenas às fórmulas decretas pelos Concílios Ecumênicos ou pelos Papas, mas também pelo consenso dos teólogos e pais da Igreja. Isto implicaria que o ensino sobre a aplicabilidade da pena de morte é parte da fé revelada.

A posição dos Papas

Em 405, Inocêncio I escreveu uma carta ao bispo de Tolouse, respondendo se as autoridades civis, mesmo depois de se tornarem cristãs, poderiam continuar aplicando a pena de morte:

“A respeito dessas coisas não lemos nada definitivo dos antecessores. Eles lembravam que esses poderes haviam sido concedidos por Deus e que, para punir os malfeitores, permitiu-se o uso da espada. Dessa forma, foi nos dado um ministro de Deus, um vingador. Como, pois, eles criticariam algo que veem como tendo sido concedido pela autoridade de Deus? A respeito desses assuntos, portanto, mantemo-nos naquilo que até agora se observou, para que não pareçamos subverter a ordem sã ou ir contra a autoridade do Senhor.” (Carta XCVII para Exsuperium)

Obviamente, por uso da espada, ele se refere ao texto de Romanos 13:7. Assim, como outros Pais da Igreja (Tertuliano, Orígenes, Ambrósio e etc), ele interpretava tal passagem como autorizando a aplicação da pena capital. Já Inocêncio III requereu no ano 1210 aos valdenses, como condição para se reconciliar com a Igreja, que afirmassem um número de doutrinas que incluía o seguinte:

“Declaramos que o poder secular pode, sem pecado mortal, impor um julgamento de sangue, desde que a pena seja devidamente executada.” (Epistola ad Waldenses, 1210)

O fato de esta proposição ser requerida de um grupo considerado herético é clara no sentido de que a possibilidade de aplicação da pena capital era parte da ortodoxia católica. É interessante observar que a posição católica atual está mais próxima dos Valdenses, que condenavam a aplicação da pena de morte como pecado mortal, do que dos Papas anteriores. Já em 1520, o Papa Leão X condenou proposições associadas a Martinho Lutero:

“[Elas são] heréticas, escandalosas, falsas, ofensivas aos ouvidos piedosos, sedutoras para pessoas simples e contrárias à verdade católica. Ao listá-las, decretamos e declaramos que todos os fiéis de ambos os sexos devem tê-las como condenadas, reprovadas e rejeitadas (...) Proibimos firmemente, em virtude de santa obediência, sob pena de excomunhão automática.” (Bula Exsurge Domine)

Uma dessas proposições heréticas e sujeitas a pena de excomunhão era:

“Queimar hereges é contra a vontade do Espírito Santo”.

Novamente, ele ameaça de excomunhão quem negar a afirmação acima, fazendo do uso da pena de morte para combater a heresia. Ou seja, o papa afirma que é herético não apenas se opor a pena de morte, mas se opor a perna de morte aos hereges. Podemos dizer que os papas atuais seriam considerados hereges e excomungados da Igreja de Roma do século XVI. Na verdade, eles provavelmente seriam queimados em alguma fogueira. A Enciclopédia Católica traz o Catecismo criado a partir Concílio de Trento (também chamado de catecismo romano) e promulgado pelo Papa Pio V em 1566:

O Catecismo não possui, é claro, a autoridade de definições conciliares ou de outros símbolos primários da fé (...) No entanto, possui alta autoridade como exposição da doutrina católica. Foi composto por ordem de um concílio, emitido e aprovado por um papa. Seu uso foi prescrito por numerosos sínodos em toda a Igreja. O Papa Leão XIII, numa carta aos bispos franceses (8 de setembro de 1899), recomendou o estudo do Catecismo Romano a todos os seminaristas, e o papa reinante, Pio X, indicou seu desejo de que os pregadores o explicassem aos fiéis. (Joseph Wilhelm, “Roman Catechism”, Catholic Encyclopedia, vol. 13)

Este é o catecismo que o Centro Dom Bosco e outros grupos tradicionalistas apoiam em oposição ao catecismo oriundo do Vaticano II. Ele foi considerado por séculos uma exposição fiel da doutrina católica e nele encontramos o seguinte:

Outro tipo legítimo de morte pertence às autoridades civis, às quais foi confiado o poder sobre a vida e a morte, e que o exercem de forma legal e prudente ao punirem os culpados e protegerem os inocentes. O uso justo desse poder — longe de ser homicídio — é um ato de obediência ao mandamento que proíbe o assassinato. O objetivo desse mandamento é a preservação e a segurança da vida humana. Ora, as punições infligidas pela autoridade civil, enquanto legítima vingadora do crime, tendem naturalmente a esse fim, pois asseguram a vida ao reprimir a violência e os excessos. (Catecismo do Concílio de Trento, ed. TAN Books, 1982, p. 421)

E também:

“É fácil perceber… quantos são, de fato ou ao menos de desejo, culpados de assassinato. Por isso, as Sagradas Escrituras prescrevem remédios severos para um mal tão perigoso. O pastor não deve poupar esforços nesse sentido em faze-los conhecidos aos fiéis. Dentre esses remédios, o mais eficaz é formar uma noção justa da malícia do homicídio. A gravidade desse pecado se manifesta em muitas e importantes passagens da Sagrada Escritura. Deus abomina tanto o homicídio que declara em Sua Lei que, mesmo que uma fera mate o homem, Ele exigirá vingança pela vida humana, ordenando que o animal seja morto.” (Catecismo do Concílio de Trento)

Ou seja, a pena capital é um ato justo demandando pelo caráter retribuitivo da justiça – um ato de vingança pela vida humana. Cardeal Avery Dulles descreve como a legitimidade da pena de morte foi defendida por papas que exerceram autoridade civil:

Nos Estados Pontifícios, a pena de morte foi imposta para uma variedade de delitos (...) O Estado da Cidade do Vaticano, de 1929 até 1969, possuía um código penal que incluía a pena capital para quem tentasse assassinar o papa.” (Catholicism and Capital Punishment, First Things 112, 2001, p. 31)

E também:

“O papado (...) participou nessa época de maneira volumosa em execuções resultantes de seu papel como autoridade civil. De 1815, quando o Papa recuperou o controle político de Roma após Napoleão, até 1870, os papas ordenaram a execução de centenas de criminosos.”

Ou seja, os papas não apenas defenderam a possibilidade da pena capital como parte da moral católica, mas, inclusive, quando no exercício da autoridade civil, ordenaram a execução de pessoas.  O autor católico George Rutler escreveu sobre Pio IX:

O Papa Pio IX — beatificado por João Paulo II no ano 2000 — foi inflexível quanto à importância que atribuía às execuções públicas como forma de "encorajamento" a outros (...) Quando pediram ao Beato Pio IX que concedesse clemência a um condenado à morte em 1868, o papa respondeu firmemente: "Não posso, e não quero." (Fr. George Rutler, “Hanging Concentrates the Mind”, Crisis, 8 de fevereiro de 2013)

Outro autor católico documenta:

Um homem, Giovanni Battista Bugatti, realizou 516 execuções como “Carrasco do Papa” entre 1796 e 1865. O executor utilizava um de três métodos: guilhotina (a partir de 1816), golpear a cabeça com um malho e cortar a garganta do condenado, ou esquartejamento. (Michael A. Norko, “The Death Penalty in Catholic Teaching and Medicine, Journal of the American Academy of Psychiatry and the Law 36 (2008): 470–81.)

Em sua encíclica de 1891 Pastoralis Officii, o Papa Leão XIII observa que a Escritura proíbe matar um ser humano, exceto em caso de “legítima defesa” ou de “causa pública”. O Catecismo de Doutrina Cristã de 1912, promulgado por São Pio X (também conhecido como Catecismo de São Pio X), afirma a respeito do Quinto Mandamento:

"É lícito matar... ao se executar por ordem da Autoridade Suprema uma sentença de morte como punição de um crime."

Na encíclica Casti Connubii (1930), o Papa Pio XI declara que “o direito da autoridade pública... de tirar a vida (..) diz respeito apenas aos culpados”.

Os opositores da pena de morte defendem o aspecto preventivo e ressocializador da punição, e tendem a rejeitar o aspecto retributivo ou também chamado de vindicativo. O Papa Pio XII traz uma defesa eloquente do aspecto retributivo da punição, no que se baseia a justiça da pena de morte para alguns casos:

Muitos, embora não todos, rejeitam a punição vindicativa, mesmo quando se propõe que ela venha acompanhada de penas com fins medicinais… [Mas] não seria justo rejeitá-la completamente e, como questão de princípio, a função da punição vindicativa permanece. Enquanto houver homem sobre a terra, tal punição pode e deve visar sua reabilitação definitiva… Este, como já apontamos, é um elemento essencial da punição.  Muitos — talvez a maioria — dos juristas civis rejeitam a punição vindicativa… No entanto, a Igreja, em sua teoria e prática, mantém esse duplo tipo de pena (medicinal e vindicativa), e isso está mais de acordo com o que as fontes da revelação e da doutrina tradicional ensinam sobre o poder coercitivo da legítima autoridade humana. Não é uma resposta suficiente dizer que tais fontes exprimem apenas pensamentos condicionados pelas circunstâncias históricas e pela cultura da época, e que, portanto, não se pode atribuir a elas validade universal e permanente. (Discurso aos juristas católicos da Itália)

Ele também diz que “A fixação das penas da lei e suas adaptações ao caso individual devem corresponder a gravidade do crime”. Dentro desse contexto do aspecto retributivo da pena, Pio XII irá defender claramente a possibilidade da pena de morte para certos crimes:

“A justiça penal do passado... e, até certo ponto, também a do presente, e — se for verdade que a história muitas vezes nos ensina o que esperar do futuro — a do amanhã também, faz uso de punições que envolvem dor física... e da pena capital sob diversas formas.”

“Nada além dessa fé pode conferir a força moral necessária para observar os limites corretos diante de todas as tentações insidiosas de ultrapassá-los, tendo em mente que, exceto nos casos de legítima defesa, de guerra justa travada com meios justos, e de pena capital infligida pela autoridade pública por crimes claramente definidos e comprovadamente gravíssimos, a vida humana é intangível.” (Michael Chinigo, ed., The Pope Speaks: The Teachings of Pope Pius XII (New York: Pantheon Books, 1957), pp. 227–28.)

“Mesmo quando se trata da execução de um homem condenado à morte, o Estado não dispõe do direito à vida do indivíduo. Esse direito pertence, antes, à autoridade pública, para privar o criminoso do benefício da vida quando, pelo seu crime, ele já tiver privado a si mesmo do direito à vida.” (citado por Brugger, p. 130)

Ou seja, a alegação de que a Igreja Romana apenas admitiu a pena de morte no passado por não haver outros meios de pena passíveis de aplicação é completamente falsa. O ensino de que a pena de morte é um requisito da justiça retributiva (uma necessidade da lei moral) está fartamente documentado na tradição católica.  Já em 1976, sob a direção de Paulo VI, a Comissão para Justiça e Paz produziu um documento chamado “A Igreja e a Pena de Morte”, que começa a apresentar um tom mais negativo sobre a questão. Contudo, ainda afirma:

“a doutrina tradicional é que a pena de morte não é contrária à lei divina nem exigida pela própria lei divina, e que depende das circunstâncias, da gravidade do crime etc.”

“O fato de o Estado ter o direito de aplicar a pena de morte foi cedido pela Igreja há séculos”.

“A Igreja nunca condenou seu uso pelo Estado”.

“O que a Igreja condenou foi negar esse direito ao Estado.”

O grande ponto de virada na visão católica sobre a pena de morte ocorre no pontificado de João Paulo II. O catecismo de 1992 traz:

“Se meios incruentos forem suficientes para defender vidas humanas contra um agressor e para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas, a autoridade pública deve limitar-se a tais meios, pois eles correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais de acordo com a dignidade da pessoa humana”. (Catecismo da Igreja Católica 2267)

Já na Encíclica Evangelium Vitae, ele afirmou:

“É claro que, para que esses objetivos sejam alcançados, a natureza e a extensão da punição devem ser cuidadosamente avaliadas e decididas, e não se deveria chegar ao extremo de executar o infrator, exceto em casos de necessidade absoluta. Em outras palavras, quando não fosse possível, de outro modo, defender a sociedade. Hoje, contudo, como resultado de constantes melhorias na organização do sistema penal, tais casos são muito raros, se não praticamente inexistentes”. (Evangelium Vitae, parágrafo 56)

É interessante observar aqui como começa a ser gestado o principal argumento para a mudança recente do catecismo proibindo a pena de morte: a desnecessidade em virtude do aprimoramento do sistema penal moderno. Ou seja, é enfatizado apenas a proteção da sociedade como razão para a aplicação da pena capital, contudo, vimos que papas e doutores anteriores argumentavam em favor da pena de morte como um requisito da justiça retributiva e não apenas a proteção social.  O papa Bento XVI pouco evoluiria na questão além de reiterar o ensino de João Paulo II sobre a aplicação da pena capital em casos excepcionalíssimos, inclusive deixando aberta a possibilidade de total desnecessidade desta aplicação. Contudo, Papa Francisco seria aquele a dar um verdadeiro salto no tema. Francisco, numa mensagem aos participantes do Quinto Congresso Mundial contra a Pena de Morte, em Madri, em 19 de junho de 2013, pediu a abolição da pena de morte. Numa palestra à Associação Internacional de Direito Penal, em 23 de outubro de 2014, disse:

“É impossível imaginar que hoje os Estados deixem de empregar outros meios que não a pena capital para proteger a vida das pessoas contra o agressor injusto. São João Paulo II condenou a pena de morte (cf. Encíclica Evangelium Vitae, n. 56), assim como o faz o Catecismo da Igreja Católica (n. 2267).”

O destaque aqui, além do pedido de abolição da pena capital, é a interpretação de que João Paulo II havia condenado a pena de morte nos documentos que acabamos de ler. Papa Francisco também disse que “a prisão perpétua é apenas uma pena de morte disfarçada. ” Dessa forma, o argumento de que a pena de morte não seria mais necessária parece ainda mais minado quando se condena também a prisão perpétua, pois, como a sociedade estaria protegida contra psicopatas aparentemente irrecuperáveis quando nem a pena capital nem a prisão perpétua podem ser aplicadas? Francisco tinha também posições bem progressistas sobre a punição de “crianças”, aqui entendidas como menores de idade:

“No que diz respeito à aplicação de sanções criminais às crianças… as crianças… ainda não se desenvolveram plenamente em maturidade e, portanto, não podem ser responsabilizadas. Em vez disso, devem beneficiar-se de todos os privilégios que o Estado é capaz de oferecer, no que se refere à inclusão, tanto quanto possível, em práticas destinadas a desenvolver nelas o respeito pela vida e pelos direitos dos outros.”

Ele seria mais explícito numa carta de 20 de março de 2015, à Comissão Internacional contra a Pena de Morte:

“O magistério da Igreja, partindo da Sagrada Escritura e da experiência do povo de Deus por milênios, defende a dignidade humana como sendo à imagem de Deus (cf. Gn 1:26). (…) Os Estados podem matar por sua ação quando aplicam a pena de morte, quando levam as pessoas à guerra ou quando impõem execuções judiciais ou sumárias. Também podem matar por omissão, quando não garantem às pessoas as condições básicas de vida.

A vida, a vida humana acima de tudo, pertence a Deus somente. Nem mesmo um assassino perde sua dignidade pessoal, e o próprio Deus se compromete a garanti-la (...) Em certas circunstâncias, quando as hostilidades estão em andamento, uma reação medida é necessária a fim de evitar que o agressor cause dano, e a necessidade de neutralizar o agressor pode resultar em sua eliminação. Trata-se de um caso de legítima defesa (cf. Evangelium Vitae, n. 55). Contudo, como os requisitos de legítima defesa pessoal não são aplicáveis na ordem social sem o risco de distorção, de fato, quando a pena de morte é aplicada, as pessoas são mortas não por atos atuais de agressão, mas por delitos cometidos no passado. Além disso, ela é aplicada a pessoas cuja capacidade de causar dano não está presente no momento, pois já foi neutralizada, e que se encontram privadas de liberdade. Hoje, a pena capital é inaceitável, por mais grave que tenha sido o crime cometido pelo condenado. Ela é uma ofensa à inviolabilidade da vida e à dignidade da pessoa humana, que contradiz o plano de Deus para o homem e para a sociedade e sua justiça misericordiosa, e não se conforma a qualquer finalidade justa de punição. Ela não faz justiça às vítimas, mas fomenta a vingança.

Para um Estado constitucional, a pena de morte representa um fracasso, porque obriga o Estado a matar em nome da justiça. Dostoiévski escreveu: “Matar um assassino é um castigo incomparavelmente mais terrível que o crime em si. O homicídio cometido por sentença legal é imensuravelmente mais terrível do que o homicídio cometido por um criminoso.” A justiça nunca é alcançada matando um ser humano (...) A pena de morte perde toda legitimidade também devido à seletividade defeituosa do sistema de justiça criminal e à possibilidade de erro judicial. A pena de morte também implica o menoscabo da humanidade e da ordem divina, que devem ser modelos para a justiça humana. Implica tratamento cruel, desumano e degradante, como a angústia entre o momento da sentença e a terrível suspense que existe entre a emissão da sentença e a execução da pena, uma forma de “tortura” que, em vez de extinguir a dor, tende a prolongar o sofrimento no tempo, levando até muitos anos. Em alguns setores, há debate sobre o método de execução, como se fosse apenas uma questão de encontrar “o melhor modo”. No curso da história, vários mecanismos letais foram abandonados porque reduziam o sofrimento e a agonia do condenado. Mas não há forma humana de matar outra pessoa. Hoje, não apenas existem outros meios eficazes de enfrentar o crime sem recorrer definitivamente à privação da possibilidade do condenado de reformar-se (cf. Evangelium Vitae, n. 27), mas também há uma sensibilidade moral mais aguçada em relação ao valor da vida humana, suscitando opinião pública em apoio às várias disposições destinadas à abolição ou suspensão de sua aplicação e uma crescente aversão à pena de morte (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 405). Por outro lado, penas como a prisão perpétua, bem como aquelas que, devido à sua duração, tornam impossível ao condenado planejar uma futura vida em liberdade, podem ser consideradas penas de morte ocultas, pois o condenado não é apenas privado de sua liberdade, mas insidiosamente privado de esperança. Mas, mesmo que o sistema de justiça criminal possa apropriar-se do tempo das partes culpadas, nunca deve tirar-lhes a esperança”.

A citação é bem longa e assim a deixei para termos boa documentação sobre a questão. Para aqueles que tentam conciliar tais palavras com aquelas ditas por Pio XII em defesa a pena capital como requisito da justiça retributiva, eu apenas desejo boa sorte, pois, é impossível conciliar. Alguém ainda duvida que o Papa Francisco seria conspirado herege no século XVI? O suposto magistério infalível, penhor da ortodoxia da Igreja, foi de matar hereges para a pena de morte é uma ofensa a dignidade humana, portanto, errada em qualquer situação. No discurso dominical do Angelus de 21 de fevereiro de 2016, ele disse:

“Amanhã começa, em Roma, uma conferência internacional intitulada “Por um Mundo Sem Pena de Morte” (...) Espero que esta conferência possa dar um novo impulso aos esforços para abolir a pena de morte. Está se espalhando na opinião pública uma oposição à pena de morte, mesmo como instrumento de legítima defesa social, e isto é um sinal de esperança. De fato, as sociedades modernas têm a capacidade de controlar eficazmente o crime sem ter que tirar definitivamente de um criminoso a chance de se redimir. A questão está no contexto de uma perspectiva de um sistema de justiça criminal que esteja cada vez mais em conformidade com a dignidade do homem e o desígnio de Deus para o homem e para a sociedade. E também de um sistema de justiça criminal aberto à esperança de reintegração social. O mandamento “não matarás” tem valor absoluto e se refere tanto ao inocente quanto ao culpado”.

Não foi sem precedentes que, em 2018, Papa Francisco anunciou a mudança no catecismo proibindo a aplicação da pena capital:

“2267. Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir. Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa» [Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, 11 de outubro de 2017], e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.” (Fonte)

Ou seja, o argumento é que a pena de morte não é mais necessária para proteger a sociedade, uma vez que os sistemas penais se desenvolveram a ponto de existirem outros meios mais adequados de aplicação da pena. O principal problema é que esta proposição contradiz o ensino tradicional de que a pena de morte é um requisito da justiça retributiva, ou seja, ela se baseia não apenas na proteção da sociedade, mas, principalmente na necessidade de fazer justiça pelo ato praticado. Além disso, mesmo em seus próprios termos, é no mínimo controverso que os sistemas penais do mundo inteiro se desenvolveram a ponto de tornar a pena capital desnecessária. Certamente, ainda há no planeta terra regiões com sistemas penais que fariam das masmorras medievais um avanço humanitário. Por último, se a pena de morte é incompatível com dignidade humana, isto se aplicaria a todas as épocas. Em nenhum período seria aplicável uma punição que viola a dignidade humana que deriva da doutrina do imago dei.

Após a eleição do Papa Leão XIV, católicos tradicionalistas receberam com esperança a possibilidade de uma guinada mais tradicional nos ensinos do novo papa, embora, a evidência disponível sugerisse uma continuidade ao papado de Francisco. Quando se trata do tema da pena de morte, o então Cardeal Prevost afirmou uma posição contrária. Em 2011, mesmo antes da mudança introduzida pelo catecismo, ele agradeceu ao Governador de Illinois pela abolição da pena de morte no Estado:

“Caro governador Quinn, obrigado por sua decisão corajosa de sancionar a eliminação da pena de morte. Sei que foi uma decisão difícil, mas aplaudo sua visão e sua compreensão de um tema tão complexo. O senhor conta com todo o meu apoio!” (Fonte)

Ele também publicou no twitter em 2015: “É hora de acabar com a pena de morte”. Em 2022, deu entrevista a um jornal peruano a respeito de uma menina que foi abusada:

“Precisamos estar sempre a favor da vida em qualquer circunstância. Isso significa que, como Igreja, ensinamos que a pena de morte não é admissível, nem mesmo num caso tão trágico como este. É preciso buscar outras formas de fazer justiça.” (Fonte)

Na mesma entrevista, ele também condena a castração química. Num documento do Discatério parar a Doutrina da Fé (do qual Prevost era membro votante) saíram as seguintes palavras:

“A pena de morte que viola a dignidade inalienável de toda pessoa em quaisquer circunstâncias” (Dignitas Infinita)

Em 2023, ele afirmaria na Conferência “Ética pela Vida”:

“Por exemplo, um católico não pode afirmar ser pró-vida apenas para se opor ao aborto e, ao mesmo tempo, declarar-se favorável à pena de morte. Isso não seria coerente com a doutrina social da Igreja.”

Ou seja, segundo Prevost, ser pró-vida implica tanto na oposição ao aborto quanto na oposição a pena de morte. Muitos católicos precisam saber disso no Brasil.

Conclusão

Acredito que não há muito a ser dito. A documentação fornecida prova mais uma evidente contradição do magistério católico romano. Apologistas católicos costumam afirmar que sustentam uma tradição de 2 mil anos. Quase sempre esta afirmação é historicamente inválida, mas, no caso do ensino sobre a aplicabilidade da pena de morte, ela está correta. Trata-se de um ensino perene que perpassou o período patrístico, foi defendido por doutores da Igreja e por papas. Contudo, é uma tradição que foi quebrada e absolutamente revertida. É difícil imaginar como alguém pode sustentar que a Igreja de Roma nunca se contradisse diante de um caso tão claro.