Atualmente, há um virtual
consenso entre historiadores católicos romanos, ortodoxos e protestantes a
respeito da ausência do papado na Igreja Primitiva (aqui e
aqui).
Além disso, historiadores católicos de renome como Klaus Schatz e Yves Congar
afirmam que a igreja oriental não aceitaram o primado jurídico do bispo de Roma
(aqui).
Dessa forma, advogo a posição de que só faz sentido se referir ao bispo de Roma
como um papa após o grande cisma de 1054. Obviamente estou aqui tomando o ponto
de vista católico romano segundo o qual o papa é o chefe supremo de toda a
Igreja de Cristo. Como protestante eu não acredito nisso, pois não concedo que
a Igreja de Cristo esteja circunscrita à igreja romana. Antes do cisma, a
Igreja de Roma estava em comunhão com a Igreja Oriental (uma comunhão bem
precária e cheia de interrupções). Se a Igreja Oriental era considerada parte
da Igreja cristã por Roma e ainda assim não aceitava o primado jurídico do
bispo romano, não há que se falar em papado nesse período.
Todavia, o foco desse artigo é
o período pós-cisma da igreja ocidental. Alguém pouco familiarizado com a história
da igreja poderia pensar que o papa reinava soberanamente. Muito pelo contrário, mesmo em tal época o papado sofreria severos questionamentos teológicos. Houve épocas em que o
conciliarismo foi adotado por diversos teólogos da Igreja acidental. O ápice
foi a solução conciliarista empregada para resolver o chamado “grande cisma do
ocidente” (aqui). Veremos o que o historiador
católico romano Joseph Kelly escreveu na obra “The Ecumenical Councils of the
Catholic Church: A History”. A maior parte das citações podem ser verificadas
nesta cópia online aqui:
Os
códigos canônicos sempre permitiram todo tipo de possibilidade, não importando
quão aparentemente minuciosa, absurda ou improvável fosse. No início do século XIII,
os juristas canônicos haviam especulado sobre o que fazer se um papa caísse em
heresia. De forma lenta, mas verdadeira, alguns
juristas canônicos construíram a visão de que o papa não tem um domínio
absoluto sobre a igreja porque o poder da igreja é maior que o dele. Eles especularam que o poder supremo da igreja
residia no concílio ecumênico. Estas poucas frases resumem décadas de
desenvolvimentos muito complexos. A superioridade do concílio sobre o papa é a
teoria conciliar. A aplicação prática é o conciliarismo. (p.
107)
O conciliarismo foi uma visão popular na igreja ocidental:
Empurrados
pelos governantes e a nobreza [durante o Grande Cisma] em 1409, os cardeais de
ambos os papas os abandonaram e se encontraram na cidade italiana de Pisa, onde proclamaram a necessidade de ir acima
das cabeças dos papas para um concílio geral, citando as consequências do
cisma por esta clara violação do direito canônico. Com algumas grandes exceções (Alemanha, os Reinos espanhóis), a Europa
católica os apoiou (...) Muitos na Europa católica, tanto clérigos como
leigos, acreditavam que o papado nunca se reformaria e que apenas um concílio poderia realmente reformar a igreja (...) A crença nos poderes curativos de um
concílio reformador nunca morreu até a Reforma (...) As tradições
conciliares correram fortemente no norte da Europa. (p.
107, 121, 123)
Concílios medievais
reivindicaram autoridade sobre o papa:
Este
[o ensinamento do Concílio Ecumênico de Constança] é o conciliarismo no seu
nível mais básico. O Concílio afirma que se encontra sob a orientação do
Espírito Santo, que representa a Igreja Católica e, portanto, tem autoridade suprema na igreja, e que sua
autoridade deriva de Cristo e até mesmo os papas devem obedecer ao Concílio
(...) Mas nenhum estudioso duvida que Constança quis dizer o que disse, porque
em 1417, antes de escolher um novo papa, o concílio aprovou um segundo
grandioso decreto que afirmava que o novo papa deveria chamar outro concílio
cinco anos depois de Constança acabar, depois outro sete anos depois, e depois
um concílio a cada dez anos para que, em vigor, houvesse um concílio em cada
pontificado. Os líderes de Constança
realmente desejavam mudar a estrutura governamental da igreja (...) Muitos católicos, incluindo governantes e
bispos, favoreceram o conciliarismo, e Martinho [o papa Martinhho V] foi
obrigado a obedecer ao decreto. (p. 111, 114)
Kelly também discute o
conciliarismo do Concílio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (p. 114-119). Ele
observa que o cardeal escolhido pelo papa Eugenio IV para abrir o concílio e
presidi-lo era ele próprio um conciliarista (p. 114). Até o Conselho de Trento,
o "fantasma do conciliarismo" ainda estava na mente da liderança
católica, e temia-se o reavivamento do conciliarismo em Trento quando o Papa
Pio IV parecia estar próximo da morte (p.145).
Quão significativo é o
conciliarismo medieval? Por um lado, mina o apelo popular católico a uma
suposta unidade pré-Reforma. A igreja católica romana pré-reforma tinha um
nível de divergência muito superior àquela que a visão romantizada dos
católicos modernos comporta. Em segundo lugar, o apoio conciliar e papal ao
conciliarismo é problemático para as reivindicações de autoridade do
catolicismo romano. Em terceiro lugar, a dúvida generalizada sobre
algo tão simples e fundamental como a autoridade papal, tão tarde quanto a era
medieval pós-patrística e ainda no Ocidente, demonstra quão frágeis são as
bases históricas do papado.
A resistência dentro da igreja
ocidental à supremacia papal persistiria após a reforma. É exemplo notável o
galicanismo (aqui). Esse
era o movimento que pregava a independência da Igreja francesa. Eles também
faziam uso do conciliarismo. O historiador protestante George Salmon escreveu
sobre o apologista católico e proponente do galicanismo Bossuet:
Bossuet
era, no seu tempo, o terror dos sectários protestantes, o mais confiável
campeão de sua Igreja. Mas ele lutou por ela não só contra os protestantes, mas contra a teoria da infalibilidade,
então chamada Ultramontana, porque se manteve do outro lado das montanhas, mas
rejeitado pela Igreja Galicana. Em outra palestra, devo falar mais sobre os
princípios do galicanismo e da sua história. Basta mencionar que uma das suas doutrinas fundamentais era que as
decisões doutrinárias do Papa não deveriam ser consideradas como definitivas,
que poderiam ser revisadas, corrigidas ou mesmo rejeitadas por um concílio
geral ou pela Igreja em geral. O tratado formal de Bossuet em prova desse
princípio era um armazém de argumentos, em grande parte inspirado nas
controvérsias dos anos de 1869 a 1870. Todavia, este princípio foi condenado
com um anátema no Concílio Vaticano do último ano (...) A ironia dos eventos
poderia dar uma refutação mais singular do que essa? Um homem escreveu um livro
para provar que o protestantismo é falso porque os protestantes discordam entre
si, e o romanismo é verdadeiro porque suas doutrinas são sempre as mesmas e
seus filhos nunca discordam. Mas, em
alguns anos ele próprio é classificado com um adorador do diabo pelas
autoridades autorizadas da religião que ele defende, e cujas doutrinas ele
supunha serem suportadas pelos demais. Podemos dizer que os campeões romanistas
do presente podem não ser os melhores. O
Cardeal Manning pode estar seguro de que, à medida que o desenvolvimento da
doutrina romana prosseguir, ele não pode ser deixado de fora dos limites da ortodoxia
e ser classificado entre os adoradores do diabo pelos campeões romanistas do
próximo século? (Fonte)
Salmon traz um argumento
importante. Ele parte do exemplo de Bossuet para questionar o fervor com que
muitos católicos defendem sua fé. A tradição da igreja romana não é fixa.
Ninguém sabe ao certo o que a igreja estará ensinando no futuro. Alguém que
hoje é considerado ortodoxo poderá ser visto como um herege pelos padrões futuros. Eu fiz um argumento semelhante quando discuti Tomás
de Aquino e Imaculada Conceição. Concedo que a maioria dos católicos não o tem
como herege, mas deveriam se fossem consistentes com seus próprios critérios. Os
apologistas romanos afirmam que não havia problema em negar a imaculada conceição,
já que a Igreja ainda não havia se pronunciado em definitivo. O problema dessa
defesa é que mina a retórica de que a Igreja romana apenas dogmatiza aquilo que
“sempre foi a fé da igreja”. Gerações e gerações de cristãos tiveram crenças
que mais tarde seriam objeto de anátemas. Imagine aplicar o mesmo
raciocínio à igreja primitiva. Uma vez que a divindade de Cristo só foi
definitivamente estabelecida no Concílio de Niceia, não haveria problema em
negar a doutrina antes do concílio. Nenhum pai da igreja da igreja desculparia
a heresia dessa forma.
A obra de Kelly (aqui) é uma poderosa
fonte contra as reivindicações da apologética católica. Ele expressa o consenso
dos historiadores modernos que contradiz a ideia de que a igreja primitiva era
católica romana. Ele se refere a outros estudiosos católicos que o ajudaram no
processo de pesquisa e edição do livro (p. 11). Ele contrasta o atual papel dos
papas nos concílios ecumênicos com seu envolvimento no passado (p. 2, 5),
observando, por exemplo, que "o segundo conselho ecumênico de
Constantinopla chamado em 381, reuniu-se, decidiu as questões e encerrou-se sem
informar o papa Damaso I (366-384) de que um concílio estava acontecendo"
(p. 5). Ele contrasta a visão do Cardeal Newman sobre o desenvolvimento
doutrinal com as crenças populares sobre esse assunto em gerações anteriores
(p.3). Ele se refere a uma visão mais espiritual da presença eucarística de
Jesus nos primeiros teólogos, contrastando com os pontos de vista de teólogos
posteriores que tinham "uma compreensão mais material da presença
real" (p. 5). Ele se refere à rejeição do papado durante a era patrística
no norte da África (p. 16, 31). Mesmo alguns bispos da Itália no século VI
"entraram em cisma e não se reconciliaram com Roma até o século VII"
(p.54). Ele interpreta o cânon 6 de Niceia como uma referência à autoridade
regional de Roma no ocidente (p. 23-24). Referindo-se ao tempo de Niceia, Kelly
escreve: "Então, como agora com as igrejas ortodoxas, os bispos orientais
não reconheceram nenhuma autoridade jurisdicional romana sobre suas
igrejas" (p. 24). Ele se refere à oposição dos primeiros cristãos à
veneração de imagens (p. 61). Em suma, quando lemos os autores católicos modernos, percebemos quão vazio é o discurso de que a Igreja Romana apenas manteve aquilo que a igreja sempre ensinou.
Sobre a infalibilidade papal, uma doutrina papal so pode ser considerada infalível se for admita por toda a igreIg, pois e Dela que procede a autoridade papal; a doutrina da infalibilidade papal foi dogmatizada exatamente para limitar o poder do bispo de Roma sobre os assuntos espirituais. O primeiro a teorizar que o papado era infalível em matéria de fe foi o teolote franciscano Pedro JoaJ Oliveira, em 1270.
ResponderExcluirFalso. A definição da infalibilidade papal do Vaticano I é bem clara nessa matéria. As decisões dogmáticas do papa são irreformáveis por si mesmas e não precisam do assentimento da Igreja em geral, ou de um concílio em particular.
Excluir"Por isso, ditas definições do Romano Pontífice são em si mesmas, e não pelo consentimento da Igreja, irreformáveis".
Os ensinamentos infalíveis do papa são irreformáveis em si mesmo e não pelo consentimento da igreja!
O papa não precisa do acordo da Igreja para ter autoridade, a Igreja é que precisa do papa. O papa sozinho tem mais poder que todos os bispos do mundo juntos, segundo a doutrina da Igreja de Roma.
Eu desconfio que o comentarista seja católico ortodoxo. Caso seja católico romano, sua definição de infalibilidade papa está errada.
ExcluirO comentarista é católico romano. A diocese de Lisboa é considerada um Patriarcado e o bispo de Lisboa Patriarca com direito automático a ser cardeal. Por isso é designado com o título de Cardeal-Patriarca de Lisboa.
ExcluirSó há mais dois casos semelhantes em todo o mundo a beneficiar deste privilégio, Patriarcado de Veneza e Patriarcado latino Jerusalém.
É um paralelo do sistema de concessão de títulos nobiliárquicos da monarquia aplicado à organização eclesiástica.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Patriarcado_de_Lisboa
Obrigado por informar. Por ser uma patriacardo e pelo fato de os ortodoxos usarem o consentimento da igreja como critério da ortodoxia, eu fiz tal associação.
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