O
estudioso patrístico Ortodoxo John McGuckin resume bem a questão histórica:
As mais antigas
estruturas dos ofícios ministeriais cristãos estão envoltas em obscuridade, mas no segundo século, surgiu uma forma
tríade de bispo, presbítero e diácono. Esta
foi gradualmente substituindo uma gama de outros ofícios que tinha
caracterizado a igreja primitiva (como missionários apostólicos, profetas
andarilhos, exorcistas e mestres) e estabeleceu-se no final do segundo século
como um padrão comum na maioria das comunidades cristãs (...) Embora Jerônimo ainda possa protestar no século IV
que o bispo e o presbítero são realmente a mesma coisa (e há alguns motivos
para pensar que originalmente os termos eram intercambiáveis no Novo Testamento: Atos 20:17 e 28; 1
Pedro 5:1-4; Tito 1:5-7; e Clemente de Roma usa o termo no plural [1 Clement
42:44] para se referir ao clero de Roma). No entanto, seu argumento já
estava sendo ignorado em seus dias (...) A
partir desse momento [fim do primeiro século] em diante, a eleição parece ter
sido um elemento importante na escolha de todos os novos bispos. O direito de escolher já era apresentado no
capítulo 15 da Didaquê. Tal poder da comunidade diminuiu nos tempos
bizantinos a uma mera consulta às pessoas (frequentemente se esperavam que elas
aclamassem o novo líder), mas mesmo
assim houve muitos casos de um ser bispo incapaz de assumir o cargo por causa
da hostilidade de uma igreja local que se sentia que seus desejos tinham sido
negligenciados (como o caso de Proclos de Constantinopla) (...) Por toda
insistência de Cipriano em seu direito de autoridade episcopal única, sua própria igreja hesitou muito sobre se ele, ou
os presbíteros reunidos, ou os confessores tinham o maior direito. (The Westminster Handbook To Patristic Theology [Louisville, Kentucky:
Westminster John Knox Press, 2004], pp. 120-122)
McGuckin
relata como a estrutura hierárquica da igreja se
desenvolveu. Mesmo sendo ortodoxo (uma igreja que adota a estrutura episcopal),
ele admite que essa surgiu no segundo século, portanto, depois do período
apostólico. O erudito patrístico também afirma a autonomia que caracterizava a
igreja primitiva. A comunidade participava da eleição do bispo e poderia depor um bispo indesejado – algo contrário às práticas da igreja romana atual. Muitos pais da igreja como
Cipriano (veja aqui) consideravam a participação da comunidade na eleição um requisito para uma
ordenação ser válida. O bom testemunho era considerado também indispensável para a
continuidade no cargo – um prelado pecaminoso poderia ser deposto pela
comunidade. Obviamente, nesse período, a ordenação de um bispo não dependia da
intervenção do bispo de Roma.
Além
da evidência do N.T, estudiosos católicos e protestantes tem identificado nos
escritos dos pais apostólicos fortes evidências da ausência do episcopado
monárquico ao longo do segundo século. A igreja mais citada para ilustrar essa
ausência é justamente a de Roma. Por isso, o episcopado monárquico em Roma é o
centro de nossos estudos sobre o tema, pois uma vez que sua presença em Roma é
refutada, por consequência, o papado é também refutado. Recomendo aos leitores
minha série “Os pais da igreja sobre sucessão apostólica e papado”, onde trato em maiores detalhes as evidências que trarei, por isso, aqui vou
apresentá-las resumidamente.
A
Didaquê – um documento que muitos especialistas situam ainda no primeiro século
– afirma:
Escolha bispos e diáconos dignos do Senhor. Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro,
verazes e provados, pois também exercem para vocês o ministério dos profetas e
dos mestres.
(Didaquê 15:1)
A
própria comunidade escolhia seus líderes. Percebam que não há uma estrutura
tríplice: Bispo – presbíteros – diáconos. Há apenas dois níveis: bispos (no
plural) e diáconos. A razão é muito simples – a liderança nesse período era
colegiada – por isso a referência aos bispos está no plural. O católico Patrick Burke escreve:
A figura religiosa principal é o profeta, seja itinerante ou residente. O grupo de anciãos
funciona como um substituto para os profetas, e não há concepção de um episcopado monárquico. (“The Monarchical Episcopate at the end of the First Century,” Journal of Ecumenical Studies 7 (1970), p. 501)
Na
Didaquê bispos e diáconos são mencionados uma vez (15:1), enquanto os profetas
são mencionados oito vezes (10:15; 11: 4; 11:19; 13:3; 13:7; 15:2; 15: 4; 16:6).
O papel dos bispos e diáconos é "também realizar o serviço dos profetas e
mestres" (15:2) e os bispos e diáconos são "homens honrados,
juntamente com os profetas e mestres" (15:4). Contribuindo para essa noção
está a literatura apócrifa que possuímos a partir do segundo século no Egito.
Temos a Pregação de Pedro, o Apocalipse de Pedro e a epístola de Barnabé. Não
há menção de um bispo, presbítero, diácono ou professor. Burke conclui:
Devemos dizer,
portanto, que nós simplesmente não
possuímos qualquer prova para a estrutura da igreja no Egito, exceto o
argumento do silêncio: um bispo
monárquico teria certamente feito sentir a sua presença, e a primeira evidência
estrutural que temos vem de Demétrio, no final do segundo século. (Ibid., 512)
Tal
ausência é ainda mais evidente na carta da igreja romana (atribuída a Clemente)
à igreja de Corinto:
Com
efeito, em tudo vós agíeis sem fazer acepção de pessoas, andando segundo as
prescrições de Deus, submissos a vossos chefes, e prestando aos
presbíteros que estavam convosco a honra que lhes cabia. (1:3)
Vós
que lançastes os fundamentos da revolta, submetei-vos aos presbíteros e
deixai-vos corrigir com arrependimento, dobrando os joelhos de vosso
coração. (57:1)
Irei
para onde quiserdes, e farei o que a multidão ordenar, para que o rebanho de
Cristo viva em paz com os presbíteros constituídos. (54:2)
Caríssimos,
é vergonhoso, muito vergonhoso e indigno de conduta cristã ouvir-se dizer que a
firme e antiga Igreja de Corinto, por causa de uma ou duas pessoas, está
em revolta contra os seus presbíteros. (47:6)
Os
apóstolos receberam do Senhor Jesus Cristo o Evangelho que nos pregaram. Jesus
Cristo foi enviado por Deus. Cristo, portanto, vem de Deus, e os apóstolos
vêm de Cristo. As duas coisas, em ordem, provêm, da vontade de Deus. Eles
receberam instruções e, repletos de certeza, por causa da ressurreição de nosso
Senhor Jesus Cristo, fortificados pela palavra de Deus e com a plena certeza
dada pelo Espírito Santo, saíram anunciando que o Reino de Deus estava para
chegar. Pregavam pelos campos e cidades, e aí produziam suas
primícias, provando-as pelo Espírito, a fim de instituir com elas bispos
e diáconos dos futuros fiéis. Isso não era algo novo: desde há
muito tempo, a Escritura falava dos bispos e dos diáconos. Com
efeito, em algum lugar está escrito: “Estabelecerei seus bispos na justiça e
seus diáconos na fé”. (42:1-5)
Os
apóstolos instituíram bispos (plural) e diáconos e não um bispo que liderava um
colégio de presbíteros auxiliados por um grupo de diáconos. Nessa parte,
Clemente não se refere apenas à igreja de Corinto, mas ao modelo que os
apóstolos adotaram em relação a todas as igrejas. No início da carta, ele se
refere a presbíteros e diáconos, e mais para o fim, se refere a bispos e
diáconos. A
questão mais importante para os nossos propósitos é a equivalência de επισκοπης
"bispos" e os πρεσβυτεροι "presbíteros" em Clemente. Os
dois são usados indistintamente em toda a carta, mas ele próprio faz a
equivalência clara em 1 Clemente 44:4 e 5:
Para nós, não seria
culpa leve se exonerássemos do episcopado
(bispado) aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensível e
santa. Felizes os presbíteros que percorreram seu caminho e cuja vida terminou de
modo fecundo e perfeito. Eles não precisam temer que alguém os afaste do lugar
que lhes foi designado.
O
teólogo jesuíta Francis Sullivan escreve:
A
carta dos romanos aos coríntios, conhecida como I Clemente, que data de
cerca do ano 96, provê boa evidência de que cerca de trinta anos após a morte
de Paulo, a igreja de Corinto era conduzida por um grupo de
presbíteros, sem indicação da presença de um bispo com autoridade sobre toda a
igreja. (From Apostles to Bishops: the development of the episcopacy in the early church. Newman Press, Mahwah (NJ), 2001, p. 16)
Os apologistas católicos costumam apresentar 1
Clemente como evidência do papado. Todavia, os estudiosos não concordam.
William Lane, por exemplo, escreve:
O
fato de que a igreja em Corinto foi fundada por Paulo e que ele foi
identificado com o cristianismo romano através de indivíduos como Priscila e
Áquila, pode ter encorajado um relacionamento contínuo entre as duas
comunidades cristãs. Estas propostas
parecem oferecer uma melhor explicação para a ocasião de 1 Clemente do que a
sugestão de que representa a tentativa da igreja romana expandir sua esfera de
influência. (“Social Perspectives on Roman Christianity during the Formative Years from Nero to Nerva: Romans, Hebrews, 1 Clement” in Judaism and Christianity in First-Century Rome, Ed. Karl P. Donfried & Peter Richardson Wipf & Stock: Eugene, 1998)
Cumpre mencionar que mesmo sendo uma carta
da igreja de Roma, nenhum bispo é mencionado. O próprio Clemente não é
mencionado. Essa ausência de identificação do líder da igreja romana (e de toda
a igreja segundo os católicos) é vista pelos estudiosos como uma indicativo da
ausência do bispo monárquico nessa igreja.
A principal objeção católica apela às cartas de
Inácio. Claramente, a igreja de Inácio e as demais igrejas da Ásia já possuíam bispo monárquico. Os historiadores reconhecem que foi na Ásia que inicialmente
o episcopado monárquico emergiu, porém essa não era a realidade de várias
outras igrejas. Em todas as outras
cartas, Inácio cita o bispo da Igreja a quem se dirige, instando a comunidade a
obedecê-lo e não fazer nada sem ele, mas misteriosamente, não faz nenhuma
menção ao bispo na carta aos romanos. Isso seria inexplicável se o bispo de
Roma fosse considerado o líder de toda a Igreja. Que argumento melhor não
haveria em favor da unidade do que apontar aquele que é o exclusivo sucessor de
Pedro, detentor das chaves do reino e rocha sobre a qual a Igreja está fundada?
A melhor explicação para essa ausência já foi dada nesse estudo – nesta época,
não havia em Roma um bispo monárquico. Tratava-se de uma Igreja fracionada em
várias Igrejas domésticas governadas por presbíteros. Patrick Burke escreve:
O
silêncio de Inácio relativo ao bispo monárquico em Roma, juntamente com a sua
preocupação com ele em todas as outras cartas que escreveu, é mais do que um argumento
de silêncio. É mais do que simplesmente uma ausência de evidência de um
episcopado monárquico em Roma. Deve ser
considerada evidência de que tal ofício não existia lá naquele momento. (Burke, op. cit., 508)
Os católicos argumentam que Inácio não parecia estar
repassando uma inovação, mas algo já firmemente estabelecido há muito tempo. No
entanto, Sullivan traz a posição dos historiadores:
Schoedel
e outros estudiosos que defendem a autenticidade das cartas admitem que
essas últimas declarações de Inácio provavelmente não correspondem à
realidade [do episcopado monárquico] da Igreja em todo o mundo nos seus dias. Além disso, eles veem na urgência com que
ele exortou as comunidades cristãs a respeito da unidade com o bispo uma
indicação de que a estrutura episcopal ainda não era tão firmemente
estabelecida como Inácio queria. (...) a noção de sucessão apostólica parece não ter desempenhado nenhum papel
no pensamento de Inácio de Antioquia. Pelo contrário, como ele entendia, o
bispo recebia sua autoridade diretamente de Deus. Ele nos deixa no
escuro a respeito de como um determinado membro de uma Igreja viria a ser seu
bispo. (Sullivan F.A. Op. Cit., pp. 127)
Na verdade, o episcopado monárquico ainda não era
algo firmemente estabelecido na igreja de Inácio. Isso explica porque ele
insiste tanto na autoridade do bispo como um remédio para o cisma. Tudo indica
também que o próprio Inácio experimentou divisões em sua igreja, o que
evidencia que a autoridade singular do bispo ainda não era plenamente aceita.
Sullivan mais uma vez esclarece:
No
entanto, Percy N. Harrison alegou que a Igreja de Antioquia deve ter
sido perturbada por um cisma no momento que Inácio partiu para Roma.
Schoedel concorda com essa conjectura, vendo nela uma explicação para
as expressões de autocomiseração que ocorrem nas cartas. Essas refletiriam
a perda de autoestima que Inácio teria sofrido se ele via a desunião de sua
Igreja como um sinal de seu fracasso como bispo. Inácio foi certamente
consciente do perigo de cisma nas Igrejas que visitou, e o tema principal de
suas cartas lida com a manutenção da unidade com o bispo local. Portanto,
não é improvável que essas exortações refletissem sua própria experiência de
cisma. (Sullivan F.A. Op. Cit., pp. 106)
Policarpo de Esmirna – escrevendo à igreja de
Filipos já na primeira metade do século II – afirma:
Por
isso, é preciso que eles se abstenham de todas essas coisas, e estejam submissos aos presbíteros e aos
diáconos, como a Deus e a Cristo. (Aos Filipenses
5:3)
A igreja era liderada por um colégio de presbíteros
auxiliado por diáconos. Sullivan diz:
Dificilmente
se pode evitar chegar à conclusão de que a Igreja de Filipos, no momento em que
Policarpo escreveu esta carta, estava
sendo conduzida por um grupo de presbíteros assistidos por diáconos, sem
qualquer bispo sobre toda a comunidade. (Op. Cit.,
pp. 132)
Andrew Selby afirma:
Significativamente
para os nossos propósitos, Policarpo não
exorta ao επίσκοπος (bispo), que se existisse, seria de se esperar receber
alguma forma de censura ou incentivo considerando a queda de Valente. (Selby, p. 85)
A evidência mais tardia e mais problemática para a
doutrina romanista vem do Pastor de Hermas (uma obra da primeira metade do séc. II). Hermas relatava visões
em que havia uma senhora que prefigurava a Igreja e um mensageiro que era
chamado de Pastor. Ele era um membro da Igreja romana, portanto, importante
testemunha de sua estrutura eclesial. O principal objetivo da obra
era chamar à Igreja ao arrependimento.
Dize,
portanto, aos chefes da Igreja que endireitem seus caminhos na
justiça, a fim de receberem plenamente, com grande glória, o que lhes foi
prometido. (Visão 2, cap. 6)
Sullivan afirma:
A
palavra grega traduzida por "oficiais" é prohegoumenois, que também
aparece em I Clemente 21:6. Literalmente significa "aqueles que vão antes
e liderar o caminho"; tanto aqui como em I Clemente refere-se aos líderes
da Igreja local. Em ambos os textos a palavra está no plural; não
havia nenhum bispo de Corinto quando Clemente escreveu, nem há qualquer
indicação de um único bispo na Igreja para a qual Hermas estava escrevendo. (Sullivan F.A, Op.
Cit., pp. 134)
Ainda no Pastor de Hermas:
Depois
disso, tive uma visão em minha casa. A mulher idosa apareceu e me perguntou
se eu já havia entregado o livrinho aos presbíteros. Eu respondi que não.
Ela continuou: Fizeste bem, porque tenho algumas palavras para acrescentar.
Quando eu tiver terminado tudo o que tenho a dizer, tu o darás a conhecer a
todos os eleitos. Farás duas cópias do livrinho e as
mandarás, uma a Clemente e outra a Grapta. Clemente, por sua vez, mandará a
cópia às outras cidades, porque essa missão é dele. Grapta exortará as viúvas e
os órfãos. Tu o lerás para esta cidade, na presença dos presbíteros que
dirigem a Igreja. (Visão 2, cap. 8)
Eu
me dirijo agora aos chefes da Igreja e àqueles que ocupam os primeiros
lugares. Não vos torneis semelhantes aos envenenadores. Eles levam seus
venenos em frascos. Vós tendes vossa poção e veneno no coração. Estais
endurecidos, recusais purificar vossos corações para temperar, com o coração
puro, vosso pensamento na unidade, a fim de obter a misericórdia do grande
Rei. Atenção, portanto, meus filhos, para que essas divisões não
tirem a vossa vida. Como pretendeis instruir os eleitos do Senhor,
se vós mesmos não tendes instrução? Instruí-vos, portanto, uns aos
outros, e conservai a paz mútua, a fim de que também eu, apresentando-me
alegre diante do Pai, possa falar favoravelmente a respeito de todos ao vosso
Senhor. (Visão 3 cap. 17)
Hermas atesta a liderança colegiada na Igreja de
Roma, sempre se referindo aos líderes no plural. Além disso, exorta os líderes
que provavelmente estavam disputando entre si a preeminência sobre os demais.
Vemos que além da ausência de um bispo (que dirá um papa?), a liderança dessa
Igreja não era muito qualificada para instruir os fiéis. Sullivan reflete a opinião majoritária dos
estudiosos a respeito:
Da ausência de qualquer referência a um bispo e as várias
referências no plural para os líderes e presbíteros, a maioria dos
estudiosos agora conclui que, durante o período em que esta obra foi
escrita, a Igreja de Roma ainda tinha liderança colegial. (Op. Cit., pp.
138)
Nesse ponto, não podemos deixar de mencionar
Justino Mártir. Ele escreveu também na primeira metade do século II, todavia o mais
importante é que ele residia em Roma. Nele, não encontramos nenhuma menção ao
bispo de Roma. É um silêncio inexplicável se lá estava o chefe de toda a
igreja. Chegamos ao fim da primeira metade do séc. II. Em
nossa jornada, vimos que a evidência aponta para inexistência do um bispo
monárquico em várias igrejas cristãs, cujo exemplo notável e de maior interesse
é Roma. Aqui precisamos lidar com a objeção católica mais forte a nossa tese –
as listas de bispos das igrejas, principalmente, a lista de Roma. Se não havia
nenhum bispo monárquico em Roma até a segunda metade do séc. II, como autores
relativamente antigos como Hegésipo e Irineu poderiam ter produzido listas de
bispos romanos que remontavam ao tempo dos apóstolos? A lista mais antiga é de
Hegésipo que foi preservada por Eusébio:
Assim
é, pois, que Hegésipo deixou-nos um monumento completíssimo de seu próprio
pensamento nos cinco livros de Memórias que chegaram a nós. Neles mostra como,
realizando uma viagem a Roma, esteve em contato com muitos bispos e
como de todos eles recebeu uma mesma doutrina. Será bom escutá-lo, depois
que disse algumas coisas sobre a Carta de Clemente aos Coríntios, acrescentar o
seguinte: "E a igreja dos Coríntios permaneceu na reta doutrina até que
Primo foi bispo de Corinto. Quando eu navegava para Roma, convivi com os
Coríntios e com eles passei muitos dias, durante os quais me reconfortei com
sua reta doutrina. E chegado a Roma, fiz-me uma sucessão até Aniceto, cujo diácono era Eleutério. A Aniceto
sucedeu Sotero, e a este, Eleutério. Em cada sucessão e em cada cidade as
coisas estão tal como pregam a lei, os profetas e o Senhor." (História
Eclesiástica 4:22:1-3)
Trata-se de uma lista incompleta. Acredita-se que
Irineu copiou sua lista de Hegésipo, portanto, os nomes que faltam em Hegésipo
estariam em Irineu. Os estudiosos também chegaram a um virtual consenso a
respeito dessas listas. O erudito patrístico católico Johannes Quasten escreve:
As
palavras de Eusébio 'Γενομενος δε εν Ρωμη, διαδοχην εποιησαμην μεχρις
Ανικητου' não indicam que Hegésipo compilou uma lista dos bispos de
Roma, na ordem da sua sucessão, mas que em sua cruzada contra as heresias
de seu tempo, visitou Corinto, Roma e outras cidades, a fim de averiguar a
διαδοχην, ou seja, a tradição ou a preservação da verdadeira doutrina. (Johannes Quasten, Patrology Volume I (Ave Maria
Press: Notre Dame, 1976), 286)
Quasten está dizendo que a lista de Hegésipo não é
uma lista de bispos monárquicos. Sabemos que Hegésipo lutou contra a heresia
gnóstica. Os gnósticos produziam listas de mestres através dos quais a doutrina
gnóstica teria sido passada dos apóstolos até eles. Em resposta a esse
argumento, tanto Hegésipo como Irineu vão produzir listas de bispos não para
afirmar uma sucessão oficial de autoridade, mas para evidenciar que a doutrina
apostólica foi mantida na igreja. Eles poderiam citar os homens que portaram
essa doutrina e a passaram adiante. Sullivan esclarece ainda mais:
Argumentando
a partir do fato de que o clero de Roma poderia fornecer a Hegésipo os nomes
dos homens que naquela época se pensava como tendo sucedido um ao outro como
"bispos" de sua Igreja desde o início, a maioria dos estudiosos agora
conclui que esses homens devem ter sido os principais líderes e professores da
Igreja romana. Quando os presbíteros se reuniram para uma celebração
comunitária da Eucaristia, um deles deveria presidi-la, e muito
provavelmente esse teria sido o presbítero reconhecido como o mais competente
líder e professor. Em que momento o "presbítero que preside"
começou a ser chamado de "bispo" e ser reconhecido como o pastor
chefe da Igreja de Roma, nós não sabemos. É
certo, porém, que pelo tempo de Aniceto, isto é, não muito tempo depois da
metade do século II, esse desenvolvimento teve lugar em Roma, como teve em
Corinto e em todas as outras igrejas que Hegésipo visitou no caminho do Oriente
a Roma. (Op Cit, p. 143)
Hegésipo não poderia citar todos os presbíteros que
lideravam a igreja romana em sua lista. Isso não serviria ao seu objetivo
apologético anti-gnóstico. Ele então escolheu alguns nomes. Sullivan nos diz o
critério que foi utilizado. Entre os presbíteros, um deles se destacou seja por
ser um professor de maior renome ou por presidir a Eucaristia, por isso tal
bispo foi mais tarde lembrado e figurou nas listas de sucessão. Peter Lampe, autor da obra mais reconhecida
na academia sobre o cristianismo em Roma nos primeiros séculos, afirma sobre
Hegésipo:
Não está em causa de
nenhuma maneira provar uma sucessão de bispos monárquicos dos apóstolos até o
presente.
O que ele retrata em sua mente eram
cadeias de portadores de crenças corretas, ele tinha a opinião de que poderia
reconhecer tal afirmação também em Roma. Mais do que isso não está no
texto. (Christians at Rome in the First Two Centuries:
From Paul to Valentinus. A&C Black, 2006, pp. 404)
Sobre o texto de Hegésipo, é importante observar
que apesar de a palavra bispo estar presente na tradução portuguesa, ela não
consta do texto grego da obra de Eusébio. Hegésipo está falando sobre a
"sucessão", mas a palavra "ἐπίσκοπος", ou
"bispos" não está no texto grego. Em vez disso, ele afirma que elaborou
para si uma sucessão de διαδοχην, ou de “professores ou mestres”. Isso se
encaixa com a explicação de que não se intentava produzir uma lista de bispos
monárquicos, mas de portadores de doutrinas corretas. Muitos autores têm
apontado que Hegésipo era um convertido do judaísmo. Josefo testemunha que os
judeus mantinham listas de mestres ou professores para demonstrar a antiguidade
e veracidade de uma determinada doutrina. É bem provável que Hegésipo tenha
copiado esse exemplo e utilizado como ferramenta em sua luta contra o
gnosticismo. Os mesmos argumentos são válidos para Irineu.
Quasten escreve:
(...)
Irineu pretende demonstrar que as fábulas e ficções dos gnósticos são estranhas
à tradição apostólica. Assim, esta
passagem que citamos não se refere à constituição eclesiástica, mas a fé que é
comum a todas as igrejas individuais, que está em nítida oposição a Gnosis
e suas especulações. (Op. Cit, 303)
Irineu estava igualmente preocupado em demonstrar uma sucessão de
doutrina. Obviamente, os nomes que ele trouxe eram presbíteros reais, mas não
eram bispos monárquicos.
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