sexta-feira, 15 de abril de 2016

Os Pais da Igreja e o Papado - Parte 3 (Teodoreto, Vicente de Lérins, Máximo)


Teodoreto de Cirro (393-466)

Os apologistas católicos costumam apresentar a seguinte citação:

Pois essa Santa Sé [Roma] tem precedência sobre todas as igrejas do mundo, por muitas razões, e acima de todas por isso, [a sé romana] é livre de toda mácula de heresia, e nenhum bispo de opinião heterodoxa sentou-se em seu trono, mas manteve a graça dos apóstolos sem mácula. (Epístola 116)

Essa citação não apoia o papado. Teodoreto concede preeminência à sé romana, mas suas razões são não papais. A igreja romana tinha um histórico melhor no combate às heresias do que as igrejas orientais. Teodoreto não aponta para um papado divinamente comissionado, mas para um histórico de manutenção do que ele considerava a fé apostólica. O fato de a sé romana ter mantido a fé até aquele período (século IV) não implica em infalibilidade. Ele não afirma que essa igreja tinha um carisma divino que a impedia de ser contaminada pela heresia. Ele também fala a respeito de si mesmo:

Eu tenho mantido a fé dos apóstolos sem mácula. (Epístola 89)

Deveríamos concluir que Teodoreto se considerava infalível? Obviamente não. O mesmo não deveria ser atribuído a Roma pelo mesmo motivo. A preeminência de Roma não era baseada somente em Pedro, mas também em Paulo:

Mas na sua cidade o grande provedor concedeu uma abundância de bons dons. Ela é a maior, a mais esplêndida, a mais ilustre do mundo, e superabunda com a multidão dos seus habitantes. Além de tudo isso, ela alcançou sua presente soberania, e deu seu nome a seus súditos. Ela é, aliás, especialmente adornada por sua fé, devido ao testemunho que o apóstolo divino exclama: "sua fé é conhecida em todo o mundo”. Mesmo depois de receber as sementes da mensagem de salvação, seus ramos eram fortes com esses frutos admiráveis. Quais palavras apropriadamente podem louvar a piedade agora praticada nela? Nela são mantidos também os túmulos que dão luz para as almas dos fiéis, aqueles de nossos comuns pais e professores da verdade, Pedro e Paulo, esse três vezes abençoado e divino par surgiu na região do nascer do sol e espalhou seus raios em todas as direções. (Epístola 113 para Leão bispo de Roma)

Ele menciona o elogio de Paulo, os túmulos dos dois apóstolos, mas nunca aponta um papado divinamente comissionado. Nessa mesma epístola, as seguintes palavras são ditas:

Nós nos apressamos a sua Sé Apostólica, a fim de recebermos a cura para as feridas da Igreja. Para cada razão é apropriado a você assegurar o primeiro lugar, na medida em que Sua Sé é adornada com muitos privilégios. Eu fui condenado sem julgamento. Mas aguardo a sentença da sua Sé Apostólica. Eu peço e imploro a Vossa Santidade que socorra-me no meu apelo ao seu tribunal justo e íntegro. Leve me depressa a ti e eu lhe provarei que o meu ensino segue as pegadas dos Apóstolos.

O contexto da epístola é o pedido de ajuda a Leão. O imperador havia convocado o II Concílio de Éfeso, que hoje não é contado entre os ecumênicos, para referendar a heresia monofisita. Diante disso e das pressões políticas do império, Teodoreto e outros bispos orientais pedem ajuda a Roma. Os católicos apresentam isso como evidência da primazia papal. Não é o caso. Eles apelavam a Roma pela importância dessa igreja por razões não papais como já vimo e porque o bispo romano igualmente condenava a heresia. Sobre isso, o historiador católico romano Klaus Schatz é bem claro:

Segue sendo válida a constatação de que em tempos normais a Igreja romana não exercer um papel de liderança no Oriente. Além disso, tensões eclesiais e conflitos não podem ser solucionados em curto prazo por Roma. Contudo, em tempos de crise, toma corpo uma tradição iniciada com Atanásio e corroborada ao longo do século V, especialmente após o "latrocínio" de Éfeso (449): o hábito de se dirigir a Roma em situações de emergência, na esperança de obter ajuda e assistência. Esta situação era agravada no caso da expulsão de bispos ou quando eles queriam impor doutrinas "herética" com a pressão do Imperador. Isso não é a considerar Roma como uma instância jurídica suprema. Pelo contrário, devemos pensar que este pedido de auxílio tinha uma natureza supra-legal de recorrer a uma instância que gozava de uma autoridade religiosa superior, e neste caso, era instada a agir no sentido da solidariedade cristã de onde se vinha a ordem eclesial. Não se tratava de medidas autoritativas que o bispo de Roma não poderia tomar no Oriente sem confrontar abertamente o poder imperial. Do bispo de Roma se esperava ajuda na forma de manifestações de solidariedade, de exortações,  de escritos a outros bispos e de convocação de novos concílios. Também poderia acontecer que, além de Roma, cartas eram enviadas às outras sedes mais importantes do ocidente. Um exemplo é o caso do patriarca João Crisóstomo, que expulso de Constantinopla, dirigiu-se no ano de 404 aos bispos de Roma, Milão e Aquileia. Por outro lado, os limites que distinguem estas chamadas de um verdadeiro recurso a uma instância superior são bastante imprecisas, pelo menos até o "latrocínio" de Éfeso (449) pelo Patriarca Flaviano de Constantinopla e os bispos Eusébio de Dorylaeum e Teodoreto de Cirro. Além disso, estes pedidos de ajuda Roma são dirigidos como a cidade de Pedro (e Paulo), e sua aura religiosa está ligada à expectativa de ajuda concreta. Isto é claramente evidente no caso de Teodoreto, que escreve que a glória Roma não está apenas na sua condição política, mas acima de tudo em sua fé, de acordo com Rm 1.8 ("vossa fé é conhecida em todo o mundo") e também o fato de sediar os túmulos de Pedro e Paulo. (Papal Primacy (Minnesota: The Liturgical Press, 1996, p. 55)

O pedido de ajuda não implica em primado jurídico do bispo romano. Além disso, Teodoreto não considerava apenas Roma a cátedra de Pedro. Antioquia também seria um trono de Pedro:

Dióscoro, no entanto, se recusa a acatar essas decisões, ele está virando a sé do bendito Marcos de cabeça para baixo. Ele faz essas coisas sabendo muito bem que a metrópole antioquena possui o trono do grande Pedro, que era professor do bendito Marcos, o primeiro e regente do coro dos apóstolos. (Epístola 136)

Sempre que algum pai se refere a Roma como a cátedra ou trono de Pedro, os católicos concluem papado. Porém, quando o mesmo é dito de outras igrejas, em especial Antioquia, a mesma conclusão não é feita. Como Teodoreto não acreditava no bispo de Roma como o exclusivo sucessor de Pedro, ele não poderia acreditar em papado. Também problemática para a causa papal é a interpretação de Teodoreto sobre Mateus 16:18:

Escutemos as palavras do grande Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo»”. Escutemos o Senhor Cristo confirmando esta confissão, pois “Sobre esta pedra»”, diz, “edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Portanto também o sábio Paulo, excelentíssimo arquiteto das igrejas, não fixou outro fundamento senão este: “Eu”, diz, “como sábio arquiteto pus o fundamento, e outro edifica sobre ele. Mas que cada um veja como edifica sobre ele. Pois nenhum homem pode pôr outro fundamento senão o que está posto, o qual é Jesus Cristo”. Como eles podem pensar em qualquer outro fundamento, quando são convidados não para fixar uma fundação, mas construir sobre o que já está posto? O escritor divino reconhece Cristo como o fundamento, e o louva neste título. (Epístola 146)

Portanto nosso Senhor Jesus Cristo permitiu ao primeiro dos apóstolos, cuja confissão Ele tinha fixado como uma espécie de alicerce e fundamento da Igreja, que vacilasse, e que o negasse, e então o levantou de novo (...) Certamente ele está chamando à fé piedosa e à confissão verdadeira uma “pedra”. (Comentário sobre os Cânticos dos cânticos II)

A rocha em questão era a confissão ou fé de Pedro que aponta para o fundamento da igreja que é Cristo. Em outro lugar, todos os apóstolos são referidos:

Seus fundamentos estão nas montanhas sagradas. Os "fundamentos" da piedade são os preceitos divinos, enquanto as "montanhas sagradas" sobre as quais essas fundações estão definidas são os apóstolos de nosso Salvador. O abençoado Paulo diz a respeito dessas fundações: "Vocês foram edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas cuja pedra angular é Cristo Jesus". E novamente ele diz: "Pedro, Tiago e João, que são percebidos como pilares”. E depois Pedro que fez aquela verdadeira e divina confissão, Cristo disse-lhe: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela". E em outro lugar Cristo diz: "..Vocês são a luz do mundo, uma cidade edificada sobre um monte não pode ser escondida". Sobre estas montanhas sagradas Cristo, o Senhor estabeleceu as bases da piedade (Comentário sobre Salmos 86.1, MPG, Vol. 80, Col. 1561)

Teodoreto cita várias passagens bíblicas em que Cristo é o fundamento último da igreja e os apóstolos são fundamentos secundários que estão sobre Cristo. Percebe-se que ele se refere a todos os apóstolos como “montanhas sagradas”, “a luz do mundo”, e ainda cita a passagem mais explicitamente anti-papal do Novo Testamento, que Paulo diz que Pedro, Tiago e João eram os pilares da igreja. Dessa forma, Pedro era um fundamento assim como os outros também eram:

Se eles dizem que estas coisas aconteceram antes do batismo, deixá-los saber que a grande fundação da Igreja foi abalada e confirmada pela graça divina. O grande Pedro, depois de ter negado três vezes, manteve-se em primeiro lugar; curado por suas próprias lágrimas. E o Senhor lhe ordenara para aplicar o mesmo remédio aos irmãos, "E tu", Ele diz, "convertido, confirma teus irmãos" [Lc 22:32]. (Haeret. Fab. Book 5, Chapter 28. Cited by J. Waterworth S.J., A Commentary (London: Thomas Richardson, 1871), p. 152)

Católicos costumam trazer essa citação isolada de todo o resto do pensamento de Teodoreto. Vimos que Pedro era um fundamento, mas não o fundamento. Cristo era a rocha, e todos os apóstolos eram fundamentos que estavam sob Cristo. O historiador católico romano Michael Winter escreve:

Ele declarou num momento que a rocha alicerce da igreja era a fé, e em outro que era Cristo. Em outro lugar ele aplica a noção a todos os Apóstolos (...) É evidente que ele não reconhece o primado de São Pedro. (Michael Winter, St. Peter and the Popes (Baltimore: Helikon, 1960), p. 74)

Vicente de Lérins (século V)

Vicente de Lérins é um pai da igreja do séc. V. Ele escreveu a importante obra “Commonitorium” que felizmente pode ser lida em português aqui. Essa obra trata de como se poderia diferencia a genuína fé católica da heresia:

Havendo interrogado com freqüência e com maior cuidado e atenção a inúmeras pessoas, sobressalentes em santidade e doutrina, sobre como distinguir por meio de uma regra segura, geral e normativa, a verdade da Fé Católica da falsidade perversa da heresia, quase todas me têm dado a mesma resposta: “Todo cristão que queira desmascarar as intrigas dos hereges que brotam ao nosso redor, evitar suas armadilhas e se manter íntegro e incólume numa fé incontaminada, deve com a ajuda de Deus, apetrechar sua fé de duas maneiras: com a autoridade da lei divina ante tudo, e com a tradição da Igreja Católica”. Sem embargo, alguém poderia objetar: Posto que o Cânon das Escrituras é em si mais que suficientemente perfeito para tudo, que necessidade há de se acrescentar a autoridade da interpretação da Igreja?

Precisamente porque a Escritura, por causa de sua mesma sublimidade, não é entendida por todos de modo idêntico e universal. De fato, as mesmas palavras são interpretadas de maneira diferente por uns e por outros. Se pode dizer que tantas são as interpretações quantos são os leitores. Vemos, por exemplo, que Novaciano explica a Escritura de um modo, Sabélio de outro, Donato, Eunomio, Macedônio, de outro; e de maneira diversa a interpretam Fotino, Apolinar, Prisciliano, Joviano, Pelágio, Celestino, e em nossos dias, Nestório. É pois, sumamente necessário, ante as múltiplas e arrevesadas tortuosidades do erro, que a interpretação dos Profetas e dos Apóstolos se faça seguindo a pauta do sentir católico. Na Igreja Católica deve-se ter maior cuidado para manter aquilo em que se crê em todas as partes, sempre e por todos. Isto é a verdadeiro e propriamente católico, segundo a ideia de universalidade que se encerra na mesma etimologia da palavra. Mas isto se conseguirá se nós seguimos a universalidade, a antiguidade e o consenso geral. Seguiremos a universalidade se confessamos como verdadeira e única fé a que a Igreja inteira professa em todo o mundo; a antiguidade, se não nos separamos de nenhuma forma dos sentimentos que notoriamente proclamaram nossos santos predecessores e pais; o consenso geral, por último, se, nesta mesma antiguidade, abraçamos as definições e as doutrinas de todos, ou de quase todos, os Bispos e Mestres.
Qual deverá ser a conduta de um cristão católico, se alguma pequena parte da Igreja se separa da comunhão na Fé universal? Não cabe dúvida de que deverá antepor a saúde do corpo inteiro a um membro podre e contagioso. Mas, e se for uma novidade herética que não está limitada a um pequeno grupo, mas que ameaça contagiar à Igreja toda? Em tal caso, o cristão deverá fazer todo o possível para agarrar-se à antiguidade, a qual não pode evidentemente ser alterada por nenhuma nova mentira. E se na antiguidade se descobre que um erro tem sido compartilhado por muitas pessoas, ou inclusive toda uma cidade, ou por uma região inteira? Neste caso porá o máximo cuidado em preferir os decretos – se os tiver – de um antigo Concílio Universal, à temeridade e à ignorância de todos aqueles. E se surge uma nova opinião acerca da qual nada tenha sido ainda definido? Então indagará e confrontará as opiniões de nossos maiores, mas somente daqueles que sempre permaneceram na comunhão e na fé da única Igreja Católica e vieram a ser mestres provados da mesma. Tudo o que ache que, não por um ou dois somente, mas por todos juntos de pleno acordo, tenha sido mantido, escrito e ensinado abertamente, frequente e constantemente, sabe que ele também pode crer sem vacilação alguma. (Commonitorium cap. II-III)

A regra de Vicente apela a três critérios: antiguidade (acreditado sempre), consenso (acreditado por todos) e abrangência (acreditado em todos os lugares). A pergunta que os católicos romanos precisam responder é – porque Vicente ignora o suposto magistério infalível liderado pelo bispo romano? Se existe um lugar em toda a biblioteca patrística em que a doutrina da infalibilidade papal deveria ser evidente é aqui. É simplesmente inexplicável essa ausência caso Vicente mantivesse a crença papista. Ele não tinha qualquer noção de uma autoridade infalível que iria determinar qual era a sã doutrina. A resposta que qualquer papista daria à questão levantada é: “siga o magistério do bispo romano”.

Vicente apela à autoridade da igreja. Nesse ponto, muitos católicos desavisados sobre o verdadeiro significado da Sola Scriptura, afirmariam que ele contrariou a doutrina reformada. Os reformadores nunca negaram a autoridade da igreja para dirimir as controvérsias doutrinárias. O que eles negaram é a existência de uma igreja infalível. Vicente não aponta para nenhuma autoridade infalível da igreja. Essa autoridade era exercida mediante o consenso da igreja. Ele concorda que a Escritura é suficiente em tudo e afirma que a palavra escrita de Deus precede a tradição no trecho: “com a autoridade da lei divina ante tudo, e com a tradição da Igreja Católica”. Essa tradição interpretativa da igreja não era determinada por algum bispo individualmente e infalivelmente, mas por um consenso abrangente e majoritário. O último órgão autoritativo da igreja para resolver o conflito não era o bispo romano, mas o concílio universal. E mesmo ao concílio, ele não atribui infalibilidade. É interessante observar que as peculiares doutrinas de Roma não passam no teste vicentino. Cardeal Newman que desenvolveu a teoria do desenvolvimento histórico em franca oposição à regra de Vicente, admite:

Não parece possível, então, evitar a conclusão de que, qualquer que seja a chave apropriada para harmonizar os registros e documentos da Igreja Primitiva e da Igreja posterior e [ao mesmo tempo] considerar como verdadeiro o ditado de Vicente, ele deve ser considerado em abstrato, e como possível a sua aplicação em sua própria época, quando ele quase poderia pedir aos séculos primitivos o seu testemunho. Isso dificilmente está disponível agora, ou efetivo para qualquer resultado satisfatório. A solução que ele oferece é tão difícil quanto o problema original. (An Essay on the Development of Christian Doctrine (New York: Longmans, Green and Co., reprinted 1927), p. 27)

O patrologista Boniface Ramsey, por exemplo, honestamente admite que os atuais ensinamentos católicos sobre Maria e o papado não foram ensinados no início da Igreja:

Por vezes, então, os Pais falam e escrevem de uma forma que acabaria por ser vista como não ortodoxa. Mas isto não é a única dificuldade no que diz respeito ao critério de ortodoxia. O outro é que nós olhamos em vão em muitos dos Pais para encontrar referências ao que muitos cristãos acreditam hoje. Nós não encontramos, por exemplo, alguns ensinamentos sobre Maria ou o papado que foi desenvolvido em épocas medievais e modernas. (Beginning to Read the Fathers (London: Darton, Longman & Todd, 1986), p. 6)

O próprio papado – a doutrina base do catolicismo romano – não passa no teste da história. Por isso, Roma adota hoje um novo conceito de tradição. Roma não precisa mais provar a historicidade de suas doutrinas, o simples fato de ensiná-las é prova de que é verdade.

Máximo o confessor (580-662)

Apologistas católicos geralmente trazem as seguintes citações de Máximo:

As extremidades da terra, e todos em cada parte dela que puramente e justamente confessam o Senhor, olham diretamente para a Santíssima Igreja Romana e a sua confissão e fé, como um sol de luz infalível, espera-se dela o brilhante esplendor dos dogmas sagrados de nossos pais, de acordo com o que os conselhos inspirados e santos têm santamente e piedosamente decretado. Pois, a partir da descida do Verbo encarnado entre nós, todas as igrejas em todas as partes do mundo têm mantido a maior Igreja sozinha para ser sua base e fundamento, visto que, de acordo com a promessa de Cristo, nosso Salvador, as portas do inferno nunca prevalecerão contra ela, que tem as chaves da confissão ortodoxa e a fé verdadeira nela, que ela abre a verdadeira e exclusiva religião para os homens como aproximação com a piedade, e ela cala e tranca toda boca herética que fala contra o Altíssimo”. (Maximo, Opuscula theologica et polemica, Migne, Patr. Graec. Vol. 90)

(...) como foram explicadas piedosamente e com toda a pureza dos seis concílios santos, que foram inspiradas e ditadas por Deus para proclamar de forma muito clara o Símbolo da Fé. Porque, desde que a Palavra de Deus condescendeu a nós e tornou-se o homem, todas as Igrejas cristãs em todos os lugares têm realizado e mantido a grande Igreja como única base e fundamento, porque, segundo as próprias promessas do Senhor, as portas do inferno não prevaleceriam contra ela (…) (PG 91:137-40)

Sem dúvida, as declarações são fortes. Estaria Máximo afirmando a infalibilidade da igreja de Roma? Há um sério problema: a obra em questão é de origem duvidosa (Cooper, p. 181). Máximo escreveu em grego, e não se tem qualquer trecho do original grego. A obra só é acessível e de forma parcial em latim. Pauline Allen e Bronwen Neil escrevem:

Apesar de haver importantes questões não resolvidas sobre a autoria dos textos (ex: a referência de Máximo a seis sínodos sagrados), a opinião dos estudiosos parece favorecer a autenticidade, embora com algumas reservas. Os ortodoxos, por sua vez, há muito tempo lançam dúvidas sobre a autenticidade dessas citações de Máximo. Alexander Schmemann, ao descrever o tratamento ortodoxo desses textos, descreveu a dinâmica: "Se historiadores e teólogos romanos sempre interpretaram a evidência em termos jurídicos, falsificando assim o seu real significado, os seus adversários ortodoxos têm sistematicamente menosprezado a própria evidência" (Schmemann 1992: 163-4). No entanto, esta dinâmica está mudando. Assim como recentemente estudiosos católicos afastaram-se do entendimento posterior do papado em Máximo, também os estudiosos ortodoxos começaram o processo de interpretação da posição de Máximo sobre o papado em seu contexto histórico, permitindo que ambos os lados obtenham compreensões sobre como o ministério petrino foi compreendido e exercido no século VII. Talvez o estudo mais detalhado dos pontos de vista de Máximo sobre o papado vem de Jean-Claude Larchet, que examinou todos os textos em questão (Larchet 1998). Larchet tentou contextualizar o "entusiasmo" de Máximo pelo papado à luz dos debates monotelitas, quando Roma era seu único aliado contra os hierarcas heréticos do Oriente. Para Larchet e outros, a linguagem exaltada de Máximo sobre a Sé de Roma manifesta o brilho de gratidão que ele deve ter sentido após o Sínodo de Latrão, pelo apoio que tinha encontrado em Roma e, além disso, foi "escrito sobre a Igreja de Roma, e não o papado como tal" (Louth zocia: 117). Isso não significa que Máximo estava sendo hipócrita, mas em vez disso simplesmente reconhece que esses textos foram escritos num momento em que somente Roma se manteve contra a heresia, e, portanto, tinha ganhado o tipo de louvor feito por Máximo. Seria então o caso, como Máximo parecia implicar, que a comunhão com a Sé de Roma era necessária para ser parte da igreja universal? Quando perguntado em seu julgamento a que igreja ele pertencia, isto é, com qual patriarcado que ele tinha comunhão, Máximo respondeu: "O Deus de tudo pronunciou que a Igreja Católica era a correta e preservou a confissão da fé nela quando ele chamou Pedro de abençoado por causa dos termos em que ele tinha feito a confissão adequada a ele" (Ep. Max., Allen Neil 2002:121). A interpretação de Mateus 16:18 no Oriente tendia (embora não exclusivamente) para enfatizar confissão de fé como a "pedra" sobre a qual a igreja é construída, ao invés da pessoa do próprio Pedro, e isso era geralmente verdade para Máximo. Para ele, o verdadeiro fundamento da Igreja é a fé de Pedro, e desde que Roma tinha consistentemente confessado essa fé, ela era a verdadeira igreja. Foi por isso que Máximo preferiu comunhão com os romanos, em vez de seu povo nativo (os bizantinos), porque sobre as vontades de Cristo, apenas Roma tinha falado corretamente. (The Oxford Handbook of Maximus the Confessor, Oxford University Press, 2015, pp. 552, 555)

Uma das razões que faz alguns estudiosos duvidarem da autenticidade dessa citação de Máximo é a referência aos seis sínodos. Nesse período, apenas cinco concílios eram reconhecidos como ecumênicos (Nicéia 325, Constantinopla I 381, Éfeso 431, Calcedônia 451 e Constantinopla II 553). Que sexto concílio seria esse então? Os católicos argumentam que seria o sínodo de Latrão (649). Porém, esse sínodo não tem as características de um concílio ecumênico e nunca foi considerado como tal. Se o sexto sínodo era Constantinopla III (681), restaria provada a falsificação, pois Máximo já estava morto nesse período. Porém, mesmo entre aqueles que consideram a obra autêntica, a interpretação papista é desafiada. Episódios posteriores da vida de Máximo podem lançar luz sobre a questão. Como visto, ele combateu a o monotelismo – doutrina que afirma que Jesus tinha apenas uma vontade – a divina. Em Constantinopla, essa doutrina foi abraçada pelo patriarca e imperador. Máximo foi então preso e seria morto por negar a doutrina monotelita. Seus detratores travaram com ele um importante diálogo:

Eles disseram-lhe: "O que você irá fazer se os romanos se unirem aos bizantinos? Ontem chegou um legado de Roma e amanhã no domingo eles irão estar em comunhão com o patriarca; se tornará evidente para todos que foi você que ficou contra os romanos. Com a sua remoção, sem dúvida, será uma união fácil". E ele [Máximo] lhes disse: "Aqueles que estão vindo não podem de qualquer maneira prejudicar a Sé de Roma mesmo se tomarem a comunhão, pois eles não trouxeram uma carta ao patriarca. Eu não estou convencido de que os romanos se unirão a eles, a menos que confessem que o nosso Senhor e Deus, por natureza, tanto nas vontades e obras de nossa salvação de acordo com cada uma das naturezas a partir do qual ele é, na qual ele é, assim como o que ele é". E eles disseram: "E se os romanos entrarem em acordo com eles neste momento, o que você vai fazer?" Ele respondeu: "O Espírito Santo, de acordo com o Apóstolo, condena até mesmo anjos que aprovam qualquer coisa contra o que tem sido pregado". (Maximus the Confessor, Selected Writings (Paulist Press, 1985), p 23)

A resposta de Máximo à possibilidade de Roma abraçar o monotelismo é reveladora. Se ele fosse católico romano, simplesmente acataria a opinião de Roma, pois ela é a autoridade final. Mas veja como o paradigma era diferente. Ele usou Gálatas 1:8:

Mas ainda que nós ou um anjo do céu pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!

Ou seja, mesmo se Roma pregasse contra a doutrina que ele considerava correta, ela deveria ser rejeitada. O juízo individual de Máximo estava acima da opinião dos romanos. Era a fé verdadeira que subordinava a igreja e não o contrário. O louvor de Máximo à igreja romana era porque pelo menos naquele momento, Roma o apoiava. Mas se Roma mudasse de posição, ele não cederia:

Tenho falado isso a vocês, meus senhores, sem reservas (...) Com essas coisas inscritas na tábua do meu coração, você está me dizendo para entrar em comunhão com a igreja em que estas [outras] coisas são proclamados, e ter comunhão com aqueles que realmente expulsam Deus? Que Deus - que por minha causa se fez como eu - exceto o pecado - nunca deixe isso acontecer comigo! (The body in St. Maximus the Confessor: holy flesh, wholly deified by Adam G. Cooper, pp. 187)

A igreja em questão não era Roma, mas a citação ilustra o paradigma aceito por máximo – a mensagem do evangelho conforme ele a compreendia estava acima de qualquer igreja. Outro episódio oriundo do último escrito que temos de Máximo traz o seguinte:

Um documento precioso para doutrina da igreja de Máximo é o último escrito que temos de sua mão, uma carta curta escrita em 19 de abril 658 a Anastasio, seu discípulo e filho espiritual por quarenta anos até ser separado de seu mestre. Até então, Máximo e seus poucos seguidores estavam por conta própria, Roma - na pessoa do Papa Vitaliano - sucumbiu à pressão imperial e entrou em comunhão com as outras sedes patriarcais. Em resposta à pergunta - ou provocação - "A que igreja você pertence? Constantinopla? Roma? Antioquia? Alexandria? Jerusalém? Veja, todos eles estão unidos, juntamente com as províncias sujeitas a eles". Máximo diz que ele respondeu: “O Deus de tudo pronunciou que a Igreja Católica era a correta e preservou a confissão da fé nela quando ele chamou Pedro de abençoado por causa dos termos em que ele tinha feito a confissão adequada a ele" (Ep. Max., Allen Neil 2002:121). A fundação petrina da Igreja é a fé de Pedro, que até o seu sucessor poderia abandonar, como Máximo tinha acabado de aprender. (Louth, p. 118)

Ou seja, embora Máximo tivesse se referido à igreja de Roma em termos muito elogiosos (deixando de lado a questão da autenticidade), ele viveu o suficiente para saber que Roma não era imune ao erro. Máximo não viveu até o III Concílio de Constantinopla (680). Nele, o bispo de Roma Honório juntamente com o bispo de Constantinopla Sérgio foram condenados como hereges por subscreverem a heresia monotelita, justamente àquela pela qual Máximo pagou com a vida. Sérgio consultou Honório sobre a questão monotelita e a resposta foi:

Também confessamos uma só vontade de nosso Senhor Jesus Cristo. (Denzinger # 251)

Eles foram então condenados pelo concílio:

Na Sessão 13ª de 28 de Março, as duas cartas de Sérgio foram condenadas, e o concílio acrescentou: “Àqueles cujos ímpios dogmas execramos, julgamos que os seus nomes também sejam expulsos da santa Igreja de Deus (...) E além destes decidimos que Honório também, que foi papa da antiga Roma, seja com eles expulso da santa Igreja de Deus, e anatematizado com eles, porque verificamos na sua carta a Sérgio que seguiu a opinião desse em tudo, e confirmou os seus dogmas ímpios”. Estas últimas palavras são suficientemente verdadeiras, e, se Sérgio tinha de ser condenado, Honório não podia ser recuperado. Os legados [papais] não objetaram a sua condenação (...) A condenação do papa Honório foi guardada nas lições do Breviário para 28 de Junho (São Leão II) até ao século XVIII (...) (John Chapman, Pope Honorius I. The Catholic Encyclopedia, vol. VII)

Esse é o maior exemplo histórico da falibilidade papal. Temos um concílio ecumênico reconhecido pela igreja romana condenando um papa por ensinar heresia, e estamos falando da heresia que Máximo combateu. A luz de tudo isso, Máximo não pode ser considerado uma testemunha da doutrina papal. 

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