Os problemas do apelo
moderno à infalibilidade papal
Tierney
explora no capítulo introdutório a falta de definição sobre quais declarações
papais foram infalíveis. Ele afirma que há várias teorias contraditórias para
identificar quando os papas decretaram algo infalivelmente e denuncia a
arbitrariedade dos critérios usados:
“A
única regra de interpretação consistente que podemos ter certeza de encontrar é
esta: sempre que um teólogo discorda de
algum ensinamento antigo ou de nova determinação de um papa, ele achará boas
razões teológicas para decidir que aquele pronunciamento papal foi não
infalível (...) Toda a moderna doutrina da infalibilidade, em sua forma
“pickwickiana”, pode ser resumida no princípio geral: Todos os decretos infalíveis são certamente verdadeiros, mas nenhum
decreto é certamente infalível. (p. 4)
Esta
inclusive foi a estratégia adotada por alguns apologistas católicos a respeito
da mudança recente da Igreja de Roma no ensino sobre a pena de morte. Sempre
que há uma contradição, afirma-se a não infalibilidade daquele ensino, o que
torna o apelo ao magistério “infalível” vazio. Diante disto, o autor documenta
como Pio XII sentiu a necessidade de defender a obrigatoriedade do assentimento
ao magistério ordinário na encíclica Humani Generis:
“Não
se deve pensar que matérias propostas em cartas encíclicas não exijam, em si
mesmas, o assentimento, porque (nas encíclicas) os pontífices não exercem o
supremo poder do seu magistério. Pois
essas coisas são ensinadas pelo magistério ordinário, ao qual também se aplica
a expressão: ‘Quem vos ouve, a Mim ouve’.
Ele
comenta este documento de Pio XII:
“A
referência de Pio XII à autoridade do magistério ordinário levou alguns
teólogos a insistir, mais uma vez, que o decreto do Concílio Vaticano I
significa exatamente o que diz — que o
papa é infalível sempre que se pronuncia sobre matérias de fé e moral “no
exercício do ofício de pastor e doutor de todos os cristãos”. A dificuldade dessa posição é que os
pronunciamentos papais, mesmo os dos papas modernos, às vezes se contradizem
mutuamente (p.ex., no tema da tolerância religiosa). Por isso, alguns teólogos sustentam a infalibilidade
dos decretos contemporâneos sem darem séria consideração à possibilidade de
estes entrarem em conflito com decretos anteriores”. (p. 4)
Não
é incomum ouvir católicos dizerem que papas não falam infalivelmente em encíclicas,
mas isto é mera especulação. Diante das inúmeras contradições entre os decretos
papais ao longo da história, Tierney elenca outra estratégia, além dessa
abordagem de arbitrariamente definir o que é ou não infalível, que é basicamente
reinterpretar decretos papais do passado a luz do ensino presente:
Outros
teólogos, de modo ainda mais censurável (do ponto de vista de um historiador),
criaram princípios hermenêuticos tão engenhosos que os documentos antigos
jamais os comprometem. Aplicando tais princípios, podem reinterpretar qualquer pronunciamento doutrinário,
independentemente do seu conteúdo real, para significar aquilo que julgarem que
seus autores deveriam ter querido dizer. A doutrina infalível do passado
permanece infalível, mas é despojada de
todo conteúdo objetivo (...) O princípio geral que sustenta essa segunda
grande abordagem ao problema da infalibilidade poderia resumir-se assim: “Todos os pronunciamentos infalíveis são
irreformáveis — até que seja conveniente mudá-los”. Parece justo
acrescentar que a maior parte dos teólogos católicos continua a optar por
alguma versão da posição relativamente simples e direta, à maneira
“pickwickiana”. Quando do Concílio Vaticano II, a teologia católica da infalibilidade já se havia tornado um emaranhado
de paradoxos e evasões. Os teólogos haviam-se enredado num beco sem saída
intrincado. (p. 5)
Ou
seja, a outra abordagem é reinterpretar o passado a luz do presente, fazendo
com que o dogma deixe ter qualquer conteúdo objetivo, estando a doutrina sempre
aberta a novos significados. Já trouxemos neste blog a citação do teólogo
católico Raymond Brown:
“Essencial
para uma interpretação crítica dos documentos da igreja é a percepção de que a Igreja Católica Romana não altera sua
posição oficial de forma direta. As declarações passadas não são
rejeitadas, mas são citadas com elogios
e depois reinterpretadas ao mesmo tempo. (Raymond Brown, “The Critical
Meaning of the Bible” New York, NY: Paulist Press ©1981, Nihil Obstat and
Imprimitur, page 18 footnote 41)
Infalibilidade versus
Soberania
“Por
vezes [os defensores modernos da infalibilidade] mostram-se até um pouco perplexos por não encontrarem a infalibilidade proclamada
nos escritos dos papalistas mais radicais da Alta Idade Média — homens como
Giles de Roma, James de Viterbo, Henry de Cremona, Agostinho Triunfo. Na
verdade, as premissas que os historiadores habitualmente levaram em conta
tornam toda a história antiga da infalibilidade papal ininteligível. A verdade é que os primeiros defensores da
doutrina estavam muito mais interessados em limitar o poder do papa do que em
ampliá-lo”. (p. 6)
A
citação acima é relevante, pois, demonstra que os defensores mais radicais do absolutismo papal não viam uma conexão
direta entre soberania e infalibilidade. É digno de nota o fato de que os
mais ferrenhos defensores da jurisdição do papa nos séculos XII e XIII nada
sabiam sobre a infalibilidade. Como veremos nos próximos artigos, os primeiros
papas viram na infalibilidade uma limitação de sua soberania, pois os
vincularia aos decretos papais anteriores.
O testemunho dos
canonistas dos séculos XII-XIII
Os
canonistas eram os estudiosos da lei canônica e foram responsáveis pela criação
de uma espécie de jurisprudência da lei da Igreja. Eles serão de grande
importância para o estudo da doutrina da infalibilidade porque produziram
muitas discussões sobre a autoridade da Igreja, até mais do que teólogos
escolásticos:
“O que pode ser provado é
que nenhuma afirmação pública da infalibilidade do papa foi transmitida aos
canonistas dos séculos XII e XIII,
em cujas obras, pela primeira vez, abundantes fontes para a investigação de
toda essa questão se tornaram disponíveis. Os comentadores do Decreto de
Graciano conheciam todos os textos mais importantes — genuínos ou forjados —
relativos à autoridade do papa e à indefectibilidade da Igreja Romana. Eles não associaram esses textos a nenhuma
doutrina de infalibilidade papal. Eles
não mostraram consciência de que qualquer um de seus predecessores tivesse
jamais associado tais textos com essa doutrina. Nós argumentaremos que os
teólogos do século XIII não poderiam ter derivado a doutrina da infalibilidade
papal da tradição canônica da Igreja, porque
a doutrina simplesmente não existia nos escritos dos canonistas”. (p. 12)
Uma
das teses que veio a ser defendida por Dollinger é de que a doutrina da infalibilidade
teria entrado na Igreja de Roma através dos canonistas que recepcionaram
falsificações (principalmente pseudo-Isidoro) usadas para estabelecer o poder
papal. Os teólogos posteriores, sob influência dos canonistas, teriam então recebido
essa doutrina com origem em documento forjados. Tierney não apoia essa tese e
argumenta de forma convincente que os canonistas nada sabiam sobre essa ideia.
Eles
conheciam inclusive textos que falavam da indefectibilidade da fé de Roma: fórmula
do papa Hormisdas do século VI (“na Sé Apostólica a religião católica foi
sempre preservada imaculada”) e do papa Agatão do século VII (“desde o
princípio, recebeu a fé cristã dos seus fundadores, os príncipes dos Apóstolos
de Cristo, e permanece incontaminada até o fim”), mas não derivavam delas
qualquer noção de infalibilidade do bispo romano. De fato, até o século XIV, em meio a
controvérsia com o conciliarismo, nenhum autor cristão enxergou nessas fórmulas
qualquer evidência da infalibilidade papal, uma vez que estas fórmulas falam da
fé da Igreja de Roma, e não do papa pessoalmente. Por isso, o apelo feito a
estas fórmulas como evidência da infalibilidade no Concílio Vaticano I (séc.
XIX) carecem de fundamentação histórica.
Os canonistas e a relação
entre Escritura e Tradição
Tierney
também discute a visão dos canonistas sobre a relação entre Tradição e Escritura.
Ele documenta que, até o século XIII, a visão quase uníssona não referendava a
ideia da tradição como um suplemento doutrinário (teoria das duas fontes). Ou seja,
toda doutrina cristã estava necessariamente contida nas Escrituras:
Contudo,
antes do século XIII, há poucos indícios
em suas obras da visão de que a Tradição constituía uma fonte de revelação
divina separada da Escritura (...) Quando os teólogos do século XII
observavam — como às vezes faziam — que muitas coisas eram mantidas pela Igreja
e não se encontravam nas Escrituras, pareciam
ter em mente apenas costumes litúrgicos ou práticas piedosas. (p. 15-16)
Na
página 31, Tierney afirma que não havia "o menor traço em suas obras [dos
canonistas] da teoria das duas fontes". A chamada teoria das duas fontes
ganharia impulso durante o período da Reforma e foi abraçada por teólogos como
Melchior Cano como parte do esforço para combater o protestantismo. No entanto,
ela encontra pouco apoio no período patrístico ou no período escolástico. É
interessante notar que há um paralelo entra a teoria das duas fontes e a
infalibilidade papal, pois, a necessidade de “autenticar” doutrinas que foral
legadas apenas oralmente (sem suporte bíblico) deu impulso a ideia de que o
papa poderia infalivelmente exercer esse papel autenticador. Os canonistas
também não tinham qualquer noção sobre a irreformabilidade de decretos papais,
o que implica numa visão não infalibilista:
“A
essência de sua [dos canonistas] doutrina era que o papa poderia revogar leis
antigas e fazer novas (...) Um papa
poderia revogar as decisões de seus predecessores” (...) Ele [o papa] não estava vinculado por qualquer tradição
concebida como uma fonte de revelação". (p. 30)
Como
mencionado, a visão dos canonistas sobre a soberania papal incluía o fato de
que eles não estavam subordinados aos decretos de seus antecessores.
Os Canonistas e a
Infalibilidade da Igreja
Um
ponto importante é que como os canonistas entendiam a ideia da infalibilidade
da Igreja, sem qualquer noção de um privilégio pessoal concedido ao papa:
“Eles
[os canonistas] discutiram repetidas vezes o problema de manter a fé inerrante
da igreja e invariavelmente chegaram à
conclusão de que o papa sozinho não poderia fornecer uma garantia adequada para
a estabilidade dessa fé. “Seria
perigoso demais confiar nossa fé ao julgamento de um único homem”, escreveu um
deles. (Glossa Palatina ad Dist. 19 c. 9, “... periculosum erat fidem
nostram committere arbitrio unius hominis). [Os canonistas aplicaram] em sentido disjuntivo, ou seja, implicando
uma distinção entre toda a comunidade cristã, cuja fé nunca poderia falhar, e a
pessoa de um papa individual, que era apenas um homem mortal e falível, e assim
apenas um símbolo imperfeito da Igreja. Normalmente, eles explicavam que frases que descrevem uma “sé apostólica” ou “igreja
romana” infalível só poderiam fazer sentido se fossem entendidas não como se
referindo ao papa sozinho, mas a toda a congregação dos fiéis. Hugucio
comentou sobre um texto (atribuído por Graciano ao papa Eusébio):
(A
igreja apostólica nunca errou): Existe uma objeção relacionada a Anastácio. Mas
talvez esse (papa) tenha vindo antes. Ou
talvez, e isso é melhor, ele fale da fé da Igreja universal, que nunca errou.
Pois, embora a Igreja de Roma às vezes
tenha errado, isso não significa que a Igreja romana — entendida não como
(apenas) o papa, mas como todos os fiéis, pois a Igreja é o conjunto dos fiéis
— tenha errado. Se ela não existe em
Roma, existe nas regiões da Gália ou onde quer que os fiéis estejam. A
Igreja pode, de fato, deixar de ser, mas
isso nunca acontecerá, pois foi dito a Pedro e, na pessoa de Pedro, à Igreja
universal: ‘que a tua fé não desfaleça”. Em outro lugar, Hugucio escreveu:
“Onde quer que haja cristãos fiéis, ali
está a Igreja romana” (para outras expressões similares em Hugucio, veja Foundations,
pp. 41-42; Summa Animal est substantia ad C. 24 q. 1 c. 9; Summa Omnis qui
iuste ad C. 24 q. 1 c. 9 – “Pope and Council” pp. 214, 213).
Tais
visões eram comumente expressas pelos Decretistas. Um canonista francês anônimo observou que a “Igreja romana” infalível
era a “Igreja universal” e um autor inglês anônimo dizia que a Igreja não
poderia errar simultaneamente “em seu corpo inteiro” (Glossa Palatina ad C.
24 q. 1 c. 9 – Foundations, pp. 43-44). Laurentius escreveu: “Embora o papa, que pode ser julgado por
heresia, tenha errado, a Igreja romana ou Igreja católica — entendida como a
congregação de católicos — não errou” (Appar. Iura naturali ad
C. 24 q. 1 c. 6, citado por J. A. Watt, “The Early Medieval Canonists and the
Formation of Conciliar Theory,” Irish Theological Quarterly, 24). De modo semelhante, Alain de Lille: “Mesmo que o papa tenha errado, a fé
perdura na Igreja, que é a congregação dos católicos”. (p. 37)
O
texto acima é muito importante pois traz vários exemplos de como os canonistas
(ex. Alano e Huguccio) entendiam a ideia da infalibilidade da Igreja, ou da fé
de Roma ou de que Roma não poderia errar. Eles entendiam como significando que
a Igreja Universal (ou seja, toda a comunhão dos fiéis) não poderiam errar,
embora, o papa individualmente poderia errar (ser herege). Há também a leitura
que situa essa inerrância nos bispos, mas, a maioria se referia a toda a Igreja
em comunhão com Roma. Eles não argumentavam que um cabeça infalível fosse
necessária para sustentar a fé da Igreja. Ao contrário, afirmavam que, por mais
que a cabeça pudesse errar, a providência divina sempre impediria que toda a
Igreja fosse levada ao erro.
Os canonistas e a
possibilidade do papa herege
Outro
aspecto importante do nosso estudo é que os canonistas davam como certa a
possibilidade de um papa herege. De fato, até os próprios papas reconheciam isto.
O papa Inocêncio III (séc. XII) afirmou:
“Para
esse fim, a fé me é tão necessária que, embora eu tenha como juiz somente a
Deus pelos demais pecados, é unicamente
por um pecado cometido contra a fé que posso ser julgado pela Igreja”.
(Sermão 2, In Consecratione, publicado em Patrologia Latina 218:656, citado em
Tierney, p. 24)
Na
mesma página, Tierney afirma que para Alain de Lille, em caso de discordância
do papa com os bispos ou a maioria deles numa matéria de fé, deveria prevalecer a opinião dos bispos.
Os canonistas foram
levados a adotar essa atitude em parte pela natureza do material-fonte que
formava a base de sua ciência.
No grande compêndio de textos canônicos de Graciano, retirados de todos os períodos do passado da Igreja, eles não
encontraram nenhuma afirmação de que papas individuais fossem infalíveis, mas
encontraram vários casos de pontífices particulares acusados de terem pecado e
errado em questões de fé. Graciano também incluiu no Decreto um texto afirmando que a imunidade do papa
contra o julgamento humano não se estendia a casos em que ele fosse encontrado
desviando-se da fé. O caso
específico que mais atraiu atenção dos Decretistas dizia respeito ao Papa
Anastácio II (496–498). Esse Anastácio foi um pontífice relativamente
irrepreensível. Reinou numa época em que as igrejas de Roma e Constantinopla
estavam divididas pelo cisma acaciano, que surgiu de uma variação tardia da
heresia monofisita patrocinada pelo patriarca grego Acácio. Anastácio foi tão longe em tentar
reconciliar os hereges que, segundo seus inimigos, terminou manchado pela
heresia. Após a morte do papa,
registraram no Liber Pontificalis que ele havia sido “ferido pela vontade
divina” Graciano
incorporou essa passagem ao Decreto e ela foi amplamente aceita durante a Idade
Média como historicamente exata e canonicamente autoritativa. Os canonistas medievais nada sabiam sobre o
Papa Honório (625–638), que realmente cometeu um grave erro ao lidar com os
detalhes obscuros da controvérsia monotelita e cujo caso deu origem a
intermináveis discussões nos debates do século XIX sobre a infalibilidade
papal. Nos debates medievais, Anastácio
servia como uma espécie de substituto de Honório. (Dante, de fato, encontrou um
lugar para ele no Inferno). Embora os Decretistas medievais conhecessem
casos de papas errantes, também tinham
diante de si todo o conjunto de textos (genuínos e forjados) a partir dos quais
a teoria posterior da infalibilidade papal seria construída. (p. 33)
Ou
seja, os canonistas não desenvolveram uma teoria da infalibilidade papal por
que tiveram acesso a amplo material da história da Igreja que mostrava os papas
errando. Eles então desenvolveram a ideia de que a providência divina impedia
que toda a Igreja caísse em erro, mas, não que o papa fosse pessoalmente
infalível. Interessante notar que eles não conheciam o caso de Honório,
condenado como herege pelo Concílio Ecumênico de Constantinopla III, mas, eles acreditavam
na história de que Anastácio teria cedido, durante o cisma de Acácio (séculos V
e VI), à heresia monofisita.
O
decreto de Graciano foi a principal complicação da lei canônica da Igreja.
Dessa forma, é um documento de valor inestimável para nosso estudo. Importa mencionar que muitas falsificações foram
incluídas no decreto, quem seria mais tardes usadas para defender a
infalibilidade do papa, inclusive no Concílio Vaticano I (séc. XIX). Tierney demonstra
como passagens utilizadas para afirmar a infalibilidade no mencionado concílio
também foram utilizadas pelos canonistas, mas como um sentido diferente:
A primazia necessariamente
incluía um magistério infalível ao citar Lucas 22:32 (“Eu roguei por ti, para que a tua fé
não desfaleça”). Exatamente essa mesma justaposição de textos ocorre no Decretum
em Dist. 21 ante c. 1. Pastor aeternus
apresentou a fórmula do Papa Hormisdas: “Na sé apostólica, a religião católica
sempre foi mantida sem mancha” como evidência de que a infalibilidade papal
sempre havia sido ensinada pela Igreja. Graciano incluiu a mesma fórmula no Decretum junto com outros textos
afirmando que a Igreja Romana nunca havia errado “do caminho da tradição
apostólica”. Para os teólogos ultramontanos do século XIX, parecia evidente
que um católico que aceitasse esses textos escriturísticos e canônicos deveria
também aceitar a doutrina da infalibilidade papal. Os Decretistas medievais mostraram, porém, como uma eclesiologia
católica totalmente diferente poderia ser construída sobre a base dessas mesmas
passagens.
A chave para o
entendimento dessa eclesiologia decretista está na exegese conservadora e
inspirada nos Pais da Igreja de Lucas 22:32 feita pelos canonistas. Teóricos da infalibilidade papal da
Idade Média tardia em diante geralmente assumiram que a oração de Cristo por
Pedro tinha a intenção de garantir a fé infalível dos sucessores de Pedro no
papado. Os Decretistas não conheciam tal
interpretação. Um comentário típico é este de Hugucio:
“Que
tua fé não desfaleça” é entendido como significando de forma final e
irrevogável, pois, embora tenha falhado por um tempo, depois foi tornada mais
fiel. Ou na pessoa de Pedro entende-se a
Igreja, e na fé de Pedro a fé da Igreja universal, a qual nunca falhou como um
todo, nem falhará até o dia do juízo”.
Para Hugúcio e seus
contemporâneos, as palavras de Lucas 22:32 não conferiam qualquer dom de
infalibilidade ao próprio Pedro, muito menos aos pontífices subsequentes. Eles frequentemente notavam que a fé
de Pedro realmente “falhou por um tempo”
geralmente referindo-se à sua negação de Cristo após a última ceia".
(p. 34)
O
texto de Lucas 22:32 foi o principal trecho bíblico usado em apoio da doutrina,
mas, durante 1300 anos ninguém afirmou tal interpretação. Nenhum Pai da Igreja
ou qualquer outro teólogo do primeiro milênio defendeu tal interpretação. Os
canonistas também citavam o mesmo texto e já mencionada fórmula de Hormisdas,
mas, sem qualquer vinculação a doutrina que seria definida no século XIX.
“Eles também às vezes recordavam que Pedro havia errado em sua política
judaizante e que Paulo teve de repreendê-lo a esse respeito. De acordo com sua
interpretação, Cristo não prometeu a Pedro imunidade contra o erro em sua
liderança da Igreja, mas sim a graça da perseverança final na fé. Mesmo
que Lucas 22:32 tivesse sido aplicado aos sucessores de Pedro no papado, dificilmente poderia ter formado a base de
uma teoria de infalibilidade papal, desde que fosse entendido nesse sentido.
Mas, de fato, Hugúcio e seus
contemporâneos não aplicaram o texto aos sucessores de Pedro. Eles
reconheceram que duas interpretações eram possíveis. As palavras de Cristo poderiam ser tomadas como referentes apenas a
Pedro ou poderiam receber uma interpretação mais ampla. Mas, no último caso, referiam-se não aos futuros
papas, mas à fé da Igreja universal. Esta era a doutrina comum dos
Decretistas. Encontra-se repetidamente em suas obras e estava incluída na glossa ordinaria universalmente aceita de Johannes
Teutonicus. Além disso, quando os
Decretistas escreviam que a Igreja universal, ou a fé da Igreja, não iria
“falhar”, eles não estavam pensando em “infalibilidade” no sentido moderno, mas
em indestrutibilidade. A promessa de Cristo a Pedro era entendida
simplesmente como significando que a
Igreja sempre sobreviveria; significava que a verdadeira fé sempre viveria, ao
menos em algum pequeno remanescente, mesmo em uma era de apostasia em massa.
Isso é destacado mais claramente em outro comentário de Hugucio (sobre Mateus
16:18):
“As
portas do inferno” Vícios e pecado mortal... nunca prevalecerão de modo que não
haja boas pessoas na Igreja, motivo pelo qual Cristo disse a Pedro, como símbolo
da Igreja: “Eu roguei por ti para que a tua fé não desfaleça...” ou “portas do inferno” significam heresias
e cismas... que, do mesmo modo, nunca prevalecerão contra a Igreja de modo a
contaminá-la completamente”.
(p. 35)
Na
página 35 fica ainda mais evidente que eles não acreditavam na infalibilidade
da Igreja, mas na indefectibilidade ou indestrutibilidade da Igreja. Ou seja,
que ela nunca deixaria de existir. Ele cita Hugucio para afirmar justamente a
ideia de que um remanescente fiel sempre seria mantido. Especificamente sobre
Pedro, eles admitiam as duas interpretações: como se referindo a fé de Pedro ou
a Igreja representada em Pedro. Em ambas, não se aplicava ao sucessor de Pedro
(o bispo de Roma). Essa interpretação está de acordo com a visão protestante da
indefectibilidade da Igreja. Não há aqui a ideia bastante difundida hoje de que
a hierarquia visível da Igreja tivesse uma proteção absoluta contra o erro.
É evidente que os
canonistas medievais estavam se movendo em um clima de pensamento muito
diferente daquele dos teólogos ultramontanos do século XIX. Os
canonistas acreditavam que os papas podiam errar e erravam em sua capacidade
oficial como sumos pontífices (como no caso de Anastácio). Claro que os
teólogos modernos não negam que o papa possa errar. Mas, quando os teólogos
católicos precisam levar em conta os erros promulgados por papas como chefes da
Igreja, eles discriminam entre pronunciamentos oficiais infalíveis e
pronunciamentos oficiais não infalíveis. Os
canonistas medievais não conheciam tais distinções. Para eles, não havia
tentativa de distinguir entre o papa que poderia errar — e errava em qualquer
um de seus pronunciamentos, tanto quanto sabiam — e a Igreja universal, cuja fé
não poderia falhar. Ideias semelhantes à
doutrina moderna da infalibilidade papal simplesmente nunca lhes ocorreram.
(p. 38)
Os Canonistas sobre os
Papas e os Concílios
Além
de não considerarem o papa infalível, muitos canonistas consideram o concílio
superior ao papa para definir uma questão de fé:
“A
partir disso, vários deles [canonistas] tiraram a conclusão explícita de que, quando se tratava de questões de fé, um
concílio geral possuía uma autoridade intrinsecamente superior à de um papa
individual. Essa visão foi transmitida para a Idade Média tardia por João
Teutônico em um texto muito influente da glossa ordinaria:
“Parece
que o papa é obrigado a convocar um concílio de bispos, o que é verdadeiro
quando se trata de uma questão de fé, e
então um concílio é superior ao papa (15 dist. Sicut)”
(...)
[os canonistas] certamente consideravam os
cânones de um concílio, apoiados pelo consenso da Igreja, como um guia mais
seguro para as verdades da fé do que as declarações de um papa individual. (p.
46)
Tierney
prossegue articulando a visão dos canonistas sobre o papa e o concílio:
“No
que diz respeito à autoridade de um concílio geral, os Decretistas, em sua
maior parte, deixaram apenas indícios para que os pensadores conciliaristas
posteriores seguissem. Mas em um ponto importante que envolvia o papa, o
concílio e a defesa da verdadeira fé, eles se aprofundaram em detalhes
intrincados. Este era o problema de
depor um papa herege. Aqui, os Decretistas articularam de forma vívida
todos os argumentos conciliaristas (e anti-conciliaristas). Todos reconheciam que um papa poderia errar
na fé e todos concordavam que um papa que se tornasse um herege obstinado tinha
que ser de alguma forma deposto de sua posição”. (p. 49)
Nas
páginas 50 a 53, ele vai discutir as teorias que os canonistas criaram para
lidar com o papa herege. Três teorias: (1) não havia órgão judicial acima do
papa; (2) o concílio reunido juntamente com o papa era superior ao papa
individualmente; (3) o concílio agindo sem o papa poderia depor o herege.
“Alanos,
portanto, levou seu argumento um passo adiante. Se surgisse uma disputa entre o
papa e os membros de um concílio ou entre o papa e os cardeais sobre uma questão
de fé, então, segundo Alanos, a decisão
dos padres conciliares ou dos cardeais deveria ser preferida à do papa
(...) Dado que os cardeais ou bispos possuíam uma jurisdição superior à do papa no âmbito da doutrina da igreja, era possível argumentar que poderiam
condenar um papa por qualquer desvio da verdadeira fé sem necessidade de distinguir
entre uma heresia previamente condenada e uma nova. Esta foi a conclusão a que
Alanus chegou: “É verdade que, por este
único crime de heresia, um papa pode ser julgado mesmo contra sua própria
vontade. Isso ocorre porque, em questões que dizem respeito à fé, ele é
inferior ao colégio de cardeais ou a um concílio geral de bispos”. (p. 52)
A
citação de Alanos é muito clara no sentido de que o Concílio era superior ao
papa quando se tratava de doutrina. Tierney continua no mesmo assunto:
“Defensores
posteriores da doutrina da infalibilidade papal argumentaram que Deus não
poderia impor a todos os católicos a obrigação de obedecer ao papa e, ao mesmo
tempo, permitir que o papa errasse na fé.
Os canonistas argumentaram que, visto
que era evidente que um papa poderia errar, a obrigação de obedecer não poderia
ser incondicional (...) Como os canonistas não aderiam a uma doutrina de
infalibilidade papal, seria de se
esperar que a doutrina paralela da irreformabilidade também estivesse ausente
em suas obras. E de fato é o caso. Desenvolver
tal doutrina teria sido contrário à sua teoria jurídica de soberania com seu
princípio central — par in parem non habet imperium (um igual não tem poder
sobre outro igual). Os canonistas, é claro, acreditavam que certas verdades
de fé eram irreformáveis; mas essas eram verdades derivadas da Escritura e das
interpretações da Escritura apresentadas nos cânones dos concílios gerais, não
em pronunciamentos de pontífices individuais”. (p. 52-53)
Além
do princípio do direito romano de que o príncipe está isento das leis ou acima
delas, os canonistas também entendiam que um igual não tem poder sobre outro igual.
Isto implica não haver irreformabilidade em decretos papais, o que só era
possível por não haver uma noção de infalibilidade do papa.
Conclusão de Tierney sobre
os canonistas
“Não
havia uma doutrina estrita de irreformabilidade — como gerações posteriores
entenderiam o termo — nos escritos Decretistas. Como os canonistas acreditavam que os pronunciamentos doutrinários de
um papa poderiam estar errados e, portanto, precisariam ser corrigidos por um
papa posterior, eles não poderiam ter desenvolvido tal doutrina sem uma grave
contradição. Em todas as áreas de pensamento que consideramos, parece haver um abismo entre a eclesiologia
dos canonistas medievais e a eclesiologia do Concílio Vaticano I. Os
canonistas não apresentaram a Tradição
como uma fonte de revelação divina separada da Escritura. Eles não conheciam nenhum magistério
conferido a Pedro com o poder das chaves. Eles acreditavam que, em questões de fé, um concílio geral era
maior que o papa. Eles não
sustentavam que os pronunciamentos papais eram irreformáveis ex sese. Acima
de tudo, os canonistas não ensinavam que
o papa era infalível. Os textos que citamos, contrastando a fé infalível da
Igreja com a falibilidade dos pontífices individuais, parecem representar uma posição que era geralmente aceita. Nenhum
canonista, tanto quanto sabemos, ensinou
o contrário. Nem os teólogos, em
seus comentários muito mais escassos sobre tais questões, divergiam da doutrina
dos canonistas. A Igreja do século
XII simplesmente não acreditava que o papa “possuía aquela infalibilidade com a
qual o divino Redentor quis que sua Igreja fosse dotada”. (p. 57)
Encerramos
aqui esta primeira parte que explorou especialmente o testemunho dos canonistas
do século XII. Nos próximos dias, estaremos publicando a continuação desse
tema.
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