sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Infalibilidade Papal – Resumo do livro do Brian Tierney (Parte I)

 


A obra do medievalista católico Brian Tierney sobre a origem da doutrina da infalibilidade papal é considerada uma das maiores, se não a maior sobre o tema. O livro pode ser acessado aqui. Já temos um artigo sobre o tema, que pode ser visto aqui. A proposta é trazer um resumo desta importante pesquisa histórica que demonstra cabalmente a inovação desta doutrina católica romana. Publicaremos uma série de artigos nos próximos dias sobre o livro em questão. A tese principal de Tierney é que a infalibilidade papal é uma invenção do século XIII, que surgiu entre franciscanos radicais heterodoxos, tendo sido a princípio condenada pelo papa da ocasião. A doutrina só seria mais tarde aceita por papas e teólogos católicos porque se mostrou conveniente diante das ameaças do conciliarismo e do protestantismo.

Os problemas do apelo moderno à infalibilidade papal

Tierney explora no capítulo introdutório a falta de definição sobre quais declarações papais foram infalíveis. Ele afirma que há várias teorias contraditórias para identificar quando os papas decretaram algo infalivelmente e denuncia a arbitrariedade dos critérios usados:

“A única regra de interpretação consistente que podemos ter certeza de encontrar é esta: sempre que um teólogo discorda de algum ensinamento antigo ou de nova determinação de um papa, ele achará boas razões teológicas para decidir que aquele pronunciamento papal foi não infalível (...) Toda a moderna doutrina da infalibilidade, em sua forma “pickwickiana”, pode ser resumida no princípio geral: Todos os decretos infalíveis são certamente verdadeiros, mas nenhum decreto é certamente infalível. (p. 4)

Esta inclusive foi a estratégia adotada por alguns apologistas católicos a respeito da mudança recente da Igreja de Roma no ensino sobre a pena de morte. Sempre que há uma contradição, afirma-se a não infalibilidade daquele ensino, o que torna o apelo ao magistério “infalível” vazio. Diante disto, o autor documenta como Pio XII sentiu a necessidade de defender a obrigatoriedade do assentimento ao magistério ordinário na encíclica Humani Generis:

“Não se deve pensar que matérias propostas em cartas encíclicas não exijam, em si mesmas, o assentimento, porque (nas encíclicas) os pontífices não exercem o supremo poder do seu magistério. Pois essas coisas são ensinadas pelo magistério ordinário, ao qual também se aplica a expressão: ‘Quem vos ouve, a Mim ouve’.

Ele comenta este documento de Pio XII:

“A referência de Pio XII à autoridade do magistério ordinário levou alguns teólogos a insistir, mais uma vez, que o decreto do Concílio Vaticano I significa exatamente o que diz — que o papa é infalível sempre que se pronuncia sobre matérias de fé e moral “no exercício do ofício de pastor e doutor de todos os cristãos”. A dificuldade dessa posição é que os pronunciamentos papais, mesmo os dos papas modernos, às vezes se contradizem mutuamente (p.ex., no tema da tolerância religiosa). Por isso, alguns teólogos sustentam a infalibilidade dos decretos contemporâneos sem darem séria consideração à possibilidade de estes entrarem em conflito com decretos anteriores”. (p. 4)

Não é incomum ouvir católicos dizerem que papas não falam infalivelmente em encíclicas, mas isto é mera especulação. Diante das inúmeras contradições entre os decretos papais ao longo da história, Tierney elenca outra estratégia, além dessa abordagem de arbitrariamente definir o que é ou não infalível, que é basicamente reinterpretar decretos papais do passado a luz do ensino presente:

Outros teólogos, de modo ainda mais censurável (do ponto de vista de um historiador), criaram princípios hermenêuticos tão engenhosos que os documentos antigos jamais os comprometem. Aplicando tais princípios, podem reinterpretar qualquer pronunciamento doutrinário, independentemente do seu conteúdo real, para significar aquilo que julgarem que seus autores deveriam ter querido dizer. A doutrina infalível do passado permanece infalível, mas é despojada de todo conteúdo objetivo (...) O princípio geral que sustenta essa segunda grande abordagem ao problema da infalibilidade poderia resumir-se assim: “Todos os pronunciamentos infalíveis são irreformáveis — até que seja conveniente mudá-los”. Parece justo acrescentar que a maior parte dos teólogos católicos continua a optar por alguma versão da posição relativamente simples e direta, à maneira “pickwickiana”. Quando do Concílio Vaticano II, a teologia católica da infalibilidade já se havia tornado um emaranhado de paradoxos e evasões. Os teólogos haviam-se enredado num beco sem saída intrincado. (p. 5)

Ou seja, a outra abordagem é reinterpretar o passado a luz do presente, fazendo com que o dogma deixe ter qualquer conteúdo objetivo, estando a doutrina sempre aberta a novos significados. Já trouxemos neste blog a citação do teólogo católico Raymond Brown:

“Essencial para uma interpretação crítica dos documentos da igreja é a percepção de que a Igreja Católica Romana não altera sua posição oficial de forma direta. As declarações passadas não são rejeitadas, mas são citadas com elogios e depois reinterpretadas ao mesmo tempo. (Raymond Brown, “The Critical Meaning of the Bible” New York, NY: Paulist Press ©1981, Nihil Obstat and Imprimitur, page 18 footnote 41)

Infalibilidade versus Soberania

“Por vezes [os defensores modernos da infalibilidade] mostram-se até um pouco perplexos por não encontrarem a infalibilidade proclamada nos escritos dos papalistas mais radicais da Alta Idade Média — homens como Giles de Roma, James de Viterbo, Henry de Cremona, Agostinho Triunfo. Na verdade, as premissas que os historiadores habitualmente levaram em conta tornam toda a história antiga da infalibilidade papal ininteligível. A verdade é que os primeiros defensores da doutrina estavam muito mais interessados em limitar o poder do papa do que em ampliá-lo”. (p. 6)

A citação acima é relevante, pois, demonstra que os defensores mais radicais do absolutismo papal não viam uma conexão direta entre soberania e infalibilidade. É digno de nota o fato de que os mais ferrenhos defensores da jurisdição do papa nos séculos XII e XIII nada sabiam sobre a infalibilidade. Como veremos nos próximos artigos, os primeiros papas viram na infalibilidade uma limitação de sua soberania, pois os vincularia aos decretos papais anteriores.

O testemunho dos canonistas dos séculos XII-XIII

Os canonistas eram os estudiosos da lei canônica e foram responsáveis pela criação de uma espécie de jurisprudência da lei da Igreja. Eles serão de grande importância para o estudo da doutrina da infalibilidade porque produziram muitas discussões sobre a autoridade da Igreja, até mais do que teólogos escolásticos:

“O que pode ser provado é que nenhuma afirmação pública da infalibilidade do papa foi transmitida aos canonistas dos séculos XII e XIII, em cujas obras, pela primeira vez, abundantes fontes para a investigação de toda essa questão se tornaram disponíveis. Os comentadores do Decreto de Graciano conheciam todos os textos mais importantes — genuínos ou forjados — relativos à autoridade do papa e à indefectibilidade da Igreja Romana. Eles não associaram esses textos a nenhuma doutrina de infalibilidade papal. Eles não mostraram consciência de que qualquer um de seus predecessores tivesse jamais associado tais textos com essa doutrina. Nós argumentaremos que os teólogos do século XIII não poderiam ter derivado a doutrina da infalibilidade papal da tradição canônica da Igreja, porque a doutrina simplesmente não existia nos escritos dos canonistas”. (p. 12)

Uma das teses que veio a ser defendida por Dollinger é de que a doutrina da infalibilidade teria entrado na Igreja de Roma através dos canonistas que recepcionaram falsificações (principalmente pseudo-Isidoro) usadas para estabelecer o poder papal. Os teólogos posteriores, sob influência dos canonistas, teriam então recebido essa doutrina com origem em documento forjados. Tierney não apoia essa tese e argumenta de forma convincente que os canonistas nada sabiam sobre essa ideia.

Eles conheciam inclusive textos que falavam da indefectibilidade da fé de Roma: fórmula do papa Hormisdas do século VI (“na Sé Apostólica a religião católica foi sempre preservada imaculada”) e do papa Agatão do século VII (“desde o princípio, recebeu a fé cristã dos seus fundadores, os príncipes dos Apóstolos de Cristo, e permanece incontaminada até o fim”), mas não derivavam delas qualquer noção de infalibilidade do bispo romano.  De fato, até o século XIV, em meio a controvérsia com o conciliarismo, nenhum autor cristão enxergou nessas fórmulas qualquer evidência da infalibilidade papal, uma vez que estas fórmulas falam da fé da Igreja de Roma, e não do papa pessoalmente. Por isso, o apelo feito a estas fórmulas como evidência da infalibilidade no Concílio Vaticano I (séc. XIX) carecem de fundamentação histórica.

Os canonistas e a relação entre Escritura e Tradição

Tierney também discute a visão dos canonistas sobre a relação entre Tradição e Escritura. Ele documenta que, até o século XIII, a visão quase uníssona não referendava a ideia da tradição como um suplemento doutrinário (teoria das duas fontes). Ou seja, toda doutrina cristã estava necessariamente contida nas Escrituras:

Contudo, antes do século XIII, há poucos indícios em suas obras da visão de que a Tradição constituía uma fonte de revelação divina separada da Escritura (...) Quando os teólogos do século XII observavam — como às vezes faziam — que muitas coisas eram mantidas pela Igreja e não se encontravam nas Escrituras, pareciam ter em mente apenas costumes litúrgicos ou práticas piedosas. (p. 15-16)

Na página 31, Tierney afirma que não havia "o menor traço em suas obras [dos canonistas] da teoria das duas fontes". A chamada teoria das duas fontes ganharia impulso durante o período da Reforma e foi abraçada por teólogos como Melchior Cano como parte do esforço para combater o protestantismo. No entanto, ela encontra pouco apoio no período patrístico ou no período escolástico. É interessante notar que há um paralelo entra a teoria das duas fontes e a infalibilidade papal, pois, a necessidade de “autenticar” doutrinas que foral legadas apenas oralmente (sem suporte bíblico) deu impulso a ideia de que o papa poderia infalivelmente exercer esse papel autenticador. Os canonistas também não tinham qualquer noção sobre a irreformabilidade de decretos papais, o que implica numa visão não infalibilista:

“A essência de sua [dos canonistas] doutrina era que o papa poderia revogar leis antigas e fazer novas (...) Um papa poderia revogar as decisões de seus predecessores” (...) Ele [o papa] não estava vinculado por qualquer tradição concebida como uma fonte de revelação". (p. 30)

Como mencionado, a visão dos canonistas sobre a soberania papal incluía o fato de que eles não estavam subordinados aos decretos de seus antecessores.

Os Canonistas e a Infalibilidade da Igreja

Um ponto importante é que como os canonistas entendiam a ideia da infalibilidade da Igreja, sem qualquer noção de um privilégio pessoal concedido ao papa:

“Eles [os canonistas] discutiram repetidas vezes o problema de manter a fé inerrante da igreja e invariavelmente chegaram à conclusão de que o papa sozinho não poderia fornecer uma garantia adequada para a estabilidade dessa fé. “Seria perigoso demais confiar nossa fé ao julgamento de um único homem”, escreveu um deles. (Glossa Palatina ad Dist. 19 c. 9, “... periculosum erat fidem nostram committere arbitrio unius hominis). [Os canonistas aplicaram] em sentido disjuntivo, ou seja, implicando uma distinção entre toda a comunidade cristã, cuja fé nunca poderia falhar, e a pessoa de um papa individual, que era apenas um homem mortal e falível, e assim apenas um símbolo imperfeito da Igreja. Normalmente, eles explicavam que frases que descrevem uma “sé apostólica” ou “igreja romana” infalível só poderiam fazer sentido se fossem entendidas não como se referindo ao papa sozinho, mas a toda a congregação dos fiéis. Hugucio comentou sobre um texto (atribuído por Graciano ao papa Eusébio):

(A igreja apostólica nunca errou): Existe uma objeção relacionada a Anastácio. Mas talvez esse (papa) tenha vindo antes. Ou talvez, e isso é melhor, ele fale da fé da Igreja universal, que nunca errou. Pois, embora a Igreja de Roma às vezes tenha errado, isso não significa que a Igreja romana — entendida não como (apenas) o papa, mas como todos os fiéis, pois a Igreja é o conjunto dos fiéis — tenha errado. Se ela não existe em Roma, existe nas regiões da Gália ou onde quer que os fiéis estejam. A Igreja pode, de fato, deixar de ser, mas isso nunca acontecerá, pois foi dito a Pedro e, na pessoa de Pedro, à Igreja universal: ‘que a tua fé não desfaleça”. Em outro lugar, Hugucio escreveu: “Onde quer que haja cristãos fiéis, ali está a Igreja romana” (para outras expressões similares em Hugucio, veja Foundations, pp. 41-42; Summa Animal est substantia ad C. 24 q. 1 c. 9; Summa Omnis qui iuste ad C. 24 q. 1 c. 9 – “Pope and Council” pp. 214, 213).

Tais visões eram comumente expressas pelos Decretistas. Um canonista francês anônimo observou que a “Igreja romana” infalível era a “Igreja universal” e um autor inglês anônimo dizia que a Igreja não poderia errar simultaneamente “em seu corpo inteiro” (Glossa Palatina ad C. 24 q. 1 c. 9 – Foundations, pp. 43-44). Laurentius escreveu: “Embora o papa, que pode ser julgado por heresia, tenha errado, a Igreja romana ou Igreja católica — entendida como a congregação de católicos — não errou” (Appar. Iura naturali ad C. 24 q. 1 c. 6, citado por J. A. Watt, “The Early Medieval Canonists and the Formation of Conciliar Theory,” Irish Theological Quarterly, 24). De modo semelhante, Alain de Lille: “Mesmo que o papa tenha errado, a fé perdura na Igreja, que é a congregação dos católicos”. (p. 37)

O texto acima é muito importante pois traz vários exemplos de como os canonistas (ex. Alano e Huguccio) entendiam a ideia da infalibilidade da Igreja, ou da fé de Roma ou de que Roma não poderia errar. Eles entendiam como significando que a Igreja Universal (ou seja, toda a comunhão dos fiéis) não poderiam errar, embora, o papa individualmente poderia errar (ser herege). Há também a leitura que situa essa inerrância nos bispos, mas, a maioria se referia a toda a Igreja em comunhão com Roma. Eles não argumentavam que um cabeça infalível fosse necessária para sustentar a fé da Igreja. Ao contrário, afirmavam que, por mais que a cabeça pudesse errar, a providência divina sempre impediria que toda a Igreja fosse levada ao erro.

Os canonistas e a possibilidade do papa herege

Outro aspecto importante do nosso estudo é que os canonistas davam como certa a possibilidade de um papa herege. De fato, até os próprios papas reconheciam isto. O papa Inocêncio III (séc. XII) afirmou:

“Para esse fim, a fé me é tão necessária que, embora eu tenha como juiz somente a Deus pelos demais pecados, é unicamente por um pecado cometido contra a fé que posso ser julgado pela Igreja”. (Sermão 2, In Consecratione, publicado em Patrologia Latina 218:656, citado em Tierney, p. 24)

Na mesma página, Tierney afirma que para Alain de Lille, em caso de discordância do papa com os bispos ou a maioria deles numa matéria de fé, deveria prevalecer a opinião dos bispos.

Os canonistas foram levados a adotar essa atitude em parte pela natureza do material-fonte que formava a base de sua ciência. No grande compêndio de textos canônicos de Graciano, retirados de todos os períodos do passado da Igreja, eles não encontraram nenhuma afirmação de que papas individuais fossem infalíveis, mas encontraram vários casos de pontífices particulares acusados de terem pecado e errado em questões de fé. Graciano também incluiu no Decreto um texto afirmando que a imunidade do papa contra o julgamento humano não se estendia a casos em que ele fosse encontrado desviando-se da fé. O caso específico que mais atraiu atenção dos Decretistas dizia respeito ao Papa Anastácio II (496–498). Esse Anastácio foi um pontífice relativamente irrepreensível. Reinou numa época em que as igrejas de Roma e Constantinopla estavam divididas pelo cisma acaciano, que surgiu de uma variação tardia da heresia monofisita patrocinada pelo patriarca grego Acácio. Anastácio foi tão longe em tentar reconciliar os hereges que, segundo seus inimigos, terminou manchado pela heresia. Após a morte do papa, registraram no Liber Pontificalis que ele havia sido “ferido pela vontade divina” Graciano incorporou essa passagem ao Decreto e ela foi amplamente aceita durante a Idade Média como historicamente exata e canonicamente autoritativa. Os canonistas medievais nada sabiam sobre o Papa Honório (625–638), que realmente cometeu um grave erro ao lidar com os detalhes obscuros da controvérsia monotelita e cujo caso deu origem a intermináveis discussões nos debates do século XIX sobre a infalibilidade papal. Nos debates medievais, Anastácio servia como uma espécie de substituto de Honório. (Dante, de fato, encontrou um lugar para ele no Inferno). Embora os Decretistas medievais conhecessem casos de papas errantes, também tinham diante de si todo o conjunto de textos (genuínos e forjados) a partir dos quais a teoria posterior da infalibilidade papal seria construída. (p. 33)

Ou seja, os canonistas não desenvolveram uma teoria da infalibilidade papal por que tiveram acesso a amplo material da história da Igreja que mostrava os papas errando. Eles então desenvolveram a ideia de que a providência divina impedia que toda a Igreja caísse em erro, mas, não que o papa fosse pessoalmente infalível. Interessante notar que eles não conheciam o caso de Honório, condenado como herege pelo Concílio Ecumênico de Constantinopla III, mas, eles acreditavam na história de que Anastácio teria cedido, durante o cisma de Acácio (séculos V e VI), à heresia monofisita.

O decreto de Graciano foi a principal complicação da lei canônica da Igreja. Dessa forma, é um documento de valor inestimável para nosso estudo.  Importa mencionar que muitas falsificações foram incluídas no decreto, quem seria mais tardes usadas para defender a infalibilidade do papa, inclusive no Concílio Vaticano I (séc. XIX). Tierney demonstra como passagens utilizadas para afirmar a infalibilidade no mencionado concílio também foram utilizadas pelos canonistas, mas como um sentido diferente:

A primazia necessariamente incluía um magistério infalível ao citar Lucas 22:32 (“Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça”). Exatamente essa mesma justaposição de textos ocorre no Decretum em Dist. 21 ante c. 1. Pastor aeternus apresentou a fórmula do Papa Hormisdas: “Na sé apostólica, a religião católica sempre foi mantida sem mancha” como evidência de que a infalibilidade papal sempre havia sido ensinada pela Igreja. Graciano incluiu a mesma fórmula no Decretum junto com outros textos afirmando que a Igreja Romana nunca havia errado “do caminho da tradição apostólica”. Para os teólogos ultramontanos do século XIX, parecia evidente que um católico que aceitasse esses textos escriturísticos e canônicos deveria também aceitar a doutrina da infalibilidade papal. Os Decretistas medievais mostraram, porém, como uma eclesiologia católica totalmente diferente poderia ser construída sobre a base dessas mesmas passagens.

A chave para o entendimento dessa eclesiologia decretista está na exegese conservadora e inspirada nos Pais da Igreja de Lucas 22:32 feita pelos canonistas. Teóricos da infalibilidade papal da Idade Média tardia em diante geralmente assumiram que a oração de Cristo por Pedro tinha a intenção de garantir a fé infalível dos sucessores de Pedro no papado. Os Decretistas não conheciam tal interpretação. Um comentário típico é este de Hugucio:

“Que tua fé não desfaleça” é entendido como significando de forma final e irrevogável, pois, embora tenha falhado por um tempo, depois foi tornada mais fiel. Ou na pessoa de Pedro entende-se a Igreja, e na fé de Pedro a fé da Igreja universal, a qual nunca falhou como um todo, nem falhará até o dia do juízo”.

Para Hugúcio e seus contemporâneos, as palavras de Lucas 22:32 não conferiam qualquer dom de infalibilidade ao próprio Pedro, muito menos aos pontífices subsequentes. Eles frequentemente notavam que a fé de Pedro realmente “falhou por um tempo” geralmente referindo-se à sua negação de Cristo após a última ceia". (p. 34)

O texto de Lucas 22:32 foi o principal trecho bíblico usado em apoio da doutrina, mas, durante 1300 anos ninguém afirmou tal interpretação. Nenhum Pai da Igreja ou qualquer outro teólogo do primeiro milênio defendeu tal interpretação. Os canonistas também citavam o mesmo texto e já mencionada fórmula de Hormisdas, mas, sem qualquer vinculação a doutrina que seria definida no século XIX.

“Eles também às vezes recordavam que Pedro havia errado em sua política judaizante e que Paulo teve de repreendê-lo a esse respeito. De acordo com sua interpretação, Cristo não prometeu a Pedro imunidade contra o erro em sua liderança da Igreja, mas sim a graça da perseverança final na fé. Mesmo que Lucas 22:32 tivesse sido aplicado aos sucessores de Pedro no papado, dificilmente poderia ter formado a base de uma teoria de infalibilidade papal, desde que fosse entendido nesse sentido. Mas, de fato, Hugúcio e seus contemporâneos não aplicaram o texto aos sucessores de Pedro. Eles reconheceram que duas interpretações eram possíveis. As palavras de Cristo poderiam ser tomadas como referentes apenas a Pedro ou poderiam receber uma interpretação mais ampla. Mas, no último caso, referiam-se não aos futuros papas, mas à fé da Igreja universal. Esta era a doutrina comum dos Decretistas. Encontra-se repetidamente em suas obras e estava incluída na glossa ordinaria universalmente aceita de Johannes Teutonicus. Além disso, quando os Decretistas escreviam que a Igreja universal, ou a fé da Igreja, não iria “falhar”, eles não estavam pensando em “infalibilidade” no sentido moderno, mas em indestrutibilidade. A promessa de Cristo a Pedro era entendida simplesmente como significando que a Igreja sempre sobreviveria; significava que a verdadeira fé sempre viveria, ao menos em algum pequeno remanescente, mesmo em uma era de apostasia em massa. Isso é destacado mais claramente em outro comentário de Hugucio (sobre Mateus 16:18):

“As portas do inferno” Vícios e pecado mortal... nunca prevalecerão de modo que não haja boas pessoas na Igreja, motivo pelo qual Cristo disse a Pedro, como símbolo da Igreja: “Eu roguei por ti para que a tua fé não desfaleça...” ou “portas do inferno” significam heresias e cismas... que, do mesmo modo, nunca prevalecerão contra a Igreja de modo a contaminá-la completamente. (p. 35)

Na página 35 fica ainda mais evidente que eles não acreditavam na infalibilidade da Igreja, mas na indefectibilidade ou indestrutibilidade da Igreja. Ou seja, que ela nunca deixaria de existir. Ele cita Hugucio para afirmar justamente a ideia de que um remanescente fiel sempre seria mantido. Especificamente sobre Pedro, eles admitiam as duas interpretações: como se referindo a fé de Pedro ou a Igreja representada em Pedro. Em ambas, não se aplicava ao sucessor de Pedro (o bispo de Roma). Essa interpretação está de acordo com a visão protestante da indefectibilidade da Igreja. Não há aqui a ideia bastante difundida hoje de que a hierarquia visível da Igreja tivesse uma proteção absoluta contra o erro.

É evidente que os canonistas medievais estavam se movendo em um clima de pensamento muito diferente daquele dos teólogos ultramontanos do século XIX. Os canonistas acreditavam que os papas podiam errar e erravam em sua capacidade oficial como sumos pontífices (como no caso de Anastácio). Claro que os teólogos modernos não negam que o papa possa errar. Mas, quando os teólogos católicos precisam levar em conta os erros promulgados por papas como chefes da Igreja, eles discriminam entre pronunciamentos oficiais infalíveis e pronunciamentos oficiais não infalíveis. Os canonistas medievais não conheciam tais distinções. Para eles, não havia tentativa de distinguir entre o papa que poderia errar — e errava em qualquer um de seus pronunciamentos, tanto quanto sabiam — e a Igreja universal, cuja fé não poderia falhar. Ideias semelhantes à doutrina moderna da infalibilidade papal simplesmente nunca lhes ocorreram. (p. 38)

Os Canonistas sobre os Papas e os Concílios

Além de não considerarem o papa infalível, muitos canonistas consideram o concílio superior ao papa para definir uma questão de fé:

“A partir disso, vários deles [canonistas] tiraram a conclusão explícita de que, quando se tratava de questões de fé, um concílio geral possuía uma autoridade intrinsecamente superior à de um papa individual. Essa visão foi transmitida para a Idade Média tardia por João Teutônico em um texto muito influente da glossa ordinaria:

“Parece que o papa é obrigado a convocar um concílio de bispos, o que é verdadeiro quando se trata de uma questão de fé, e então um concílio é superior ao papa (15 dist. Sicut)”

(...) [os canonistas] certamente consideravam os cânones de um concílio, apoiados pelo consenso da Igreja, como um guia mais seguro para as verdades da fé do que as declarações de um papa individual. (p. 46)

Tierney prossegue articulando a visão dos canonistas sobre o papa e o concílio:

“No que diz respeito à autoridade de um concílio geral, os Decretistas, em sua maior parte, deixaram apenas indícios para que os pensadores conciliaristas posteriores seguissem. Mas em um ponto importante que envolvia o papa, o concílio e a defesa da verdadeira fé, eles se aprofundaram em detalhes intrincados. Este era o problema de depor um papa herege. Aqui, os Decretistas articularam de forma vívida todos os argumentos conciliaristas (e anti-conciliaristas). Todos reconheciam que um papa poderia errar na fé e todos concordavam que um papa que se tornasse um herege obstinado tinha que ser de alguma forma deposto de sua posição”. (p. 49)

Nas páginas 50 a 53, ele vai discutir as teorias que os canonistas criaram para lidar com o papa herege. Três teorias: (1) não havia órgão judicial acima do papa; (2) o concílio reunido juntamente com o papa era superior ao papa individualmente; (3) o concílio agindo sem o papa poderia depor o herege.

“Alanos, portanto, levou seu argumento um passo adiante. Se surgisse uma disputa entre o papa e os membros de um concílio ou entre o papa e os cardeais sobre uma questão de fé, então, segundo Alanos, a decisão dos padres conciliares ou dos cardeais deveria ser preferida à do papa (...) Dado que os cardeais ou bispos possuíam uma jurisdição superior à do papa no âmbito da doutrina da igreja, era possível argumentar que poderiam condenar um papa por qualquer desvio da verdadeira fé sem necessidade de distinguir entre uma heresia previamente condenada e uma nova. Esta foi a conclusão a que Alanus chegou: “É verdade que, por este único crime de heresia, um papa pode ser julgado mesmo contra sua própria vontade. Isso ocorre porque, em questões que dizem respeito à fé, ele é inferior ao colégio de cardeais ou a um concílio geral de bispos”. (p. 52)

A citação de Alanos é muito clara no sentido de que o Concílio era superior ao papa quando se tratava de doutrina. Tierney continua no mesmo assunto:

“Defensores posteriores da doutrina da infalibilidade papal argumentaram que Deus não poderia impor a todos os católicos a obrigação de obedecer ao papa e, ao mesmo tempo, permitir que o papa errasse na fé. Os canonistas argumentaram que, visto que era evidente que um papa poderia errar, a obrigação de obedecer não poderia ser incondicional (...) Como os canonistas não aderiam a uma doutrina de infalibilidade papal, seria de se esperar que a doutrina paralela da irreformabilidade também estivesse ausente em suas obras. E de fato é o caso. Desenvolver tal doutrina teria sido contrário à sua teoria jurídica de soberania com seu princípio central — par in parem non habet imperium (um igual não tem poder sobre outro igual). Os canonistas, é claro, acreditavam que certas verdades de fé eram irreformáveis; mas essas eram verdades derivadas da Escritura e das interpretações da Escritura apresentadas nos cânones dos concílios gerais, não em pronunciamentos de pontífices individuais”. (p. 52-53)

Além do princípio do direito romano de que o príncipe está isento das leis ou acima delas, os canonistas também entendiam que um igual não tem poder sobre outro igual. Isto implica não haver irreformabilidade em decretos papais, o que só era possível por não haver uma noção de infalibilidade do papa.

Conclusão de Tierney sobre os canonistas

“Não havia uma doutrina estrita de irreformabilidade — como gerações posteriores entenderiam o termo — nos escritos Decretistas. Como os canonistas acreditavam que os pronunciamentos doutrinários de um papa poderiam estar errados e, portanto, precisariam ser corrigidos por um papa posterior, eles não poderiam ter desenvolvido tal doutrina sem uma grave contradição. Em todas as áreas de pensamento que consideramos, parece haver um abismo entre a eclesiologia dos canonistas medievais e a eclesiologia do Concílio Vaticano I. Os canonistas não apresentaram a Tradição como uma fonte de revelação divina separada da Escritura. Eles não conheciam nenhum magistério conferido a Pedro com o poder das chaves. Eles acreditavam que, em questões de fé, um concílio geral era maior que o papa. Eles não sustentavam que os pronunciamentos papais eram irreformáveis ex sese. Acima de tudo, os canonistas não ensinavam que o papa era infalível. Os textos que citamos, contrastando a fé infalível da Igreja com a falibilidade dos pontífices individuais, parecem representar uma posição que era geralmente aceita. Nenhum canonista, tanto quanto sabemos, ensinou o contrário. Nem os teólogos, em seus comentários muito mais escassos sobre tais questões, divergiam da doutrina dos canonistas. A Igreja do século XII simplesmente não acreditava que o papa “possuía aquela infalibilidade com a qual o divino Redentor quis que sua Igreja fosse dotada”. (p. 57)

Encerramos aqui esta primeira parte que explorou especialmente o testemunho dos canonistas do século XII. Nos próximos dias, estaremos publicando a continuação desse tema.

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