Após termos lidado com a evidência dos canonistas, em que ficou demonstrado o desconhecimento da doutrina da infalibilidade no período do século XII, vamos abordar a evidência do século XIII, quando surge o primeiro teólogo católico em toda a história da Igreja a defender tal doutrina: Pedro Olivi, um franciscano radical que defendia ideias heterodoxas, tendo sido visto como um herege por muitos de seu tempo.
Tomás de Aquino e a
infalibilidade
Contudo,
antes de falarmos de Pedro Olivi, é importante trazer os comentários de Tierney
sobre Tomás de Aquino, que foi posteriormente contado de forma equivocada como
um defensor da infalibilidade:
“A
posição de Tomás de Aquino não era significativamente diferente da de
Boaventura. Os estudiosos modernos, de Döllinger a Küng, que apontaram que
defensores posteriores da infalibilidade papal frequentemente apelavam à
autoridade de São Tomás, estão corretos, é claro. Mas está longe de estar claro
que os teólogos posteriores estivessem interpretando Tomás corretamente. Na
verdade, ele reivindicava praticamente
todo poder concebível para o papa em assuntos da Igreja — exceto a
infalibilidade. Os textos relevantes foram apresentados por R. Bianchi, De
constitutione monarchica ecclesiae et de infallibilitate Romani pontificis
juxta S. Thomam (Roma, 1870). Nenhum
deles realmente afirmava que o papa era infalível. Os loci principais em
São Tomás são a Summa Theologiae, IIa-IIae, q. 1, art. 10, o Contra errores
Graecorum e Quodlibet 9 q. 8. O último texto foi especialmente enfatizado por
estudiosos que consideram Tomás como um expoente da infalibilidade papal. Aí
ele argumentava que a Igreja universal não poderia errar na fé, que competia ao
papa determinar as questões de fé e que, portanto, as sentenças judiciais do
papa em tais questões deveriam ser preferidas às opiniões de qualquer doutor
privado. Mas isso é exatamente a doutrina
dos decretistas do século XII. E já vimos que, para eles, a doutrina de modo
algum implicava a infalibilidade do papa. Döllinger estava absolutamente certo ao apontar que o ensino de São
Tomás era essencialmente o mesmo que o dos canonistas precedentes. O ponto é
que os canonistas nunca ensinaram uma doutrina de infalibilidade papal”.
(p. 95)
Como
vimos no artigo anterior, a ideia de que a Igreja universal não poderia errar
na fé não implicava que o papal individualmente não poderia errar. Tomás de
Aquino e os Canonistas aplicavam essa incapacidade de erro da Igreja ao corpo
inteiro dos fiéis ou ao Concílio dos bispos e não ao papa individualmente.
Desta forma, é digno de nota que talvez o maior teólogo da Igreja de Roma,
embora tenha, sob a influência de documentos espúrios como os Pseudo decretos
de Isidoro e um grande número de interpolações nos Pais da Igreja, acreditado
na autoridade suprema do papa, parece, no entanto, ter desconhecido, ainda no
século XIII, a infalibilidade papal. Segue abaixo o texto mais importante de
Aquino sobre o tema:
“A Igreja universal não pode errar em
matéria de fé. Portanto, as sentenças do Papa, que é seu chefe visível,
devem ser preferidas às opiniões privadas de qualquer mestre, embora isso não signifique que o Papa seja
infalível por si mesmo, mas sim que atua em comunhão com a Igreja como sua
cabeça”. (Quodlibet 9, Questão 8)
O Concílio de Lyon e a
tentativa de reunião com os Orientais
Interessa
observar que Aquino foi contemporâneo da tentativa de reunião com a Igreja
Grega, o que culminaria com a fracassada tentativa empreendida no Concílio de
Lyon (1274). Este período acompanhou um grande aumento do interesse dos
teólogos pelo papado, haja vista ser um obstáculo para a Igreja Grega. Ainda
assim, num contexto tão propício, não houve qualquer discussão sobre a
infalibilidade papal, nem defesa da doutrina pelos teólogos latinos que estavam
ávidos em afirmar a autoridade papa, o que demonstra que eles desconheciam esta
ideia. Tierney documenta:
“Outro
fator que estimulou um novo interesse pela eclesiologia entre os teólogos deste
período foi a tentativa de reconciliação com a Igreja Grega, que levou à
fracassada união de 1274. Mas os debates com os gregos nunca chegaram a se
concentrar precisamente na questão da infalibilidade. Como os próprios doutores latinos não acreditavam na infalibilidade
papal, os gregos naturalmente não foram obrigados a subscrever a tal doutrina.
O decreto de união com os gregos simplesmente repetia a antiga afirmação
canônica de que o papa era o juiz supremo em questões de fé”. (p. 58)
A “nova revelação” de
Francisco de Assis e a contribuição de Boaventura
A
questão central está na defesa da pobreza evangélica pelos franciscanos
espirituais. Este grupo tinha ideias escatológicas sobre Francisco de Assis,
alguns até mesmo o vendo como portador de uma nova revelação (algo que ecoava
Joaquim de Fiore) e consideravam o estilo de vida franciscano como aquele que
foi praticado por Jesus e os apóstolos. Esta doutrina foi resistida por vários
setores da Igreja que a viam como uma inovação:
“A
principal “nova tradição” que Guilherme atacou
foi a doutrina franciscana da “pobreza absoluta”, a alegação de que a renúncia
à dominação, “individualmente e em comum”, era essencial à mais alta forma de
perfeição cristã. Após apresentar todos os argumentos bíblicos contra a posição
franciscana, ele concluiu: “É evidente que tais tradições podem ser chamadas de
“superstição” pelo fato de não terem sido transmitidas a nós pelo Senhor Jesus
Cristo, nem por seus Apóstolos, nem pelos Santos Concílios, nem pelos escritos
canônicos dos Santos Doutores, mas foram introduzidas por alguns recém-chegados
por sua própria conta...”. Esta é uma declaração muito clara de uma maneira
predominante de pensar. A tradição
válida era o ensinamento transmitido na Escritura ou nos cânones dos concílios
ou nos escritos dos Pais da Igreja. A antiguidade era um critério essencial de
uma Tradição válida. A novidade era
sua antítese. (p. 72-73)
Ou
seja, não havia espaço para “desenvolvimento” da doutrina neste período. A
antiguidade era um critério fundamental para validar o que era a verdadeira
tradição. Além disso, havia neste período uma identidade material entre o
ensino dos pais e dos concílios com a Escritura. A doutrina franciscana era
objetável por não atender ao critério de antiguidade. A este respeito,
Boaventura foi um importante franciscano a defender a posição do grupo diante
de tais ataques:
“É
claro que os Franciscanos indignadamente negaram que suas “novas tradições”
fossem contrárias à Escritura e tentaram sempre que possível encontrar
evidências patrísticas para apoiar suas interpretações de textos bíblicos
específicos. Mas, em última análise, eles
não puderam negar e não desejaram negar que São Francisco havia introduzido uma
compreensão radicalmente nova da verdade cristã na vida da igreja.
Boaventura, de fato, aceitou a acusação de Guilherme de St. Amour de que os Franciscanos eram expoentes de
uma “nova tradição” e se orgulhou do fato de que Deus lhes havia dado tal papel.
Ao defender essa posição, ele foi levado a desenvolver uma tese que teria
importância considerável para teorias posteriores de autoridade papal. Ele sustentava consistentemente que os
ensinamentos atuais da igreja poderiam fornecer um guia infalível para as
verdades da fé que Cristo havia revelado aos primeiros apóstolos — mesmo quando não havia uma justificativa
óbvia para esses ensinamentos em fontes antigas. Toda a lógica da posição franciscana exigia o desenvolvimento de tal
teoria, e eventualmente alguns dos frades chegariam a acreditar que também
precisavam de uma teoria da infalibilidade papal para complementá-la. Seus
argumentos — que às vezes eram
essencialmente semelhantes aos argumentos modernos sobre o desenvolvimento da
doutrina, mas por vezes altamente excêntricos — poderiam ser usados tanto
para justificar suas interpretações da Escritura quanto para reivindicar para tradições extra-escriturísticas (mesmo
recentes) a mesma validade dogmática que os ensinamentos da própria Escritura.
Ambos os desenvolvimentos foram sugeridos nos escritos de São Boaventura”. (p.
73)
Como
visto no artigo anterior sobre os canonistas, eles acreditavam que toda
doutrina da Igreja estava contida na Escritura (ainda não havia emergido a
ideia da tradição como suplemento doutrinário). Um fator importante no
desenvolvimento da infalibilidade foi justamente o surgimento dessas ideias de
novas revelações ou de doutrinas sem suporte da Escritura, o que exigia um
autenticador: o papa. Chama atenção como esses dois equívocos teológicos
caminharam juntos em seu desenvolvimento: a tradição suplementar ou nova
revelação e o autenticador infalível (o papa). Embora Boaventura tenha tido um
papel precursor na controvérsia que faria surgir a ideia da infalibilidade
papal, Tierney não o reconhece Boaventura como um proponente da doutrina. Este
papel caberia a outro teólogo franciscano: Pedro Olivi.
Pedro Olivi: o primeiro a
defender a infalibilidade
A
doutrina da pobreza franciscana encontrou grande apoio na bula Exiit do Papa
Nicolau III. Obviamente, isto foi recebido com grande entusiasmo pelos
franciscanos e dentre eles estava Pedro Olivi:
Os ensinamentos de Olivi
foram condenados pela primeira vez durante o generalato de Jerônimo de Ascoli
(1274–1279), que mais tarde se tornou o Papa Nicolau IV. Essa censura (que dizia respeito a
certos ensinamentos de Olivi sobre a Virgem Santíssima) parece ter sido uma
questão trivial que não prejudicou seriamente a reputação de Olivi, pois, em
1279, ele foi um dos mestres
franciscanos consultados por uma comissão papal envolvida na elaboração da bula
Exiit, que já mencionamos anteriormente na discussão sobre o crescimento das
ideias franciscanas de pobreza apostólica. Essa bula, promulgada por Nicolau III em agosto de 1279, foi recebida por
Olivi com a mais calorosa aprovação e, de fato, seu entusiasmo por ela foi um
fator importante na formação de sua atitude em relação à autoridade da Sé
Romana pelo resto de sua vida. Na Exiit, o Papa Nicolau III não apenas aprovou
o modo de vida franciscano, como seus predecessores haviam feito. Pela primeira vez, ele o afirmou como um
ensinamento oficial da Igreja Romana: a afirmação dos franciscanos de que seu
modo de vida era o próprio caminho de perfeição que Cristo havia revelado aos
apóstolos. Exiit foi um documento de grande importância nos debates
posteriores sobre a infalibilidade papal. Assim, apresentaremos aqui suas
principais disposições. Sobre a pobreza franciscana, o papa declarou:
“Agora,
visto que esta regra expressamente determina que os frades não devem apropriar
nada para si... e como foi decretado por nosso predecessor Gregório IX... que
eles devem observar isso tanto individualmente quanto em comum... vemos que a renúncia à propriedade em todas
as coisas desta forma, não apenas individualmente, mas também em comum por
causa de Deus, é meritória e santa e que
Cristo, mostrando o caminho da perfeição, confirmou-a por sua palavra e
exemplo, e que os primeiros fundadores da Igreja militante, desejando viver
perfeitamente, buscaram dela a sua fonte.”
Além
disso, Exiit afirmou especificamente que
a Regra Franciscana foi diretamente inspirada pelo Espírito Santo, uma
visão que Olivi sustentava com intensa paixão:
“Esse
é o caminho da vida religiosa, puro e imaculado diante de Deus, o Pai, que,
descendo do Pai das luzes, foi transmitido por seu Filho aos apóstolos por
palavra e exemplo, e finalmente
inspirado no bem-aventurado Francisco e seus seguidores pelo Espírito Santo,
contendo, por assim dizer, o testemunho de toda a Trindade em si mesmo...”
(p. 98-99)
Dessa
forma, os franciscanos tinham aqui um decreto papal que afirma a pobreza
evangélica como uma doutrina. Tierney passa então a documentar o pensamento de
Olivi:
“Antes
de abordar a Quaestio sobre a infalibilidade, é necessário considerar alguns
princípios fundamentais da eclesiologia de Olivi. Sua teologia da Igreja
baseava-se em três temas também centrais para Boaventura: a revelação progressiva do sentido interior da Sagrada Escritura ao
longo das eras da Igreja; a importância suprema de São Francisco de Assis nesse
processo; e a necessidade de um magistério papal para validar novas revelações
da verdade divina. Ao discutir a autoridade de ensino do papa, Olivi
utilizava os termos magisterium e magistralis em um sentido próximo ao dos
teólogos modernos”. (p. 109)
O
cenário estava montado. Um papa havia referendado a doutrina franciscana, mas,
Olivi acreditava que um antipapa poderia no futuro querer reverter este ensino:
Olivi
acreditava que o papa, como árbitro supremo da fé, havia recentemente autenticado uma nova revelação do Espírito Santo
destinada a remodelar toda a vida da Igreja. Ele também acreditava na vinda
de um pseudo-papa herético que atacaria essa revelação, não como uma mera
possibilidade abstrata, mas como uma
calamidade iminente, uma ameaça real à vida da Igreja. (p. 114)
A
partir disso, Olivi desenvolve a infalibilidade papal para proteger o decreto
expedido na Bula Exiit de Nicolau III. Seria o instrumento para preservar esta
novação revelação que poderia ser posta em risco por um futuro pseudo-papa:
O
poder do papa, escreveu ele, dependia de Cristo e estava sujeito às leis de
Cristo. Mas, “As leis de Cristo não são
apenas aquelas que Ele expressou na Sagrada Escritura, mas também aquelas que
Ele gravou nos corações dos fiéis por meio do Espírito Santo.” Para Olivi, a Regra Franciscana era como um outro
Evangelho — não substituindo o antigo, mas
completando-o ao revelar seu sentido mais íntimo. Assim, ela possuía uma
importância cósmica ao abrir caminho para que a Igreja avançasse para o seu
estado final de perfeição. A relevância
de tudo isso para o ensinamento de Olivi sobre infalibilidade, é claro, está no
fato de que a Regra obtinha sua autoridade canônica a partir da confirmação dos
papas. (p. 111)
Como
dependia do papa a autenticação desta nova revelação, segue-se que o decreto
papal deveria ser infalível, a fim de preservar a doutrina da pobreza
franciscana. Isto fica claro na citação a seguir do próprio Olivi:
"...
não haveria nova explicação na santa Igreja de Deus — cada vez mais ao longo do
tempo — das sublimes verdades da fé católica. O oposto disso podemos provar
através de todo o progresso da Igreja. Assim,
neste século XIII da encarnação de Cristo floresceu, em Francisco e em seu modo
de vida (status), uma regra e ordem evangélica, introduzida por meio da
mediação da Sé Romana e de seu poder papal." (Dollinger, p. 539)
Toda
esta necessidade de autenticar um ensino inovador e heterodoxo levou Olivi a
formular pela primeira vez na história a doutrina da infalibilidade papal.
Segue citação de Olivi:
“É
impossível que Deus conceda a qualquer um toda a autoridade para decidir todas
as dúvidas relativas à fé e à lei divina, com
a condição de que Ele permitiria que esse alguém errasse. E qualquer um
que, concordamos, não está autorizado a
errar deve ser seguido como uma regra infalível. Mas Deus concedeu essa
autoridade ao pontífice romano, como está dito no Dist. 17, c. 5 (do Decreto),
que ‘questões maiores e mais difíceis devem ser referidas à Sé Apostólica”. (p.
116)
Percebam
como a natureza do argumento é semelhante ao que vemos hoje: a autoridade papal
requeria também a infalibilidade. Ocorre que esse raciocínio encontra um lapso
de 12 séculos de história, na qual ninguém jamais fez tal associação.
“É
evidente que, em vários aspectos, a discussão de Olivi antecipou os modos pelos quais a doutrina da infalibilidade papal
se desenvolveria nos séculos seguintes. A frase que ele usava para definir
a esfera dentro da qual o papa era infalível — “em fé e moral” — é a mesma empregada na definição do século XIX do
Concílio Vaticano I. Sua afirmação de que um homem estabelecido por Deus
como juiz supremo em questões de fé deve ser considerado como inerrante em seus
julgamentos, sua aplicação do texto “Ego
rogavi pro te Petre...” às pessoas de Pedro e seus sucessores, sua insistência em uma ligação necessária
entre a indefectibilidade da fé da Igreja e a inerrância das declarações
doutrinais feitas por sua cabeça — tudo isso se tornaria lugar-comum dos
apologistas ultramontanos em tempos posteriores. No entanto, ao final de
seu argumento, Olivi parece ter estado
formando uma conclusão radicalmente diferente da dos defensores modernos da
infalibilidade papal. Suas últimas sentenças indicam sua plena consciência
da complexidade do problema que havia proposto. Para Olivi, não era suficiente distinguir entre as
capacidades privadas e públicas do papa, sustentando que um papa poderia errar
em suas opiniões pessoais, mas não em seus pronunciamentos “magistrais”,
porque sempre restava a possibilidade de que a pessoa que emitia um
pronunciamento magistral da cátedra papal
pudesse ser um papa “apenas em nome e aparência”. Nem essa dificuldade
poderia ter sido resolvida pela invenção de uma classe especial de decretos
ultra-oficiais oriundos de um “magistério extraordinário” (para usar a
linguagem da teologia moderna). Em última análise, o homem que alegasse exercer tal autoridade poderia não ser o
verdadeiro papa em quem tal autoridade realmente residia”. (p. 121-122)
Destaca-se
que ele é o primeiro autor cristão na história a interpretar Lucas 22:32 (“roguei
por ti, para que a tua fé não desfaleça”) como um texto da infalibilidade do
bispo de Roma. Este se tornaria o texto prova principal da doutrina da
infalibilidade nos séculos seguintes, mas, trata-se de uma interpretação sem
qualquer fundamento na tradição da Igreja. Além disso, ele também foi o
primeiro a defender que a indefectibilidade da Igreja levava a infalibilidade
de seu cabeça. Outro aspecto importante da inovação de Olivi é que ele nunca
apelou a qualquer tradição histórica ou autor mais antigo a fim de validar sua
doutrina da infalibilidade papal. Como visto, o desenvolvimento desta ideia se
deu no meio de um grupo que estava frequentemente apelando a novas revelações
ou novos significados da Escritura até então desconhecidos. Dessa forma, eles
não fizeram nenhum esforço em demonstrar a infalibilidade papal na história da
Igreja, pois todo o projeto encapsulava em si a defesa de algo até então
desconhecido.
Tierney
aponta que Olivi e não Boaventura foi o primeiro a defender tal ideia porque o
primeiro estava obcecado com a possibilidade de um falso papa. De fato, há
muitos ecos de Olivi no moderno movimento sedevacantista. Como um falso papa
poderia reverter o ensino de Nicolau III, era necessário limitar o poder dos
futuros papas, e foi exatamente esta necessidade a principal catalisadora do
aparecimento da infalibilidade papal. Tierney demonstra como isto era
totalmente contrário ao pensamento da época, em que os canonistas e teólogos
estavam defendendo a soberania papal, ou seja, uma expansão e não limitação de
poder do papa presente:
“Para
Olivi, a Regra era autenticada por
decretos papais do passado, mas não poderia ser alterada por decretos futuros
da mesma autoridade. Vista do ponto de vista do direito canônico
tradicional sobre a soberania papal, essa
posição era simplesmente sem sentido. Dada a suposição da infalibilidade
papal, porém, torna-se claro e até
razoável para ele que, por essa teoria, os decretos anteriores reconhecendo que
a vida de Francisco era o caminho de Cristo e dos apóstolos poderiam ser vistos
como estabelecendo um “dogma autêntico” que era vinculativo para papas futuros”.
(p. 127)
Tierney
já havia demonstrado a incompatibilidade da nova ideia com o pensamento dos
canonistas e teólogos papalistas contemporâneos de Olivi.
“Os canonistas queriam manter a máxima liberdade
de ação para o papado diante das necessidades mutáveis da Igreja, e por isso enfatizavam a ampla autoridade
discricionária do papa como juiz supremo e legislador. Olivi queria
diminuir a capacidade dos futuros ocupantes da Sé Romana de ferir a Igreja. Por
isso, insistiu na infalibilidade — e
consequente irreformabilidade — das decisões doutrinais já estabelecidas por
papas anteriores. A nova teoria da
infalibilidade papal foi projetada para limitar o poder dos papas futuros, não
para liberá-los de todas as restrições”. (p. 120)
A heterodoxia de Pedro
Olivi
Além
do caráter inovador da infalibilidade, é digno de nota que Pedro Olivi não era
visto como teólogo ortodoxo no período aqui analisado (séculos XIII-XIV).
Também depõe contra a doutrina o fato de não ter surgido entre teólogos de peso
da Igreja de Roma, mas sim em grupos marginais e vistos como suspeitos dentro
da Igreja:
Os
ataques mais graves à ortodoxia de Olivi vieram após sua morte. Em 1299, um
novo ministro-geral, João de Murrovalle (indicado por Bonifácio VIII), ordenou queimar todos os escritos de Olivi.
No Concílio de Viena (1311), os líderes
da Comunidade fizeram os esforços mais veementes para obter uma condenação
solene dos trabalhos de Olivi. Após uma investigação elaborada, o Concílio afirmou como heréticas três
proposições que Olivi teria sustentado (...) Quando o papado se voltou
decisivamente contra os Franciscanos Espirituais, durante o pontificado de João
XXII, tornou-se fácil desacreditar a
obra de Olivi. Mais uma vez, em 1319, o
ministro-geral (agora Miguel de Cesena) condenou todos os seus escritos. No
mesmo ano, uma comissão de teólogos, apontada pelo papa, denunciou inúmeros
erros nos Lectura de Olivi e no Apocalypse, sua última grande obra, concluída
em 1297. A acusação fundamental era que Olivi havia rejeitado totalmente a
autoridade da Igreja Romana, chamando o papado de “a prostituta da Babilônia”. O Lectura de Olivi foi finalmente condenado
por João XXII em 1326. (p. 100-101)
Isto
introduz um novo personagem na história da doutrina: o papa XXII. Ele não
apenas condenaria Olivi e os franciscanos espirituais como hereges, mas
atacaria a própria ideia de infalibilidade em si.
João XXII – o papa que
condenaria a infalibilidade papal
João
XXII seria o papa que iria revogar a bula Exiit de Nicolau III, indo contra os
franciscanos radicais:
“Durante
o pontificado do Papa João XXII (1313-1334), a doutrina da infalibilidade papal
de Pietro Olivi foi vigorosamente revivida e reafirmada. Essa reafirmação da
doutrina, como a formulação original de Olivi, surgiu no decorrer de uma
disputa complexa sobre a pobreza franciscana. Em 1322, João XXII empreendeu
revogar as disposições do decreto Exiit de Nicolau III, que havia regulado a
vida da ordem franciscana desde 1279. Então, em 1323, ele promulgou uma nova declaração dogmática a respeito da
pobreza de Cristo e dos apóstolos. Os líderes dos franciscanos sustentaram que
a doutrina contida em Exiit era intrinsecamente irreformável. A partir dessa
afirmação, eles avançaram para uma teoria de infalibilidade papal baseada em
uma interpretação inovadora do poder petrino das “chaves”. O Papa João XXII
ressentiu-se fortemente da imputação de
infalibilidade ao seu cargo — ou, pelo menos, aos seus predecessores. A teoria da infalibilidade proposta por
seus adversários era uma “doutrina pestilenta”, declarou ele; e a princípio
parecia inclinado a rejeitar toda a ideia como uma “audácia perniciosa”. (p.
171)
Os
franciscanos apelaram a infalibilidade a fim de afirmar o caráter irreformável
da bula Exiit (que endossava o estilo de vido franciscano). O mais
impressionante e que o Papa XXII condenou tal doutrina da infalibilidade como
uma “doutrina pestilenta” e “audácia perniciosa” (expressões contidas na bula Quia
quorundam). Ou seja, a doutrina, além de não ter base na tradição da igreja, foi rejeitada em termos muito duros pelo
papa da ocasião. João XXII, à semelhança do que encontramos nos canonistas,
via na infalibilidade uma grave limitação a sua própria soberania. Por isso, a
ideia de que havia decretos irreformáveis (infalíveis) de seus antecessores era
completamente estranha ao seu pensamento:
Ele
[João XXII] anulou a proibição de Nicolau III que havia vetado qualquer debate
sobre o conteúdo do decreto Exiit. A bula de João, promulgada em março de 1322,
introduziu de imediato o tema que ele manteria durante toda a controvérsia, ou
seja, o direito absoluto do papa de
revogar os decretos de seus predecessores sempre que julgasse apropriado:
“Porque
algumas vezes o que se acredita, através de conjectura, ser útil, no futuro,
posteriormente se revela prejudicial. Não deve, portanto, ser considerado
repreensível se o fundador dos cânones decidir
revogar, modificar ou suspender os cânones promulgados por ele mesmo ou por
seus predecessores”. (Extravagentiae D. Ioannis XXII em E. Friedberg (ed.),
Corpus Iuris Canonici, II (Leipzig, 1879), Tit. 14 c. 2, col. 1224) (p. 172-173)
João
XXII, ao negar a possibilidade de haver decretos irreformáveis em seus
antecessores, condenou a infalibilidade papal:
“João
XXII, evidentemente, chegou à conclusão
de que seu predecessor, Nicolau III, havia cometido graves erros em seus tratos
com os franciscanos — erros envolvendo tanto a disciplina da igreja quanto a
doutrina. João estava determinado a
usar sua autoridade soberana como chefe da igreja para corrigir esses erros”.
(p. 175)
A
reação dos franciscanos foi defender a irreformabilidade do ensino da bula
Exiit de Nicolau III apelando a infalibilidade do papa:
“Cada
vez mais passaram a afirmar que, em qualquer caso, uma única proclamação de um papa individual poderia estabelecer um
dogma obrigatório para todos os seus sucessores. À medida que desenvolviam
seu argumento nessa direção, eles utilizaram como provas da infalibilidade de
certas proclamações papais todos os
textos de decretos antigos que haviam sido originalmente usados para
estabelecer a indefectibilidade da Igreja ou a permanência da fé cristã antiga
e central”. (p. 176-177)
Esta
correlação entre indefectibilidade da Igreja e infalibilidade do papa é hoje
prática comum na apologética católica, mas trata-se de uma inovação surgida no
século XIII. Ninguém antes teria entendido a indefectibilidade da Igreja nestes
termos. A resposta de João XXII aos argumentos franciscanos se manteve no
sentido de privilegiar a soberania em detrimento da infalibilidade do papa:
“A
todos esses argumentos, que tão claramente levantavam a questão da
irreformabilidade das definições dogmáticas, João XXII respondeu com a
linguagem fria de soberania jurídica em sua Bula, Ad conditorem (dezembro de
1322):
“Não
há dúvida de que cabe ao fundador dos cânones, quando percebe que estatutos
apresentados por ele mesmo ou por seus predecessores são desvantajosos, e não
vantajosos, providenciar para que não
sejam mais desvantajosos...” (G. Leff, Heresy in the Later
Middle Ages, I, p. 162)
Neste
ponto da controvérsia, João XXII parece ter encarado as questões envolvidas de
forma muito simples. A ideia de que
qualquer decisão de seus predecessores era irreformável apresentava-se ao papa simplesmente
como uma ameaça à sua própria autoridade soberana. Ele não estava
totalmente equivocado ao pensar assim. O
chefe de uma igreja antiga pode ser um professor infalível com poder para
promulgar doutrinas irreformáveis, ou pode ser um governante soberano com poder
para revogar todos os decretos de seus predecessores. Talvez, em uma igreja
ordenada de forma sensata, o indivíduo à frente não seja considerado nem
soberano nem infalível. O certo é que
ele não pode ser soberano e infalível ao mesmo tempo. Na medida em que João
XXII percebeu o dilema, ele estava
claramente determinado a optar pela soberania”. (p. 178-179)
O papa e a “chave do
conhecimento”
Os
Franciscanos resistiram às investidas de João XXII acusando-o de ensinar uma
heresia e, em sua contestação, apresentaram uma ideia nova que seria de extrema
importância na definição doutrinária do Concílio Vaticano I: as chaves de Pedro
incluíam as “chaves do conhecimento” que davam ao papa um poder supremo e
infalível para definir questões doutrinárias. Tal contestação ocorreu no
chamado Apelo de Sachsenhausen, em 24 de maio de 1324:
"O que os pontífices romanos uma vez
definiram em matéria de fé e moral através da chave do conhecimento é imutável,
porque a Igreja Romana é infalível (...) o que é definido através da chave
do conhecimento pelos sumos pontífices, vigários de Deus, para ser a verdade da
fé, não pode ser chamado em dúvida por
nenhum sucessor, nem pode o
contrário do que foi definido ser afirmado sem que o autor dessa afirmação seja
manifestamente julgado herético (...) o
que é definido em matéria de fé e moral é verdadeiro por toda a eternidade e
imutável por qualquer um". (excursus no Apelo de Sachsenhausen, em 24
de maio de 1324)
Tierney
documenta que há controvérsia sobre quem seria o autor do texto acima, sendo
Bonagratia a aposta mais provável. Contudo, ele nota que um aspecto tão
importante da doutrina da infalibilidade do papa foi pela primeira vez proposta
por um grupo obscuro que estava atacando a autoridade de um papa e acusando-o de
heresia:
“A ideia de que a chave do
conhecimento do papa não poderia errar parece ter sido uma contribuição
inteiramente nova feita pelo autor franciscano do excursus de Sachsenhausen. É um tanto desconcertante que um desenvolvimento tão significativo da
doutrina não possa ser atribuído a nenhum dos grandes teólogos ou canonistas da
época, mas deve ser creditado a algum frade rebelde e desconhecido. A
importância de sua contribuição está no fato de que, pela primeira vez, ela
trouxe a discussão sobre a infalibilidade papal para o mainstream da
eclesiologia católica. Olivi de fato
apresentou uma versão anterior da doutrina. Contudo, os ensinamentos de
Olivi haviam sido geralmente ignorados, e havia uma possibilidade real de que
tivessem sido completamente esquecidos como uma mera excentricidade menor de um
teólogo que, por volta de 1320, era visto como muito excêntrico. O excursus de
Sachsenhausen, por outro lado, deu origem a uma controvérsia importante sobre
irreformabilidade e infalibilidade, na qual o papa e alguns dos principais
canonistas e teólogos da época estiveram envolvidos. Naturalmente, os eruditos ortodoxos e os papas foram
lentos em abraçar esta doutrina nova e revolucionária, mas, de 1324 em diante,
a ideia de que o papa pode ser pessoalmente infalível nunca mais foi ausente da
eclesiologia católica”. (p. 185)
Tierney
também documenta, trazendo a opinião de Agostinho de Triunfo, que mesmo
teólogos que eram grandes defensores da autoridade papal não aceitaram esta
doutrina da chave do conhecimento, o que representava a opinião “mainstream”
daquele tempo:
“Agostinho
de Triunfo tinha a mesma opinião e ofereceu uma discussão particularmente
interessante (provavelmente escrita após 1324), na qual levantou abertamente a questão da infalibilidade papal em
conexão com a chave do conhecimento. Ele sugeriu que um teólogo ortodoxo
poderia argumentar assim: a Igreja não pode errar. Mas o papa é a cabeça da
Igreja. Portanto, ele não pode errar ao usar a chave do conhecimento. Agostinho rejeitou esse argumento como
qualquer teólogo ortodoxo da época teria feito”. (p. 185)
A resposta de João XXII à
doutrina da chave do conhecimento
Abaixo, Tierney
nos traz a resposta de João XII a doutrina da chave do conhecimento:
“O
Papa João XXII reagiu ao Apelo de Sachsenhausen com toda a habilidade de um
estrategista astuto, que vê o adversário tropeçar em um erro desnecessário. Bom
canonista que era, João sabia muito bem
que a ideia de o papa possuir uma chave de conhecimento infalível era uma
novidade, provavelmente sem sentido e certamente inaceitável para toda opinião
católica sólida. Ele então prosseguiu para explicar isso em detalhes em sua
bula Quia quorundam (novembro de 1324). O
“pai da mentira” havia cegado tanto os inimigos do papa, escreveu João, que
eles afirmavam:
“O que os pontífices
romanos uma vez definiram em matéria de fé e moral com a chave do conhecimento
permanece tão imutável que não é permitido a um sucessor revogá-lo...”
Essa proposição era
totalmente errônea, declarou João.
Em primeiro lugar, era errônea de acordo com aqueles que sustentavam que a
“chave espiritual” não consistia em conhecimento, mas era simplesmente um poder de ligar e desligar. A prova dessa visão era o fato de que todo
sacerdote recebia as chaves em sua ordenação, mas evidentemente nem todos eles possuíam qualquer dom de conhecimento.
Esse argumento reafirmava a opinião
comum dos canonistas e, muito provavelmente, refletia a opinião pessoal do
papa. No entanto, ele não se deteve nisso. Em vez disso, argumentou que, mesmo
de acordo com a doutrina daqueles que sustentavam que havia duas chaves, uma de
scientia (conhecimento), outra de potestas (poder), seus adversários estavam errados. Pois, se essas chaves pudessem ser usadas para definir artigos de fé, então
todo sacerdote simples (que recebia ambas as chaves em sua ordenação) poderia
fazer tais definições — e isso era absurdo.
Restava
uma terceira possibilidade. O termo “chaves” poderia ser usado, não de forma
geral para descrever o poder sacramental das ordens recebidas por todos os
sacerdotes, mas especificamente para
designar os poderes conferidos a Pedro e a seus sucessores para o cumprimento
de sua função pastoral suprema na Igreja. Mas, mesmo se essa interpretação
fosse aceita, ainda assim não havia substância nos argumentos dos oponentes do
papa. Eles sustentavam que os decretos
papais feitos em virtude da chave do conhecimento tinham um efeito diferente
daqueles feitos em virtude da chave do poder. Sua posição, lembre-se, era
que os decretos feitos com a chave do
conhecimento eram irreformáveis, mas aqueles feitos com a chave do poder não
eram. Isso era evidentemente falso, continuou o papa. A chave do
conhecimento (se é que se poderia chamá-la de chave) era apenas uma auctoritas cognoscendi,
uma autoridade para investigar uma
questão distinta da autoridade para pronunciar uma sentença final. Nenhum decreto definitivo poderia ser
promulgado com a chave do conhecimento. Ou ambas as chaves eram necessárias
ou, se apenas uma bastasse, então a
chave essencial era a do poder. Assim, ao final de seu argumento, ele
retornou à sua posição preferida. Ele acrescentou, partindo do pressuposto de
que scientia não era uma “chave” conferida divinamente, que um juiz seria guiado pela luz de seu conhecimento no uso da chave
do poder e que Cristo havia se contentado em permitir que isso fosse assumido
quando disse: “Tudo o que ligares na terra será ligado no céu”, sem qualquer referência à scientia”.
(p. 186-187)
João
XXII reafirmou a posição dos canonistas que desconheciam a tal chave do
conhecimento, além do que todos os sacerdotes recebiam as chaves quando eram
ordenados, que nada mais era do que o poder de ligar e desligar e não envolviam
qualquer dom do conhecimento. Contudo, é importante observar que os
franciscanos anteciparam muita da doutrina que seria promulgada no Vaticano I,
no qual se afirmou que o papa possuía as chaves do poder (para governar a
Igreja) e as chaves do conhecimento (para decidir de forma infalível questões
de doutrina). Tierney afirma com clareza que a doutrina franciscana foi
condenada como perniciosa pelo Papa João XXII:
“As
discussões de 1324 são de um interesse fascinante para o historiador da
doutrina da infalibilidade papal. Pois, pela primeira vez, uma doutrina de infalibilidade baseada no poder petrino das chaves foi
abertamente proposta. Mas a doutrina
foi defendida por rebeldes anti-papais, não pelos teólogos da cúria. E,
longe de abraçar a doutrina, o papa
indignadamente a denunciou como uma novidade perniciosa (...) Os polemistas
do século XIX deram alguma atenção aos decretos de João, mas apenas porque os anti-infalibilistas buscavam provar que o papa
havia contradito um dogma de seu predecessor, enquanto os infalibilistas
buscavam demonstrar que isso não era realmente o caso. Nenhum dos lados parece
ter enfatizado que a questão realmente importante envolvida na controvérsia de
1324 era o surgimento de uma doutrina de
infalibilidade papal baseada diretamente no poder petrino das chaves e a
veemente negação dessa doutrina pelo papa”. (p. 189)
João XXII e a Escritura
como única fonte da fé cristã
Como
já observamos, o desenvolvimento da infalibilidade papal caminha lado a lado
com a ideia de que havia doutrinas que não estavam nas Escrituras (teorias das
duas fontes). Ou seja, a doutrina da Igreja não deveria necessariamente estar
na Escritura, algo que é repetido à exaustão em debates apologéticos por
católicos romanos. Vimos que os canonistas rejeitam esta ideia e da mesma forma
pensava João XXII:
“João XXII declarava de
forma mais simples que “os artigos de fé devem ser provados pela Sagrada
Escritura.” Todo o
sistema de “fideísmo eclesiástico” que havia dominado o pensamento franciscano
desde os dias de Boaventura — a crença
de que a Igreja era uma segunda fonte de revelação divina, suplementar à
Escritura — era estranho a João. Ele não tinha simpatia por tal sistema e
talvez pouca compreensão dele. Ele havia
sido formado na tradição canonista que via a Escritura como a única fonte da fé
cristã (...) A teoria canonista de João sobre a soberania papal deixava pouco espaço para uma teologia da
infalibilidade papal. Ele compreendia com muita clareza que ele, como papa,
estava vinculado aos artigos de fé
estabelecidos na Escritura. Ele ficava abaixo deles e não podia mudá-los. Mas ele nunca reconheceria que a
promulgação de uma igreja, mesmo que fosse um decreto de um de seus
predecessores, poderia criar um novo artigo de fé não-escriturístico que fosse
vinculante para todos”. (p. 193)
A
inovação franciscana da infalibilidade papal estava relacionada também a outro
erro – a insuficiência material da Escritura. Ambos foram condenados e não
representavam a opinião majoritária da Igreja Romana neste período. Outro
teólogo chamado Zenzellinus também atacaria a doutrina franciscana apelando à
suficiência da Escritura:
“Assim,
os adversários de João referiram-se claramente a decretos doutrinais quando
escreveram: “Não é permitido a um sucessor revogar o que os pontífices romanos
estabeleceram em matéria de fé e moral com a chave do conhecimento.” Sobre
essas palavras, Zenzellinus comentou:
“Não vejo como eles têm a audácia de dizer
tais coisas, pois o próprio Senhor foi encontrado mudando algumas coisas no
Novo Testamento que havia estabelecido no Antigo (...) E as coisas definidas pelos pontífices romanos ou seus sucessores
também foram alteradas pelos próprios pontífices, como em Extra, De consanguinitate,
c. non debet...”
Quanto
à chave infalível do conhecimento, Zenzellinus
escreveu que os inimigos do papa a haviam criado como uma fantasia de suas
próprias imaginações, pois sua origem não podia ser rastreada a qualquer lei,
divina ou humana, ao menos no sentido em que os frades dissidentes empregavam o
termo. Zenzellinus foi igualmente mordaz ao discutir a doutrina franciscana
da pobreza absoluta de Cristo. A doutrina era claramente contrária à Escritura.
Afirmar que a Sagrada Escritura mente era
destruir os únicos meios de autenticar a fé cristã, pois:
“A fé não pode ser provada entre os homens,
exceto pela Sagrada Escritura...”
Em
todas essas explicações dos textos de João XXII, podemos supor que Zenzellinus estava apenas declarando, sem
interpretar, os significados que o próprio papa pretendia transmitir, mas que
expressava de forma mais enigmática”. (p. 195-196)
Encerramos aqui a segunda parte do resumo da obra de Brian Tierney, em que exploramos a origem da ideia da infalibilidade papal, bem como suas bases frágeis e espúrias. No próximo artigo, vamos explorar como e por que esta doutrina, que surgiu nos setores heterodoxos e marginalizados da teologia, seria abraçada por papas e teólogos de maior peso.
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