quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Infalibilidade Papal – Resumo do livro do Brian Tierney (Parte II)

 


Após termos lidado com a evidência dos canonistas, em que ficou demonstrado o desconhecimento da doutrina da infalibilidade no período do século XII, vamos abordar a evidência do século XIII, quando surge o primeiro teólogo católico em toda a história da Igreja a defender tal doutrina: Pedro Olivi, um franciscano radical que defendia ideias heterodoxas, tendo sido visto como um herege por muitos de seu tempo.

Tomás de Aquino e a infalibilidade

Contudo, antes de falarmos de Pedro Olivi, é importante trazer os comentários de Tierney sobre Tomás de Aquino, que foi posteriormente contado de forma equivocada como um defensor da infalibilidade:

“A posição de Tomás de Aquino não era significativamente diferente da de Boaventura. Os estudiosos modernos, de Döllinger a Küng, que apontaram que defensores posteriores da infalibilidade papal frequentemente apelavam à autoridade de São Tomás, estão corretos, é claro. Mas está longe de estar claro que os teólogos posteriores estivessem interpretando Tomás corretamente. Na verdade, ele reivindicava praticamente todo poder concebível para o papa em assuntos da Igreja — exceto a infalibilidade. Os textos relevantes foram apresentados por R. Bianchi, De constitutione monarchica ecclesiae et de infallibilitate Romani pontificis juxta S. Thomam (Roma, 1870). Nenhum deles realmente afirmava que o papa era infalível. Os loci principais em São Tomás são a Summa Theologiae, IIa-IIae, q. 1, art. 10, o Contra errores Graecorum e Quodlibet 9 q. 8. O último texto foi especialmente enfatizado por estudiosos que consideram Tomás como um expoente da infalibilidade papal. Aí ele argumentava que a Igreja universal não poderia errar na fé, que competia ao papa determinar as questões de fé e que, portanto, as sentenças judiciais do papa em tais questões deveriam ser preferidas às opiniões de qualquer doutor privado. Mas isso é exatamente a doutrina dos decretistas do século XII. E já vimos que, para eles, a doutrina de modo algum implicava a infalibilidade do papa. Döllinger estava absolutamente certo ao apontar que o ensino de São Tomás era essencialmente o mesmo que o dos canonistas precedentes. O ponto é que os canonistas nunca ensinaram uma doutrina de infalibilidade papal”. (p. 95)

Como vimos no artigo anterior, a ideia de que a Igreja universal não poderia errar na fé não implicava que o papal individualmente não poderia errar. Tomás de Aquino e os Canonistas aplicavam essa incapacidade de erro da Igreja ao corpo inteiro dos fiéis ou ao Concílio dos bispos e não ao papa individualmente. Desta forma, é digno de nota que talvez o maior teólogo da Igreja de Roma, embora tenha, sob a influência de documentos espúrios como os Pseudo decretos de Isidoro e um grande número de interpolações nos Pais da Igreja, acreditado na autoridade suprema do papa, parece, no entanto, ter desconhecido, ainda no século XIII, a infalibilidade papal. Segue abaixo o texto mais importante de Aquino sobre o tema:

A Igreja universal não pode errar em matéria de fé. Portanto, as sentenças do Papa, que é seu chefe visível, devem ser preferidas às opiniões privadas de qualquer mestre, embora isso não signifique que o Papa seja infalível por si mesmo, mas sim que atua em comunhão com a Igreja como sua cabeça”. (Quodlibet 9, Questão 8)

O Concílio de Lyon e a tentativa de reunião com os Orientais

Interessa observar que Aquino foi contemporâneo da tentativa de reunião com a Igreja Grega, o que culminaria com a fracassada tentativa empreendida no Concílio de Lyon (1274). Este período acompanhou um grande aumento do interesse dos teólogos pelo papado, haja vista ser um obstáculo para a Igreja Grega. Ainda assim, num contexto tão propício, não houve qualquer discussão sobre a infalibilidade papal, nem defesa da doutrina pelos teólogos latinos que estavam ávidos em afirmar a autoridade papa, o que demonstra que eles desconheciam esta ideia. Tierney documenta:

“Outro fator que estimulou um novo interesse pela eclesiologia entre os teólogos deste período foi a tentativa de reconciliação com a Igreja Grega, que levou à fracassada união de 1274. Mas os debates com os gregos nunca chegaram a se concentrar precisamente na questão da infalibilidade. Como os próprios doutores latinos não acreditavam na infalibilidade papal, os gregos naturalmente não foram obrigados a subscrever a tal doutrina. O decreto de união com os gregos simplesmente repetia a antiga afirmação canônica de que o papa era o juiz supremo em questões de fé”. (p. 58)

A “nova revelação” de Francisco de Assis e a contribuição de Boaventura

A questão central está na defesa da pobreza evangélica pelos franciscanos espirituais. Este grupo tinha ideias escatológicas sobre Francisco de Assis, alguns até mesmo o vendo como portador de uma nova revelação (algo que ecoava Joaquim de Fiore) e consideravam o estilo de vida franciscano como aquele que foi praticado por Jesus e os apóstolos. Esta doutrina foi resistida por vários setores da Igreja que a viam como uma inovação:

“A principal “nova tradição” que Guilherme atacou foi a doutrina franciscana da “pobreza absoluta”, a alegação de que a renúncia à dominação, “individualmente e em comum”, era essencial à mais alta forma de perfeição cristã. Após apresentar todos os argumentos bíblicos contra a posição franciscana, ele concluiu: “É evidente que tais tradições podem ser chamadas de “superstição” pelo fato de não terem sido transmitidas a nós pelo Senhor Jesus Cristo, nem por seus Apóstolos, nem pelos Santos Concílios, nem pelos escritos canônicos dos Santos Doutores, mas foram introduzidas por alguns recém-chegados por sua própria conta...”. Esta é uma declaração muito clara de uma maneira predominante de pensar. A tradição válida era o ensinamento transmitido na Escritura ou nos cânones dos concílios ou nos escritos dos Pais da Igreja. A antiguidade era um critério essencial de uma Tradição válida. A novidade era sua antítese. (p. 72-73)

Ou seja, não havia espaço para “desenvolvimento” da doutrina neste período. A antiguidade era um critério fundamental para validar o que era a verdadeira tradição. Além disso, havia neste período uma identidade material entre o ensino dos pais e dos concílios com a Escritura. A doutrina franciscana era objetável por não atender ao critério de antiguidade. A este respeito, Boaventura foi um importante franciscano a defender a posição do grupo diante de tais ataques:

“É claro que os Franciscanos indignadamente negaram que suas “novas tradições” fossem contrárias à Escritura e tentaram sempre que possível encontrar evidências patrísticas para apoiar suas interpretações de textos bíblicos específicos. Mas, em última análise, eles não puderam negar e não desejaram negar que São Francisco havia introduzido uma compreensão radicalmente nova da verdade cristã na vida da igreja. Boaventura, de fato, aceitou a acusação de Guilherme de St. Amour de que os Franciscanos eram expoentes de uma “nova tradição” e se orgulhou do fato de que Deus lhes havia dado tal papel. Ao defender essa posição, ele foi levado a desenvolver uma tese que teria importância considerável para teorias posteriores de autoridade papal. Ele sustentava consistentemente que os ensinamentos atuais da igreja poderiam fornecer um guia infalível para as verdades da fé que Cristo havia revelado aos primeiros apóstolos — mesmo quando não havia uma justificativa óbvia para esses ensinamentos em fontes antigas. Toda a lógica da posição franciscana exigia o desenvolvimento de tal teoria, e eventualmente alguns dos frades chegariam a acreditar que também precisavam de uma teoria da infalibilidade papal para complementá-la. Seus argumentos — que às vezes eram essencialmente semelhantes aos argumentos modernos sobre o desenvolvimento da doutrina, mas por vezes altamente excêntricos — poderiam ser usados tanto para justificar suas interpretações da Escritura quanto para reivindicar para tradições extra-escriturísticas (mesmo recentes) a mesma validade dogmática que os ensinamentos da própria Escritura. Ambos os desenvolvimentos foram sugeridos nos escritos de São Boaventura”. (p. 73)

Como visto no artigo anterior sobre os canonistas, eles acreditavam que toda doutrina da Igreja estava contida na Escritura (ainda não havia emergido a ideia da tradição como suplemento doutrinário). Um fator importante no desenvolvimento da infalibilidade foi justamente o surgimento dessas ideias de novas revelações ou de doutrinas sem suporte da Escritura, o que exigia um autenticador: o papa. Chama atenção como esses dois equívocos teológicos caminharam juntos em seu desenvolvimento: a tradição suplementar ou nova revelação e o autenticador infalível (o papa). Embora Boaventura tenha tido um papel precursor na controvérsia que faria surgir a ideia da infalibilidade papal, Tierney não o reconhece Boaventura como um proponente da doutrina. Este papel caberia a outro teólogo franciscano: Pedro Olivi.

Pedro Olivi: o primeiro a defender a infalibilidade

A doutrina da pobreza franciscana encontrou grande apoio na bula Exiit do Papa Nicolau III. Obviamente, isto foi recebido com grande entusiasmo pelos franciscanos e dentre eles estava Pedro Olivi:

Os ensinamentos de Olivi foram condenados pela primeira vez durante o generalato de Jerônimo de Ascoli (1274–1279), que mais tarde se tornou o Papa Nicolau IV. Essa censura (que dizia respeito a certos ensinamentos de Olivi sobre a Virgem Santíssima) parece ter sido uma questão trivial que não prejudicou seriamente a reputação de Olivi, pois, em 1279, ele foi um dos mestres franciscanos consultados por uma comissão papal envolvida na elaboração da bula Exiit, que já mencionamos anteriormente na discussão sobre o crescimento das ideias franciscanas de pobreza apostólica. Essa bula, promulgada por Nicolau III em agosto de 1279, foi recebida por Olivi com a mais calorosa aprovação e, de fato, seu entusiasmo por ela foi um fator importante na formação de sua atitude em relação à autoridade da Sé Romana pelo resto de sua vida. Na Exiit, o Papa Nicolau III não apenas aprovou o modo de vida franciscano, como seus predecessores haviam feito. Pela primeira vez, ele o afirmou como um ensinamento oficial da Igreja Romana: a afirmação dos franciscanos de que seu modo de vida era o próprio caminho de perfeição que Cristo havia revelado aos apóstolos. Exiit foi um documento de grande importância nos debates posteriores sobre a infalibilidade papal. Assim, apresentaremos aqui suas principais disposições. Sobre a pobreza franciscana, o papa declarou:

“Agora, visto que esta regra expressamente determina que os frades não devem apropriar nada para si... e como foi decretado por nosso predecessor Gregório IX... que eles devem observar isso tanto individualmente quanto em comum... vemos que a renúncia à propriedade em todas as coisas desta forma, não apenas individualmente, mas também em comum por causa de Deus, é meritória e santa e que Cristo, mostrando o caminho da perfeição, confirmou-a por sua palavra e exemplo, e que os primeiros fundadores da Igreja militante, desejando viver perfeitamente, buscaram dela a sua fonte.

Além disso, Exiit afirmou especificamente que a Regra Franciscana foi diretamente inspirada pelo Espírito Santo, uma visão que Olivi sustentava com intensa paixão:

“Esse é o caminho da vida religiosa, puro e imaculado diante de Deus, o Pai, que, descendo do Pai das luzes, foi transmitido por seu Filho aos apóstolos por palavra e exemplo, e finalmente inspirado no bem-aventurado Francisco e seus seguidores pelo Espírito Santo, contendo, por assim dizer, o testemunho de toda a Trindade em si mesmo...” (p. 98-99)

Dessa forma, os franciscanos tinham aqui um decreto papal que afirma a pobreza evangélica como uma doutrina. Tierney passa então a documentar o pensamento de Olivi:

“Antes de abordar a Quaestio sobre a infalibilidade, é necessário considerar alguns princípios fundamentais da eclesiologia de Olivi. Sua teologia da Igreja baseava-se em três temas também centrais para Boaventura: a revelação progressiva do sentido interior da Sagrada Escritura ao longo das eras da Igreja; a importância suprema de São Francisco de Assis nesse processo; e a necessidade de um magistério papal para validar novas revelações da verdade divina. Ao discutir a autoridade de ensino do papa, Olivi utilizava os termos magisterium e magistralis em um sentido próximo ao dos teólogos modernos”. (p. 109)

O cenário estava montado. Um papa havia referendado a doutrina franciscana, mas, Olivi acreditava que um antipapa poderia no futuro querer reverter este ensino:

Olivi acreditava que o papa, como árbitro supremo da fé, havia recentemente autenticado uma nova revelação do Espírito Santo destinada a remodelar toda a vida da Igreja. Ele também acreditava na vinda de um pseudo-papa herético que atacaria essa revelação, não como uma mera possibilidade abstrata, mas como uma calamidade iminente, uma ameaça real à vida da Igreja. (p. 114)

A partir disso, Olivi desenvolve a infalibilidade papal para proteger o decreto expedido na Bula Exiit de Nicolau III. Seria o instrumento para preservar esta novação revelação que poderia ser posta em risco por um futuro pseudo-papa:

O poder do papa, escreveu ele, dependia de Cristo e estava sujeito às leis de Cristo. Mas, “As leis de Cristo não são apenas aquelas que Ele expressou na Sagrada Escritura, mas também aquelas que Ele gravou nos corações dos fiéis por meio do Espírito Santo.” Para Olivi, a Regra Franciscana era como um outro Evangelho — não substituindo o antigo, mas completando-o ao revelar seu sentido mais íntimo. Assim, ela possuía uma importância cósmica ao abrir caminho para que a Igreja avançasse para o seu estado final de perfeição. A relevância de tudo isso para o ensinamento de Olivi sobre infalibilidade, é claro, está no fato de que a Regra obtinha sua autoridade canônica a partir da confirmação dos papas. (p. 111)

Como dependia do papa a autenticação desta nova revelação, segue-se que o decreto papal deveria ser infalível, a fim de preservar a doutrina da pobreza franciscana. Isto fica claro na citação a seguir do próprio Olivi:

"... não haveria nova explicação na santa Igreja de Deus — cada vez mais ao longo do tempo — das sublimes verdades da fé católica. O oposto disso podemos provar através de todo o progresso da Igreja. Assim, neste século XIII da encarnação de Cristo floresceu, em Francisco e em seu modo de vida (status), uma regra e ordem evangélica, introduzida por meio da mediação da Sé Romana e de seu poder papal." (Dollinger, p. 539)

Toda esta necessidade de autenticar um ensino inovador e heterodoxo levou Olivi a formular pela primeira vez na história a doutrina da infalibilidade papal. Segue citação de Olivi:

“É impossível que Deus conceda a qualquer um toda a autoridade para decidir todas as dúvidas relativas à fé e à lei divina, com a condição de que Ele permitiria que esse alguém errasse. E qualquer um que, concordamos, não está autorizado a errar deve ser seguido como uma regra infalível. Mas Deus concedeu essa autoridade ao pontífice romano, como está dito no Dist. 17, c. 5 (do Decreto), que ‘questões maiores e mais difíceis devem ser referidas à Sé Apostólica”. (p. 116)

Percebam como a natureza do argumento é semelhante ao que vemos hoje: a autoridade papal requeria também a infalibilidade. Ocorre que esse raciocínio encontra um lapso de 12 séculos de história, na qual ninguém jamais fez tal associação.

“É evidente que, em vários aspectos, a discussão de Olivi antecipou os modos pelos quais a doutrina da infalibilidade papal se desenvolveria nos séculos seguintes. A frase que ele usava para definir a esfera dentro da qual o papa era infalível — “em fé e moral” — é a mesma empregada na definição do século XIX do Concílio Vaticano I. Sua afirmação de que um homem estabelecido por Deus como juiz supremo em questões de fé deve ser considerado como inerrante em seus julgamentos, sua aplicação do texto “Ego rogavi pro te Petre...” às pessoas de Pedro e seus sucessores, sua insistência em uma ligação necessária entre a indefectibilidade da fé da Igreja e a inerrância das declarações doutrinais feitas por sua cabeça — tudo isso se tornaria lugar-comum dos apologistas ultramontanos em tempos posteriores. No entanto, ao final de seu argumento, Olivi parece ter estado formando uma conclusão radicalmente diferente da dos defensores modernos da infalibilidade papal. Suas últimas sentenças indicam sua plena consciência da complexidade do problema que havia proposto. Para Olivi, não era suficiente distinguir entre as capacidades privadas e públicas do papa, sustentando que um papa poderia errar em suas opiniões pessoais, mas não em seus pronunciamentos “magistrais”, porque sempre restava a possibilidade de que a pessoa que emitia um pronunciamento magistral da cátedra papal pudesse ser um papa “apenas em nome e aparência”. Nem essa dificuldade poderia ter sido resolvida pela invenção de uma classe especial de decretos ultra-oficiais oriundos de um “magistério extraordinário” (para usar a linguagem da teologia moderna). Em última análise, o homem que alegasse exercer tal autoridade poderia não ser o verdadeiro papa em quem tal autoridade realmente residia”. (p. 121-122)

Destaca-se que ele é o primeiro autor cristão na história a interpretar Lucas 22:32 (“roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça”) como um texto da infalibilidade do bispo de Roma. Este se tornaria o texto prova principal da doutrina da infalibilidade nos séculos seguintes, mas, trata-se de uma interpretação sem qualquer fundamento na tradição da Igreja. Além disso, ele também foi o primeiro a defender que a indefectibilidade da Igreja levava a infalibilidade de seu cabeça. Outro aspecto importante da inovação de Olivi é que ele nunca apelou a qualquer tradição histórica ou autor mais antigo a fim de validar sua doutrina da infalibilidade papal. Como visto, o desenvolvimento desta ideia se deu no meio de um grupo que estava frequentemente apelando a novas revelações ou novos significados da Escritura até então desconhecidos. Dessa forma, eles não fizeram nenhum esforço em demonstrar a infalibilidade papal na história da Igreja, pois todo o projeto encapsulava em si a defesa de algo até então desconhecido.

Tierney aponta que Olivi e não Boaventura foi o primeiro a defender tal ideia porque o primeiro estava obcecado com a possibilidade de um falso papa. De fato, há muitos ecos de Olivi no moderno movimento sedevacantista. Como um falso papa poderia reverter o ensino de Nicolau III, era necessário limitar o poder dos futuros papas, e foi exatamente esta necessidade a principal catalisadora do aparecimento da infalibilidade papal. Tierney demonstra como isto era totalmente contrário ao pensamento da época, em que os canonistas e teólogos estavam defendendo a soberania papal, ou seja, uma expansão e não limitação de poder do papa presente:

“Para Olivi, a Regra era autenticada por decretos papais do passado, mas não poderia ser alterada por decretos futuros da mesma autoridade. Vista do ponto de vista do direito canônico tradicional sobre a soberania papal, essa posição era simplesmente sem sentido. Dada a suposição da infalibilidade papal, porém, torna-se claro e até razoável para ele que, por essa teoria, os decretos anteriores reconhecendo que a vida de Francisco era o caminho de Cristo e dos apóstolos poderiam ser vistos como estabelecendo um “dogma autêntico” que era vinculativo para papas futuros”. (p. 127)

Tierney já havia demonstrado a incompatibilidade da nova ideia com o pensamento dos canonistas e teólogos papalistas contemporâneos de Olivi.

Os canonistas queriam manter a máxima liberdade de ação para o papado diante das necessidades mutáveis da Igreja, e por isso enfatizavam a ampla autoridade discricionária do papa como juiz supremo e legislador. Olivi queria diminuir a capacidade dos futuros ocupantes da Sé Romana de ferir a Igreja. Por isso, insistiu na infalibilidade — e consequente irreformabilidade — das decisões doutrinais já estabelecidas por papas anteriores. A nova teoria da infalibilidade papal foi projetada para limitar o poder dos papas futuros, não para liberá-los de todas as restrições”. (p. 120)

A heterodoxia de Pedro Olivi

Além do caráter inovador da infalibilidade, é digno de nota que Pedro Olivi não era visto como teólogo ortodoxo no período aqui analisado (séculos XIII-XIV). Também depõe contra a doutrina o fato de não ter surgido entre teólogos de peso da Igreja de Roma, mas sim em grupos marginais e vistos como suspeitos dentro da Igreja:

Os ataques mais graves à ortodoxia de Olivi vieram após sua morte. Em 1299, um novo ministro-geral, João de Murrovalle (indicado por Bonifácio VIII), ordenou queimar todos os escritos de Olivi. No Concílio de Viena (1311), os líderes da Comunidade fizeram os esforços mais veementes para obter uma condenação solene dos trabalhos de Olivi. Após uma investigação elaborada, o Concílio afirmou como heréticas três proposições que Olivi teria sustentado (...) Quando o papado se voltou decisivamente contra os Franciscanos Espirituais, durante o pontificado de João XXII, tornou-se fácil desacreditar a obra de Olivi. Mais uma vez, em 1319, o ministro-geral (agora Miguel de Cesena) condenou todos os seus escritos. No mesmo ano, uma comissão de teólogos, apontada pelo papa, denunciou inúmeros erros nos Lectura de Olivi e no Apocalypse, sua última grande obra, concluída em 1297. A acusação fundamental era que Olivi havia rejeitado totalmente a autoridade da Igreja Romana, chamando o papado de “a prostituta da Babilônia”. O Lectura de Olivi foi finalmente condenado por João XXII em 1326. (p. 100-101)

Isto introduz um novo personagem na história da doutrina: o papa XXII. Ele não apenas condenaria Olivi e os franciscanos espirituais como hereges, mas atacaria a própria ideia de infalibilidade em si.

João XXII – o papa que condenaria a infalibilidade papal

João XXII seria o papa que iria revogar a bula Exiit de Nicolau III, indo contra os franciscanos radicais:

“Durante o pontificado do Papa João XXII (1313-1334), a doutrina da infalibilidade papal de Pietro Olivi foi vigorosamente revivida e reafirmada. Essa reafirmação da doutrina, como a formulação original de Olivi, surgiu no decorrer de uma disputa complexa sobre a pobreza franciscana. Em 1322, João XXII empreendeu revogar as disposições do decreto Exiit de Nicolau III, que havia regulado a vida da ordem franciscana desde 1279. Então, em 1323, ele promulgou uma nova declaração dogmática a respeito da pobreza de Cristo e dos apóstolos. Os líderes dos franciscanos sustentaram que a doutrina contida em Exiit era intrinsecamente irreformável. A partir dessa afirmação, eles avançaram para uma teoria de infalibilidade papal baseada em uma interpretação inovadora do poder petrino das “chaves”. O Papa João XXII ressentiu-se fortemente da imputação de infalibilidade ao seu cargo — ou, pelo menos, aos seus predecessores. A teoria da infalibilidade proposta por seus adversários era uma “doutrina pestilenta”, declarou ele; e a princípio parecia inclinado a rejeitar toda a ideia como uma “audácia perniciosa”. (p. 171)

Os franciscanos apelaram a infalibilidade a fim de afirmar o caráter irreformável da bula Exiit (que endossava o estilo de vido franciscano). O mais impressionante e que o Papa XXII condenou tal doutrina da infalibilidade como uma “doutrina pestilenta” e “audácia perniciosa” (expressões contidas na bula Quia quorundam). Ou seja, a doutrina, além de não ter base na tradição da igreja, foi rejeitada em termos muito duros pelo papa da ocasião. João XXII, à semelhança do que encontramos nos canonistas, via na infalibilidade uma grave limitação a sua própria soberania. Por isso, a ideia de que havia decretos irreformáveis (infalíveis) de seus antecessores era completamente estranha ao seu pensamento:

Ele [João XXII] anulou a proibição de Nicolau III que havia vetado qualquer debate sobre o conteúdo do decreto Exiit. A bula de João, promulgada em março de 1322, introduziu de imediato o tema que ele manteria durante toda a controvérsia, ou seja, o direito absoluto do papa de revogar os decretos de seus predecessores sempre que julgasse apropriado:

“Porque algumas vezes o que se acredita, através de conjectura, ser útil, no futuro, posteriormente se revela prejudicial. Não deve, portanto, ser considerado repreensível se o fundador dos cânones decidir revogar, modificar ou suspender os cânones promulgados por ele mesmo ou por seus predecessores”. (Extravagentiae D. Ioannis XXII em E. Friedberg (ed.), Corpus Iuris Canonici, II (Leipzig, 1879), Tit. 14 c. 2, col. 1224)  (p. 172-173)

João XXII, ao negar a possibilidade de haver decretos irreformáveis em seus antecessores, condenou a infalibilidade papal:

“João XXII, evidentemente, chegou à conclusão de que seu predecessor, Nicolau III, havia cometido graves erros em seus tratos com os franciscanos — erros envolvendo tanto a disciplina da igreja quanto a doutrina. João estava determinado a usar sua autoridade soberana como chefe da igreja para corrigir esses erros”. (p. 175)

A reação dos franciscanos foi defender a irreformabilidade do ensino da bula Exiit de Nicolau III apelando a infalibilidade do papa:

“Cada vez mais passaram a afirmar que, em qualquer caso, uma única proclamação de um papa individual poderia estabelecer um dogma obrigatório para todos os seus sucessores. À medida que desenvolviam seu argumento nessa direção, eles utilizaram como provas da infalibilidade de certas proclamações papais todos os textos de decretos antigos que haviam sido originalmente usados para estabelecer a indefectibilidade da Igreja ou a permanência da fé cristã antiga e central”.  (p. 176-177)

Esta correlação entre indefectibilidade da Igreja e infalibilidade do papa é hoje prática comum na apologética católica, mas trata-se de uma inovação surgida no século XIII. Ninguém antes teria entendido a indefectibilidade da Igreja nestes termos. A resposta de João XXII aos argumentos franciscanos se manteve no sentido de privilegiar a soberania em detrimento da infalibilidade do papa:

“A todos esses argumentos, que tão claramente levantavam a questão da irreformabilidade das definições dogmáticas, João XXII respondeu com a linguagem fria de soberania jurídica em sua Bula, Ad conditorem (dezembro de 1322):

“Não há dúvida de que cabe ao fundador dos cânones, quando percebe que estatutos apresentados por ele mesmo ou por seus predecessores são desvantajosos, e não vantajosos, providenciar para que não sejam mais desvantajosos...” (G. Leff, Heresy in the Later Middle Ages, I, p. 162)

Neste ponto da controvérsia, João XXII parece ter encarado as questões envolvidas de forma muito simples. A ideia de que qualquer decisão de seus predecessores era irreformável apresentava-se ao papa simplesmente como uma ameaça à sua própria autoridade soberana. Ele não estava totalmente equivocado ao pensar assim. O chefe de uma igreja antiga pode ser um professor infalível com poder para promulgar doutrinas irreformáveis, ou pode ser um governante soberano com poder para revogar todos os decretos de seus predecessores. Talvez, em uma igreja ordenada de forma sensata, o indivíduo à frente não seja considerado nem soberano nem infalível. O certo é que ele não pode ser soberano e infalível ao mesmo tempo. Na medida em que João XXII percebeu o dilema, ele estava claramente determinado a optar pela soberania”. (p. 178-179)

O papa e a “chave do conhecimento”

Os Franciscanos resistiram às investidas de João XXII acusando-o de ensinar uma heresia e, em sua contestação, apresentaram uma ideia nova que seria de extrema importância na definição doutrinária do Concílio Vaticano I: as chaves de Pedro incluíam as “chaves do conhecimento” que davam ao papa um poder supremo e infalível para definir questões doutrinárias. Tal contestação ocorreu no chamado Apelo de Sachsenhausen, em 24 de maio de 1324:

"O que os pontífices romanos uma vez definiram em matéria de fé e moral através da chave do conhecimento é imutável, porque a Igreja Romana é infalível (...) o que é definido através da chave do conhecimento pelos sumos pontífices, vigários de Deus, para ser a verdade da fé, não pode ser chamado em dúvida por nenhum sucessor, nem pode o contrário do que foi definido ser afirmado sem que o autor dessa afirmação seja manifestamente julgado herético (...) o que é definido em matéria de fé e moral é verdadeiro por toda a eternidade e imutável por qualquer um". (excursus no Apelo de Sachsenhausen, em 24 de maio de 1324)

Tierney documenta que há controvérsia sobre quem seria o autor do texto acima, sendo Bonagratia a aposta mais provável. Contudo, ele nota que um aspecto tão importante da doutrina da infalibilidade do papa foi pela primeira vez proposta por um grupo obscuro que estava atacando a autoridade de um papa e acusando-o de heresia:

“A ideia de que a chave do conhecimento do papa não poderia errar parece ter sido uma contribuição inteiramente nova feita pelo autor franciscano do excursus de Sachsenhausen. É um tanto desconcertante que um desenvolvimento tão significativo da doutrina não possa ser atribuído a nenhum dos grandes teólogos ou canonistas da época, mas deve ser creditado a algum frade rebelde e desconhecido. A importância de sua contribuição está no fato de que, pela primeira vez, ela trouxe a discussão sobre a infalibilidade papal para o mainstream da eclesiologia católica. Olivi de fato apresentou uma versão anterior da doutrina. Contudo, os ensinamentos de Olivi haviam sido geralmente ignorados, e havia uma possibilidade real de que tivessem sido completamente esquecidos como uma mera excentricidade menor de um teólogo que, por volta de 1320, era visto como muito excêntrico. O excursus de Sachsenhausen, por outro lado, deu origem a uma controvérsia importante sobre irreformabilidade e infalibilidade, na qual o papa e alguns dos principais canonistas e teólogos da época estiveram envolvidos. Naturalmente, os eruditos ortodoxos e os papas foram lentos em abraçar esta doutrina nova e revolucionária, mas, de 1324 em diante, a ideia de que o papa pode ser pessoalmente infalível nunca mais foi ausente da eclesiologia católica”. (p. 185)

Tierney também documenta, trazendo a opinião de Agostinho de Triunfo, que mesmo teólogos que eram grandes defensores da autoridade papal não aceitaram esta doutrina da chave do conhecimento, o que representava a opinião “mainstream” daquele tempo:

“Agostinho de Triunfo tinha a mesma opinião e ofereceu uma discussão particularmente interessante (provavelmente escrita após 1324), na qual levantou abertamente a questão da infalibilidade papal em conexão com a chave do conhecimento. Ele sugeriu que um teólogo ortodoxo poderia argumentar assim: a Igreja não pode errar. Mas o papa é a cabeça da Igreja. Portanto, ele não pode errar ao usar a chave do conhecimento. Agostinho rejeitou esse argumento como qualquer teólogo ortodoxo da época teria feito”. (p. 185)

A resposta de João XXII à doutrina da chave do conhecimento

Abaixo, Tierney nos traz a resposta de João XII a doutrina da chave do conhecimento:

“O Papa João XXII reagiu ao Apelo de Sachsenhausen com toda a habilidade de um estrategista astuto, que vê o adversário tropeçar em um erro desnecessário. Bom canonista que era, João sabia muito bem que a ideia de o papa possuir uma chave de conhecimento infalível era uma novidade, provavelmente sem sentido e certamente inaceitável para toda opinião católica sólida. Ele então prosseguiu para explicar isso em detalhes em sua bula Quia quorundam (novembro de 1324). O “pai da mentira” havia cegado tanto os inimigos do papa, escreveu João, que eles afirmavam:

“O que os pontífices romanos uma vez definiram em matéria de fé e moral com a chave do conhecimento permanece tão imutável que não é permitido a um sucessor revogá-lo...

Essa proposição era totalmente errônea, declarou João. Em primeiro lugar, era errônea de acordo com aqueles que sustentavam que a “chave espiritual” não consistia em conhecimento, mas era simplesmente um poder de ligar e desligar. A prova dessa visão era o fato de que todo sacerdote recebia as chaves em sua ordenação, mas evidentemente nem todos eles possuíam qualquer dom de conhecimento. Esse argumento reafirmava a opinião comum dos canonistas e, muito provavelmente, refletia a opinião pessoal do papa. No entanto, ele não se deteve nisso. Em vez disso, argumentou que, mesmo de acordo com a doutrina daqueles que sustentavam que havia duas chaves, uma de scientia (conhecimento), outra de potestas (poder), seus adversários estavam errados. Pois, se essas chaves pudessem ser usadas para definir artigos de fé, então todo sacerdote simples (que recebia ambas as chaves em sua ordenação) poderia fazer tais definições — e isso era absurdo.

Restava uma terceira possibilidade. O termo “chaves” poderia ser usado, não de forma geral para descrever o poder sacramental das ordens recebidas por todos os sacerdotes, mas especificamente para designar os poderes conferidos a Pedro e a seus sucessores para o cumprimento de sua função pastoral suprema na Igreja. Mas, mesmo se essa interpretação fosse aceita, ainda assim não havia substância nos argumentos dos oponentes do papa. Eles sustentavam que os decretos papais feitos em virtude da chave do conhecimento tinham um efeito diferente daqueles feitos em virtude da chave do poder. Sua posição, lembre-se, era que os decretos feitos com a chave do conhecimento eram irreformáveis, mas aqueles feitos com a chave do poder não eram. Isso era evidentemente falso, continuou o papa. A chave do conhecimento (se é que se poderia chamá-la de chave) era apenas uma auctoritas cognoscendi, uma autoridade para investigar uma questão distinta da autoridade para pronunciar uma sentença final. Nenhum decreto definitivo poderia ser promulgado com a chave do conhecimento. Ou ambas as chaves eram necessárias ou, se apenas uma bastasse, então a chave essencial era a do poder. Assim, ao final de seu argumento, ele retornou à sua posição preferida. Ele acrescentou, partindo do pressuposto de que scientia não era uma “chave” conferida divinamente, que um juiz seria guiado pela luz de seu conhecimento no uso da chave do poder e que Cristo havia se contentado em permitir que isso fosse assumido quando disse: “Tudo o que ligares na terra será ligado no céu”, sem qualquer referência à scientia”. (p. 186-187)

João XXII reafirmou a posição dos canonistas que desconheciam a tal chave do conhecimento, além do que todos os sacerdotes recebiam as chaves quando eram ordenados, que nada mais era do que o poder de ligar e desligar e não envolviam qualquer dom do conhecimento. Contudo, é importante observar que os franciscanos anteciparam muita da doutrina que seria promulgada no Vaticano I, no qual se afirmou que o papa possuía as chaves do poder (para governar a Igreja) e as chaves do conhecimento (para decidir de forma infalível questões de doutrina). Tierney afirma com clareza que a doutrina franciscana foi condenada como perniciosa pelo Papa João XXII:

“As discussões de 1324 são de um interesse fascinante para o historiador da doutrina da infalibilidade papal. Pois, pela primeira vez, uma doutrina de infalibilidade baseada no poder petrino das chaves foi abertamente proposta. Mas a doutrina foi defendida por rebeldes anti-papais, não pelos teólogos da cúria. E, longe de abraçar a doutrina, o papa indignadamente a denunciou como uma novidade perniciosa (...) Os polemistas do século XIX deram alguma atenção aos decretos de João, mas apenas porque os anti-infalibilistas buscavam provar que o papa havia contradito um dogma de seu predecessor, enquanto os infalibilistas buscavam demonstrar que isso não era realmente o caso. Nenhum dos lados parece ter enfatizado que a questão realmente importante envolvida na controvérsia de 1324 era o surgimento de uma doutrina de infalibilidade papal baseada diretamente no poder petrino das chaves e a veemente negação dessa doutrina pelo papa”. (p. 189)

João XXII e a Escritura como única fonte da fé cristã

Como já observamos, o desenvolvimento da infalibilidade papal caminha lado a lado com a ideia de que havia doutrinas que não estavam nas Escrituras (teorias das duas fontes). Ou seja, a doutrina da Igreja não deveria necessariamente estar na Escritura, algo que é repetido à exaustão em debates apologéticos por católicos romanos. Vimos que os canonistas rejeitam esta ideia e da mesma forma pensava João XXII:

“João XXII declarava de forma mais simples que “os artigos de fé devem ser provados pela Sagrada Escritura.” Todo o sistema de “fideísmo eclesiástico” que havia dominado o pensamento franciscano desde os dias de Boaventura — a crença de que a Igreja era uma segunda fonte de revelação divina, suplementar à Escritura — era estranho a João. Ele não tinha simpatia por tal sistema e talvez pouca compreensão dele. Ele havia sido formado na tradição canonista que via a Escritura como a única fonte da fé cristã (...) A teoria canonista de João sobre a soberania papal deixava pouco espaço para uma teologia da infalibilidade papal. Ele compreendia com muita clareza que ele, como papa, estava vinculado aos artigos de fé estabelecidos na Escritura. Ele ficava abaixo deles e não podia mudá-los. Mas ele nunca reconheceria que a promulgação de uma igreja, mesmo que fosse um decreto de um de seus predecessores, poderia criar um novo artigo de fé não-escriturístico que fosse vinculante para todos”. (p. 193)

A inovação franciscana da infalibilidade papal estava relacionada também a outro erro – a insuficiência material da Escritura. Ambos foram condenados e não representavam a opinião majoritária da Igreja Romana neste período. Outro teólogo chamado Zenzellinus também atacaria a doutrina franciscana apelando à suficiência da Escritura:

“Assim, os adversários de João referiram-se claramente a decretos doutrinais quando escreveram: “Não é permitido a um sucessor revogar o que os pontífices romanos estabeleceram em matéria de fé e moral com a chave do conhecimento.” Sobre essas palavras, Zenzellinus comentou:

Não vejo como eles têm a audácia de dizer tais coisas, pois o próprio Senhor foi encontrado mudando algumas coisas no Novo Testamento que havia estabelecido no Antigo (...) E as coisas definidas pelos pontífices romanos ou seus sucessores também foram alteradas pelos próprios pontífices, como em Extra, De consanguinitate, c. non debet...”

Quanto à chave infalível do conhecimento, Zenzellinus escreveu que os inimigos do papa a haviam criado como uma fantasia de suas próprias imaginações, pois sua origem não podia ser rastreada a qualquer lei, divina ou humana, ao menos no sentido em que os frades dissidentes empregavam o termo. Zenzellinus foi igualmente mordaz ao discutir a doutrina franciscana da pobreza absoluta de Cristo. A doutrina era claramente contrária à Escritura. Afirmar que a Sagrada Escritura mente era destruir os únicos meios de autenticar a fé cristã, pois:

A fé não pode ser provada entre os homens, exceto pela Sagrada Escritura...”

Em todas essas explicações dos textos de João XXII, podemos supor que Zenzellinus estava apenas declarando, sem interpretar, os significados que o próprio papa pretendia transmitir, mas que expressava de forma mais enigmática”. (p. 195-196)

Encerramos aqui a segunda parte do resumo da obra de Brian Tierney, em que exploramos a origem da ideia da infalibilidade papal, bem como suas bases frágeis e espúrias. No próximo artigo, vamos explorar como e por que esta doutrina, que surgiu nos setores heterodoxos e marginalizados da teologia, seria abraçada por papas e teólogos de maior peso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não serão aceitos comentários que;

- Tenham ofensas;
- Não sejam pertinentes ao tema do artigo;
- Sejam Ctrl C + Ctrl V de outros blogs e sites.

É permitido citar outras blogs e sites, desde que o comentarista apenas post o link do artigo ou cite trechos do artigo. A cópia integral não será permitida.