segunda-feira, 8 de abril de 2019

Salvação Fora da Igreja: Tomás de Aquino vs A Igreja de Roma (Parte 2)


Nesta segunda parte, vamos explorar a posição daquele que melhor representa o pensamento medieval sobre o tema – Tomás de Aquino. Seguiremos abordando o material de F.A Sullivan que apresenta a pesquisa histórica mais substanciosa sobre a doutrina “fora da igreja não há salvação”. Nosso enfoque neste teólogo se dá pela sua importância para a Igreja de Roma. Não raramente apologistas católicos citam Aquino como uma espécie de porta-voz da doutrina de Roma. Como já demonstrado em outros artigos neste blog, a suposição de que o ensino de Aquino é necessariamente o ensino de Roma é falsa. O tema em questão é mais um dentre outros que oporia o atual ensino de Roma e o teólogo medieval.

Vimos na primeira parte que Agostinho desenvolveu a ideia de que a vontade salvífica de Deus não era universal. Dessa forma, alguns não seriam salvos apenas porque não era a vontade divina salvá-los. Agostinho resolvia o problema dos não-evangelizados apelando à doutrina da predestinação. Esta posição não prevaleceria entre os teólogos medievais. Sullivan escreve:

O fato de que na igreja oriental nunca houve qualquer dúvida sobre a universalidade da vontade salvífica de Deus, e que a controvérsia levantada por Gottschalk no Ocidente tinha sido resolvida em favor da doutrina de Hincmar de Reims, significava que para os teólogos medievais não havia dúvida em rejeitar à posterior exegese de Santo Agostinho de 1 Timóteo 2: 4. Sua teoria de um salvamento menos que universal não prevaleceria para se tornar parte da tradição cristã de linha principal. Houve um claro consenso entre os teólogos medievais de que a vontade salvífica “antecedente” de Deus é verdadeiramente universal. (Sullivan, Francis A, Salvation Outside the Church? Tracing the History of the Catholic Response, Wipf and Stock Publishers, 2002, p. 45)

Sullivan menciona de relance uma questão paralela à salvação dos não-evangelizados, que seria a salvação dos infantes. Qual seria o destino das crianças que morreram sem o batismo? De forma semelhante, os teólogos medievais não seguiriam as posições de Agostinho:

Outro ponto de vista de Agostinho que não sobreviveu foi que as crianças que morreram não-batizadas sofreriam (mitigavam) a punição no inferno pela culpa do pecado original. Foi Santo Anselmo (1033-1109) que forneceu a chave para a solução desse problema, com sua percepção de que o pecado original consiste na privação da justiça original de nossos primeiros pais. A partir dessa premissa, Pedro Abelardo (1079-1142) chegou à conclusão de que a consequência do pecado original para os bebês que morreram não batizados seria simplesmente a privação da visão beatífica, e não o castigo positivo devido ao pecado pessoal. A conclusão de Abelardo foi confirmada por Pedro Lombardo, cujo Livro das Sentenças, concluído em 1158, tornou-se o livro padrão de teologia para a Idade Média e adiante. A influência de Lombardo foi tal que sua doutrina sobre o destino de crianças não batizadas foi retomada e confirmada pelo papa Inocêncio III em uma carta que ele escreveu ao bispo de Arles em 1201. O papa escreveu: “A punição do pecado original é a falta da visão de Deus; a do pecado real é o tormento do inferno eterno.” Depois dessa aprovação papal da solução dos teólogos medievais ao problema do destino de crianças não batizadas (posteriormente conhecida como a solução “limbo”), a rigorosa doutrina de Santo Agostinho sobre esta questão foi geralmente abandonada. A Igreja Católica nunca declarou definitivamente que a solução do “limbo” fosse a verdadeira, mas a defendeu contra os jansenistas que afirmavam que ela envolvia algo da heresia do pelagianismo. (F.A Sullivan, p. 45-46)

Esta é só mais uma demonstração da ineficiência do magistério da Igreja Romana. Apologistas católicos afirmam que necessitamos do magistério para ter certeza doutrinária. Sem o magistério romano, não podemos diferenciar o ensino correto do ensino falso. A questão é como um magistério que permite que gerações e gerações de cristãos morram sem estarem esclarecidos sobre a doutrina correta podem ter tal segurança doutrinária? Uma questão importante é que neste período não havia a diferenciação entre falível ou infalível, magistério extraordinário ou ordinário. Tais categorias só seriam criadas no Concílio Vaticano I com a definição de infalibilidade papal. Ou seja, cristãos desse período acreditaram sim que o limbo era parte da verdade revelada. No entanto, hoje o magistério apenas diz que não se sabe ainda.

Aquino tinha soluções diferentes a depender do tempo em questão a respeito da salvação fora da igreja. Assim como os pais da Igreja, ele considerava de forma diferente os que viveram antes e após Cristo. Sullivan comenta:

Como veremos, Tomás admitiu que, em alguns casos, uma fé em Cristo, que estava implícita poderia ser suficiente. No entanto, referindo-se à fé na providência e existência de Deus como descrita em Hebreus 11: 6, ele declarou:

Deve ser dito que em todas as ocasiões e para todos, sempre foi necessário crer explicitamente nessas duas coisas". (Epistola 43:1)

Era um princípio absoluto para São Tomás que ninguém jamais teria sido salvo sem fé na existência e providência de Deus. Era provavelmente um princípio absoluto para ele que “ninguém jamais teve a graça do Espírito Santo exceto através da fé em Cristo, seja explícita ou implícita” (Epistola 43:3,6)

A questão, então, é: para quem e sob quais condições seria a fé implícita em Cristo suficiente? Primeiro, São Tomás admitiu a suficiência de tal fé implícita em Cristo para os gentios antes da era cristã: se não para todos eles, pelo menos para as pessoas comuns a quem nenhuma revelação do messias futuro havia chegado. Tomás acreditava que "muitos dos gentios haviam recebido revelações sobre Cristo". No entanto, ele acrescentou:

“Se alguns gentios foram salvos, sem receber qualquer revelação [sobre Cristo], eles não foram salvos sem fé no mediador. Porque, embora não tivessem fé explícita, eles tinham uma fé implícita na sua fé na provisão divina, acreditando que Deus é o libertador da humanidade de maneiras que Ele mesmo escolhe” (Epistola 43:9,27) (Citado em F.A Sullivan, p. 50-51)

Em resumo, para aqueles que viveram antes de Cristo, a fé na existência e providência de Deus já traria em si uma fé em Cristo, sendo suficiente para salvar. Isto, por si só, já poria Tomás em oposição ao moderno ensino de Roma, segundo o qual até mesmo um pagão, que não crê na existência ou providência do único Deus verdadeiro, poderia ser salvo. Todavia, as ideias de Tomás a respeito daqueles que nasceram na era Cristã eram ainda mais incompatíveis. Sullivan disse:

Enquanto São Tomás permitia a suficiência da fé implícita em Cristo antes que o evangelho tivesse sido promulgado, ele foi categórico ao afirmar a necessidade da fé cristã explícita em seus próprios dias:

“Depois que a graça foi revelada, todos, tanto os eruditos quanto os simples, estão obrigados a ter fé explícita nos mistérios de Cristo, especialmente com respeito àqueles mistérios que são celebrados pública e solenemente na igreja, tais como aqueles que se referem ao mistério da encarnação”. (Enarr. in Ps. 106:14)

Quão absoluta sua convicção foi nesse ponto é ilustrada pela resposta que ele deu ao problema levantado pela possibilidade de que, mesmo em seu próprio dia, poderia haver alguém que não tivesse tido a chance de ouvir a mensagem sobre Cristo. Sua resposta, de que Deus proveria os meios pelos quais tal pessoa poderia chegar à fé explícita em Cristo, mostra quão sem exceção ele acreditava que a necessidade dessa fé era. Por outro lado, sua resposta também envolveu sua convicção sobre a universalidade da vontade salvífica de Deus. (F.A Sullivan, p. 51)

A resposta a qual Sullivan menciona está nas citações abaixo retiradas das obras de Aquino:

Objeção: É possível que alguém possa ser criado na floresta ou entre lobos. Tal homem não pode saber explicitamente algo da fé.

Resposta: É característica da Divina Providência proporcionar a cada homem o necessário para a salvação (…) sempre que de sua parte não haja obstáculo algum. No caso de um homem que busca o bem e aparta-se do mal, pela guia da razão natural, Deus o revelaria através da inspiração interior o que deve ser crido ou enviar-lhe-ia um pregador da fé (...) (De Veritate, 14, a. 11, ad 1)

Aquino acreditava que os que nunca ouviram o evangelho, mas manifestariam a fé em Cristo caso o ouvissem, receberiam a mensagem do evangelho ou por uma revelação privada (o que ele chamou de “inspiração interior”), ou através de um pregador da fé. Era absolutamente impossível um homem nascido na era cristã ser salvo sem manifestar a fé explícita na mensagem do Evangelho. Ninguém que morrera ignorante sobre o evangelho poderia ser salvo. A mesma posição pode ser verificada em outra obra:

Se um homem nascido entre nações bárbaras faz o que pode, Deus mesmo lhe mostrará o que é necessário para a salvação, seja pela inspiração ou enviando-lhe um mestre. (Sent. II, 28, q. 1, a. 4, ad 4)

Sullivan traz outras citações em que a mesma posição é expressa por Tomás:

A convicção de São Tomás de que, por um lado, a fé explícita em Cristo era necessária e, por outro, que Deus não deixaria uma pessoa sincera sem os meios necessários para sua salvação, levou-o a oferecer a seguinte solução para este caso:

A exposição do que deve ser acreditado para a salvação seria fornecida a essa pessoa por Deus, seja por um pregador da fé como no caso de Cornélio ou por uma revelação, de modo que estaria dentro do poder do livre arbítrio fazer um ato de fé! (Encbiridion ad Laurentium de fide et spe et caritatej 23 :93)

Se alguém foi criado no deserto ou entre animais brutos, contanto que ele seguisse sua razão natural em buscar o bem e evitar o mal, nós certamente deveríamos afirmar que Deus revelaria a ele por uma inspiração interior o que deve ser acreditado, ou enviaria um pregador a ele, como ele enviou Pedro a Cornélio. (De natura et gratia 4-5)
Em seu Comentário sobre Romanos, São Tomás mencionou o mesmo caso, mas não mencionou a possibilidade de Deus fornecer revelação ou inspiração. Aqui ele disse apenas que Deus enviaria alguém para pregar o evangelho a uma pessoa criada no deserto, contanto que ele estivesse fazendo o que pudesse com a graça recebida de Deus (De correptione et gratia 7:1 1—12).  (F.A Sullivan, p. 53)

Observem como Aquino utiliza o exemplo de Cornélio para elucidar seu ponto. Deus enviou Pedro a Cornélio. Da mesma forma, Deus enviaria um pregador ao que ainda não recebeu a mensagem, ou até mesmo a revelaria diretamente. Em todo o caso, o salvo jamais morreria ignorante a respeito do evangelho. Apesar de controverso, alguns tomistas (creio ser o grupo minoritário) acreditam que Aquino amadureceu seu posicionamento teológico sobre esta questão. Sullivan traz a posição de J. Guibert, segundo o qual Tomás teria passado a usar a solução agostiniana para o problema dos não-evangelizados:

Finalmente, na Suma Teológica encontramos um tratamento diferente do problema. Aqui não há menção da “criança criada no deserto”, mas, em termos gerais, daqueles que não ouviram nada sobre a fé. O que é mais importante na Suma, que é a obra mais madura de São Tomás, é que não há menção da ideia de que se tais pessoas estivessem fazendo o que estivesse em seu poder, Deus certamente forneceria os meios pelos quais elas poderiam chegar à fé explícita em Cristo. Aqui a solução parece ser mais agostiniana. De fato, uma obra de Santo Agostinho é citada como autoridade para ela. Em resposta à objeção de que as pessoas que não tiveram a chance de ouvir o evangelho não poderiam ser obrigadas a ter fé explícita, Tomás responde:

O homem é obrigado a fazer muitas coisas que ele não pode fazer sem estar curado pela graça, como amar a Deus e ao próximo, e sabiamente acreditar em artigos de fé. Agora, a quem o socorro divino é dado, é dado pela misericórdia de Deus, e a quem é negado, é negado por sua justiça, como castigo pelo pecado anterior, pelo menos pelo pecado original, como diz Agostinho em livro De correptione et gratia. (Contra julianum 4:8,44—45)

A ideia de que Deus poderia justamente negar a graça necessária como uma punição pelo pecado pessoal é meramente o reverso do axioma de que Deus não nega graça àquele que faz o que está em seu poder para fazer. Mas que Deus poderia justamente negar a graça necessária como punição apenas pelo pecado original é uma ideia bem diferente, que São Tomás derivou de um dos trabalhos anti-pelagianos de Santo Agostinho, com o qual ele se tornou mais familiarizado no decorrer de sua sua carreira.

Isto levou à especulação se Tomás, quando escreveu a Suma, poderia não mais estar confiante de que Deus enviaria um pregador para fazer com que a pessoa que estivesse "fazendo o que estava em seu poder" não perdesse a possibilidade de vir a fé explícita em Cristo. J. Guibert sugeriu que, no curso de sua vida, Tomás pode ter percebido que não apenas a rara “criança criada no deserto”, mas nações inteiras ainda nunca haviam ouvido o evangelho pregado, e que para resolver o problema ele apelou à solução agostiniana de que sua ignorância do evangelho poderia ser entendida como um castigo pelo pecado, pelo menos pelo pecado original. (F.A Sullivan, p. 54)

Parece-me claro que Tomás apelou a solução agostiniana na Suma Teológica, o que o colocaria em franca oposição à teologia romana não somente na questão dos não-evangelizados, mas também em oposição à boa parte da soteriologia romana. Os tomistas que se opõem a Guibert afirmam que Aquino continuaria a expressar a solução anterior (não-agostiniana) em obras do mesmo período da Suma Teológica – seria o caso do comentário da Carta aos Romanos. Sabemos que a Suma é uma das últimas obras de Aquino, e embora o comentário de Romanos seja de período semelhante, é difícil afirmar se foi posterior ou anterior à Suma. Além disso, a Suma foi provavelmente escrita no período de 1265-1273, ou seja, é perfeitamente possível que toda a Suma ou ao menos trechos dela tenham sido escritas após o comentário e representem a posição mais madura de Aquino. Algumas datações afirmam que a Suma foi concluída após o comentário aos Romanos (aqui). Dessa forma, a tese de Guibert é no mínimo respeitável e está ancorada no fato de que, em sua fase teológica mais madura, Aquino fez uso da solução agostiniana.

A objeção comumente apresentada por católicos quando apontamos o posicionamento dos teólogos medievais (a exemplo de Aquino) é afirmar que tais homens eram ignorantes a respeito da existência de povos não-evangelizados. Eles viveram antes do descobrimento da América e não saberiam da existência de nações inteiras totalmente ignorantes a respeito do Evangelho. Primeiramente, é evidente que os teólogos medievais lidaram com este problema teológico e elaboraram respostas para a questão. Ainda que eles estivessem a falar apenas no campo da hipótese, não há razão alguma para pensar que eles mudariam o pensamento teológico apenas porque o exemplo deixou de ser hipotético. Ademais, há boas razões para pensar que eles estavam cientes da existência de indivíduos reais que nunca ouviram o Evangelho (caso de Aquino) ou, em alguns casos, até mesmo nações inteiras. Sullivan disse:

O pressuposto comum dos teólogos medievais parece ter sido que o evangelho havia sido pregado em toda parte, e que seria apenas a rara exceção (a criança criada no deserto) se alguém não tivesse ouvido falar de Cristo. Mas há algumas razões para pensar que Aquino pode ter chegado a saber que isso não era tão raro. Em primeiro lugar, no século XIII, Francisco e os missionários dominicanos penetraram bastante na Ásia, e Marco Polo voltou da China (...) Um dominicano contemporâneo [de Aquino], chamado Humberto dos Romanos, também falava de pagãos encontrados nas regiões do norte, referindo-se a eles como adoradores de ídolos chamados Pbiteni, cuja conversão era esperada (29). (F.A Sullivan, p. 55)

Sullivan também relatou:

A questão de se, em seu próprio dia, o Evangelho havia sido pregado em todos os lugares do mundo, São Tomás deu uma resposta diferenciada, distinguindo entre o “renome” (notícia ou fama) de Cristo que havia penetrado em todas as regiões do mundo, e a pregação do evangelho “com pleno efeito”, que envolvia o estabelecimento da igreja (De vocatione 2:17). São Tomás afirmou que este último ainda não havia sido cumprido em todos os lugares e que sua realização era uma condição a ser cumprida antes da chegada final do reino de Deus. São Tomás expressou sua opinião ao dizer que, embora a “notoriedade” do evangelho tivesse alcançado todas as nações, isso não significava que tivesse alcançado todos os indivíduos. Poderia haver alguém que, como a “criança criada no deserto”, não tenha ouvido nada sobre Cristo. (F.A Sullivan, p. 56)

Ou seja, embora não saibamos certamente se Tomás de Aquino estava ciente da existência de nações inteiras não evangelizadas, é certo que ele sabia da existência real e não apenas hipotética de indivíduos que nunca ouviram o evangelho.

Até então nos concentramos na questão dos não-evangelizados, mas devemos também tratar da questão dos judeus, muçulmanos, heréticos e cismáticos. A doutrina da ignorância invencível admite a possibilidade de até mesmo indivíduos de tais grupos serem salvos, ainda que todos eles conheçam o Evangelho. A posição de Aquino era bem diferente. Sullivan prossegue:

Em qualquer caso, a falta de fé cristã por parte de qualquer um que tivesse ouvido falar de Cristo envolveria o pecado da incredulidade, do qual Thomas distingue três tipos:

Visto que o pecado da incredulidade consiste na rejeição da fé, este pode ocorrer de duas maneiras: ou rejeita a fé que nunca foi aceita, e esta é a incredulidade de pagãos ou gentios, ou rejeita a fé cristã que uma vez foi aceita. Ou foi aceito em sua pré-definição (in fura), e esta é a incredulidade dos judeus, ou foi aceito na própria manifestação da verdade, e esta é a incredulidade dos hereges. (De veritate praedestinationis 3: 16—18)

Não pode haver dúvida sobre o fato de que São Tomás julgou todos os judeus e hereges como culpados de incredulidade pecaminosa, junto com "gentios" e os muçulmanos, que se acredita terem ouvido o suficiente sobre a religião cristã para serem culpados rejeitá-la (...) Como já vimos, São Tomás reconheceu a possibilidade de alguém ser tão totalmente ignorante da fé que sua incredulidade seria simplesmente inculpável. Ao mesmo tempo, parece claro que ele compartilhou, com seus contemporâneos, a visão de que nenhum judeu ou muçulmano teria tal desculpa, ou escaparia da justa condenação pela rejeição da fé cristã. (F.A Sullivan, p. 58)

Em síntese, podemos afirmar que Tomás de Aquino não cria na possibilidade de salvação de hereges, judeus ou mulçumanos. Muito menos acreditava que pessoas que morreram ignorantes a respeito do evangelho poderiam ser salvas. Fé explícita é uma condição indispensável para a salvação. 

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Salvação Fora da Igreja: Os Pais da Igreja vs. A Igreja de Roma (Parte 1)


Iremos fazer a viagem histórica mais longa desse blog. Usualmente analisamos as doutrinas num período de tempo que compreende os primeiros séculos do cristianismo – comumente o período dos pais da igreja. Dessa vez iremos analisar se o atual ensino da Igreja Romana sobre o slogan “fora da Igreja não há salvação” é consistente com o passado, ou para usar termos mais católicos, com a tradição. Atualmente, há grupos tradicionalistas e sedevacantistas afirmando que a Igreja Romana, tendo sido tomada por modernistas, alterou o ensino histórico sobre esse tema. Se isto for verdade (pretendo demonstrar que é), significa que o magistério católico não é infalível.

Os próximos artigos terão como base o trabalho do renomado eclesiologista católico romano Francis A. Sullivan. Não é a primeira vez que o utilizamos neste blog. Nossos artigos sobre sucessão apostólica (aqui) são em grande parte inspirados na obra desse teólogo. Sullivan apresenta uma substanciosa pesquisa histórica (veja aqui seu livro). Primeiro, trataremos do pensamento patrístico, depois dos teólogos e concílios medievais e então das primeiras sementes da doutrina atual que somente surge no magistério oficial no séc. XIX.

O ensino moderno de Roma

Slogan’s podem ser enganosos. Normalmente um slogan não diz muito sobre seu próprio significado. Duas ou mais pessoas podem concordar com o slogan “Fora da Igreja não há salvação”, mas sustentarem opiniões completamente diferentes sobre seu significado. O papa João Paulo II afirmou:

"... Entre as coisas que a Igreja sempre pregou e nunca deixará de pregar está também a afirmação infalível que nos ensina que 'fora da Igreja não há salvação'." (Fonte)

O catecismo expressa o ensino moderno sobre o slogan:

171. Que significa a afirmação: 'Fora da Igreja não há salvação'?
846-848
Significa que toda a salvação vem de Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é o seu corpo. Portanto não poderiam ser salvos os que, conhecendo a Igreja como fundada por Cristo e necessária à salvação, nela não entrassem e nela não perseverassem. Ao mesmo tempo, graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita." (Fonte)

Todos aqueles que tiverem a chamada ignorância invencível podem ser salvos, mesmo sem expressar fé em Jesus. Isto quer dizer que mesmo pessoas que nunca ouviram falar de Jesus (os não-evangelizados), muçulmanos, judeus, cismáticos e hereges podem ser salvos.

Os Pais da Igreja dos três primeiros séculos

Os cristãos primitivos tiveram que lidar com uma objeção frequentemente levantada por pagãos e judeus – como Jesus poderia ser o salvador se ele veio tão recentemente. Como ficaria a situação dos que viveram antes de Cristo? A resposta cristã sempre foi no sentido de que a salvação dos judeus da antiga aliança e em alguns casos até mesmo de pagãos tementes a Deus era possível. Sullivan escreveu:

Há certamente outras evidências, nos escritos dos pais anteriores a Santo Agostinho, de uma resposta positiva à questão sobre a possibilidade de salvação para as pessoas que viveram antes da vinda de Cristo. Uma fonte frutífera de especulação sobre isso também foi encontrada no Novo Testamento, na referência à "pregação aos mortos" de Cristo durante o tempo entre sua morte e ressurreição (1 Pe 3:19 e 4:6). Contudo, o que temos visto deve ser suficiente para mostrar quão geral era a visão de que Deus havia providenciado os meios de salvação tanto para os judeus quanto para os gentios durante a era pré-cristã. Também foi comumente afirmado que a salvação sempre foi através de Cristo, embora houvesse diferentes explicações sobre isso. (Sullivan, Francis A, Salvation Outside the Church? Tracing the History of the Catholic Response, Wipf and Stock Publishers, 2002, p. 17)

Sobre a salvação na era cristã, Inácio de Antioquia escreveu no início do século II:

Não sejam enganados meus irmãos: se alguém segue um cismático, ele não herda o Reino de Deus. Se alguém anda em doutrina estranha, ele não tem parte na paixão. (Carta aos Filadelfios)

Sullivan comenta:

Deve-se notar que aqui não é apenas o “criador do cisma”, mas também aqueles que o seguem, que não herdarão o reino de Deus. Da mesma forma, não é apenas o originador da falsa doutrina, mas também aqueles que nela andam, que não terão parte na paixão. Quando Inácio adverte cismáticos cristãos e hereges que não há salvação para eles fora da igreja, ele claramente julga-os pessoalmente culpados por estarem do lado de fora. (Sullivan, p. 18)

Irineu escreveu na segunda metade do séc. II:

Na igreja Deus colocou apóstolos, profetas, mestres e todas as outras obras do Espírito, dos quais ninguém é participante a menos que pertença à igreja, mas que se defraudam da vida, por uma mente má e um péssimo meio de agir. Pois onde a igreja está, há o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus, há a igreja e toda a graça. (Contra as Heresias 3:24:1)

Sullivan diz:

Os gnósticos se orgulhavam de seu conhecimento superior, mas Irineu os avisou que é somente na verdadeira igreja que se pode ter a vida e a graça do Espírito, da qual hereges e mestres se defraudam. É óbvio que Irineu os considerou culpados de sua separação da igreja e, portanto, responsáveis por sua própria exclusão do reino do Espírito. (Sullivan, p. 19)

No entanto, há uma citação que alguns poderiam apontar como evidência de que Irineu cria na possibilidade de salvação de não cristãos:

Cristo não veio somente para aqueles que viveram na época do imperador Tibério, nem o Pai exerce sua providência somente para aqueles que estão vivendo agora. Ao contrário, ele providenciou para todos aqueles que desde o princípio viveram virtuosamente em sua própria geração, temeram e amaram a Deus, e trataram seus vizinhos com justiça e bondade, e desejaram ver a Cristo e ouvir sua voz (...) (Contra as Heresias 4:22:2)

O teólogo católico comenta:

A última frase obviamente se refere ao povo de Israel que esperava a vinda do messias. Talvez possa ser tomado também para se referir aos gentios que passaram a acreditar em Deus como salvador, e assim se poderia dizer que desejavam implicitamente a vinda de Cristo. (Sullivan, p. 16)

Ou seja, Irineu está afirmando que houve salvação entre aqueles que viveram antes de Cristo. Eles “desejaram ver a Cristo”. O bispo de Lyon nada está falando sobre os que vieram após o advento. No século III, Orígenes escreveu:

Este comando é dado à mulher que havia sido prostituta antes: “Todos os que são encontrados em sua casa serão salvos. Mas, no que diz respeito àqueles que saem de sua casa, ficaremos livres deste juramento que fizemos a você”. Portanto, se alguém quiser ser salvo, que venha a esta casa dela que já foi prostituta. Se alguém desse povo deseja ser salvo, que ele venha a esta casa, para que possa encontrar a salvação. Que ele venha a esta casa, na qual o sangue de Cristo é o sinal da redenção (...) Portanto, que ninguém persuada si mesmo, não engane a si mesmo: fora desta casa, isto é, fora da igreja, ninguém é salvo. Pois se alguém sair, ele é responsável por sua própria morte." (Homilias em Josué 3:5)

Segue o comentário:

Algumas observações exegéticas podem ser úteis aqui. A “mulher que foi prostituta” sugere a imagem da igreja gentia como pecadora convertida. Ela que viveu no vício pagão é agora a esposa casta de Cristo. O cordão vermelho que Raabe prendeu da janela era o sinal para o exército hebreu invasor de que sua casa seria poupada; para Orígenes, isso significa o sangue de Cristo, que é o sinal de redenção para a igreja. O convite de Orígenes aos membros do "povo" é claramente direcionado aos judeus que não aceitaram a mensagem cristã de salvação. Mas o principal aviso nesta passagem é dirigido contra aqueles que saem da única casa em que a salvação é encontrada. Assim como era o caso em Jericó, qualquer pessoa que saísse também seria responsável por sua própria morte. Isso se refere claramente aos cristãos que, tendo estado na igreja, o deixariam para se juntar a uma seita herética ou estranha. Não há salvação fora da igreja, e aqueles que saem têm apenas a si mesmos para culpar por sua perda. (Sullivan, p. 19-20)

Passemos para um dos mais citados padres da Igreja quando se trata esta questão – Cipriano de Cartago. Ele disse:

Nem o batismo de confissão pública [da fé sob tortura], nem de sangue [derramado pela fé], pode trazer salvação para o herege, porque não há salvação fora da igreja. (Epístola 73:21)

E ainda em sua obra “Da Unidade da Igreja”:

Ainda que esses homens fossem mortos pela confissão do nome cristão, o seu sangue não lavaria esta mancha. O pecado da discórdia é tão grande e tão imperdoável, que não se apaga nem pelos tormentos. Não pode ser mártir quem não está na Igreja, não pode alcançar o Reino quem abandonou aquela que nasceu para reinar. (Da Unidade da Igreja 14:1)

Aquele que, afastando-se da Igreja, vai juntar-se a uma adúltera, fica privado dos bens prometidos à Igreja. Quem abandona a Igreja de Cristo não chegará aos prêmios de Cristo. Torna-se estranho, torna-se profano, torna-se inimigo. Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe. Como ninguém se pôde salvar fora da arca de Noé, assim ninguém se salva fora da Igreja (Da Unidade da Igreja 6:2-3)

Sullivan diz:

Embora, como vimos, outros antes dele tivessem advertido que não havia salvação fora da igreja, o nome de Cipriano está especialmente associado a esse axioma, que ocorre com frequência e urgência em seus escritos. Apesar dessa frequência, no entanto, não há nenhum exemplo de ele endereçar esta advertência aos não-cristãos que ainda eram a maioria do povo no império romano de sua época. Cipriano dirigiu esta advertência para os cristãos que estavam em perigo de serem separados da igreja pela excomunhão, ou já estavam separados dela por cisma. Em todos os casos, há evidências claras de que Cipriano julgou tais pessoas culpadas de sua separação da igreja e, portanto, pessoalmente responsáveis ​​por sua exclusão da salvação para ser encontrada somente na igreja. (Sullivan, p. 20)

Tendo visto os pais da igreja dos três primeiros séculos, observamos que suas advertências quanto a não disponibilidade de salvação fora da igreja foram direcionadas geralmente a cismáticos e hereges. Não encontramos ainda respostas específicas para o caso daqueles que ainda não haviam ouvido o evangelho. Contudo, eles consideram os cismáticos e hereges culpados e merecedores da condenação eterna. A partir disso, pode-se dizer que eles não adotavam a ideia da ignorância invencível para esses grupos.

Pais da Igreja do século quatro

Sullivan comenta sobre este período:

É agora que encontramos os pais aplicando a doutrina de que “não há salvação fora da igreja” para a situação dos pagãos e judeus. Como vimos, a advertência dirigida aos hereges e cismáticos cristãos incluía um julgamento sobre sua culpa por estar fora da igreja. O que encontramos agora é um julgamento semelhante de culpa em relação a todos que não aceitaram a fé cristã (...) A conclusão foi que aqueles que não o aceitaram eram culpados de recusar a oferta de salvação de Deus e seriam justamente condenados. (Sullivan, p. 24)

O mesmo julgamento de culpa aplicado a todos os heréticos e cismáticos era agora aplicado a todos os judeus e pagãos que rejeitavam a fé cristã. Ambrósio de Milão disse:
Se alguém não acredita em Cristo, defraudar-se-á desse benefício universal, como se alguém bloqueasse os raios do sol fechando sua janela. Pois, a misericórdia do Senhor foi espalhada pela igreja para todas as nações; a fé se espalhou para todos os povos. (Sermão 8:57 no Salmo 118)

Gregório de Nyssa – contemporâneo de Ambrósio – também escreveu:

Se, então, a fé é uma coisa boa, eles dizem, por que esse presente não vem para todos? Agora, se o que estamos dizendo foi tomado como significando que a fé foi distribuída aos homens pela vontade divina de tal forma que alguns foram chamados, mas outros não receberam nenhum chamado à fé, então com razão alguém poderia acusar este mistério de injustiça. Mas se, de fato, a convocação foi dada a todos, sem diferença em razão de posição, idade ou nação (...) como poderia ser correto culpar a Deus pelo fato de que sua palavra não alcançou seu domínio sobre todos? Pois aquele que tem plenos poderes sobre o universo, pela suprema honra da humanidade, deixou algo em nosso poder, do qual cada um é o mestre, e esta é a vontade, uma coisa que não pode ser escravizada, e tem poder auto-determinante, uma vez que está assentada na liberdade de pensamento e na mente. Portanto, tal culpa seria mais justamente atribuída àqueles que não foram atraídos pela fé, do que àquele que os chamou para acreditar. (Oração catequética 30)

Observem como Gregório culpa a todos os que não tiveram fé em Cristo. Ele não acreditava na eleição incondicional e atribua unicamente ao arbítrio da criatura a culpa por não ser salvo. Não havia ignorância invencível aqui. João Crisóstomo, escrevendo no fim do séc. IV, foi mais explícito:

Ninguém deveria pensar que a ignorância desculpa o não crente (...) Quando você é ignorante do que poderia ser facilmente conhecido, você tem que sofrer a penalidade. Quando nós fazemos tudo o que nos é possível, em assuntos onde nos falta conhecimento, Deus irá nos estender a sua mão. Mas, se não fazemos o que podemos, Deus não nos estenderá a sua ajuda (...) Então diga: “Como Deus tem negligenciado o pagão sincero e honesto?” Você perceberá que ele não tem sido diligente na busca da verdade, desde que o que concerne à verdade é agora claro como o sol. De quem eles obterão o perdão, quando eles veem a doutrina da verdade diante deles, não fazendo esforço para conhece-la? Pois agora o nome de Deus é proclamado para todos. O que os profetas predisseram se tornou verdade, e a religião dos pagãos foi provada falsa (...) É impossível que alguém que seja vigilante na busca da verdade seja desprezado por Deus. (Homilia em Romanos 26:3-4)

Crisóstomo retorna a este argumento numa homilia no qual ele estava exortando seu rebanho a orar pela conversão dos pagãos:

Cristo deu a si mesmo pelos pagãos? Você pergunta. Sim, Cristo morreu pelos pagãos também. Como você então não tem orado por eles? Mas como é isto você pergunta, já que eles não têm crido? Isto é porque eles não desejavam. Cristo fez a sua parte para com eles, sua paixão testemunha isto. (Homília em 1 Timóteo 7:2)

Sullivan comenta sobre Crisóstomo:

Foi sem dúvida o julgamento de St. João Crisóstomo de que não havia nenhuma salvação para os pagãos fora da igreja e que era por própria culpa que eles estavam fora. Seu julgamento sobre os judeus de seus dias foi ainda mais implacável. Os sermões que ele pregou em Antioquia advertindo os cristãos contra a participação em festividades judaicas contém algumas das mais ofensivas linguagens sobre os judeus a ser encontrada na literatura cristã. Que ele considerou os judeus culpados por rejeitarem a Cristo, e os excluiu da salvação desde que eles persistiram nesta rejeição, é evidente em todas as páginas desses sermões. É suficiente mencionar apenas uma observação que ele fez, no curso de uma exortação para alguns de seus membros que estavam resistindo ao seu chamado para conversão. Ele os avisou:

Você tem motivos para se envergonharem caso não melhorem, mas persistam em seu comportamento prematuro. Isto é o que destruiu os judeus. (Discurso contra os cristãos judaizantes). (Sullivan, p. 26)

Sullivan fornece um sumário da posição dos pais da igreja até o fim do séc. IV. Embora seja possível que as posições variassem, é claro que todas elas são incompatíveis com o atual ensino da Igreja de Roma:

Três pontos destacam-se no pensamento dos escritores deste período [séculos II a IV]. A primeira é sua atitude geralmente positiva sobre a possibilidade de salvação tanto para os judeus como para os gentios que viveram antes da vinda de Cristo. A segunda é a sua atitude uniformemente negativa sobre a possibilidade de salvação para os cristãos que foram separados da grande igreja por heresia ou cisma. Estes eles julgaram culpado de grave pecado pessoal contra a caridade, uma vez que identificaram a comunhão da igreja com o amor, e viram todos os que aderiram a um grupo cismático e não meramente seus fundadores como culpados do pecado de cisma. O terceiro ponto é que é apenas no fim do quarto século, quando o cristianismo se tornou a religião oficial do império e a maioria de seus cidadãos aderiu a ele, encontramos o axioma “Nenhuma salvação fora da igreja” sendo explicitamente aplicado a pagãos e judeus. Aqui o julgamento negativo baseou-se no pressuposto de que agora todos já tinham a oportunidade de aceitar a mensagem cristã, que a sua verdade era evidente para todos, e que aqueles que se recusaram a aceitá-lo estavam fechando seus olhos para a verdade pela qual eles poderiam ser salvos. (Sullivan, p. 27)

Agostinho de Hipona

Agostinha merece um capítulo à parte porque nenhum pai da Igreja tratou de forma tão detalhada a questão da salvação fora da igreja. Agostinho seguiu o ensino tradicional sobre a possibilidade de salvação dos que viveram antes de Cristo. Esta ideia está contida em sua carta a Deogratias, a qual Sullivan comenta:

Nessa resposta à pergunta feita por Deogratias, encontramos várias das convicções de Agostinho em relação economia divina da salvação. Primeiro, a salvação sempre foi através da fé em Cristo e adoração a ele; só isso é a verdadeira religião. No entanto, essa religião sempre esteve disponível para aqueles que eram dignos dela. Mesmo aqueles que não são da raça hebraica receberam alguma revelação obscura, mas suficiente. Se tal revelação não foi feita a alguns, foi porque Deus previu que eles não acreditariam se lhes fosse feito. Daí eles foram responsáveis ​​por sua ignorância do mesmo. Agostinho tirou conclusões adicionais dos princípios que acabamos de mencionar. Uma foi que todos aqueles que já viveram justamente foram salvos por sua fé em Cristo, tiveram Cristo como sua cabeça e foram membros de seu corpo. Assim o corpo e Cristo consiste de todos os justos, começando com Abel, o primeiro homem a morrer na amizade de Deus (3) (...) Ao mesmo tempo, temos que ter em mente a convicção de Agostinho de que ninguém jamais foi salvo, exceto pela fé em Cristo, o único mediador da salvação. Ele não dá uma explicação muito satisfatória de como os gentios poderiam ter chegado a tal fé. Parece que ele simplesmente concluiu, a partir da premissa de que eles devem ter tido fé em Cristo para serem salvos, que deveria estar disponível para eles.  (Sullivan, p. 30)

Observem como Agostinho fez uso da presciência divina para explicar porque alguns gentios não receberam qualquer revelação a respeito do Cristo. Mais importante ainda é perceber que ninguém poderia ser salvo sem expressar fé em Cristo. Agostinho escreveu sobre os hereges e cismáticos:

Quem é separado da Igreja Católica pelo único pecado de ter se apartado da unidade de Cristo, não importa quão estimável tenha sido a vida que ele viveu. Ele não terá vida e sobre ele restará a ira de Deus. (Epístola 141:5)

E também:

O inimigo da unidade não tem parte no amor divino. Consequentemente, aqueles que estão fora da igreja não têm o Espírito Santo. (Epístola 185:50)

O bispo de Hipona disse ao se referir ao batismo ministrado pelos donatistas:

Quando uma pessoa é batizada em algum grupo herético ou cismático, fora da comunhão da igreja, seu batismo não é proveitoso para ele, na medida em que ele dá seu consentimento à perversidade daqueles hereges ou cismáticos. (Do batismo 3:16:2)

Numa declaração mais explicita ele diz:

Fora da Igreja é possível tudo, exceto a salvação. É possível ter honras, é possível ter sacramentos, é possível cantar aleluias, é possível responder amém, é possível possuir o Evangelho, é possível ter fé no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, é possível pregar; mas em nenhum lugar senão na Igreja Católica, é possível encontrar a salvação. (Sermo ad caesariensis ecclesiae plebem 6)

Finalmente, Agostinho insiste que mesmo se o membro de uma seita herética sofresse o martírio, isto não iria salvá-lo:

O batismo não será de nenhum benefício para o herético se, enquanto fora da Igreja, ele fosse morto por confessar a Cristo. Esta é a verdade. O fato de permanecer fora da Igreja prova que ele não tem caridade. (Do batismo 4:17-24)

Será que Agostinho diferenciou aqueles que iniciaram o cisma daqueles que apenas seguiram ou mesmo já nasceram num grupo cismático. Não seria possível alguém seguir o grupo errado, porém, estando de boa-fé (ignorante invencível)?

Aqueles que por ignorância são batizados lá [em um grupo cismático], achando que seja a igreja de Cristo, cometem um pecado menos grave em comparação com aqueles [culpados de iniciar o cisma]. No entanto, eles também são feridos pelo sacrilégio do cisma. Não se pode dizer que eles não sejam gravemente feridos por causa disso, sob o argumento de que os outros estão mais gravemente feridos. (Do batismo 1:5-6)

Embora estabeleça uma diferença de gravidade, os seguidores do cismático também eram culpados. Sullivan escreveu:

Em nossa época ecumênica moderna, sem dúvida estamos inclinados a considerar Santo Agostinho excessivamente duro ao julgar todos os que pertenciam a um grupo cristão separado como compartilhando a culpa do cisma e, portanto, vivendo em um grave pecado contra a caridade. (Sullivan, p. 32)

Alguns apontam a seguinte citação para defender a possibilidade de salvação dos cismáticos/hereges na visão de Agostinho:

O apóstolo Paulo disse: “Quanto a um homem que é herege, depois de admoestá-lo uma ou duas vezes, nada mais tem a ver com ele” (Tito 3:10). Mas aqueles que mantêm sua própria opinião, por mais falsos e pervertidos, sem má vontade obstinada, especialmente aqueles que não originaram o erro por presunção ousada, mas o receberam de pais que haviam se desviado (...) aqueles que buscam a verdade com cuidado e estão prontos para serem corrigidos quando a encontrarem, não devem ser classificados entre os hereges. (Epístola 43:1)

Sullivan traz luz a esta citação:

Agostinho quer dizer que essas pessoas podem ser salvas fora da Igreja Católica? O contexto da carta mostra que o que ele tinha em mente era defender-se contra a acusação de que, ao escrever esta carta, ele estava desobedecendo a injunção das escrituras de não ter nada a ver com hereges. Em outras palavras, ele estava dizendo que os homens a quem ele estava escrevendo esta carta não eram do tipo de hereges com quem um cristão não deve ter nada para fazer. Por outro lado, passagens posteriores da mesma carta mostram que ele estava longe de ser otimista sobre suas chances de salvação se permanecessem em sua seita. Pelo contrário, que ele os viu em perigo de perder suas almas fica claro em sua advertência:

Não é uma questão de perigo para seu ouro ou prata, sua terra ou suas fazendas ou até mesmo sua saúde corporal. Estamos chamando as vossas almas para alcançar a vida eterna e evitar a morte eterna. (Epístola 43:4-6 citado em Sullivan, p. 32)

Suas palavras finais a eles são ainda mais fortes:

Deus vê que nada força você a permanecer neste estado de cisma pestilento e sacrílego. Você pode se libertar caso, por uma questão de ganhar um reino espiritual, você superasse uma atração mundana e se, por uma questão de evitar punições eternas, você não temesse ofender a amizade dos homens que não lhe trazem nada a não ser o julgamento de Deus. (Epístola 43:9-27 citado em Sullivan, p. 33-34)

Sullivan prossegue:

A maneira de Agostinho falar de algumas pessoas como aparentemente “dentro” mas realmente “de fora” e de outras como aparentemente “fora” mas realmente “dentro” da igreja levou alguns a concluir que ele admitiu a possibilidade de algumas pessoas estarem separadas da Igreja Católica, no entanto, poderem estar desfrutando da amizade de Deus e no caminho da salvação. No entanto, para agostinho, esta distinção é baseada na presciência de Deus, como é claro a partir da passagem seguinte:

“Há alguns entre estes [que irão ser salvos] que estão no presente vivendo pecaminosamente, ou mesmo caminhando em heresias ou superstições pagãs. E mesmo aqui “Deus sabe quem são os seus”, pois no inefável conhecimento de Deus, muitos que parecem estar fora na verdade estão dentro, e muitos do que estão dentro na verdade estão fora”. (Do Batismo 5:27-38)

Além disso, Agostinho estava convicto de que se alguém estava “fora” por causa de heresia ou cisma estava na verdade “dentro” pela razão da presciência de Deus. Esta pessoa inevitavelmente se juntaria à igreja católica antes que ele ou ela morresse:

“Mas se é o caso de que algumas daquelas pessoas (separadas no presente) pertencem a nós com base na secreta presciência de Deus, é necessário que eles retornassem a nós. Quantos não pertencem a nós e continuam entre nós, e quantos que pertencem a nós parecem estar fora. “O Senhor sabe quem são os seus”. E aqueles que estão dentro mas não pertencem a nós, quando a ocasião se apresentar, irão para fora. Aqueles que pertencem a nós mas estão fora, quando aparecer a ocasião, irão retornar.” (Enarr. in Ps. 106:14)

Embora isso contrarie nossas sensibilidades ecumênicas, temos que reconhecer o fato de que Santo Agostinho oferecia pouca esperança para a salvação de qualquer cristão que morresse em estado de separação da Igreja Católica. Como veremos agora, ele nutriu ainda menos esperança pela salvação daqueles que em seus dias ainda não haviam aceitado a fé cristã e o batismo. (Sulivan, p. 35-36)

Como já dito, os judeus contavam com menos clemência. Sullivan aborda este tópico:

Como alguém poderia esperar, Agostinho numerou judeus não convertidos entre os culpados por desprezar a misericórdia e os dons de Deus em sua recusa em aceitar a fé cristã. Enquanto exortava seu rebanho a demonstrar grande amor pelos judeus, ele não deixou dúvida quanto ao seu julgamento sobre a culpa dos judeus que continuavam rejeitando Cristo:

Se eles ouvem e não obedecem, se eles veem e são despeitados, eles estão entre aqueles sobre quem o salmo diz: “Os maus irão ver e estarão irados, eles irão ranger seus dentes e serão consumidos. (Contra os Judeus 10:15 citado em Sullivan, p. 36)

Por último e mais importante, Agostinho também manifestou sua opinião sobre os não evangelizados. É importante começar constatando que Agostinho era ciente de que havia povos ainda não alcançados. O bispo de Hipona escreveu:

De fato, em nossa própria terra, isto é, na África, há incontáveis tribos bárbaras entre aqueles para quem o evangelho nunca foi pregado. Nós temos evidência diária disso dos cativos que são traídos para cá e são sujeitos ao trabalho escravo pelos romanos. (Epístola 199:12-46)

Sullivan traz mais esclarecimentos:

Em outra carta ao mesmo bispo, Agostinho falou de áreas do mundo que não haviam sido exploradas, de modo que era impossível dizer quantas nações talvez houvesse a quem o evangelho ainda não havia sido pregado (Epístola 197:4). Muito antes disso, em sua carta a Deogratias, referindo-se aos gentios que poderiam não ter tido a chance de chegar à fé salvadora, Agostinho insistiu que a ninguém faltava a essa oportunidade e que se Deus a recusasse a alguém, era porque ele previa que se fosse oferecido, a pessoa recusaria. Em outras palavras, a solução anterior de Agostinho era colocar a culpa no indivíduo pelo fato de que a oportunidade de chegar à fé não lhe foi dada.  Mais tarde, no período anti-pelagiano, Agostinho propôs uma nova solução para este problema: a culpa universalmente contraída do pecado original era suficiente para justificar Deus condenando não apenas os bebês que morreram sem o batismo, mas também os adultos que morreram na ignorância da fé cristã. Há boas razões para acreditar que foi seu esforço em reconciliar a exclusão dessas duas categorias de pessoas da salvação com a justiça de Deus que levou Santo Agostinho à sua teoria sobre as consequências do pecado original para toda a raça humana.

Santo Agostinho estava firmemente convencido de que aqueles que estavam do lado de fora da igreja por falta de fé e batismo não podiam ser salvos, e ele não conhecia nenhuma alternativa entre salvação e condenação ao inferno. Foi apenas séculos depois que a ideia de “limbo” para crianças morrendo sem batismo ganharia terreno. Na opinião de Agostinho, essas crianças, excluídas da salvação por falta de batismo, devem estar no inferno, para sofrer, como ele disse, “a punição mais branda de todas” (Encbiridion ad Laurentium de fide et spe et caritatej 23:93). Refletindo sobre o que ele entendia ser a certeza de que crianças que morrem sem o batismo e os adultos que morrem na ignorância da fé cristã certamente devem ser condenados. Agostinho chegou à conclusão de que, se Deus é justo condenando-os como tais, deve-se concluir que ele seria justo se condenasse toda a raça humana ao inferno. A culpa que justificaria a Deus se ele escolhesse fazer isso poderia ser apenas a culpa do pecado original. E assim Agostinho chegou à sua ideia de que todos os descendentes de Adão constituem uma “massa damnata”, merecendo ser condenado ao inferno, de modo que, se alguns são poupados, é pela pura misericórdia de Deus. Aqui estão dois exemplos do pensamento de Agostinho sobre esse assunto:

“Agora esta graça de Cristo, sem a qual nem crianças nem adultos podem ser salvos, não é dada em troca de méritos, mas é um presente gratuito; por esta razão é chamado de "graça". Portanto, todos aqueles que não são libertados por essa graça, seja porque não puderam ouvir [a mensagem do evangelho], ou porque eles se recusaram a obedecer, ou, sendo incapaz de ouvi-lo por causa de sua infância, eles não receberam o banho batismal pelo qual eles poderiam ser salvos. Todos estes, eu digo, são justamente condenados, porque eles não estão sem pecado - seja o pecado original que eles contraíram ou os pecados que eles adicionaram por seus próprios atos perversos (...) toda a massa, portanto, incorre na penalidade, e se a merecida punição da condenação fosse imposta a todos, seria sem dúvida justamente dispensada (...) Alguém que julga corretamente não poderia culpar a justiça de Deus por condenar toda a humanidade ”. (Da Natureza e da Graça 4-5)

“Se, como a própria verdade nos diz, ninguém é libertado da condenação que incorremos através de Adão, exceto pela fé em Jesus. E, ainda, aquelas pessoas não evitarão a condenação por dizer que não ouviram o evangelho, desde que a fé vem pelo ouvir (...) No entanto, nem aqueles que nunca ouviram o evangelho nem aquelas que por razão da sua infância eram incapazes de crer (...) estão separados desta massa a qual certamente será condenada.” (Da corrupção e da Graça 7:11-12) (Sullivan, p. 37-38)

É claríssimo que, em sua fase anti-pelagiana (a mais tardia), Agostinho não apelava mais a presciência de Deus para resolver o problema dos não-evangelizados. Ele afirmava que todos eles estavam justamente condenados por causa do pecado original e de seus pecados pessoais. Sullivan ainda diz:

A completa consequência do pensamento de Agostinho a respeito da condenação dos infantes que morreram sem batismo e dos adultos que morreram na ignorância da fé cristã era que ele não via como poderia ser verdade que Deus desejava que todos fossem salvos. Seu conceito da vontade divina era que ela sempre era eficaz. Isto é, se Deus deseja, necessariamente acontecerá como ele deseja. Como ele estava certo de que infantes e adultos não seriam salvos, Ele não podia ver como poderia ser dito que Deus desejava a salvação deles. (Sullivan, p. 38)

Isto extrapola a nossa discussão, mas todo esse arrazoado levou Agostinho a acreditar na eleição incondicional. Ou seja, a chave para entender a opinião de Agostinho sobre a salvação fora da igreja está mais na sua soteriologia do que na sua eclesiologia.

Os seguidores de Agostinho

Para terminar esta parte, trataremos de alguns dos seguidores de Agostinho. Um deles – Fulgêncio de Ruspe – merece especial atenção, pois suas palavras ecoariam mil anos depois no Concílio de Florença, a qual será estudado no próximo artigo. Sullivan traz o relatório sobre Fulgêncio:

Aquele que seguiu Agostinho até o último patamar de seu ensinamento anti-pelagiano, e até mesmo o expressou em sua forma mais radical, foi um bispo norte-africano como Agostinho: Fulgêncio de Ruspe (468-533). Aqui está uma passagem de uma obra de Fulgêncio intitulada “Sobre a verdade da predestinação”, que mostrará como ele seguiu fielmente a liderança de Santo Agostinho.

“Se fosse verdade que Deus desejava universalmente que todos fossem salvos e chegassem ao conhecimento da verdade, como é que a própria verdade ocultou de alguns homens o mistério de seu conhecimento? Certamente, àqueles a quem ele negou tal conhecimento, ele também nega a salvação (...) Portanto, ele desejou salvar aqueles a quem deu conhecimento do mistério da salvação e não desejou salvar aqueles a quem ele negava o conhecimento do mistério da salvação. Se ele tivesse pretendido a salvação de ambos, ele teria dado o conhecimento da verdade para ambos”. (3:16-18)

A seguinte declaração de Fulgêncio estava destinada a entrar na história da nossa questão de uma maneira extraordinária, como foi incorporada a um decreto do Concílio de Florença em 1442.

“O mais firmemente asseguro e de nenhuma maneira duvido de que não apenas todos os pagãos, mas também todos os judeus, e todos os hereges e cismáticos que morrem fora da Igreja Católica, irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos.” (De fide, ad Petrum 38) (Sullivan, p. 43)

Sullivan também cita outro seguidor de Agostinho – o monge Gottschalk:

Um monge saxão do século IX chamado Gottschalk, que era um ávido leitor das obras anti-pelagianas de Santo Agostinho e de Fulgêncio de Ruspe, publicou um trabalho cuja tese era que, visto que Deus predestinou algumas pessoas à condenação eterna, não podia ser dito que Deus quis a salvação de todos, ou que Cristo sofreu pela redenção de todos. (Sullivan, p. 44)

É importante mencionar que a ideia agostiniana de que a vontade salvífica de Deus não era universal nunca se tornou o padrão da Igreja antiga. Tal ideia foi rejeitada mesmo por alguns de seus seguidores como Próspero de Aquitânia. Apesar disto, Próspero continuava a seguir a ideia de que os pagãos não poderiam ser salvos sem fé em Cristo:

Pode ser verdade que, assim como sabemos que em tempos antigos alguns povos não foram admitidos à comunhão dos filhos de Deus, também hoje existem nas partes mais remotas do mundo algumas nações que ainda não viram a luz do mundo - a graça do Salvador. Mas não temos dúvidas de que, no julgamento oculto de Deus, para eles também foi designado um tempo de chamada, quando eles ouvirão e aceitarão o Evangelho que agora permanece desconhecido para eles. Mesmo agora eles recebem aquela medida de ajuda geral que o Céu sempre concedeu a todos os homens. A natureza humana, é verdade, foi ferida por uma ferida tão severa que a especulação natural não pode levar uma pessoa ao pleno conhecimento de Deus se a verdadeira luz não dissipar toda a escuridão do seu coração. Em seus desígnios inescrutáveis, o bom e justo Deus não derramou essa luz tão abundantemente nas eras passadas quanto nos nossos dias. (De vocatione 2:17)

Ele estava ciente da existência de povos não alcançados. Contudo, estes povos ainda seriam chamados e aceitariam o evangelho. Ou seja, eles não seriam salvos apenas pelo conhecimento da revelação geral contida nas coisas criadas. Isto fica claro quando afirma “a especulação natural não pode levar uma pessoa ao pleno conhecimento de Deus”. Encerramos esta parte do período patrístico com a conclusão de que o atual ensino da Igreja de Roma não pode evocar a tradição mais primitiva em seu favor. No próximo artigo, analisaremos os concílios medievais e outros teólogos de renome.