Este artigo apresenta
evidências textuais e análises acadêmicas que demonstram que, nos primeiros
séculos do cristianismo, os leigos tinham uma presença mais ativa e, em muitos
aspectos, mais próxima dos princípios defendidos por várias tradições protestantes
posteriores — especialmente no que se refere ao ensino, batismo, carismas e
liderança comunitária. O teólogo católico Yves Congar escreveu:
“Na Igreja primitiva ainda não aparece a distinção entre clérigos e
leigos; vê-se apenas ministérios diversos, nascidos dos carismas e
reconhecidos pela comunidade.” (Lay People in the Church: A Study for a
Theology of Laity, p. 18)
A
participação de leigos no ensino e na celebração de sacramentos
No cristianismo pré-niceno, a
distinção entre clero e laicato existia, mas não carregava o peso sacramental,
jurídico e institucional que teria a partir do século IV. A Igreja era,
sobretudo, uma comunidade carismática, com dons diversos concedidos pelo
Espírito a todos os crentes, conforme 1 Coríntios 12.
A Didaque menciona os profetas
itinerantes, que não pertenciam ao quadro local de “bispos e diáconos” (15,1),
e podiam presidir livremente: “Quando o profeta quiser dar graças, deixe-o
fazê-lo como quiser.”
Tertuliano de Cartago (séc. III),
ao tratar da celebração da Eucaristia e do batismo permite que leigos o façam,
na ausência de clero ordenado, o parecia ser comum neste período, uma vez que
novas Igrejas estavam se formando diariamente devido à atividade missionária:
“Portanto, onde não houver reunião da ordem eclesiástica,
tu mesmo ofereces (o sacrifício) e batizas, e és sacerdote para ti próprio;
mas onde houver três, aí está uma Igreja,
ainda que sejam leigos.” (Tertuliano, De Exhortatione Castitatis 7)
“Além desses [bispo,
presbítero e diácono], até os leigos têm
autoridade para batizar, pois aquilo que se recebe de forma igual pode ser
concedido de forma igual.” (Tertuliano, De Baptismo 17)
Hipólito de Roma, escreveu no
século III, sobre a possibilidade de mestres leigos ensinarem:
“Se chegar um mestre dotado de carisma, não tardeis em ir ao lugar onde
a palavra está sendo dada, pois graça será concedida ao orador para dizer
coisas proveitosas a todos.” (Trad. Apost. 35:3)
“Se alguém disser: ‘Recebi do Senhor o dom de ensinamento’,
seja provado; se ensinar conforme a regra da fé e permanecer humilde, então que ensine, pois a Igreja é edificada por todos; mas, se se ensoberbecer,
exaltando-se a si mesmo e ensinando algo estranho à regra, deve ser silenciado.”
(Tradição Apostólica 11:1-2)
Orígenes de Alexandria (séc.
III) afirma:
“Porém cada pessoa
individualmente é chamada ora apóstolo, ora profeta, ora mestre (doctor)… de acordo com aquilo em que pode ser útil
aos outros.” (Comentário sobre Romanos, Prólogo).
Ou seja, os testemunhos acima
demonstram que leigos participavam do ensino e da celebração de sacramentos como
o batismo/ceia. Paul F. Bradshaw afirma:
“O Novo Testamento, claro,
nada nos diz; e, embora argumentos a partir do silêncio sejam perigosos, o próprio silêncio pode indicar que não
havia qualquer ministério cujo encargo principal fosse pronunciar a oração
eucarística: ninguém foi ordenado ou instituído num ofício que consistisse
primariamente em dizer a bênção sobre o pão e o vinho.” (Liturgical Presidency
in the Early Church, Grove Liturgical Studies 32, 1983, p. 8)
A
participação da comunidade na reconciliação dos que cometiam pecados graves
A confissão auricular
obrigatória a um sacerdote, tal como estabelecida na Idade Média, não existia
no cristianismo primitivo. A confissão era aplicável a pecados graves e
envolviam a participação da comunidade e não apenas do sacerdote isoladamente.
A Didaque, no início do século
II, nos traz:
“Na Igreja confessa as tuas transgressões, e não te aproximes da
oração com consciência má. Este é o caminho da vida.” (Didaque 4,14;
Ante-Nicene Fathers 7)
“Mas em todo Domingo do
Senhor, reuni-vos para partir o pão e dar graças, depois de terdes confessado as vossas transgressões, a fim de que o
vosso sacrifício seja puro. E ninguém que esteja em litígio com o irmão se
junte a vós, até que se reconciliem, para que o sacrifício não seja profanado.”
(Didaque 14,1-2; Ante-Nicene Fathers 7)
As passagens acima sugerem um
processo público e comunitário que ocorria dentro da liturgia do culto. O
pastor de Hermas, escrevendo no século II, diz:
“O anjo que preside ao arrependimento
ordena a Hermas: ‘Publica a tua falta a todos, para que a assembleia ore por ti, e o pecado seja curado’.” (Pastor
de Hermas, Mandamento 4)
Tertuliano, no século III,
escreveu:
“Esse ato, comumente designado
pelo nome grego exomologesis, no qual confessamos nossos pecados ao Senhor, é
uma disciplina de prostração e humildade: manda ao penitente deitar-se em saco
e cinza, cobrir o corpo de luto, abater o espírito em gemidos; prescreve que
não se alimente senão do mais simples, que nutra as orações com jejuns, que se
prostre aos pés dos presbíteros e se ajoelhe diante dos ‘amigos de Deus’, suplicando a todos os irmãos que sejam
embaixadores da sua prece de perdão.” (De paenitentia 9, 3-4; ANF 3, p.
661-662)
A Didascália dos Apóstolos, um
documento do século III, também diz:
Os bispos são exortados a “reunir todo o povo” para chorar, jejuar
e impor as mãos sobre o pecador, “para que a Igreja inteira ore e ele seja
recebido.”
Igrejas
fundadas por leigos e o papel das casas como centros eclesiais
O Novo Testamento menciona um
processo não formal de fundação de Igrejas:
“Então os que haviam sido
dispersos por causa da perseguição que se levantou por ocasião de Estêvão
chegaram até a Fenícia, Chipre e Antioquia, não anunciando a palavra a ninguém,
senão somente aos judeus. Alguns deles, porém — homens de Chipre e de Cirene —, chegando a Antioquia, falavam também
aos gregos, anunciando o Senhor Jesus. A mão do Senhor estava com eles, e grande número creu e se converteu ao
Senhor.” (Atos 11:19-21)
Tertuliano menciona Igrejas
que eram formadas sem estarem inclusas na cadeia da sucessão apostólica, mas,
eram apostólicas na medida em que ensinam a doutrina dos apóstolos:
“Assim, em primeiro lugar, é
evidente que os próprios apóstolos fundaram igrejas em cada cidade; dessas,
todas as demais recebem todos os dias a semente da fé para se tornarem igrejas.
Toda doutrina que, por parentesco, concorda com a das igrejas apostólicas deve
ser tida por verdadeira (...) Há ainda
outras bem mais recentes, que de fato hoje mesmo se estão formando; não por
isso são tidas como menos apostólicas, pois, embora não possam exibir uma sucessão
que remonte aos apóstolos, são reputadas apostólicas pelo parentesco da doutrina
e pela unidade da fé.” (De praescriptione haereticorum 20, 5-6; 32, 5-6)
O renomado erudito Adolf
Harnack atesta:
“Não podemos hesitar em crer
que a grande expansão do cristianismo foi, de fato, realizada por meio de missionários informais”. (The Mission and
Expansion of Christianity in the First Three Centuries, Book III, chap. IV §1;
ed. engl. CCEL)
As primeiras igrejas
reuniam-se em casas particulares de cristãos leigos, que muitas vezes lideravam
essas comunidades. Exemplos do Novo Testamento:
"Saudai igualmente a
igreja que se reúne na casa deles" (Romanos 16:5)
"Saudai os irmãos de
Laodiceia, bem como Ninfa e a igreja que está em sua casa" (Colossenses
4:15)
"À igreja que está em tua
casa" (Filemom 1–2)
Wayne Meeks também diz:
“Nossas fontes nos dão bons
motivos para pensar que [a casa/lar] foi
a unidade básica no estabelecimento do cristianismo na cidade, assim como,
de fato, era a unidade básica da própria cidade. (The First Urban Christians,
p. 29)
A
participação dos leigos na escolha e deposição dos líderes da Igreja
Mesmo nas comunidades cristãs
mais institucionalizadas do período pré-niceno, os leigos não eram excluídos da
escolha dos líderes espirituais. Pelo contrário, há ampla evidência de que a
eleição de presbíteros e bispos envolvia a aprovação da comunidade local,
incluindo os fiéis leigos.
Clemente de Roma, em sua
primeira epístola aos Coríntios (c. 95 d.C.), afirma: "Aqueles que foram
nomeados bispos e diáconos por homens aprovados pelo Espírito, e com o consentimento de toda a igreja..."
(1 Clemente 44).
A Didaquê também instrui as
comunidades a escolherem seus próprios líderes: "Escolhei para vós bispos
e diáconos dignos do Senhor" (Didaquê 15.1).
Cipriano de Cartago é ainda
mais claro:
“E o bispo deve ser ordenado na presença do povo,
que conhece plenamente a vida de cada candidato e já observou a conduta
habitual de cada um.” (Epístola 67:5)
Ele também reconhece que um
bispo impopular poderia ser rejeitado pela comunidade:
“Pois o próprio povo tem autoridade para escolher os dignos e rejeitar
os indignos.” (Epístola 67:3)
O grande historiador da Igreja
Henry Chadwick observa:
“A eleição dos bispos era frequentemente feita por aclamação
popular; tentar impor um bispo a uma comunidade relutante provocava
resistência feroz.” (The Early Church, cap. 2 “Faith and Order”, London /
Harmondsworth: Penguin, 1967, p. 45)
Conclusões
As evidências patrísticas e
historiográficas permitem concluir que:
1. Os leigos tinham papéis
ativos no ensino, batismo, disciplina e assistência;
2. A exclusividade clerical
ainda não era um modelo dominante;
3. A Igreja funcionou durante
um período inicial como um corpo carismático e comunitário;
4. O sacerdócio universal dos
crentes tem base na prática da Igreja primitiva;
5. A reconciliação dos
pecadores envolvia toda a comunidade, não só o clero;
7. Muitas igrejas eram
fundadas e lideradas por leigos;
8. Os leigos participavam da
escolha (e rejeição) dos líderes da Igreja.