Olá caros leitores. Após longo hiato, resolvi voltar ao trabalho apologético. Darei seguimento a publicação de novos artigos neste blog, e também criaremos um canal no youtube e página no instagram para melhor divulgação dos artigos aqui publicados (os links serão divulgados nos próximos dias).
Abaixo, segue uma crítica resumida a teoria do desenvolvimento da doutrina de Newman, que me parece estar sendo cada vez mais abraçada pela apologética católica a fim de justificar as inovações da Igreja de Roma. Já temos alguns artigos (aqui e aqui) sobre o tema que demonstram como a própria adoção dessa teoria é uma ruptura na tradição católica, uma vez que Roma historicamente defendeu suas doutrinas como uma tradição contínua e explícita que remontaria até o período apostólico. Nos próximos dias também traremos a crítica tomista à teoria de Newman.
A teoria do desenvolvimento da doutrina, formulada por John Henry Newman em sua obra seminal An Essay on the Development of Christian Doctrine (1845), tornou-se um dos pilares da teologia católica moderna. Sua função principal é justificar a legitimidade de doutrinas que não possuem testemunho explícito ou uniforme nos primeiros séculos da Igreja, como a infalibilidade papal (dogmatizada em 1870) e a assunção corporal de Maria (1950). Contudo, sob uma perspectiva protestante, essa teoria sofre de múltiplos vícios: relativiza a suficiência e clareza da Escritura, apresenta critérios subjetivos e repousa, em última instância, sobre uma circularidade epistemológica.
1 A doutrina cristã como depósito fixado
Na tradição protestante, a doutrina cristã consiste em um depósito de fé fixado e completo na Escritura: “a fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos” (JUDAS 1.3). O apóstolo Paulo instrui Timóteo: “Guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós” (2 TIMÓTEO 1.14). Esse “depósito” (parakatathēkē) não é um germe de futuras inovações, mas uma entrega plena e definitiva da verdade revelada.
Como afirmou João Calvino: “O Espírito não é autor de novas revelações, ou de alguma doutrina inovadora, mas sim o fiel intérprete da revelação existente” (CALVINO, 2006, p. 109).
Portanto, a função da Igreja é interpretar e aplicar a Escritura, não criar novas doutrinas. O sola Scriptura assegura que não há necessidade de um “desenvolvimento” para além da Palavra inspirada.
2 A crítica protestante aos sete critérios de Newman
Newman propôs sete “notas” para distinguir entre desenvolvimentos legítimos e corrupções (NEWMAN, 1890). Embora apresentem aparência de rigor metodológico, tais critérios são falhos em termos lógicos e teológicos.
2.1 Preservação do tipo
Newman propõe que um verdadeiro desenvolvimento mantém o “tipo” original da doutrina: “Um desenvolvimento verdadeiro, enquanto se amplia, permanece fiel ao tipo do qual deriva” (NEWMAN, 1890, p. 170).
O conceito de “tipo” é altamente maleável. Como determinar, por exemplo, que a doutrina da infalibilidade papal preserva o “tipo” da liderança apostólica, sendo que Pedro jamais reivindicou infalibilidade pessoal? A definição de “tipo” acaba sendo delimitada pelo próprio magistério eclesiástico, resultando em circularidade hermenêutica.
Como observou Oberman: “a insistência na preservação do tipo serve mais para justificar retroativamente doutrinas do que para avaliá-las criticamente” (OBERMAN, 1986, p. 52).
2.2 Continuidade de princípios
Para Newman, desenvolvimentos legítimos mantêm princípios fundamentais da doutrina original.
Princípios isolados podem ser estendidos de forma indevida. Por exemplo, o princípio da honra a Maria pode ser “desenvolvido” até culminar na Imaculada Conceição ou na Assunção, ainda que tais doutrinas não tenham qualquer fundamento claro na Escritura ou na tradição patrística primitiva.
Como escreveu Whitaker: “Não devemos confundir consequências artificiais com a verdade divina revelada” (WHITAKER, 1849, p. 180).
2.3 Poder de assimilação
Segundo Newman, uma doutrina verdadeira assimila elementos de seu ambiente cultural e intelectual.
Este critério valoriza o sincretismo como evidência de autenticidade. Mas a assimilação cultural pode facilmente degenerar em corrupção. O exemplo clássico é a absorção de práticas pagãs no culto cristão medieval — como a veneração de relíquias e santos — frequentemente justificadas como “assimilação”, mas que representaram uma distorção do cristianismo apostólico.
Calvino alertou para esse risco: “Nada é mais perigoso para a pureza da religião do que adaptar-se aos costumes e opiniões do mundo” (CALVINO, 2006, p. 433).
2.4 Lógica sequencial
Desenvolvimentos legítimos seguem uma cadeia lógica a partir de doutrinas precedentes.
A coerência lógica não é critério suficiente de veracidade teológica. É logicamente possível, a partir da doutrina mariana tradicional, desenvolver a ideia de Maria como “co-redentora”, mas esse conceito não possui qualquer respaldo apostólico ou escriturístico.
O teólogo luterano Francis Pieper adverte: “O erro doutrinário geralmente se infiltra sob a aparência de uma conclusão lógica da verdade, mas sem base bíblica” (PIEPER, 1950, p. 87).
2.5 Antecipação precoce
Newman sugere que traços rudimentares de uma doutrina podem ser encontrados nos primeiros tempos.
Tal busca resulta, invariavelmente, em anacronismo interpretativo. Por exemplo, a veneração a Maria como Theotokos no Concílio de Éfeso (431) é retroativamente apresentada como base para a Assunção, ainda que a própria Igreja não tenha definido tal doutrina até 1950.
Kelly observa que muitos dogmas católicos “não possuem suporte claro nas crenças dominantes da Igreja primitiva” (KELLY, 1978, p. 88).
2.6 Consequente vigor
Segundo Newman, doutrinas verdadeiras mostram vitalidade e eficácia na Igreja.
Esse é um critério pragmático e falacioso: heresias também podem ser vigorosas. A teologia da prosperidade hoje possui notável “vitalidade”, mas não por isso é verdadeira.
Lutero destacou: “A verdade de Deus não depende do número de adeptos, mas da fidelidade à Escritura” (LUTERO, 1883, p. 444).
2.7 Persistência crônica
Doutrinas legítimas persistem ao longo do tempo.
A longevidade de uma crença não a valida automaticamente. A Igreja medieval, por séculos, obscureceu a doutrina bíblica da justificação pela fé, até sua redescoberta na Reforma.
Como disse Owen: “A tradição pode preservar erros com a mesma tenacidade que a verdade” (OWEN, 1965, p. 69).
3 A circularidade epistemológica: magistério e desenvolvimento
O ponto mais grave da teoria de Newman, do ponto de vista protestante, é sua dependência do magistério eclesial como árbitro último sobre o que constitui um desenvolvimento legítimo. O próprio Newman reconhece: “É pela autoridade viva da Igreja que a verdadeira doutrina se distingue das corrupções” (NEWMAN, 1890, p. 112).
Entretanto, essa autoridade magisterial é ela mesma um produto do desenvolvimento doutrinário. A infalibilidade papal, dogmatizada apenas em 1870, é agora considerada condição indispensável para autenticar outros desenvolvimentos.
Logo, tem-se aqui uma circularidade:
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O magistério autentica os desenvolvimentos.
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O magistério é um desenvolvimento.
Cunningham identificou este problema já no século XIX: “O apelo ao magistério é um círculo vicioso: ele legitima os desenvolvimentos que, por sua vez, legitimam o magistério” (CUNNINGHAM, 1862, p. 85).
Em contraste, o protestantismo apela à Escritura como única autoridade normativa, livre desse círculo.
4 Desenvolvimento ou corrupção?
Para a teologia reformada, o desenvolvimento legítimo ocorre como aprofundamento na compreensão da revelação já dada, não como acréscimo de novos conteúdos normativos. O ensino clássico expressa-se bem na Confissão de Fé de Westminster: “O conselho inteiro de Deus [...] ou é expressamente declarado na Escritura, ou pode ser logicamente deduzido dela” (WESTMINSTER, 1996, cap. 1, art. 6).
A teoria de Newman, ao admitir novos conteúdos dogmáticos sob o nome de “desenvolvimento”, dissolve a suficiência da Escritura e exalta a tradição eclesial a uma posição normativa paralela.
Heinrich Heppe resume a posição reformada: “A Igreja não pode desenvolver doutrina; ela só pode confessar novamente o que foi revelado de uma vez por todas” (HEPPE, 1978, p. 8).
Conclusão
Embora a teoria de Newman busque oferecer um modelo histórico plausível para a evolução das doutrinas católicas, ela falha em fornecer critérios objetivos, incorre em circularidade epistemológica e relativiza a autoridade normativa da Escritura. A tradição protestante, por sua vez, permanece firme no princípio sola Scriptura, reconhecendo a Escritura como a regra infalível de fé e prática, completa em si mesma e não dependente de desenvolvimentos doutrinários subsequentes.
Referências
CALVINO, João. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
CUNNINGHAM, William. Historical Theology. Edinburgh: T&T Clark, 1862. v. 1.
HEPPE, Heinrich. Reformed Dogmatics. Grand Rapids: Baker, 1978.
KELLY, J. N. D. Early Christian Doctrines. San Francisco: Harper, 1978.
LUTERO, Martinho. Weimarer Ausgabe (WA). v. 7. Weimar: H. Böhlau, 1883.
NEWMAN, John Henry. An Essay on the Development of Christian Doctrine. London: Longmans, Green, 1890.
OBERMAN, Heiko A. The Dawn of the Reformation. Edinburgh: T&T Clark, 1986.
OWEN, John. The Works of John Owen. Edinburgh: Banner of Truth, 1965. v. 1.
PIEPER, Francis. Christian Dogmatics. St. Louis: Concordia, 1950. v. 1.
WESTMINSTER. Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: PES, 1996.
WHITAKER, William. A Disputation on Holy Scripture. Cambridge: Cambridge University Press, 1849.