quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Os Pais Gregos e a Substituição Penal - Parte 2 (séc. IV)


Nesta parte, vamos abordar a evidência fornecida pelos pais gregos. Kelly oferece um bom sumário sobre a Soteriologia dos séculos IV e V:

Quem procurar entender a Soteriologia do quarto século e do quinto ficará profundamente decepcionado se esperar encontrar algo parecido com as sínteses cuidadosamente elaboradas que a teologia da Trindade e da encarnação apresentaram naquela época. Nessas duas áreas, a controvérsia exigiu definições bastante exatas por parte da igreja, enquanto a redenção só passou a ser um campo de batalha entre escolas rivais no século XII, quando a obra de Anselmo, Cur deus homo (c. 1097), concentrou a atenção no assunto. Pelo contrário, o estudante deve estar preparado para tatear em meio a uma variedade de teorias, sem nenhuma relação aparente entre si ou até mutuamente incompatíveis, coexistindo lado a lado e às vezes sustentadas pelo mesmo teólogo. (KELLY, J. N. D. Doutrinas Centrais da Fé Cristã – Origem e Desenvolvimento. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 285)

Isto remonta ao que dissemos no primeiro artigo sobre a abordagem multifacetada dos Pais da Igreja, que poderiam defender teorias aparentemente contraditórias. Entre tantas teorias, Kelly identifica três mais significativas:

Três delas são especialmente significativas, e por questão de clareza serão examinadas no início de nossa análise. Primeiro, havia a chamada teoria "física" ou "mística" (já nos deparamos com ela em Irineu), que vinculava a redenção à encarnação. De acordo com ela, a natureza humana foi santificada, transformada e exaltada no próprio ato de Cristo tornar-se homem (...) Segundo, havia a explicação da redenção em termos de um resgate oferecido ao diabo ou de uma penalidade imposta a ele. A primeira versão remonta a Irineu e Orígenes; a segunda começou neste período, com a crescente percepção da incoerência de atribuir algum direito ao diabo nessa questão. Terceiro, havia a teoria, muitas vezes chamada de "realista", que dirigia a atenção para os sofrimentos do Salvador. Dando mais atenção ao pecado e ao devido castigo do que ao legado trágico do próprio pecado, ela colocava a cruz em primeiro plano e descrevia Cristo substituindo os homens pecadores por Si mesmo, arcando com a penalidade que a justiça exigia que eles pagassem e reconciliando-os com Deus mediante Sua morte sacrificial. (Kelly, p. 285)

A terceira teoria – a realista – embute os principais aspectos da Substituição Penal. Kelly argumenta que embora os estudiosos tendam a ver a abordagem dos pais como incoerente, estas três teorias não são mutuamente exclusivas (p. 286). Por uma questão de ênfase, um determinado autor poderia abordar uma teoria, sem que outras desempenhassem algum papel no seu sistema.

Eusébio de Cesareia (265-339)

Vamos ao testemunho de Eusébio de Cesareia, o renomado historiador cristão:

Mas desde que estando em semelhança de carne pecaminosa, Ele condenou o pecado na carne, as palavras citadas são usadas corretamente. E no sentido de que Ele tornou seus os nossos pecados por Seu amor e benevolência para conosco (...) O Cordeiro de Deus (...) foi castigado em nosso favor e sofreu uma punição que Ele não devia, mas que devíamos por causa da multidão de nossos pecados. Assim, Ele se tornou a causa do perdão dos nossos pecados, porque Ele recebeu a morte por nós, e transferiu para Si o açoite, os insultos e a desonra que eram devidos a nós, e atraiu sobre Si a maldição partilhada, sendo feito maldição por nós. E o que é isso senão o preço de nossas almas? E assim o oráculo diz em nossa pessoa: “Pelas suas pisaduras fomos curados” e “O Senhor o entregou por nossos pecados”. (Demonstração do Evangelho 10:1)

É difícil entender como alguém pode afirmar que nenhum Pai da Igreja defendeu a Substituição Penal (SP) diante desta citação. Cristo foi punido na cruz em nosso lugar. E, por esta razão, nossos pecados são perdoados. Ao ser punido, ele pagou o preço de nossas almas. Eusébio está interpretando Isaías 53, mas diferente de outros Pais da Igreja, ele não apenas cita o texto, mas expressa seu próprio entendimento da passagem. Isto será reafirmado em outra parte:

O Cordeiro de Deus é feito pecado e maldição - pecado pelos pecadores do mundo e maldição por causa daqueles que permanecem em todas as coisas escritas na lei de Moisés. E assim diz o Apóstolo: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós”; e "Aquele que não conheceu pecado, por nós ele o fez pecado." (Demonstração do Evangelho 1:10)

Ele também identifica o sistema sacrifical de Israel como tipo de Cristo:

[Moisés] diz claramente que o sangue das vítimas mortas é uma propiciação no lugar da vida humana. E a lei sobre os sacrifícios sugere que isso deve ser respeitado, se for considerado cuidadosamente. Pois, é necessário que aquele que está sacrificando sempre coloque suas mãos sobre a cabeça da vítima, e leve o animal ao sacerdote seguro por sua cabeça, como quem oferece um sacrifício em seu nome. Assim, ele diz em cada caso: “Ele o trará perante o Senhor e porá as mãos sobre a cabeça da oferta.” Esse é o ritual em todos os casos, nenhum sacrifício é feito de outra forma. E então o raciocínio sustenta que as vítimas são trazidas no lugar das vidas daqueles que as trazem. (Demonstração do Evangelho 1:10)

Os defensores da SP entendem que o sistema sacrifical do Antigo Testamento (A.T) era propiciatório, que o animal sacrificado era um substituto do ofertante e que prefigurava o sacrifício de Cristo. A citação acima evidencia que Eusébio tinha a mesma posição. Ele interpretou o gesto de colocar as mãos sobre a cabeça do animal como uma identificação entre ofertante e o sacrificado – como uma relação substitutiva. A prefiguração do sacrifício de Cristo é atestada abaixo:

Embora o melhor, o grande, digno e divino sacrifício ainda não estivesse disponível para os homens, era necessário que eles pagassem um resgate por sua própria vida com a oferta de animais, e esta era uma vida que representava sua própria natureza. Assim fizeram os homens santos da antiguidade, antecipando pelo Espírito Santo que uma vítima santa, querida a Deus e grande viria um dia para os homens, como oferta pelos pecados do mundo, crendo que como profetas eles deveriam cumprir em símbolo seu sacrifício, e mostrar em tipo o que ainda estava para ser. Mas, quando o que era perfeito veio (...) os primeiros sacrifícios cessaram imediatamente por causa do melhor e verdadeiro Sacrifício. (Demonstração do Evangelho 1:10)

A natureza propiciatória do sacrifício é novamente afirmada:

O grande e precioso resgate foi achado por judeus e gregos, a propiciação pelo mundo inteiro, a vida dada pela vida de todos os homens, a pura oferta por toda mancha e pecado, o Cordeiro de Deus. (Demonstração do Evangelho 1:10)

Eusébio parece ter defendido a imputação de pecados a Cristo:

Ele então (...) marcamos nele todos os nossos pecados, e fixamos nele também a maldição que foi decretada pela lei de Moisés, como Moisés predisse: "Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro." Ele sofreu isso “sendo feito maldição por nós; e fazendo-se pecado por nós.” E então "Ele que não conheceu pecado foi pecado por nós ", e colocou sobre Ele todas as punições devidas a nós por nossos pecados, os grilhões, os insultos, as injúrias, o açoite, os golpes vergonhosos e o troféu coroado da Cruz. (Demonstração do Evangelho 1:10)

O estudioso patrístico católico Jean Rivière disse sobre Eusébio e Orígenes:

As duas ideias de substituição penal e de sacrifício expiatório, que em Orígenes encontramos de forma desconectada, são combinadas em Eusébio, que em consequência, é capaz de dar os contornos de uma teoria jurídica da expiação penal. Embora os escolásticos medievais se aprofundem no problema e busquem a razão para essa substituição nas demandas da justiça divina, mesmo no início do século IV os fundamentos doutrinários já estavam lançados. (Rivière, The Doctrine of the Atonement: A Historical Essay, 2 vols., trans. Cappadelta (London: Kegan Paul, Trench, Trübner, 1909), 1:196)

Rivière diz em outra parte do livro:

(...) Eusébio fez pela ideia de satisfação penal, que foi coloca-la no centro de seu sitema. (Rivière, p. 201)

Kelly segue a mesma interpretação:

Entretanto, nem a teoria física nem a mitologia do livramento do homem das garras do diabo representam a vertente principal da soteriologia grega no quarto século. Para encontrá-la, precisamos examinar as doutrinas que interpretavam a obra de Cristo em termos de um sacrifício oferecido ao Pai. Vimos que tanto Atanásio quanto Gregório de Nissa, mesmo entendendo que, em essência, a restauração do homem era efeito da encarnação, foram capazes de encontrar um lugar lógico para a morte do Senhor concebida como um sacrifício. Esse aspecto é apresentado de forma incisiva por Eusébio de Cesareia, contemporâneo de Atanásio. Ele sustenta que Cristo assumiu nossos pecados e aceitou o castigo que merecíamos. Sua morte é um sacrifício substitutivo. Ele pôde identificar-se com nossos pecados e com os castigos a eles associados porque, sendo plenamente homem, partilhava de nossa natureza. (Kelly, p. 292)

Teodoro de Heracleia (281-319)

Teodoro é um mártir cristão contemporâneo de Eusébio que escreveu em termos muito similares ao historiador da Igreja. Rivière relata:

Ensino muito similar ao de Eusébio será encontrado nas obras de um dos seus mais conhecidos contemporâneos: Teodoro, o bispo de Heracleia. Num de seus poucos fragmentos restantes do comentário de Isaías, ele se expressa da seguinte forma: “Como a maldade humana estava em seu nível mais alto e o levou a praticar muitos tipos de iniquidades, o castigo e a punição estavam próximos. Mas, a morte que era devida a nós foi voluntariamente recebida pelo filho de Deus, que veio ao mundo, exerceu toda a justiça e não cometeu nenhum pecado. Ele, desse modo, transformou nosso castigo em paz e boa vontade, pois Ele sofreu ferimentos e torturas, enquanto pela fé nos apropriamos de seus sofrimentos, morrendo com Ele pela graça, para sermos salvos.” (Comentários em Isaías LIII. 5 – PG. XVIII; Col. 1356) (Rivière, p. 195)

Vejam que ele entende a morte como castigo e punição. E esta morte foi recebida por Cristo, o que implica que Jesus foi punido em nosso lugar.

Atanásio de Alexandria (?-373)

Vamos agora para o mais importante Pai da Igreja do séc. IV, o campeão da fé nicena, Atanásio de Alexandria. Kelly comenta:

A ênfase dominante na Soteriologia de Atanásio é a teoria física de que Cristo, ao Se tornar homem, restaurou em nós a imagem divina; mesclada, entretanto, com isso, encontra-se a convicção de que Sua morte era necessária para nos livrar da maldição do pecado e de que Ele ofereceu a Si mesmo como sacrifício por nós. Os dois aspectos são às vezes combinados num único texto:

"É justo que a Palavra de Deus (...) ao oferecer Seu corpo como resgate por nós, pagasse nossa dívida com Sua morte. Assim, unido a todos os homens por intermédio de um corpo como o deles, o Filho incorruptível de Deus pode, com justiça, revestir todos os homens de incorruptibilidade" [Da Encarnação da Palavra 9]. E também: "A Palavra Se tornou carne para oferecer esse sacrifício e também para que nós, participando de Seu Espírito, sejamos deificados" [Dos Decretos 14]. (Kelly, p. 288)

Temos a ideia de que a morte de Cristo foi um sacrifício.

Ainda restava pagar a dívida de todos, visto que todos, conforme expliquei, estavam destinados à morte, e essa foi a principal causa de sua vinda entre nós. É por isso que, depois de revelar sua divindade mediante suas obras, restou-lhe oferecer o sacrifício por todos, entregando o templo de seu corpo para morrer por todos, de sorte que pudesse salvá-los e livrá-los da responsabilidade por sua antiga transgressão e mostrar-se superior a morte, revelando a imortalidade de seu próprio corpo como prenúncio da incorruptibilidade de todos (...) Porque a morte de todos cumpriu-se no corpo do Senhor, e a morte e a corrupção foram destruídas graças ao Logos que nele habitou, pois havia necessidade de morte, e era preciso experimentar a morte no lugar de todos, a fim de que a dívida de todos fosse paga. (Da Encarnação da Palavra 20)

Nesta citação, Atanásio coloca a paixão de Cristo como motivo principal de sua vinda e reafirma o caráter sacrificial de sua morte. Em outro lugar da mesma obra, ele reafirma necessidade da morte de Cristo como meio de salvação:

(...) a morte de Cristo na cruz em nosso favor foi apropriada e coerente. Sua causa era inteiramente compreensível, e existem considerações justas que mostram que somente pela cruz teria sido possível alcançar devidamente a salvação de todos. (Da Encarnação da Palavra 26)

A respeito desta obra, Rivière comenta:

Nós podemos ver que neste livro duas ideias são aduzidas para explicar a salvação e a obra do salvador: a ideia da imortalidade ou da reforma sobrenatural de nossa natureza e a ideia de uma expiação da nossa morte. (Rivière, p. 173)

Kelly interpreta as citações anteriores da seguinte forma:

Seu pensamento básico é que a maldição do pecado, isto é, a morte, pesa sobre toda a humanidade; era uma dívida que devia ser paga para que se pudesse dar início à restauração. Na cruz, Cristo, representante do homem, aceitou o castigo em Seu próprio corpo e morreu. Desse modo, Ele nos livrou da maldição, operou salvação e se tornou nosso Senhor e rei. (Kelly, p. 289)

Ele interpreta Atanásio em termos penais, pois o pagamento da dívida se deu através do castigo (punição) suportado por Cristo. A seguinte citação apoia esta interpretação penal:

Visto que aqui também o ministério por meio dele se tornou melhor, naquilo que a Lei não podia fazer por ser fraca pela carne. Deus enviou Seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa, e por causa do pecado condenou o pecado na carne "livrando-o da transgressão, na qual, sendo continuamente mantido cativo, ele não admitia a mente Divina". E tendo tornado a carne capaz da Palavra, Ele nos fez andar, não mais segundo a carne, mas segundo o Espírito, e dizer repetidamente: "Não estamos na carne, mas no Espírito" e "Pois o Filho de Deus veio ao mundo, não para julga-lo, mas para redimir todos os homens, e para que o mundo fosse salvo por ele". Anteriormente, o mundo, como culpado, estava sob o julgamento da Lei; mas agora a Palavra tomou sobre si mesmo o julgamento e, tendo sofrido no corpo por todos, concedeu a salvação a todos. Em vista disso, João exclamou: A lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. (Quatro discursos contra os Arianos 1:60)

O caráter penal é evidente neste texto. Destaco novamente o trecho “e por causa do pecado condenou o pecado na carne”. Uma construção mais correta seria usar o pronome na segunda ocorrência da palavra pecado, mas resolvi deixar assim para evitar e ambiguidade e porque é como ocorre na fonte a partir da qual traduzi. O mundo estava sob julgamento e a Palavra (a editora Paulus traduz como o Verbo) assumiu esse julgamento. Este julgamento era a condenação pelo pecado da humanidade. A ideia de que Cristo pagou nossa dívida não necessariamente implica na SP. A depender do contexto, é possível encaixá-la na teoria da satisfação de Anselmo, que via a morte de Cristo como uma oferta compensatória a Deus. No entanto, esta não parece ser a interpretação de Atanásio. Ele entendia que Cristo fora punido por causa de nossas transgressões. O aspecto penal será reafirmado nesta mesma obra e em outras:

Meu Pai preparou para mim um corpo e criou-me para os homens a fim de sua salvação. Pois, como quando João diz: "A Palavra se fez carne", não concebemos o própria Palavra inteira como carne, mas ter se revestido de carne e se tornado homem, e ao ouvir que Cristo se tornou uma maldição por nós e que "Ele fez pecado por nós aquele que não conhecia pecado" nós simplesmente não concebemos que todo o Cristo se tornou maldição e pecado, mas que Ele levou sobre Si a maldição que estava contra nós. (Quatro discursos contra os Arianos 2:47)

Pois, ao receber nossas enfermidades, é dito que Ele próprio está enfermo, embora não seja enfermo, pois Ele é o Poder de Deus, e Ele se tornou pecado por nós e uma maldição, embora não tendo pecado a Si mesmo, mas porque Ele mesmo carregou nossos pecados e nossa maldição. (Quatro discursos contra os Arianos 2:55)

O mesmo pode ser visto em outras partes da mesma obra: (3:33), (2:76), (2.7). Kelly faz uma importante observação:

À primeira vista, a doutrina é de substituição, mas o que Atanásio estava procurando expressar não era tanto que uma vítima foi substituída por outra, mas que "a morte de todos se cumpriu no corpo do senhor". Em outras palavras, devido à união entre sua carne e a nossa, sua morte e vitória foram efetivamente nossas. Assim como herdamos a morte mediante nossa afinidade com o primeiro Adão, também conquistamos a morte e herdamos a vida pela nossa afinidade com "o homem oriundo dos céus". (Kelly, p. 289)

Rivière também comenta:

De fato, nossa salvação não poderia ter sido possível exceto pela Cruz [Da Encarnação 26]. Pois cada um de nós estava sujeito à lei da morte a qual Deus promulgou contra nós. Este decreto não poderia deixar de ser cumprido. Cristo o aboliu ao morrer em nosso lugar. Como Cristo se levantou em favor de toda a humanidade, nós podemos verdadeiramente dizer que todos morrem com ele. Dessa forma, a morte não é mais nossa governante, pois já obteve tudo que poderia reivindicar. Aqui, nós encontramos tão claro quanto possível uma ideia de substituição, e como temos visto, esta ideia está na fundação da obra “Da Encarnação do Verbo”. (Rivière, p. 176-177)

Acredito que Kelly e Rivière não estão em oposição aqui. Há diferentes tipos de substituição. Para Kelly, Atanásio entendia Jesus como nosso representante na cruz, por isso, somos beneficiados por sua obra. No entanto, representação e substituição não são conceitos excludentes. Na verdade, um representante é em certo sentido um substituto.

A necessidade da cruz para salvação é um ponto de debate entre teóricos da expiação. De um lado, há aqueles que dizem que Deus poderia ter perdoado o homem sem a necessidade de satisfação. Há defensores da SP que advogam esta ideia (Ex. Hugo Grócio). Alguns erroneamente afirmam que Grócio não apoiava a SP, mas a sua teoria governamental também a comportava. Do outro lado, há os que dizem que a justiça retributiva faz parte da natureza de Deus, portanto, a satisfação pelo pecado é estritamente necessária (Ex. Anselmo). Atanásio parece apoiar a segunda posição, embora ele pouco tenha elaborado a respeito. O decreto de condenação do próprio Deus precisaria ser cumprido. Como Cristo cumpriu o decreto em seu próprio corpo, ele não mais tem efeito contra os que estão Nele. Numa de suas cartas, Atanásio afirma que a ira de Deus foi direcionada a Cristo:

E os Salmos 88 e 69, novamente falando na própria pessoa do Senhor, dizem-nos ainda que Ele sofreu estas coisas, não para o Seu próprio bem mas para o nosso. Fizeste repousar sobre mim a Tua ira, diz um; e o outro acrescenta, paguei-lhes coisas que nunca tomei. Pois Ele não morreu como sendo Ele próprio sujeito à morte. Ele sofreu por nós, e suportou em Si mesmo a ira que foi a pena da nossa transgressão, mesmo como diz Isaías, Ele próprio suportou as nossas fraquezas. (Carta a Marcelino)

Cristo suportou a ira que era a punição de nossa transgressão é uma afirmação concisa e clara do caráter penal da Cruz.

Cirilo de Jerusalém (313-386)

Rivière comenta sobre Cirilo:

Nestas passagens, a ideia de uma expiação penal ocorre pelo menos uma vez: “Ele estendeu as mãos humanas. Ele que pelas mãos espirituais estabeleceu o céu. As suas mãos foram cravadas com cravos, para que sua humanidade, que aqui são os pecados dos homens, tendo sido pregada na árvore e morrido, fizesse com que o pecado morresse com ela, e assim pudéssemos ressuscitar em justiça” [Palestras Catequéticas 13:28]. Nós provavelmente devemos comparar esta passagem com o texto de uma palestra anterior na qual ele fala de Cristo como “morrendo carregado com os pecados do mundo inteiro” [Ibid., 3:12]. (Rivière, p. 198-199]

Na humanidade de Cristo estavam os pecados dos homens, e estes pecados morreram na medida que a humanidade de Cristo foi morta. Parece algo próximo da teoria da imputação. Nossos pecados foram transferidos para Cristo, tendo sido punidos em sua morte. Cirilo também disse que Cristo aplacou a ira de Deus:

Se o primeiro homem formado da terra trouxe a morte universal, aquele que o formou da terra não trará a vida eterna, sendo Ele mesmo a Vida? Se Finéias, quando se tornou zeloso e matou o malfeitor, impediu a ira de Deus, Jesus, que não matou outro, mas se entregou em resgate, não afastará a ira que é contra a humanidade? (Palestras Catequéticas 13:2)

Na mesma obra, Cirilo escreveu:

O Salvador suportou estas coisas e fez a paz através do Sangue da sua Cruz, pelas coisas no céu, e pelas coisas na terra. Porque, por causa do pecado, éramos inimigos de Deus e Ele tinha designado o pecador para morrer. Deve, portanto, ter acontecido uma de duas coisas; ou que Deus, na Sua verdade, deveria destruir todos os homens, ou que na Sua bondade amorosa Ele deveria cancelar a sentença. Mas eis a sabedoria de Deus. Ele preservou tanto a verdade da Sua sentença, como o exercício da sua bondade amorosa. Cristo levou os nossos pecados no Seu corpo sobre o madeiro, para que pela sua morte pudéssemos morrer para pecar, e viver para a justiça. De grande importância foi aquele que morreu por nós. Ele não era literalmente uma ovelha. Ele não era meramente um homem. Ele era mais do que um anjo. Ele era Deus feito homem. A transgressão dos pecadores não foi tão grande, como a justiça d’Aquele que morreu por eles; não cometemos tanto pecado como Ele fez a justiça que deu a Sua vida por nós, — que a deu quando quis, e a tomou de novo quando quis. (Palestras Catequéticas 13:33)

Rivière comenta esta passagem:

Aparte os termos técnicos, nós encontramos aqui a primeira afirmação teológica da infinita superabundância da satisfação feita por Deus Homem. A partir de tudo isso, nós podemos ver que Cirilo, apesar da desordem aparente em suas homilias, claramente resume inteiramente a obra do Salvador em sua morte. A morte foi o fim da encarnação. Ela também é o que obtém para nós o perdão de nossos pecados (...) Aqui e ali, ele menciona as ideias de resgate e sacrifício. Ocasionalmente ele alude a ideia de expiação penal. Estas são ideias e fórmulas bem conhecidas, mas São Cirilo foi o meio de introdução de um novo elemento. Mais do que qualquer outro, ele enfatizou que Cristo ofereceu a si mesmo para morrer, livremente e por amor. Ele também adiciona que sua dignidade como o Filho de Deus dá ao seu sacrifício um valor infinito. Numa palavra, parece que para São Cirilo, o mistério da expiação reside na alma e na pessoa do Redentor. (Rivière, p. 200)

A citação de Cirilo é interessante porque alude ao dilema divino, na qual Deus expressa amor, justiça e misericórdia na cruz de Cristo. O teólogo grego afirma que havia uma sentença contra nós e que Deus escolheu executá-la. Ou seja, se a sentença foi executada em Cristo, segue-se que ele foi punido por nossa causa. Se eliminamos o aspecto penal da obra de Cristo, nenhuma sentença teria sido executada. Contudo, o ponto mais importante da obra de Cirilo é a afirmação do valor infinito do sacrifício de Cristo. Esta ideia seria grandemente enfatizada pelos escolásticos e reformadores como uma forma de responder objeções ao conceito de que Cristo, ao morrer na cruz, satisfez a justiça divina. Alegações como: a morte de um homem não pode ser uma oferta equivalente a morte de toda a humanidade, ou Cristo não teria pago a pena devida já que ele passou apenas três dias morto e não sofreu na mesma medida que pecadores impenitentes sofreriam. Dessa forma, Cirilo é uma evidência importante desta nuance presente tanto na teoria da satisfação como na SP. Rivière ainda disse:

No entanto, quaisquer diferenças que existem entre Cirilo e Eusébio, suas ideias são no fundo quase as mesmas (...) ambos concordam em fazer nossa salvação depender da morte de Cristo, pois, por causa dela, e por ela somente, nós recebemos perdão e reconciliação. (Rivière, p. 201)

Em suma, Eusébio e Cirilo são importantes antecedentes da SP no século IV. Kelly, novamente em concordância com Rivière, escreve:

Uma testemunha muito mais representativa da Soteriologia do período é Cirilo de Jerusalém. Escrevendo para o povo, ele ressalta a importância singular da paixão. É a cruz que ilumina os ignorantes, traz livramento àqueles que estão presos pelo pecado e redenção a todos. Ao Se oferecer como resgate, Cristo aplacou a ira de Deus contra homens pecadores. Em si mesmo inocente, Ele entregou sua vida por nossos pecados. Novamente, a ideia é de substituição baseada no parentesco do Salvador conosco. Na condição de novo Adão, Ele pôde assumir a responsabilidade por nossos erros. A mais inovadora contribuição e Cirilo é a sugestão de que a eficácia universal de seu sacrifício é explicada pelo valor imensurável ligado à Sua pessoa. (Kelly, p. 292)

Gregório de Nissa (330-395)

Gregório é um caso curioso, pois ele seguiu uma versão modificada da teoria do resgate. Kelly explica:

O diabo, portanto, tinha direito a uma compensação adequada pela libertação do homem, e seria injusto e tirânico se Deus exercesse uma força irresistível. Por isso, Ele lhe ofereceu o homem Jesus como resgate. Quando Satanás O viu, assim nascido de uma virgem e reconhecido como operador de milagres, ele decidiu que a troca lhe traria vantagens. O que ele não conseguiu perceber foi que a capa exterior de carne humana escondia a divindade imortal. Por isso, quando o diabo aceitou Jesus em troca da humanidade, ele não conseguiu retê-lo; foi enganado e fisgado, como acontece com um peixe apanhado pela isca que esconde o anzol. (Kelly, p. 290)

Ele também defendeu a teoria física, já mencionada por Kelly, em termos muito parecidos com os utilizados por Atanásio. No entanto, ele também expressou a teoria realista, ao enxergar a morte de Cristo como um sacrifício substitutivo. Ou seja, num mesmo autor, temos a presença das três principais teorias expiatórias do período. Rivière disse:

Em São Gregório, como em Atanásio, em palavras similares, nós encontramos expresso a ideia de substituição: “Cristo é o nosso redentor porque ele deu a si mesmo como resgate por nós. Assim, nós não mais pertencemos a nós mesmos, nós somos propriedade dele que nos comprou pelo preço de sua vida” [De perf.Christiani forma. PG XLVI, Col. 261-262] (...) Em outros lugares, encontramos ideias similares expressas na figura dos sacrifícios antigos. Cristo é o cordeiro pascal morto por nós. Ele ofereceu a si mesmo como uma vítima por nós [Ibid., Col. 264]. Uma grande porção do sermão De Occursu Domini é sobre este tema. Ele mostra que os sacrifícios sangrentos da Lei antiga eram apenas figuras imperfeitas do sacrifício de Cristo, o único que era santo, eficaz e final. Pois “Cristo é o sacerdote santo, inocente, sem mácula e sem pecado que ofereceu a si mesmo a Deus no nome e no lugar da humanidade (...) Por isto, ele se tornou o resgate de muitos ou resgate de todas as nações” [De Occursu Domini – PG XLVI; Col. 1161-1164 ]. (Rivière, p. 184)

O uso do termo resgate pode causar a impressão de que Gregório está a se referir a teoria do resgate. No entanto, observe, que no contexto, Cristo oferece a si mesmo a Deus e não a Satanás. Rivière prossegue:

Este sacrifício era igualmente expiatório. Nas Palavras de São Paulo, Gregório lembra que Cristo é nossa propiciação em seu sangue (De perf. Christiani forma) e que “Cristo se tornou homem, destruiu nosso inimigo – o pecado, e nos reconciliou ao Pai” (De Occursu Domini – PG XLVI; Col. 1173).  Gregório, em outro lugar, argumentando contra os arianos, explica que ele não atribui sofrimento a natureza divina do Verbo. É em sua natureza humana que ele é o nosso sacerdote, pois “com o seu próprio sangue Ele apresentou a sacerdotal expiação pelos nossos pecados (...) Ele sacrificou seu próprio corpo pelo pecado do mundo (...) Ele se humilhou na forma de um servo e ofereceu a si mesmo como sacrifício por nós [Contra Eunômio 6:2]. (Rivière, p. 185)

Este aspecto sacrificial fica ainda mais explícito nas seguintes palavras de Gregório:

Ele não é bom? Que por tua causa assumiu a forma de servo, e que ao invés da alegria que era dele, expiou os sofrimentos do teu pecado, e deu a Si mesmo em troca da tua morte, e estava disposto a fazer de si próprio maldição e pecado? (Contra Eunômio 11:1)

Na mesma obra:

Ele que não conheceu pecado fez a si mesmo pecado por nossa causa e tirou de nós a maldição colocando-a sobre si mesmo. (Contra Eunômio 12:1)

Em todas estas citações, a maldição tem um contexto penal. A maldição é uma punição pelo pecado. Dessa forma, segundo Gregório, Cristo foi punido por nosso pecado.

Basílio de Cesareia (330-379)

Rivière escreveu sobre Basílio:

Ele também fala da expiação do pecado e está consciente do mérito salutar da morte de Cristo. Ele a vê como um sacrifício: “O filho de Deus deu sua vida pelo mundo quando Ele ofereceu a si mesmo para Deus como uma vítima pelos nossos pecados” [Comentários sobre os Salmos 28:5]. Novamente, combinando Isaías com São Paulo, ele lida com o aspecto penal expiatório da morte de Cristo: “Ele tomou sobre si nossas fraquezas e carregou nossas desgraças. Ele foi ferido por nós para que pudéssemos ser curados por suas feridas. Ele nos livrou da maldição ao se tornar maldição em nosso lugar. Ele sofreu por nós uma morte vergonhosa para nos trazer a vida eterna” [Reguale Fusius Tractatae, Interrogatio 2:4].

Porém, de longe, a passagem mais importante ocorre no comentário de São Basílio sobre o Salmo 43, onde ele examina as condições de nossa salvação e conclui mostrando que elas não poderiam ter sido satisfeitas se não fosse por Deus: “Longe do homem ser capaz de redimir seu irmão, pois ele é incapaz de propiciar a Deus pelos seus próprios pecados”. A razão é precisamente porque ele mesmo é um pecador: “Moisés não livrou seu povo do pecado. Ele era incapaz de oferecer expiação por si mesmo quando ele estava em pecado. Assim, não é do homem que devemos esperar esta expiação, mas daquele que supera nossa natureza – Jesus Cristo o Deus Homem, o único que pode oferecer expiação por todos nós” [Comentário sobre os Salmos 48:3-4]. (Rivière, p. 204-205)

Podemos extrair que a morte de Cristo foi um sacrifício penal e propiciatório. Além disso, ele enfatiza que apenas uma pessoa divina poderia realizar tal sacrifício, pois o homem não poderia propiciar nem seus próprios pecados, quanto mais os alheios – uma ideia recorrente nos Pais da Igreja deste período. É interessante que na mesma obra citada, Basílio também aponta a divindade de Cristo como condição para que o Diabo aceitasse a oferta de resgate. Novamente, vemos um Pai da Igreja afirmando a teoria do resgate sem desconsiderar a morte de Cristo como um sacrifício que satisfaz a Deus. Kelly comentou:

Ensino semelhante aparece em Basílio, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo. O primeiro dos três fala do Filho de Deus que dá Sua vida ao mundo "quando Ele Se ofereceu como sacrifício e oblação a Deus por causa de nossos pecados". (Kelly, p. 292)

Quando diz “ensino semelhante”, Kelly se refere ao ensino de Cirilo de Jerusalém, a quem ele considera o principal expoente da teoria realista no séc. IV. Esta teoria é a que mais se aproxima de uma explicação que considera o elemento substitutivo e penal da obra de Cristo.

Gregório Nazianzo (329-390)

Rivière novamente sobre Gregório:

Sua morte é também vista como um sacrifício, um voluntário, mas verdadeiro sacrifício, de fato o único sacrifício verdadeiro, e que foi prefigurado pelos ritos do Antigo Testamento [Oração 1:7]. Gregório esbraveja sua ira contra Juliano o apóstata: “Tu irias se levantar com teus sacrifícios contra o sacrifício de Cristo? Com o sangue das tuas vítimas contra aquele sangue que limpou o mundo?” [Oração 4:68]. Se o nosso salvador queria morrer, Ele o fez tão livremente e generosamente para expiar nossos pecados: “Ele fez a si mesmo homem por nós. Ele tomou a forma de um servo. Ele foi morto pelos nossos pecados (...) E ele fez tudo isso, embora ele pudesse, como Deus, ter nos salvado por um simples ato de sua vontade” [Oração 19:13]. (Rivière, p. 206-207)

Esta última citação trazida por Riviére é interessante porque aborda a necessidade da morte de Cristo para a nossa salvação. Gregório considera que Deus escolheu nos salvar através da cruz, mas ele poderia ter nos salvado por um simples ato de vontade. De toda a forma, ele vê a morte de Cristo como causa de nossa salvação. Rivière traz mais citações onde o aspecto substitutivo da morte de Cristo é enfatizado por Gregório:

Mais adiante, Gregório aponta para o mistério da substituição que é envolvido na morte de Cristo: “Ele que destruiu minha maldição foi chamado de maldito. Ele que tira o pecado do mundo foi chamado de pecado. Ele se tornou um novo Adão para tomar o lugar do antigo, assim como tornou sua a minha própria desobediência, como cabeça de todo o corpo. Na cruz, não foi Ele que foi abandonado. Ele ocupou nossa posição. Nós éramos quem fomos abandonados e pisados. Ele nos salvou pelos seus sofrimentos, pois ele tornou seus os nossos próprios pecados” [Oração 30:5]. Para expressar o quanto Cristo se tornou como nós ao se tornar todas as coisas para todos, Gregório não encontra na língua grega palavras suficientemente fortes, então ele cunha duas novas: “Ele se tornou o próprio pecado e a própria maldição” [Oração 37:1]. Como isto poderia acontecer já que nosso pecado deveria ser destruído por tal expiação? “O salvador tomo isto com ele na cruz, a fim de colocá-lo para morrer” [Oração 4:78] e “Ele foi crucificado, mas ao mesmo tempo crucificou nossos pecados” [Oração 38:16] [ (Riviére, p. 208)

Aqui, vemos substituição e uma ideia de imputação, pois Cristo assume nosso pecado, bem como nossa maldição e desobediência. Expiação dos pecados acontece na cruz quando Cristo os crucifica em si mesmo. Gregório também se notabilizou por ser contra a teoria do resgate pago a Satanás. Kelly comenta e traz as respectivas citações:

Gregório de Nazianzo submeteu a uma crítica importante e extremamente demolidora todo o conceito de direitos pertencentes ao diabo e de o Filho de Deus sendo entregue a ele. Ele comentou: "Vale a pena observar um ponto doutrinário, por muitos ignorado, mas que a mim parece merecer exame. Por quem e com que objetivo foi derramado o sangue vertido por nós, o eminente e famoso sangue de Deus, nosso sumo sacerdote e sacrifício? Devemos reconhecer que éramos mantidos cativos pelo diabo, tendo sido vendidos sob o pecado e abdicado de nossa felicidade em troca da perversidade. Mas se o resgaste pertence exclusivamente àquele que mantém cativo o prisioneiro, eu indago a quem o resgate foi pago, e por quê. Se foi ao diabo, como seria vergonhoso que o ladrão recebesse de Deus não apenas um resgate, mas um resgate que consistia no próprio Deus, e que um preço tão absurdo fosse pago à tirania do diabo para que ele justificadamente nos poupasse!" [Oração 45:22] (Kelly, p. 291)

Encerramos aqui esta parte. Na próxima, continuaremos nossa investigação nos Pais Gregos do séc. V até VIII.

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