segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Os Pais da Igreja e a Substituição Penal - Parte 1 (Séculos II e III)

 

Neste artigo, vamos avaliar o testemunho dos Pais da Igreja e a teoria da Substituição Penal (SP). Uma das alegações mais comuns contra a SP é de que é uma invenção dos reformadores e de que nenhum pai da Igreja a teria defendido. Alguns amigos já escreveram boas respostas a esta alegação. Indico a série de artigos do Frankle Bruno (aqui), que fez um ótimo compilado da evidência patrística e os artigos do Juliano, que tem sido a principal voz em defesa da SP nos ambientes virtuais (aqui). Muita coisa já foi escrita, por isso, não quero ser repetitivo e gostaria de adicionar alguns apontamentos que julgo importantes, principalmente trazendo a posição de estudiosos patrísticos a respeito do tema. Eu vou utilizar principalmente J.N.D Kelly. Ele é um renomado erudito patrístico anglicano que, até onde sei, não tem nenhum motivo específico para defender a SP. Sua obra é um dos poucos manuais de patrística traduzidos para o português (aqui). Os capítulos de interesse são o 7 (págs. 121-138) e 14 (págs. 285-300) da edição em português. Kelly escreveu:

O desenvolvimento das ideias da igreja sobre os efeitos salvíficos da encarnação foi um processo lento e bem demorado. De fato, embora a convicção da redenção por meio de Cristo sempre tenha sido a força propulsora da fé cristã, até hoje não se chegou a uma definição final e universalmente aceita sobre a maneira como isso ocorreu. Portanto, é inútil procurar alguma abordagem sistemática da doutrina no cristianismo popular do segundo século. É verdade que os pais apostólicos fazem numerosas referências à obra de Cristo. Na maioria das vezes, porém, eles estão repetindo jargões da instrução catequética, de maneira que aquilo que dizem assemelha-se mais a uma afirmação do que a uma explicação. (Kelly, p. 121)

Kelly se refere ao segundo século, mas uma abordagem sistematizada da expiação é algo que não encontraremos nos Pais da Igreja de nenhum período. A primeira obra do tipo foi produzida apenas por Anselmo (séc. XI). Aqui, reside um dos erros mais comuns ao se estudar as teorias da expiação deste período. Diferente da Cristologia, a Soteriologia não foi objeto de muita atenção no período patrístico. Assim, dificilmente vamos encontrar obras que abordem o tema profundamente e sistematicamente. É comum que se encontre num mesmo autor antigo o apoio a mais de uma teoria da expiação, seja porque elas não são mutuamente excludentes ou até mesmo porque o autor possui ideias aparentemente contraditórias. Por isso, o argumento de que o Pai da Igreja defendeu a teoria X, logo rejeitou a teoria Y, é geralmente falacioso. Eles tendiam a ter uma abordagem multifacetada da questão.

Outro erro é afirmar que a SP não está presente nos pais porque não a encontramos em sua forma plenamente desenvolvida, com todas as nuances que os reformadores vieram a defender. Até por não ter recebido tanta atenção, é natural que nuances fossem acrescentadas. Além disso, nenhuma das teorias modernas da expiação são encontradas, em sua versão plenamente desenvolvida, no período patrístico. Mesmo a Christus Victor (CV) é hoje defendida numa versão diferente. Uma ideia muito popular era que Deus teria oferecido Cristo como pagamento a satanás pelo resgate da humanidade. O diabo tinha legítimos direitos sobre a ração humana, então para libertá-la, o preço deveria ser pago. Os defensores modernos da CV tendem a rejeitar esta ideia ou pelo menos aceita-la numa forma modificada. Embora, como Kelly disse, suas afirmações sejam mais declarativas do que explicativas, convém trazer o testemunho de pais apostólicos como Clemente de Roma:

Ele carrega nossos pecados e sofre por nós. E nós o contemplamos entregue ao sofrimento, à dor e aos maus tratos. Ele foi ferido por causa de nossos pecados e maltratado por causa de nossas iniqüidades. A correção que nos trouxe a paz caiu sobre ele, e por suas chagas fomos curados. Como ovelhas, todos nós andávamos errantes; o homem se havia desviado de seu caminho. O Senhor o entregou por causa de nossos pecados, e ele não abriu a boca ao ser maltratado. Como ovelha, foi conduzido ao matadouro; como cordeiro mudo diante do tosquiador, não abriu a boca. Na humilhação, a sua sentença foi retirada. (Carta de Clemente à Igreja de Corinto 16:4-7)

Clemente repete versículos bíblicos como os textos de Isaías 53, sem adicionar comentários de próprio punho, por isso não podemos ter fortes conclusões a partir disso. Com o passar do tempo, as ideias ficarão mais explícitas. Kelly prossegue:

Deve-se admitir que, em comparação com o Novo Testamento, os pais apostólicos como um todo não se ocupam muito do pecado, sendo que seus escritos apresentam um acentuado enfraquecimento da idéia de expiação. Embora certos de que Cristo morreu por nós (a repetição da fórmula muitas vezes tem um caráter convencional), eles atribuem um papel relativamente secundário ao valor expiatório de Sua morte. O que desponta muito mais forte na imaginação deles é o quadro de como o legislador, o doador do conhecimento, da imortalidade e da comunhão com Deus. (Kelly, p. 123)

Embora a expiação seja ignorada pela maior parte dos pais apostólicos, Kelly observa:

No entanto, só "Barnabé" interpreta a paixão de Cristo em termos expressamente sacrificiais, declarando que Ele ofereceu Seu corpo como sacrifício por nossos pecados, recorrendo ao sacrifício de Isaque como protótipo. (Kelly, p. 123)

Ele se refere a seguinte citação:

O Senhor deu esse mandamento, porque também ele devia oferecer a si próprio pelos nossos pecados, como receptáculo do Espírito, em sacrifício, a fim de que fosse cumprida a prefiguração manifestada em Isaque, oferecido sobre o altar. (Epístola de Barnabé, cap. 7)

A visão de que Cristo se ofereceu como sacrifício pelos nossos pecados é um elemento da Substituição Penal. Este seria o primeiro aspecto da teoria: a expiação vicária. Não se pode dizer com base apenas nisto que a Epístola está a defender o segundo aspecto da teoria (Jesus teria sofrido a punição a nós devida), mas a visão sacrificial substitutiva da morte de Cristo é negada por algumas teorias da expiação, sendo afirmada pela SP e pela Teoria da Satisfação de Anselmo. No mesmo período (séc. II), encontramos ensino semelhante na Epístola a Diogneto:

Com misericórdia tomou para si os nossos pecados e enviou o seu Filho para nos resgatar: o santo pelos ímpios, o inocente pelos maus, o justo pelos injustos, o incorruptível pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais. De fato, que outra coisa poderia cobrir nossos pecados, senão a sua justiça? Por meio de quem poderíamos ter sido justificados nós, injustos e ímpios, a não ser unicamente pelo Filho de Deus? Oh doce troca, oh obra insondável, oh inesperados benefícios! A injustiça de muito é reparada por um só justo, e a justiça de um só torna justos muitos outros. (Epístola a Diogneto, cap. 9)

É claro a partir do texto que Cristo agiu como nosso substituto. A frase mais importante e controversa seria “tomou para si os nossos pecados”. Muitos teólogos protestantes enxergaram aí a doutrina da imputação, segundo o qual, nossos pecados foram creditados à Cristo, num sentido forense. Embora a doutrina da imputação tenha nuances que nós não vamos encontrar na epístola, eu acredito que é possível afirmar que há sim uma ideia de transferência de nossos pecados para Cristo. O que Cristo fez na cruz envolveu tomar sobre si nossos pecados. Embora se use o termo “resgate”, não há na epístola a ideia de que Deus pagou ao diabo algum preço devido. Além disso, como veremos adiante, nem todo que afirmava a teoria do resgate negava a SP. Saindo dos Pais Apostólicos e indo para os Apologistas, Kelly disse sobre Justino Mártir:

Em outra passagem, em que faz uma breve referência a Isaías 53.5, Justino afirma que Cristo sofreu em nosso lugar para que, mediante Seus açoites, a raça humana fosse sanada. Foi a vontade do Pai que Ele "levasse sobre Si as maldições de todos, pois sabia que, depois de ter sido crucificado e morto, Ele O ressuscitaria". (Kelly, p. 127)

A citação é a seguinte:

Com efeito, todo gênero humano perceberá que está sob maldição. Segundo a lei de Moisés, chama-se maldito todo aquele que não persevera no cumprimento do que está escrito na lei (...) Portanto, se foi da vontade do Pai do universo que seu Cristo carregasse por amor ao gênero humano a maldição de todos, sabendo que o ressuscitaria depois de crucificado e morto, por que falais como de um maldito daquele que se dignou sofrer tudo isso pelo desígnio do Pai? Valeria mais que chorásseis a vós mesmos. De fato, é certo que foi o seu próprio Pai quem o fez sofrer tudo o que ele sofreu por causa do gênero humano, mas vós não agistes para cumprir um desígnio de Deus, assim como ao matar os profetas não realizastes uma obra de piedade. E que ninguém de vós diga: “Se o Pai quis que o Cristo sofresse para que, por meio de suas chagas, viesse a cura para o gênero humano, nós não cometemos nenhum pecado.” Porque, se dissésseis isso, arrependendo-se dos vossos pecados, reconhecendo que Jesus é o Cristo e observando os seus mandamentos, vossos pecados vos seriam perdoados, como eu já disse antes. (Diálogo com Trifo, cap. 95)

Neste texto, Justino está a discutir com um judeu (Trifo). Ele rebate a acusação de que Cristo seria maldito por ter morrido no madeiro. Justino responde afirmando que todo o gênero humano é maldito por ter violado a lei e que Cristo carregou a maldição de todos, tendo sido da vontade do Pai que assim ocorresse. Parece que Trifo dizia que uma vez que Jesus sofreu no madeiro por vontade do Pai, os judeus não poderiam ser acusados de terem cometido pecado. Observem que Justino não discorda da afirmação “o Pai quis que Cristo sofresse”. E esse sofrimento advinha de carregar a maldição que era a nós devida. O argumento parece ser que Cristo não era maldito porque ele não carrega a sua própria maldição, mas a de outrem.

Observa-se que a maldição estava sobre gentios e judeus por terem quebrado a lei. Ele estava pensando num sentido legal. Trata-se de uma citação em favor da SP. Há os elementos substitutivo e penal. Cristo sofre a maldição advinda da quebra da lei. A maldição é uma punição devida ao gênero humano. 

O estudioso patrístico católico Jean Rivière escreveu uma das mais importantes obras sobre a doutrina da expiação na história da Igreja. Ele disse sobre Justino:

A morte de Cristo não é para São Justino apenas uma fonte de benefícios ou justificação, mas ele também a representa, embora não o faça muito claramente, como uma expiação penal(Jean Rivière, The Doctrine of the Atonement: A Historical Essay, 2 vols., trans. Cappadelta (London: Kegan Paul, Trench, Trübner, 1909), 1:137)

Isto certamente não foi tudo o que Justino disse sobre a expiação. Ele nem sempre foi consistente com este ensino. Kelly afirma inclusive que ele foi ambíguo (p. 126) e que ele parece apoiar a teoria da recapitulação (p. 127). Isto não muda o fato de que havia espaço para a SP em seu sistema. Passemos para outro Pai da Igreja latino: Hipólito de Roma. Rivière escreveu sobre ele, citando os fragmentos preservados das obras de Hipólito:

A morte de Cristo é representada como um sacrifício expiatório: Cristo é o cordeiro da verdadeira Páscoa, morto por nós, e cujo sangue purificou o mundo. Nossos pecados são a única verdadeira causa de sua morte. Hipólito toca no aspecto penal da morte de Cristo quando ele aplica ao sofrimento do Messias as palavras do Salmo LXVIII: “Eu que não pequei sofri a morte pelo pecado de Adão” (Contra os Judeus 3). O resultado era que os pecados foram apagados e expiados. Cristo foi pregado com eles na cruz (Fragmentos em Gênesis 7). Ele é o sumo sacerdote que, como Batista disse, tira o pecado do mundo. Gabriel disse que Ele veio abolir a iniquidade e trazer justiça eterna (Daniel 9:24). Este Cristo, que de acordo com São Paulo é nossa paz, reconciliou todas as coisas e destruiu o decreto emitido contra nós, pregando-o na cruz. Ele apagou nossas iniquidades e expiou nossos pecados (Fragmentos em Daniel 4:21). (Jean Rivière, The Doctrine of the Atonement: A Historical Essay, 2 vols., trans. Cappadelta (London: Kegan Paul, Trench, Trübner, 1909), 1:150)

Vamos dar uma olhada em algumas dessas citações. Rivière usou uma tradução não disponível online, por isso a citação abaixo serão ligeiramente diferentes e são preferíveis por estarem online:

Então, no que se segue, Cristo fala sobre sua própria pessoa: "Então eu restaurei aquilo", diz Ele "o que não tirei", isto é, por causa do pecado de Adão, suportei a morte que não era minha pelo pecado. “Pois, ó Deus, Tu conheces a minha tolice; e os meus pecados não estão escondidos de Ti”, isto é, “porque eu não pequei”, como Ele quer dizer. E por esta razão (é adicionado): "Não se envergonhem os que querem ver" a minha ressurreição ao terceiro dia, a saber, os apóstolos. “Porque, por amor de Ti”, isto é, por amor a Te obedecer, “tenho suportado o opróbrio”, a saber, a cruz, quando “cobriram meu rosto de vergonha”, isto é, os judeus; quando "tornei-me um estranho para meus irmãos segundo a carne, e um estranho para os filhos de minha mãe", significando (pela mãe) a sinagoga. “Porque o zelo da Tua casa, Pai, me devorou; e as injúrias dos que Te injuriaram caíram sobre mim”, e dos que sacrificaram aos ídolos. (Contra os Judeus 3

Os dois trechos destacados expressam o aspecto penal mencionado. Cristo morre por causa do pecado de Adão uma morte que não era sua. O aspecto penal fica mais claro quando ele aplica o dito “as injúrias dos que te injuriaram caíram sobre mim”. Ou seja, Cristo estava sendo castigando por ofensas praticadas contra o Pai. Agora, passando para Irineu de Lyon, Kelly afirma:

Há passagens em que, refletindo a linguagem tradicional, Irineu fala de Cristo morrendo por nós, reconciliando-nos com Deus por intermédio de Sua paixão ou fazendo   "propiciação por nós junto ao Pai contra quem pecamos", ou de Deus oferecendo Seu Filho como "sacrifício para nossa redenção"; geralmente, considera-se que tais expressões estão distantes de sua teoria principal da recapitulação. Na verdade, elas se unem de forma admirável a tal teoria, indicando que a paixão e a morte sacrificial do Senhor foram a expressão suprema e necessária de Sua obediência. (Kelly, p. 130)

Seguem as citações:

Pois Ele não anulou, mas cumpriu a lei, desempenhando os ofícios do sumo sacerdote, propiciando a Deus pelos homens, e purificando os leprosos, curando os doentes, e Ele próprio sofrendo a morte, para que o homem exilado pudesse sair da condenação, e pudesse regressar sem medo à sua própria herança. (Contra as Heresias 4:8:2)

Esta citação é interessante porque afirma que Jesus morreu para que o homem não fosse condenado. À primeira vista, é possível fazer uma leitura que não implique na SP, mas ele menciona que Jesus propiciou a Deus. É mais provável que a condenação da qual o homem sairia envolvesse o castigo imposto por Deus e não se livrar da prisão do Diabo.

Visto que o Senhor assim nos redimiu através de Seu próprio sangue, dando Sua alma por nossas almas, e Sua carne por nossa carne, e também derramou o Espírito do Pai para a união e comunhão de Deus e do homem. (Contra as Heresias 5:1:1)

Aqui está clara a noção de uma morte substitutiva e sacrificial. Então temos uma morte substitutiva que livra da condenação e propicia a Deus. Nem todas as nuances da SP podem ser extraídas dessas citações, mas é algo próximo ao que os Reformadores defenderam. Em todo o caso, havemos de conceder que a morte sacrifical de Cristo não é a ênfase principal da teoria da recapitulação de Irineu. Sua ênfase estava na reencarnação e não na cruz. Passando aos teólogos latinos dos séculos II-III, Kelly comenta:

Em contraste com o desenvolvimento que a teologia latina alcançou quanto ao pecado original, o tratamento dispensado à redenção revelou-se curiosamente retrógado e insuficiente. Talvez se esperasse uma nova abordagem por parte de Tertuliano, cujo enfoque jurídico levou-o a enfatizar a necessidade de reparação pelas ofensas cometidas, transferindo a ideia para a teologia (...) Na verdade, porém, embora utilize suas ideias de satisfação para explicar a restauração de relacionamentos entre cada pecador e Deus, ele simplesmente deixa de aplicá-las ao papel mediador de Cristo. De fato, Tertuliano, dá maior ênfase à morte de Cristo do que Irineu, falando disso como "todo o peso e todo o fruto do nome cristão (...) o alicerce supremo do evangelho". Cristo não apenas morreu por nós, mas foi enviado justamente com esse propósito (Da Carne de Cristo 6). Na realidade, "nem nossa própria morte poderia ter sido cancelada senão mediante a paixão do Senhor, nem nossa vida poderia ter sido restaurada sem Sua ressurreição" (Do Batismo 11). Além disso, Sua morte foi sacrificial; "foi-Lhe necessário ser feito sacrifício em favor de todas as nações" (Contra os Judeus 13), e "Ele Se entregou por nossos pecados" (Escorpião 7). Esses pensamentos, porém, embora possam muito bem conter o germe de uma doutrina da substituição, não são em lugar algum expandidos ou elaborados em síntese. (Kelly, p. 132)

Em Tertuliano encontramos o germe de uma doutrina da substituição. O mesmo sucede a outros pais latinos, como Cipriano de Cartago:

Cerca de uma geração depois, encontramos Cipriano ensinando que Cristo sofreu por nossos pecados, curando nossas feridas e destruindo a morte por intermédio de Seu sangue (De Lapsis 17), afirmando que também pelo sangue fomos restaurados à vida, e nossa vida foi purificada dos pecados. Ele falou (Ep. 63:16) da paixão do Senhor como um sacrifício, e aparece um indício da doutrina da substituição na afirmação de que "Cristo nos carregou a todos quando carregou nossos pecados" (Ep 63:13). (Kelly, p. 133)

Cristo carregou-os e sofreu por nossos pecados é sem dúvida no mínimo um indício da SP em Cipriano. Passando dos pais latinos para os Orientais, vamos analisar uma interpretação sacrificial que começa em Clemente de Alexandria e ganha maior expressão em Orígenes. Rivière escreveu sobre Clemente de Alexandria:

Porém, o curto tratado moral, cujo título é Quis Dives Salvetur, conta uma história diferente. Logo no início, nos é dito que a morte de Cristo é causa de nossa salvação: “Se a Lei de Moisés tivesse sido suficiente para dar vida eterna, teria sido em vão o Salvador ter vindo e sofrido por nossa conta” [Quem é o Homem Rico Que Será Salvo 8]. Mais adiante, Clemente não apenas afirma que Cristo morreu por nós, e pela sua morte obteve para nós um tesouro de virtude, mas em outro lugar no mesmo livro, ele descreve o caráter expiatório em termos mais claros do que encontramos até então, e, de fato, do que encontraremos depois: “Eu regenerei a ti, disse Cristo a alma cristã, a quem o mundo gerou para morrer. Eu a livrei, curei e redimi (...) Eu sou o enfermeiro (...) o mestre (...) Por você eu lutei com a morte, e então paguei a morte devida pelos seus antigos pecados e descrença para com Deus” [Ibid. 23].  Aqui, o escrito enfatiza o caráter substitutivo da expiação. Mais adiante, ele insiste na generosidade do auto sacrifício que isto envolve: Deus era nosso pai por sua natureza divina. Ele se tornou nossa mãe pelo seu amor por nós (...) Seu filho eterno, o fruto do seu amor, como ele é amor. Foi por isso que ele veio, se tornou homem e se dispôs a vestir nossas desgraças, ]antes de oferecer a si mesmo e dar a si mesmo por nossa redenção” [Ibid. 37] (...) Por último, Clemente conta a conhecida história de quando São João colocou-se sobre os pés de um dos seus discípulos que havia se tornado um ladrão. Estas são as palavras que Ele nos diz que o homem velho [João] disse para o pecador: “Tenha piedade de mim meu filho, não tenha medo, ainda existe esperança de salvação para ti. Eu devo responder a Cristo por ti e se for necessário, eu estou disposto a sofrer a morte que tu mereces, como Cristo sofreu por nós. Eu dou minha vida em troca da sua”  [Ibid., 42] (Rivière, p. 156-157)

Pode-se extrair com certa clareza que Cristo sofreu a morte que era a nós devida em virtude de nossos pecados. Sobre a história do Apóstolo João, sabe-se que provavelmente é uma lenda acreditada por Clemente. O que importa é que a ideia subjacente é de uma substituição penal. O discípulo que havia caído em pecado tinha uma pena contra si e João estava disposto a pagá-la em seu lugar, da mesma forma que Cristo fizera, sofrendo a punição devida a outrem. Kelly enfatiza o caráter moralista com que Clemente geralmente tratou a expiação. Rivière concorda, mas adiciona que isso não é tudo que ele ensinou:

Não é nosso objetivo reconciliar os dois aspectos da doutrina do grande filósofo alexandrino. De fato, não seria uma tarefa fácil. É suficiente para nós pontuar que, apesar de seu intelectualismo moralista numa parte de sua obra, Clemente, levado por alguma lógica escondida ou por uma feliz inconsequência, aplica a morte de Cristo os princípios tradicionais da expiação e substituição. De fato, ele chega muito perto dos verdadeiros termos de uma satisfação vicária. (Rivière, p. 157)

Ainda temos o interessante caso de Orígenes:

Todavia, em terceiro lugar, Orígenes estava preparado para interpretar a morte de Cristo como um ato de substituição vicária ou sacrifício propiciatório. De fato, ele é o primeiro dos pais a tratar com detalhes esse aspecto do trabalho do Senhor e entende Sua morte não apenas como uma rendição obediente diante da vontade de Deus, mas como uma oferta que tem influência positiva junto ao Pai. Assim, ele sustenta que, como líder da igreja, Jesus é a cabeça de um corpo do qual somos membros; Ele tomou sobre Si nossos pecados, carregou-os e sofreu voluntariamente por nós. Como sacerdote verdadeiro, Ele ofereceu ao Pai um sacrifício real em que Ele próprio é a vítima, fazendo dessa maneira a propiciação junto ao Pai. O pecado exigia propiciação, e Cristo apresentou se como "vítima imaculada e inocente", apaziguando o Pai em relação aos homens mediante Sua generosa auto oblação. Nessa linha de raciocínio, Orígenes aplica Isaías 53.4 à paixão de Cristo, afirmando que "Ele também carregou nossos pecados e foi oprimido por causa de nossas iniquidades, e o castigo que merecíamos, para que pudéssemos ser punidos e alcançar a paz, caiu sobre Ele". (Kelly, p. 140)

 Vejamos as citações a partir das obras de Orígenes:

 Desde que o pecado existe, sacrifícios pelos pecados são necessariamente requeridos. Suponha por um momento que o pecado não existisse. Se ele não existisse, não teria sido necessário o Filho de Deus se tornar um cordeiro, nem teria sido necessário que ele fosse morto quando ele esteve em carne, mas ele teria permanecido o que Ele era no início: “Deus a Palavra”. Porém, uma vez que o pecado entrou no mundo, a necessidade do pecado demanda propiciação, e a propiciação não ocorre sem sacrifício, então foi necessário que um sacrifício pelo pecado fosse feito (...) Considere quantos sacrifícios todas essas coisas exigem, quantos carneiros, bezerros e bodes. Contudo, entre tudo isto, havia um cordeiro que era capaz de tirar o pecado do mundo inteiro e a razão pela qual os outros sacrifícios cessaram era porque este sacrifício era do tipo único, sendo suficiente para a salvação de todo o mundo. (Homilias em Números 24.1.6:8)

Orígenes entende que os sacrifícios do A.T prefiguravam o sacrifício de Cristo. O sacrifício era necessário, pois o pecado existia. Isto coloca o alexandrino em oposição aqueles que afirmam que Deus poderia ser satisfeito sem sacrifício. O pecado demanda o sacrifício, que, por sua vez, propicia a Deus. Esta citação é favorável a um dos elementos da SP (sacrifício propiciatório). A questão é se ele entendia que Jesus sofreu punição quando morreu na cruz. Vejam:

[A] morte, que é infligida como uma punição pelo pecado, é a purificação do próprio pecado. Por isso, foi ordenado que ela fosse infligida. (Homilias em Levítico 14:4)

Se juntarmos as duas citações, temos que, ao ser morto, Cristo sofreu uma punição pelos pecados, uma vez que a morte é uma punição pelo pecado. Felizmente, Orígenes seria mais explícito:

Mas, o que nunca foi relatado em nenhuma história, é que alguém sofreu a morte por todo o mundo e que o mundo inteiro foi purificado por esse sacrifício, ao passo que sem tal sacrifício ele necessariamente teria perecido. Somente Cristo poderia receber na cruz o fardo dos pecados de todos. Para carregar esse fardo, nada menos do que Seu poder divino era necessário. (Comentário sobre o Evangelho de João 28.18.19)

E também:

Ele também carregou nossos pecados e foi oprimido por causa de nossas iniquidades, e o castigo que merecíamos, para que pudéssemos ser punidos e alcançar a paz, caiu sobre Ele. (Comentário sobre o Evangelho de João 28:19:165)

Ele explicitamente diz que Cristo suportou o castigo (punição) a nós devida. A morte foi substitutiva, e ao recebe-la, Cristo carrega os nossos pecados num sacrifício propiciatório:

“Deus o predestinou como propiciação pela fé em seu sangue.” Isto significa, é claro, que por meio do sacrifício de si mesmo, ele tornaria Deus propício aos homens (...) Pois Deus é justo, e quem é justo não pode justificar o injusto; por isso ele queria que houvesse a mediação de um propiciador para que aqueles que não puderam ser justificados por suas próprias obras pudessem ser justificados pela fé nele. (Comentário sobre a Epístola aos Romanos 3.8.1)

Na mesma obra, ele reafirma a natureza propiciatória da obra de Cristo:

Pois acima [Paulo] havia dito que Cristo deu a si mesmo como o preço de redenção por toda a raça humana para que pudesse redimir aqueles que estavam sendo mantidos no cativeiro de seus pecados (...) Agora ele acrescentou algo ainda mais profundo e diz: “Deus o predestinou como propiciação pela fé em seu sangue”. Isso significa, é claro, que por meio do sacrifício de si mesmo, ele tornaria Deus propício aos homens e, por meio disso, ele manifestaria sua própria justiça ao perdoar seus pecados passados. (Comentário sobre a Epístola aos Romanos 2.8.1)

E para fechar todo o raciocínio, vejam a interpretação de Isaías 53, onde reforça o fato de que Jesus sofreu punição em nosso lugar:

Ele desnudou suas costas para o açoite e deu suas bochechas para serem esbofeteadas, nem recuou antes de ser cuspido. Éramos nós que merecíamos esses ultrajes. Ele nos libertou sofrendo por nós. Ele não morreu para nos tirar da morte, mas para que não tivéssemos que morrer por nós mesmos. Ele se permitiu ser esbofeteado por nós para que nós, que merecíamos tal tratamento, não sofrêssemos por nossos pecados, mas para que sofrendo todas as coisas por causa da justiça pudéssemos recebê-los todos com alegria. (Comentário sobre o Evangelho de Mateus, série 113, citado em Craig, William Lane. Atonement and the Death of Christ (p. 110). Baylor University Press. Edição do Kindle)

Resta claro que Jesus teria sofrido o castigo que era merecido por nós em virtude de nossos pecados. Ele sofreu a punição a nós devida. Ele reafirma que esta punição era uma demanda da justiça.

Não poderia ser dito sobre ele que é luz e que não há trevas nele? (...) Se Deus fez Cristo, que não conheceu pecado, pecado por nós, então não se poderia dizer que não havia trevas Nele. Pois se Jesus estava na semelhança da carne do pecado e pelo pecado, e condenou o pecado ao tomar sobre Ele a semelhança da carne do pecado, então não se pode dizer Dele, absoluta e diretamente, que não havia trevas Nele. Podemos acrescentar que Ele tomou nossas enfermidades e carregou nossas doenças, tanto enfermidades da alma como doenças do homem oculto de nosso coração. Por causa dessas enfermidades e doenças que Ele tirou de nós, Ele declara que sua alma está triste e perturbada. É dito em Zacarias que vestiu roupas imundas, as quais, quando estava para tirá-las, eram chamadas de pecados. Eis que está dito, eu tirei seus pecados. Por ter levado sobre si os pecados das pessoas que nele creram, ele usa muitas expressões como estas: Longe da minha salvação estão as palavras das minhas transgressões, e você conhece a minha tolice, e os meus pecados não foram ocultados de vocês. (Comentário sobre o Evangelho de João 2.21)

Orígenes está negando que a afirmação de 1 João 1:5 (Deus é luz e Nele não há escuridão) poderia ser realmente aplicada a Cristo. Este é um claro antecedente da doutrina da imputação, mais claro do que encontramos na Epístola a Diogneto. Percebam a analogia: Cristo vestiu roupas imundas e estas eram pecados. Cristo poderia dizer de si mesmo “e os meus pecados não foram ocultados de vocês”, não porque ele cometera pecados, mas porque vestira nossas roupas imundas (pecados). Nossos pecados foram transferidos (imputados) a Cristo. O aspecto penal da obra de Cristo é novamente afirmado quando diz: “e condenou o pecado ao tomar sobre Ele a semelhança da carne do pecado” e “Ele tomou .... as doenças do homem oculto de nosso coração”. Isto se coaduna ao argumento de que havia escuridão em Cristo porque Ele carregou nossas ofensas. Ele prossegue no mesmo texto:

Que ninguém suponha que dizemos isso por falta de piedade para com o Cristo de Deus; pois assim como o Pai sozinho tem a imortalidade e nosso Senhor tomou sobre Si, por Seu amor aos homens, a morte que Ele morreu por nós, então somente ao Pai as palavras se aplicam: 'Nele não há trevas', visto que Cristo assumiu, por sua boa vontade para com os homens, nossas trevas. (Ibid.)

Cristo tomou sobre si nossa morte e nossas trevas. Desde que, no pensamento de Orígenes, a morte é a punição devida ao pecado, a implicação é que Cristo foi punido em nosso lugar. Os que negam a presença das SP nos pais da Igreja não costumam lidar exegeticamente com essas citações de Orígenes. Eles geralmente apelam ao fato que o Pai da Igreja foi um dos conhecidos defensores da teoria do resgate, o que é um fato inegável. Como já dito, este é um raciocínio falacioso pois pressupõe que o autor antigo é sempre consistente. Talvez, Orígenes tivesse um raciocínio peculiar que fosse capaz de compatibilizar a SP com a teoria do resgate. Ele infelizmente nunca integrou as duas teorias, ou se o fez, isto não parece ter chegado até nós. Kelly diz que é comum os estudiosos considerarem os pensamentos de Orígenes sobre a redenção tão complexos que eles dificilmente podem ser conciliados (p. 140). Ele também diz:

Não há como negar que suas ideias sacrificiais, interpretadas de maneira literal, não podem ser logicamente harmonizadas com o restante de seu sistema, em especial porque ele exclui a ideia de pecado original como contaminação coletiva e também rejeita todo o conceito de solidariedade humana. (Kelly, p. 140)

De qualquer forma, permanece o fato de que o alexandrino ensinou que Cristo sofreu a punição que era a nós devida, podendo ser contado como um antecedente da SP. Esta afirmação é confirmada por Rivière:

Baseando-se nos textos escriturísticos, Orígenes frequentemente descreve a morte de Cristo como uma satisfação penal. (Rivière, p. 160)

Encerramos aqui a primeira parte. Cobrimos a evidência pré-nicena (séculos II e III). No próximo artigo, vamos analisar a evidência do século IV, onde os antecedentes da SP ficarão mais explícitos.

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