Neste
artigo, vamos avaliar o testemunho dos Pais da Igreja e a teoria da Substituição
Penal (SP). Uma das alegações mais comuns contra a SP é de que é uma invenção
dos reformadores e de que nenhum pai da Igreja a teria defendido. Alguns amigos
já escreveram boas respostas a esta alegação. Indico a série de artigos do
Frankle Bruno (aqui), que fez um ótimo compilado da
evidência patrística e os artigos do Juliano, que tem sido a principal voz em
defesa da SP nos ambientes virtuais (aqui). Muita coisa já foi escrita, por isso,
não quero ser repetitivo e gostaria de adicionar alguns apontamentos que julgo
importantes, principalmente trazendo a posição de estudiosos patrísticos a
respeito do tema. Eu vou utilizar principalmente J.N.D Kelly. Ele é um renomado
erudito patrístico anglicano que, até onde sei, não tem nenhum motivo específico
para defender a SP. Sua obra é um dos poucos manuais de patrística traduzidos
para o português (aqui). Os capítulos de interesse são o 7
(págs. 121-138) e 14 (págs. 285-300) da edição em português. Kelly escreveu:
O
desenvolvimento das ideias da igreja sobre os efeitos salvíficos da encarnação foi
um processo lento e bem demorado. De fato, embora a convicção da redenção
por meio de Cristo sempre tenha sido a força propulsora da fé cristã, até hoje
não se chegou a uma definição final e universalmente aceita sobre a maneira
como isso ocorreu. Portanto, é inútil procurar alguma abordagem sistemática
da doutrina no cristianismo popular do segundo século. É verdade que os pais
apostólicos fazem numerosas referências à obra de Cristo. Na maioria das vezes,
porém, eles estão repetindo jargões da instrução catequética, de maneira que
aquilo que dizem assemelha-se mais a uma afirmação do que a uma explicação. (Kelly, p. 121)
Kelly
se refere ao segundo século, mas uma abordagem sistematizada da expiação é algo
que não encontraremos nos Pais da Igreja de nenhum período. A primeira obra do
tipo foi produzida apenas por Anselmo (séc. XI). Aqui, reside um dos erros mais
comuns ao se estudar as teorias da expiação deste período. Diferente da
Cristologia, a Soteriologia não foi objeto de muita atenção no período
patrístico. Assim, dificilmente vamos encontrar obras que abordem o tema
profundamente e sistematicamente. É comum que se encontre num mesmo autor antigo
o apoio a mais de uma teoria da expiação, seja porque elas não são mutuamente
excludentes ou até mesmo porque o autor possui ideias aparentemente
contraditórias. Por isso, o argumento de que o Pai da Igreja defendeu a teoria
X, logo rejeitou a teoria Y, é geralmente falacioso. Eles tendiam a ter uma
abordagem multifacetada da questão.
Outro
erro é afirmar que a SP não está presente nos pais porque não a encontramos em
sua forma plenamente desenvolvida, com todas as nuances que os reformadores
vieram a defender. Até por não ter recebido tanta atenção, é natural que
nuances fossem acrescentadas. Além disso, nenhuma das teorias modernas da
expiação são encontradas, em sua versão plenamente desenvolvida, no período
patrístico. Mesmo a Christus Victor (CV) é hoje defendida numa versão
diferente. Uma ideia muito popular era que Deus teria oferecido Cristo como pagamento
a satanás pelo resgate da humanidade. O diabo tinha legítimos direitos sobre a
ração humana, então para libertá-la, o preço deveria ser pago. Os defensores modernos
da CV tendem a rejeitar esta ideia ou pelo menos aceita-la numa forma
modificada. Embora, como Kelly disse, suas afirmações sejam mais declarativas
do que explicativas, convém trazer o testemunho de pais apostólicos como
Clemente de Roma:
Ele carrega nossos pecados e sofre por nós. E nós o contemplamos entregue ao
sofrimento, à dor e aos maus tratos. Ele foi ferido por causa de nossos
pecados e maltratado por causa de nossas iniqüidades. A correção que nos
trouxe a paz caiu sobre ele, e por suas chagas fomos curados. Como ovelhas,
todos nós andávamos errantes; o homem se havia desviado de seu caminho. O
Senhor o entregou por causa de nossos pecados, e ele não abriu a boca ao
ser maltratado. Como ovelha, foi conduzido ao matadouro; como cordeiro mudo
diante do tosquiador, não abriu a boca. Na humilhação, a sua sentença foi
retirada. (Carta de Clemente à Igreja de Corinto 16:4-7)
Clemente
repete versículos bíblicos como os textos de Isaías 53, sem adicionar
comentários de próprio punho, por isso não podemos ter fortes conclusões a
partir disso. Com o passar do tempo, as ideias ficarão mais explícitas. Kelly
prossegue:
Deve-se
admitir que, em comparação com o Novo Testamento, os pais apostólicos como um
todo não se ocupam muito do pecado, sendo que seus escritos apresentam um
acentuado enfraquecimento da idéia de expiação. Embora certos de que Cristo
morreu por nós (a repetição da fórmula muitas vezes tem um caráter convencional),
eles atribuem um papel relativamente secundário ao valor expiatório de Sua
morte. O que desponta muito mais forte na imaginação deles é o quadro de
como o legislador, o doador do conhecimento, da imortalidade e da comunhão com
Deus. (Kelly, p. 123)
Embora
a expiação seja ignorada pela maior parte dos pais apostólicos, Kelly observa:
No
entanto, só "Barnabé" interpreta a paixão de Cristo em termos
expressamente sacrificiais, declarando que Ele ofereceu Seu corpo como
sacrifício por nossos pecados, recorrendo ao sacrifício de Isaque como
protótipo. (Kelly,
p. 123)
Ele
se refere a seguinte citação:
O
Senhor deu esse mandamento, porque também ele devia oferecer a si próprio
pelos nossos pecados, como receptáculo do Espírito, em sacrifício, a
fim de que fosse cumprida a prefiguração manifestada em Isaque, oferecido sobre
o altar. (Epístola de Barnabé, cap. 7)
A
visão de que Cristo se ofereceu como sacrifício pelos nossos pecados é um
elemento da Substituição Penal. Este seria o primeiro aspecto da teoria: a
expiação vicária. Não se pode dizer com base apenas nisto que a Epístola está a
defender o segundo aspecto da teoria (Jesus teria sofrido a punição a nós
devida), mas a visão sacrificial substitutiva da morte de Cristo é negada por
algumas teorias da expiação, sendo afirmada pela SP e pela Teoria da Satisfação
de Anselmo. No mesmo período (séc. II), encontramos ensino semelhante na
Epístola a Diogneto:
Com misericórdia tomou para si os nossos pecados e enviou o
seu Filho para nos resgatar:
o santo pelos ímpios, o inocente pelos maus, o justo pelos injustos, o incorruptível
pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais. De fato, que outra coisa poderia
cobrir nossos pecados, senão a sua justiça? Por meio de quem poderíamos ter
sido justificados nós, injustos e ímpios, a não ser unicamente pelo Filho de
Deus? Oh doce troca, oh obra insondável, oh inesperados benefícios! A
injustiça de muito é reparada por um só justo, e a justiça de um só torna
justos muitos outros.
(Epístola a Diogneto, cap. 9)
É
claro a partir do texto que Cristo agiu como nosso substituto. A frase mais
importante e controversa seria “tomou para si os nossos pecados”. Muitos
teólogos protestantes enxergaram aí a doutrina da imputação, segundo o qual,
nossos pecados foram creditados à Cristo, num sentido forense. Embora a doutrina
da imputação tenha nuances que nós não vamos encontrar na epístola, eu acredito
que é possível afirmar que há sim uma ideia de transferência de nossos pecados
para Cristo. O que Cristo fez na cruz envolveu tomar sobre si nossos pecados.
Embora se use o termo “resgate”, não há na epístola a ideia de que Deus pagou
ao diabo algum preço devido. Além disso, como veremos adiante, nem todo que
afirmava a teoria do resgate negava a SP. Saindo dos Pais Apostólicos e indo
para os Apologistas, Kelly disse sobre Justino Mártir:
Em
outra passagem, em que faz uma breve referência a Isaías 53.5, Justino afirma que
Cristo sofreu em nosso lugar para que, mediante Seus açoites, a
raça humana fosse sanada. Foi a vontade do Pai que Ele "levasse
sobre Si as maldições de todos, pois sabia que, depois de ter sido
crucificado e morto, Ele O ressuscitaria". (Kelly, p. 127)
A
citação é a seguinte:
Com
efeito, todo gênero humano perceberá que está sob maldição. Segundo a
lei de Moisés, chama-se maldito todo aquele que não persevera no cumprimento do
que está escrito na lei (...) Portanto, se foi da vontade do Pai do universo
que seu Cristo carregasse por amor ao gênero humano a maldição de todos,
sabendo que o ressuscitaria depois de crucificado e morto, por que falais
como de um maldito daquele que se dignou sofrer tudo isso pelo desígnio do Pai?
Valeria mais que chorásseis a vós mesmos. De fato, é certo que foi o seu
próprio Pai quem o fez sofrer tudo o que ele sofreu por causa do gênero humano,
mas vós não agistes para cumprir um desígnio de Deus, assim como ao matar os
profetas não realizastes uma obra de piedade. E que ninguém de vós diga: “Se o
Pai quis que o Cristo sofresse para que, por meio de suas chagas, viesse a
cura para o gênero humano, nós não cometemos nenhum pecado.” Porque, se
dissésseis isso, arrependendo-se dos vossos pecados, reconhecendo que Jesus é o
Cristo e observando os seus mandamentos, vossos pecados vos seriam perdoados,
como eu já disse antes. (Diálogo com Trifo, cap. 95)
Neste
texto, Justino está a discutir com um judeu (Trifo). Ele rebate a acusação de
que Cristo seria maldito por ter morrido no madeiro. Justino responde afirmando
que todo o gênero humano é maldito por ter violado a lei e que Cristo carregou
a maldição de todos, tendo sido da vontade do Pai que assim ocorresse. Parece
que Trifo dizia que uma vez que Jesus sofreu no madeiro por vontade do Pai, os
judeus não poderiam ser acusados de terem cometido pecado. Observem que Justino
não discorda da afirmação “o Pai quis que Cristo sofresse”. E esse sofrimento
advinha de carregar a maldição que era a nós devida. O argumento parece ser que
Cristo não era maldito porque ele não carrega a sua própria maldição, mas a de
outrem.
Observa-se que a maldição estava sobre gentios e judeus por terem quebrado a lei. Ele estava pensando num sentido legal. Trata-se de uma citação em favor da SP. Há os elementos substitutivo e penal. Cristo sofre a maldição advinda da quebra da lei. A maldição é uma punição devida ao gênero humano.
O estudioso patrístico católico Jean Rivière escreveu uma das mais importantes obras sobre a doutrina da expiação na história da Igreja. Ele disse sobre Justino:
A morte de Cristo não é para São Justino apenas uma fonte de benefícios ou justificação, mas ele também a representa, embora não o faça muito claramente, como uma expiação penal. (Jean Rivière, The Doctrine of the Atonement: A Historical Essay, 2 vols., trans. Cappadelta (London: Kegan Paul, Trench, Trübner, 1909), 1:137)
Isto certamente não foi tudo o que Justino disse sobre a expiação. Ele nem sempre foi consistente com este ensino. Kelly afirma inclusive que ele foi ambíguo (p. 126) e que ele parece apoiar a teoria da recapitulação (p. 127). Isto não muda o fato de que havia espaço para a SP em seu sistema. Passemos para outro Pai da Igreja latino: Hipólito de Roma. Rivière escreveu sobre ele, citando os fragmentos preservados das obras de Hipólito:
A morte de Cristo é representada como um sacrifício expiatório: Cristo é o cordeiro da verdadeira Páscoa, morto por nós, e cujo sangue purificou o mundo. Nossos pecados são a única verdadeira causa de sua morte. Hipólito toca no aspecto penal da morte de Cristo quando ele aplica ao sofrimento do Messias as palavras do Salmo LXVIII: “Eu que não pequei sofri a morte pelo pecado de Adão” (Contra os Judeus 3). O resultado era que os pecados foram apagados e expiados. Cristo foi pregado com eles na cruz (Fragmentos em Gênesis 7). Ele é o sumo sacerdote que, como Batista disse, tira o pecado do mundo. Gabriel disse que Ele veio abolir a iniquidade e trazer justiça eterna (Daniel 9:24). Este Cristo, que de acordo com São Paulo é nossa paz, reconciliou todas as coisas e destruiu o decreto emitido contra nós, pregando-o na cruz. Ele apagou nossas iniquidades e expiou nossos pecados (Fragmentos em Daniel 4:21). (Jean Rivière, The Doctrine of the Atonement: A Historical Essay, 2 vols., trans. Cappadelta (London: Kegan Paul, Trench, Trübner, 1909), 1:150)
Vamos dar uma olhada em algumas dessas citações. Rivière usou uma tradução não disponível online, por isso a citação abaixo serão ligeiramente diferentes e são preferíveis por estarem online:
Então, no que se segue, Cristo fala sobre sua própria pessoa: "Então eu restaurei aquilo", diz Ele "o que não tirei", isto é, por causa do pecado de Adão, suportei a morte que não era minha pelo pecado. “Pois, ó Deus, Tu conheces a minha tolice; e os meus pecados não estão escondidos de Ti”, isto é, “porque eu não pequei”, como Ele quer dizer. E por esta razão (é adicionado): "Não se envergonhem os que querem ver" a minha ressurreição ao terceiro dia, a saber, os apóstolos. “Porque, por amor de Ti”, isto é, por amor a Te obedecer, “tenho suportado o opróbrio”, a saber, a cruz, quando “cobriram meu rosto de vergonha”, isto é, os judeus; quando "tornei-me um estranho para meus irmãos segundo a carne, e um estranho para os filhos de minha mãe", significando (pela mãe) a sinagoga. “Porque o zelo da Tua casa, Pai, me devorou; e as injúrias dos que Te injuriaram caíram sobre mim”, e dos que sacrificaram aos ídolos. (Contra os Judeus 3)
Os dois trechos destacados expressam o aspecto penal mencionado. Cristo morre por causa do pecado de Adão uma morte que não era sua. O aspecto penal fica mais claro quando ele aplica o dito “as injúrias dos que te injuriaram caíram sobre mim”. Ou seja, Cristo estava sendo castigando por ofensas praticadas contra o Pai. Agora, passando para Irineu de Lyon, Kelly afirma:
Há
passagens em que, refletindo a linguagem tradicional, Irineu fala de Cristo
morrendo por nós, reconciliando-nos com Deus por intermédio de Sua paixão ou
fazendo "propiciação por nós junto
ao Pai contra quem pecamos", ou de Deus oferecendo Seu Filho como
"sacrifício para nossa redenção"; geralmente, considera-se que tais
expressões estão distantes de sua teoria principal da recapitulação. Na
verdade, elas se unem de forma admirável a tal teoria, indicando que a
paixão e a morte sacrificial do Senhor foram a expressão suprema e necessária de
Sua obediência. (Kelly,
p. 130)
Seguem
as citações:
Pois
Ele não anulou, mas cumpriu a lei, desempenhando os ofícios do sumo sacerdote, propiciando
a Deus pelos homens, e purificando os leprosos, curando os doentes, e Ele
próprio sofrendo a morte, para que o homem exilado pudesse sair da condenação,
e pudesse regressar sem medo à sua própria herança. (Contra as Heresias 4:8:2)
Esta
citação é interessante porque afirma que Jesus morreu para que o homem não
fosse condenado. À primeira vista, é possível fazer uma leitura que não implique
na SP, mas ele menciona que Jesus propiciou a Deus. É mais provável que a
condenação da qual o homem sairia envolvesse o castigo imposto por Deus e não
se livrar da prisão do Diabo.
Visto
que o Senhor assim nos redimiu através de Seu próprio sangue, dando Sua
alma por nossas almas, e Sua carne por nossa carne, e também derramou o
Espírito do Pai para a união e comunhão de Deus e do homem. (Contra as Heresias 5:1:1)
Aqui
está clara a noção de uma morte substitutiva e sacrificial. Então temos uma
morte substitutiva que livra da condenação e propicia a Deus. Nem todas as
nuances da SP podem ser extraídas dessas citações, mas é algo próximo ao que os
Reformadores defenderam. Em todo o caso, havemos de conceder que a morte
sacrifical de Cristo não é a ênfase principal da teoria da recapitulação de
Irineu. Sua ênfase estava na reencarnação e não na cruz. Passando aos teólogos
latinos dos séculos II-III, Kelly comenta:
Em
contraste com o desenvolvimento que a teologia latina alcançou quanto ao pecado
original, o tratamento dispensado à redenção revelou-se curiosamente retrógado
e insuficiente. Talvez se esperasse uma nova abordagem por parte de Tertuliano,
cujo enfoque jurídico levou-o a enfatizar a necessidade de reparação pelas ofensas
cometidas, transferindo a ideia para a teologia (...) Na verdade, porém, embora
utilize suas ideias de satisfação para explicar a restauração de
relacionamentos entre cada pecador e Deus, ele simplesmente deixa de
aplicá-las ao papel mediador de Cristo. De fato, Tertuliano, dá maior ênfase à
morte de Cristo do que Irineu, falando disso como "todo o peso e todo o
fruto do nome cristão (...) o alicerce supremo do evangelho". Cristo
não apenas morreu por nós, mas foi enviado justamente com esse propósito
(Da Carne de Cristo 6). Na realidade, "nem nossa própria morte poderia ter
sido cancelada senão mediante a paixão do Senhor, nem nossa vida poderia ter
sido restaurada sem Sua ressurreição" (Do Batismo 11). Além disso, Sua morte
foi sacrificial; "foi-Lhe necessário ser feito sacrifício em favor de
todas as nações" (Contra os Judeus 13), e "Ele Se entregou por
nossos pecados" (Escorpião 7). Esses pensamentos, porém, embora possam
muito bem conter o germe de uma doutrina da substituição, não são em lugar
algum expandidos ou elaborados em síntese. (Kelly, p. 132)
Em Tertuliano encontramos o germe de uma
doutrina da substituição. O mesmo sucede a outros pais latinos, como Cipriano
de Cartago:
Cerca de uma geração depois, encontramos
Cipriano ensinando que Cristo sofreu por nossos pecados, curando nossas
feridas e destruindo a morte por intermédio de Seu sangue (De Lapsis 17),
afirmando que também pelo sangue fomos restaurados à vida, e nossa vida foi
purificada dos pecados. Ele falou (Ep. 63:16) da paixão do Senhor como um
sacrifício, e aparece um indício da doutrina da substituição na afirmação de
que "Cristo nos carregou a todos quando carregou nossos pecados" (Ep 63:13). (Kelly, p. 133)
Cristo carregou-os e sofreu por nossos pecados é sem dúvida no mínimo um indício da SP em Cipriano. Passando dos pais latinos para os Orientais, vamos analisar uma interpretação sacrificial que começa em Clemente de Alexandria e ganha maior expressão em Orígenes. Rivière escreveu sobre Clemente de Alexandria:
Porém,
o curto tratado moral, cujo título é Quis Dives Salvetur, conta uma história
diferente. Logo no início, nos é dito que a morte de Cristo é causa de nossa
salvação: “Se a Lei de Moisés tivesse sido suficiente para dar vida eterna, teria
sido em vão o Salvador ter vindo e sofrido por nossa conta” [Quem é o Homem Rico Que Será Salvo 8].
Mais adiante, Clemente não apenas afirma que Cristo morreu por nós, e pela sua
morte obteve para nós um tesouro de virtude, mas em outro lugar no mesmo livro,
ele descreve o caráter expiatório em termos mais claros do que encontramos
até então, e, de fato, do que encontraremos depois: “Eu regenerei a ti,
disse Cristo a alma cristã, a quem o mundo gerou para morrer. Eu a livrei,
curei e redimi (...) Eu sou o enfermeiro (...) o mestre (...) Por você eu
lutei com a morte, e então paguei a morte devida pelos seus antigos pecados e
descrença para com Deus” [Ibid. 23].
Aqui, o escrito enfatiza o caráter
substitutivo da expiação. Mais adiante, ele insiste na generosidade do auto
sacrifício que isto envolve: Deus era nosso pai por sua natureza divina. Ele se
tornou nossa mãe pelo seu amor por nós (...) Seu filho eterno, o fruto do seu
amor, como ele é amor. Foi por isso que ele veio, se tornou homem e se
dispôs a vestir nossas desgraças, ]antes de oferecer a si mesmo e dar a si
mesmo por nossa redenção” [Ibid. 37]
(...) Por último, Clemente conta a conhecida história de quando São João
colocou-se sobre os pés de um dos seus discípulos que havia se tornado um
ladrão. Estas são as palavras que Ele nos diz que o homem velho [João] disse
para o pecador: “Tenha piedade de mim meu filho, não tenha medo, ainda existe
esperança de salvação para ti. Eu devo responder a Cristo por ti e se for
necessário, eu estou disposto a sofrer a morte que tu mereces, como Cristo
sofreu por nós. Eu dou minha vida em troca da sua” [Ibid., 42]
(Rivière, p. 156-157)
Pode-se
extrair com certa clareza que Cristo sofreu a morte que era a nós devida em
virtude de nossos pecados. Sobre a história do Apóstolo João, sabe-se que
provavelmente é uma lenda acreditada por Clemente. O que importa é que a ideia subjacente
é de uma substituição penal. O discípulo que havia caído em pecado tinha uma
pena contra si e João estava disposto a pagá-la em seu lugar, da mesma forma
que Cristo fizera, sofrendo a punição devida a outrem. Kelly enfatiza o caráter
moralista com que Clemente geralmente tratou a expiação. Rivière concorda, mas
adiciona que isso não é tudo que ele ensinou:
Não é nosso objetivo reconciliar os dois aspectos da doutrina do grande filósofo alexandrino. De fato, não seria uma tarefa fácil. É suficiente para nós pontuar que, apesar de seu intelectualismo moralista numa parte de sua obra, Clemente, levado por alguma lógica escondida ou por uma feliz inconsequência, aplica a morte de Cristo os princípios tradicionais da expiação e substituição. De fato, ele chega muito perto dos verdadeiros termos de uma satisfação vicária. (Rivière, p. 157)
Ainda temos o interessante caso de Orígenes:
Todavia, em terceiro lugar, Orígenes
estava preparado para interpretar a morte de Cristo como um ato de substituição
vicária ou sacrifício propiciatório. De fato, ele é o primeiro dos pais a
tratar com detalhes esse aspecto do trabalho do Senhor e entende Sua morte não
apenas como uma rendição obediente diante da vontade de Deus, mas como uma oferta
que tem influência positiva junto ao Pai. Assim, ele sustenta que, como líder
da igreja, Jesus é a cabeça de um corpo do qual somos membros; Ele tomou
sobre Si nossos pecados, carregou-os e sofreu voluntariamente por nós. Como
sacerdote verdadeiro, Ele ofereceu ao Pai um sacrifício real em que Ele
próprio é a vítima, fazendo dessa maneira a propiciação junto ao Pai. O
pecado exigia propiciação, e Cristo apresentou se como "vítima
imaculada e inocente", apaziguando o Pai em relação aos homens mediante
Sua generosa auto oblação. Nessa linha de raciocínio, Orígenes aplica
Isaías 53.4 à paixão de Cristo, afirmando que "Ele também carregou nossos pecados
e foi oprimido por causa de nossas iniquidades, e o castigo que merecíamos, para
que pudéssemos ser punidos e alcançar a paz, caiu sobre Ele". (Kelly, p. 140)
Orígenes entende que os sacrifícios do A.T prefiguravam o sacrifício de Cristo. O sacrifício era necessário, pois o pecado existia. Isto coloca o alexandrino em oposição aqueles que afirmam que Deus poderia ser satisfeito sem sacrifício. O pecado demanda o sacrifício, que, por sua vez, propicia a Deus. Esta citação é favorável a um dos elementos da SP (sacrifício propiciatório). A questão é se ele entendia que Jesus sofreu punição quando morreu na cruz. Vejam:
[A] morte, que é infligida como uma punição pelo pecado, é a purificação do próprio pecado. Por isso, foi ordenado que ela fosse infligida. (Homilias em Levítico 14:4)
Se
juntarmos as duas citações, temos que, ao ser morto, Cristo sofreu uma punição
pelos pecados, uma vez que a morte é uma punição pelo pecado. Felizmente, Orígenes
seria mais explícito:
Mas,
o que nunca foi relatado em nenhuma história, é que alguém sofreu a morte
por todo o mundo e que o mundo inteiro foi purificado por esse sacrifício,
ao passo que sem tal sacrifício ele necessariamente teria perecido. Somente
Cristo poderia receber na cruz o fardo dos pecados de todos. Para carregar
esse fardo, nada menos do que Seu poder divino era necessário. (Comentário sobre o Evangelho de João 28.18.19)
E
também:
Ele
também carregou nossos pecados e foi oprimido por causa de nossas iniquidades, e
o castigo que merecíamos, para que pudéssemos ser punidos e alcançar a paz,
caiu sobre Ele. (Comentário sobre o Evangelho de João 28:19:165)
Ele
explicitamente diz que Cristo suportou o castigo (punição) a nós devida. A
morte foi substitutiva, e ao recebe-la, Cristo carrega os nossos pecados num
sacrifício propiciatório:
“Deus
o predestinou como propiciação pela fé em seu sangue.” Isto significa, é claro,
que por meio do sacrifício de si mesmo, ele tornaria Deus propício aos
homens (...) Pois Deus é justo, e quem é justo não pode justificar o
injusto; por isso ele queria que houvesse a mediação de um propiciador para
que aqueles que não puderam ser justificados por suas próprias obras pudessem
ser justificados pela fé nele.
(Comentário sobre a Epístola aos Romanos 3.8.1)
Na
mesma obra, ele reafirma a natureza propiciatória da obra de Cristo:
Pois
acima [Paulo] havia dito que Cristo deu a si mesmo como o preço de redenção
por toda a raça humana para que pudesse redimir aqueles que estavam sendo mantidos
no cativeiro de seus pecados (...) Agora ele acrescentou algo ainda mais profundo
e diz: “Deus o predestinou como propiciação pela fé em seu sangue”. Isso
significa, é claro, que por meio do sacrifício de si mesmo, ele tornaria Deus
propício aos homens e, por meio disso, ele manifestaria sua própria justiça ao
perdoar seus pecados passados. (Comentário sobre a Epístola aos Romanos 2.8.1)
E
para fechar todo o raciocínio, vejam a interpretação de Isaías 53, onde reforça
o fato de que Jesus sofreu punição em nosso lugar:
Ele
desnudou suas costas para o açoite e deu suas bochechas para serem
esbofeteadas, nem recuou antes de ser cuspido. Éramos nós que merecíamos
esses ultrajes. Ele nos libertou sofrendo por nós. Ele não morreu para nos
tirar da morte, mas para que não tivéssemos que morrer por nós mesmos. Ele
se permitiu ser esbofeteado por nós para que nós, que merecíamos tal
tratamento, não sofrêssemos por nossos pecados, mas para que sofrendo
todas as coisas por causa da justiça pudéssemos recebê-los todos com
alegria. (Comentário sobre
o Evangelho de Mateus, série 113, citado em Craig, William Lane. Atonement and
the Death of Christ (p. 110). Baylor University Press. Edição do Kindle)
Resta
claro que Jesus teria sofrido o castigo que era merecido por nós em virtude de
nossos pecados. Ele sofreu a punição a nós devida. Ele reafirma que esta
punição era uma demanda da justiça.
Não
poderia ser dito sobre ele que é luz e que não há trevas nele? (...) Se Deus
fez Cristo, que não conheceu pecado, pecado por nós, então não se poderia
dizer que não havia trevas Nele. Pois se Jesus estava na semelhança da carne do
pecado e pelo pecado, e condenou o pecado ao tomar sobre Ele a semelhança da
carne do pecado, então não se pode dizer Dele, absoluta e diretamente, que
não havia trevas Nele. Podemos acrescentar que Ele tomou nossas enfermidades
e carregou nossas doenças, tanto enfermidades da alma como doenças do homem
oculto de nosso coração. Por causa dessas enfermidades e doenças que Ele
tirou de nós, Ele declara que sua alma está triste e perturbada. É dito em
Zacarias que vestiu roupas imundas, as quais, quando estava para tirá-las, eram
chamadas de pecados. Eis que está dito, eu tirei seus pecados. Por ter
levado sobre si os pecados das pessoas que nele creram, ele usa muitas
expressões como estas: Longe da minha salvação estão as palavras das minhas
transgressões, e você conhece a minha tolice, e os meus pecados
não foram ocultados de vocês.
(Comentário sobre o Evangelho de João 2.21)
Orígenes
está negando que a afirmação de 1 João 1:5 (Deus é luz e Nele não há escuridão)
poderia ser realmente aplicada a Cristo. Este é um claro antecedente da
doutrina da imputação, mais claro do que encontramos na Epístola a Diogneto.
Percebam a analogia: Cristo vestiu roupas imundas e estas eram pecados. Cristo
poderia dizer de si mesmo “e os meus pecados não foram ocultados de vocês”, não
porque ele cometera pecados, mas porque vestira nossas roupas imundas (pecados).
Nossos pecados foram transferidos (imputados) a Cristo. O aspecto penal da obra
de Cristo é novamente afirmado quando diz: “e condenou o pecado ao tomar sobre
Ele a semelhança da carne do pecado” e “Ele tomou .... as doenças do homem
oculto de nosso coração”. Isto se coaduna ao argumento de que havia escuridão em
Cristo porque Ele carregou nossas ofensas. Ele prossegue no mesmo texto:
Que
ninguém suponha que dizemos isso por falta de piedade para com o Cristo de
Deus; pois assim como o Pai sozinho tem a imortalidade e nosso Senhor tomou
sobre Si, por Seu amor aos homens, a morte que Ele morreu por nós,
então somente ao Pai as palavras se aplicam: 'Nele não há trevas', visto que
Cristo assumiu, por sua boa vontade para com os homens, nossas trevas.
(Ibid.)
Cristo
tomou sobre si nossa morte e nossas trevas. Desde que, no pensamento de
Orígenes, a morte é a punição devida ao pecado, a implicação é que Cristo foi
punido em nosso lugar. Os que negam a presença das SP nos pais da Igreja não
costumam lidar exegeticamente com essas citações de Orígenes. Eles geralmente
apelam ao fato que o Pai da Igreja foi um dos conhecidos defensores da teoria
do resgate, o que é um fato inegável. Como já dito, este é um raciocínio
falacioso pois pressupõe que o autor antigo é sempre consistente. Talvez,
Orígenes tivesse um raciocínio peculiar que fosse capaz de compatibilizar a SP
com a teoria do resgate. Ele infelizmente nunca integrou as duas teorias, ou se
o fez, isto não parece ter chegado até nós. Kelly diz que é comum os estudiosos
considerarem os pensamentos de Orígenes sobre a redenção tão complexos que eles
dificilmente podem ser conciliados (p. 140). Ele também diz:
Não
há como negar que suas ideias sacrificiais, interpretadas de maneira literal, não
podem ser logicamente harmonizadas com o restante de seu sistema, em
especial porque ele exclui a ideia de pecado original como contaminação
coletiva e também rejeita todo o conceito de solidariedade humana. (Kelly, p. 140)
De qualquer forma, permanece o fato de que o alexandrino ensinou que Cristo sofreu a punição que era a nós devida, podendo ser contado como um antecedente da SP. Esta afirmação é confirmada por Rivière:
Baseando-se nos textos escriturísticos, Orígenes frequentemente descreve a morte de Cristo como uma satisfação penal. (Rivière, p. 160)
Encerramos
aqui a primeira parte. Cobrimos a evidência pré-nicena (séculos II e III). No próximo
artigo, vamos analisar a evidência do século IV, onde os antecedentes da SP
ficarão mais explícitos.
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