quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Os Pais Latinos e a Substituição Penal - Parte 4 (séc. IV-VII)

 

Tendo passado pelos pais gregos, vamos agora analisar os pais latinos do séc. IV adiante. Kelly afirma:

O pensamento ocidental acerca da redenção conformava-se em grande parte ao padrão que pudemos observar no Oriente, com ênfase ainda maior na morte do Senhor como sacrifício (...) é a paixão e a morte de Cristo que mais interessam a esses escritores. (Kelly, p. 293)

Ao comenta a teologia latina no mesmo período, Rivière disse:

Apesar da pobreza de suas formulações e superficialidade de suas ideias, nós vimos que os escritores latinos mais antigos estavam distintamente no lado do realismo (...) contudo, nós podemos facilmente sanar esta ausência dos escritores mais antigos ao nos referirmos aos grandes doutores do século quatro (...) Estes pais latinos cuidadosamente tomaram o padrão de especulações que os pais gregos preferiam, e propositadamente centraram sua atenção na morte expiatória do Salvador. (Rivière, p. 263)

Lembrem-se que a teoria realista, conforme Kelly já definiu, preconizava que a morte de Cristo era um sacrifício substitutivo, no qual Jesus era punido em nosso lugar.

Hilário de Poitiers (315-368)

Especificamente sobre Hilário, Kelly disse:

Hilário passa facilmente para a de sacrifício, ressaltando o caráter voluntário daquilo que Cristo alcançou. "Ele Se ofereceu para a morte dos amaldiçoados, a fim de abolir a maldição da lei mediante a oferta sacrificial de Si mesmo a Deus Pai, por Sua livre e espontânea vontade (...) A Deus Pai, que desprezou os sacrifícios da lei, Ele ofereceu o sacrifício aceitável do corpo que assumira (...) obtendo a salvação completa da raça humana pela oblação de seu sacrifício santo e perfeito" [Tratado sobre os Salmos 53:13]. Hilário enfatiza que foi por Seu sangue e por Sua paixão, morte e ressurreição, que Cristo nos redimiu. O efeito de Sua morte foi a destruição da sentença de morte que nos foi passada, a expiação de nossos pecados e nossa reconciliação com Deus. Embora sejam comentários eventuais, eles confirmam a afirmação de que Hilário deve ser considerado um dos pioneiros da teologia da satisfação. (Kelly, p. 295)

Rivière confirma:

Em particular, ele é bem claro a respeito do caráter penal da morte de Cristo (...) “Foi necessário dar, no lugar do nosso castigo, uma satisfação voluntária sem que o sofredor fosse diminuído por experimentar esta punição” [Comentário sobre Mateus 32:10] (...) Este simples texto expressa uma das ideias favoritas de St. Hilário: a paixão era em si mesma uma penalidade e ela cumpriu o dever de uma penalidade, mas o sofredor divino não sentiu a dor. (Rivière, p. 268-269)

O texto é bem claro quanto ao aspecto penal da paixão de Cristo. Ele foi punido em nosso lugar e esta satisfação era necessária. Rivière passa a citar vários outros textos de Hilário que confirmam esta conclusão. Infelizmente, a obra em questão traz os textos em latim e até onde pesquisei, não há qualquer tradução para o inglês. Por isso, vou trazer os comentários de Riviére traduzidos e logo em seguida o texto em latim a partir do qual cita. Se algum leitor que compreende o idioma estiver disposto a traduzí-los, ficaria enormemente agradecido:

Não apenas a morte era uma penalidade, mas no caso de Cristo, foi não merecida. Sendo inculpável, Ele não merecia a morte, e pagou a penalidade pelos pecados que ele não cometeu

"Quae non rapuerat tunc repetebatur exsolvere. Cum enim debitor mortis peccatique non esset, tamquam peccati et mortis debitor tenebatur. Poenas scilicet insipientia et delictorum, quas non rapuerat, repetebatur exsolvere". [Homilias sobre os Salmos 68:7-8]

Assim, os pecados que Jesus carregou eram nossos: “Percussus est Dominus peccata mostra suscipiens et pro nobis dolens”. Ele foi castigado por Deus para que possamos receber vida através de sua morte

Non pepercerat primo illi de terrse limo Adamo (...) ut naturam corporis eius Adam e coelis secundus assumens, parique morte percussus, eam rursus in vitam aeternam iam sine poenae aeternitate revocaret. [Homilias sobre os Salmos 68:23]

St. Hilário também vê a morte de Cristo como um sacrifício que tira nossa maldição e opera nossa salvação

Cristo nos redimiu da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós, pois está escrito: maldito seja todo aquele que estiver pendurado no madeiro. Assim, Ele se ofereceu à morte do maldito para quebrar a maldição da Lei, oferecendo-se voluntariamente como vítima a Deus Pai, a fim de que por meio de uma vítima voluntária a maldição que acompanhou a vítima comum pudesse ser removida. Agora, a menção desse sacrifício é feita em outra passagem dos Salmos: Sacrifício e oferta não quiseste, mas um corpo preparaste para mim. Isto é, oferecendo a Deus Pai, que recusou os sacrifícios da Lei, a oferta aceitável do corpo que Ele recebeu. Sobre isto fala o santo apóstolo: Por isso El o fez de uma vez por todas quando ofereceu a si mesmo [Hebreus 7:27], garantindo a salvação completa para a raça humana pela oferta desta vítima santa e perfeita[Homilias sobre os Salmos 53:13]

No texto acima, Hilário fala de redenção e retorna novamente a este ponto. Redenção é o resultado geral do sacrifício de Cristo

Redemit nos cum se pro peccatis nostris dedit; redemit nos per sanguinem suum, per passionem suam, per mortem suam, per resurrectionem suam. Haec magna vitae nostrae pretia sunt. [Homilia sobre os Salmos 135:15]


Outro resultado do sacrifício era a destruição do decreto de morte pronunciado contra nós:

Ele apagou por meio da morte a sentença de morte, para que por uma nova criação de nossa raça em Si mesmo Ele pudesse varrer a pena designada pela lei anterior. Ele permitiu que eles o pregassem na cruz para que Ele pudesse pregar a maldição da cruz e abolir todas as maldições às quais o mundo está condenado. Ele sofreu como homem ao máximo para que pudesse envergonhar os poderes. Pois a Escritura predisse que Aquele que é Deus deveria morrer” [Da Trindade 1:13]

Acima de tudo, a morte do nosso salvador era a expiação dos nossos pecados

Sciens vetera delicta sua et antiquae impietatis crimina Deo propitianda esse per Christum. Ipse enim secundum Apostolum nostra placatio est. [Homilias sobre os Salmos 64:4]

E por último, em consequência disso, somos reconciliados com Deus:  

Est Unigenitus Dei Filius (...) redemptio nostra, pax nostra in cuius sanguine reconciliati Deo sumus. Hie est qui venit tollere peccata mundi, qui cruci chirographum legis affigens edictum damnationis veteris delevit (...) Ipse pro peccatis nostris et propitiatio, et redemptio, et deprecatio est iniquitatum nostrarum, quia ipse earum propitiatio sit, non recordans. [Homilias sobre os Salmos 129:9]

(...) Suas ideias não são sistematizadas e as vezes são envoltas num traje místico peculiar, mas apesar de nunca apresentar uma síntese, ele não falha em afirmar novamente os vários elementos do realismo tradicional. (Rivière, p. 269-271)

Kelly também atesta que ideias semelhantes às de Hilário foram expressas por Vitorino:

Deparamo-nos com idéias semelhantes em seu contemporâneo Vitorino, expressas em termos de redenção e substituição, em vez de sacrifício. Ele fala que Cristo redime (mercaretur) o homem mediante Sua paixão e morte [Contra Ario 1:45], destacando que estas só conseguem operar a remissão de pecados porque a vítima é o Filho de Deus [Contra Ario 1:35]. Ele Se entregou, afirma Vitorino, à morte e à cruz em nosso lugar, livrando-no assim de nossos pecados [Homilias em Gálatas 1:2:20]. (Kelly, p. 295)

Ambrósio (?-397)

Kelly novamente traz o sumário:

Ambrósio desenvolve uma teoria da morte de Cristo como sacrifício oferecido para atender às reivindicações da justiça divina. Ele o vê prefigurado na morte de Abel, como também nas oblações prescritas pela lei judaica. É um sacrifício realizado de uma vez por todas, e seu efeito é que, pelo sangue de Cristo, nossos pecados são lavados. Cristo destruiu a sentença de morte que pesava contra nós, e também a própria morte.  Ambrósio explica como isso ocorreu: "Jesus assumiu a carne de modo a destruir a maldição da carne pecaminosa, e tornou-Se maldição em nosso lugar para que a maldição desaparecesse devido à bênção (...) Ele também assumiu a morte sobre Si para que a sentença fosse executada, de maneira que cumprisse o julgamento de que a carne pecadora deve ser amaldiçoada até a morte. De modo que nada se fez contrário à sentença divina, visto que tais estipulações foram cumpridas" [De Fuga Saeculi 44]. (Kelly, p. 295-296)

Esta citação trazida por Kelly é de especial interesse pois afirma que, ao morrer, Cristo estava cumprindo uma sentença cominada por Deus, cumprindo as exigências Divinas. Jesus destrói a sentença a cumprindo em nosso lugar. Isto é resumidamente o conceito de substituição penal. Kelly prossegue:

O segundo Adão morreu, ele acrescenta, para que, "uma vez que os decretos divinos não podem ser quebrados, a pessoa castigada seja modificada, e não a sentença de castigo" [persona magis quam sententia mutaretur] [Exposição do Evangelho de Lucas 4:7] (Kelly, p. 296).

Novamente, é afirmado que Cristo assumiu nosso castigo. Mudou o castigado, mas a sentença foi cumprida, e não poderia ser diferente pois ela fora decretada por Deus. Sigamos com Kelly:

Aqui, a ideia de recapitulação está combinada com a de substituição; pelo fato de partilhar da natureza humana, Cristo pode tomar o lugar de homens pecadores e suportar no lugar deles o castigo que merecem. Ambrósio indaga? "Qual foi o propósito da encarnação, senão esse, que a carne que havia pecado fosse redimida por si mesma?" [O Sacramento da Encarnação do Nosso Senhor 4]. Ambrósio entende que o sacrifício de Cristo foi propiciatório, mas reconhece tanto o amor do Filho que Se entregou quanto o amor do Pai que o entregou. Ele também destaca a singular adequação de Cristo como nosso redentor, tanto pela ausência de pecado como pela excelência de Sua pessoa. (Kelly, p. 296)

 Convém trazer as citações que Kelly não traz de forma direta:

 Abel também sabia como dividir, quando ofereceu o sacrifício das primícias de seu rebanho, ensinando que os presentes da terra, que degeneraram em pecado, não irão agradar a Deus, mas somente aqueles no qual a graça do divino mistério brilhou. Então ele profetizou que nós éramos para ser redimidos de nossas falhas através da paixão do Senhor, a respeito de quem está escrito: “Veja o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Assim, Ele também fez uma oferta das primícias, o que deveria significar o primogênito. (O Sacramento da Encarnação do Nosso Senhor 4)

Assim como Abel ofereceu uma oferta para agradar a Deus, a morte de Cristo também foi uma oferta ao Senhor. O aspecto sacrificial é claramente afirmado aqui. E este era um sacrifício que visava satisfazer uma demanda divina. A próxima citação evidencia que Ambrósio via a morte de Cristo prefigurada nos sacrifícios judaicos:

Portanto, o homem que é sábio e tem conhecimento do futuro observa os mistérios celestiais e de acordo com a mensagem de Deus, matou um cordeiro destinado por seu pai aos ídolos, e ele mesmo sacrificou outro cordeiro de sete anos para Deus. Ao fazer isso, ele revelou muito claramente que após a vinda do Senhor todos os sacrifícios dos gentios devem ser abolidos, e apenas o sacrifício da paixão do Senhor deve ser oferecido a Deus para a redenção do povo. Pois aquele cordeiro prefigurava Cristo, em quem, como disse Isaías, habitou a plenitude das sete virtudes espirituais. Também Abraão ofereceu este cordeiro quando viu o dia do Senhor e se alegrou. Ele é quem foi oferecido agora na figura de uma criança, agora na de uma ovelha, agora na de um cordeiro. De uma criança, porque Ele é um sacrifício pelos pecados; de uma ovelha, porque Ele é uma oferta voluntária; de um cordeiro, porque Ele é uma vítima sem mancha. (Do Espírito Santo 1:4)

 Sobre Cristo ter apagado a sentença que havia contra nós:

Não devemos, então, supor que o Pai que ressuscitou a carne está sozinho; nem, novamente, devemos supor a semelhança do Filho, cujo corpo foi ressuscitado. Aquele que ressuscitou certamente também vivificou. Aquele que vivificou, também perdoou pecados. Aquele que perdoou pecados, também apagou a sentença. Aquele que apagou a sentença, também a cravou na Cruz. (Exposição da Fé Cristã 3:13)

Sobre a natureza propiciatória de sua morte:

Formamos a congregação do Senhor. Reconhecemos a propiciação de nosso Senhor Deus, que nosso Propiciador operou em Sua paixão. (Sobre os deveres dos clérigos 3:102)

Rivière comenta sobre Ambrósio:

Todos esses benefícios que devemos a morte de Cristo mostram seu valor. St. Ambrósio também permite a esta um caráter penal o que nos capacita entende-la um pouco melhor. A palavra satisfação não é desconhecida para ele que a utiliza para descrever nossos atos de penitência, mas numa ocasião, ele faz uso dela em conexão com a morte de Cristo: 

Ideo suscepit lesus carnem, ut maledictum carnis peccatricis aboleret ; et factus est pro nobis maledictum., ut benedictio absorberet maledictum. Suscepit enim et mortem ut impleretur sententia, satisfieret iudicato : Maledictum carnis peccatricis usque ad mortem. [De Fuga Saeculi 7:44]

(...) Em outra passagem, inspirando-se em São Paulo, ele repete que Cristo foi feito pecado e maldição por nossa causa: “Tu és pecado, oh homem! O Pai onipotente também fez de Cristo pecado” [In Ps. 118]. Isto não significa que ele se tornou um pecador, mas que tomou sobre si nossos pecados:

“Então, o Senhor se transformou num pecador? Não, mas desde que Ele assumiu nossos pecados, ele é chamado de Pecado, pois o Senhor também é chamado de maldito, não porque o Senhor foi convertido em uma coisa maldita, mas porque ele mesmo assumiu nossa maldição” [O Sacramento da Encarnação do Nosso Senhor 4:60].

St. Ambrósio igualmente toma Romanos 8:3 como uma referência à expiação do pecado

"Damnavit peccatum, ut peccata nostra in sua carne crucifigeret; factus pro nobis ipse peccatum, ut nos essemus in ipso iustitia Dei. Ergo pietatis est susceptio peccatorum ista, non criminis. Per hoc peccatum nos Deus aeternus absolvit, qui Filio suo proprio non pepercit et peccatum eum fecit esse pro nobis". [Comentários sobre os Salmos 37:5-6]



 (...) Todos esses textos provam que Cristo substituiu a si mesmo por nós (...) Nós temos visto como Ambrósio, tendo descrito os efeitos salutares da paixão de Cristo, enfatiza seu lado penal (...) Ele, acima de tudo, pontua que apenas Cristo poderia ter nos redimido [Comentário sobre os Salmos 40:1]. De fato, somente Ele poderia nos redimir, tanto que, do ponto de vista redenção, nós podemos dizer que a vida e a morte de Cristo eram necessárias. Isto é claramente afirmado por St. Ambrósio (...) A pessoa de Cristo e a morte eram necessários para o perdão dos pecados:

“O único digno de ser eleito para tal morte era Jesus Cristo, aquele que tira o pecado do mundo” [Defesa do Profeta Davi 5:22] e “Que grande misericórdia, que por nossos crimes ele se apresentou como sacrifício pelos nossos pecados, para que de nenhuma outra forma eles pudessem ser abolidos, a não ser lavando o mundo com o seu sangue” [Comentários sobre os Salmos 47:17]

Uma razão para isto é que para libertar outros, um homem deveria ser sem pecado [Comentário sobre os Salmos 118 5:22]. Outra razão é que nenhum homem poderia suficientemente limpar o mundo [Comentários sobre Lucas 6:109].

(...) Assim quando examinamos a superfície do pensamento de St. Ambrósio, nós encontramos que a morte de Cristo nos redime e purifica, não meramente porque é um sacrifício, expiação e uma substituição penal, mas principalmente por causa da qualidade transcendental do sofredor.  (Rivière, p. 273-279)

Não são necessários comentários adicionais. Após a exposição de Kelly e Riviére, é razoável afirmar que Ambrósio foi claramente um antecedente da SP no séc. IV.

Ambrosiastro (séc. IV)

Ambrosiastro é o nome dado a um autor desconhecido do séc. IV que escreveu importantes comentários sobre as epístolas de Paulo. Seu nome deriva do fato destas obras terem sido atribuídas a Ambrósio, o que é largamente desacreditado nos dias atuais. Kelly comenta:

A interpretação sacrificial da morte do Senhor é comum em outros escritores latinos do período. Ambrosiastro recorda com frequência que Cristo morreu por nós e por nossos pecados, oferecendo dessa forma um sacrifício de aroma suave [Comentário sobre Romano 5:6-10]. O valor total dessa oblação, ele assinala, encontra-se no amor e na obediência aí demonstrados [Comentário sobre 2 Coríntios 5:15]. (Kelly, p. 296)

Sigamos com Rivière:

Nosso comentarista também segue St. Paulo ao declarar que Cristo foi feito pecado e maldição. Que ele foi feito pecado, na linguagem levítica, simplesmente significa que ele foi feito vítima de nossos pecados:

“Tendo em vista o fato de que ele foi oferecido como oferta pelo pecado, não é errado dizer que ele foi feito pecado, porque, na lei, o sacrifício a qual era oferecido pelo pecado costumava ser chamado de pecado. Ele que não conheceu pecado, nas palavras de Isaías: ‘Ele que não conheceu pecado, nem traição foi encontrada em seus lábios’, foi morto como um pecador, para que assim pecadores possam ser justificados diante de Deus” [Comentários em 2 Coríntios 5:21]

Nós podemos explicar da mesma forma como Cristo foi feito maldição: “Por causa da maldição, ele se ofereceu para ser feito maldição”. O escritor é cuidadoso em apontar que St. Paulo não diz que Cristo foi ”amaldiçoado”, o que iria necessitar de uma expiação pessoal, mas que ele era uma “maldição”, pelo qual ele descreve uma penalidade externa e legal [Comentário sobre os Gálatas 3:13] (Rivière, p. 280-281)

Pelágio (360-420)

Pelágio não é tecnicamente um pai da Igreja, apesar de sua importância histórica. Ele ficou conhecido por seu ensino herético a respeito da graça. De toda a forma, os manuais patrístricos que estamos utilizando abordam seu testemunho a respeito da expiação. Dessa forma, também faremos, começando com Kelly:

De acordo com Pelágio, apenas Jesus Cristo "foi julgado em condições de ser oferecido como sacrifício imaculado em favor de todos os que estavam mortos em pecados" [Comentários em 2 Coríntios 5:15]. Deus havia decretado a morte aos pecadores, e, ao morrer, Cristo pôde ao mesmo tempo manter tal decreto e isentar a humanidade de seus efeitos [Comentários em Romanos 3:25]. Uma ideia que Pelágio procura destacar é que era lógico que a vida de Cristo podia ser oferecida em nosso lugar, porque, sendo inocente, de Sua parte Ele não merecia a morte [Comentários em Romanos 5:24]. (Kelly, p. 296)

Rivière complementa:

Sua morte foi necessária, porque Deus fez o nosso perdão depender dela: “Deus ofereceu um propiciador (...) e fez uma expiação por eles (...) aqueles que acreditam no seu sangue para a libertação (...) porque Cristo sofreu com o propósito deste poderoso discurso, ao invés de punir os pecadores” [Comentário sobre Romanos 3:25]. Alguma expiação pelos nossos pecados era necessária e somente Cristo poderia fazer isto: “Somente ele foi considerado uma vítima imaculada por todos aqueles que estavam mortos em seus pecados, para os quais a oferta foi oferecida” [Comentários em 2 Coríntios 5:15]. Esta foi a razão pela qual ele foi feito pecado – um sacrifício pelo pecado [Comentários em Romanos 8] – um sacrifício espontâneo que agrada a Deus por causa do amor que ele revela. (Rivière, p. 294-295)

Jerônimo (?-420)

Kelly traz um breve comentário sobre Jerônimo:

Embora, de certa forma, suas idéias não estivessem sistematizadas, Jerônimo também reconheceu que Cristo "suportou em nosso lugar o castigo que devíamos ter sofrido por nossos crimes" [Comentários em Isaías 53:5-7]. Ninguém, afirmou ele, pode se aproximar de Deus sem o sangue de Cristo [Comentários em Efésios 2:14] . (Kelly, p. 296)

Ao apresentar a passagem acima do comentário de Jerônimo sobre Isaías, Rivière disse:

Ao explicar Isaías 53, St. Jerônimo reconhece abertamente o caráter penal da morte de Cristo. Cristo sofreu realmente e não apenas em aparência. Ele carregou na cruz o peso dos nossos pecados: “Ele foi pendurado na cruz e se tornou maldição pelos nossos pecados”. Assim, ele sofreu pelos nossos pecados para que pelas suas feridas nós fôssemos curados. Ele sofreu em nosso lugar a penalidade pelos nossos delitos. (Rivière, p. 287)

Leão I (?-461)

Aqui, vamos depender exclusivamente de Rivière, uma vez que Kelly não aborda esse período:

Ele, no entanto, considera a morte do salvador como um sacrifício [Sermão 5:3]. Na verdade, foi o único sacrifício para a qual todos os sacrifícios antigos apontavam [Sermão 68:3]. Um de seus resultados foi nos libertar da morte eterna [Sermão 70:1]. Outro resultado ainda mais importante foi nos reconciliar com Deus: “Uma vítima teve que ser oferecida para nossa expiação, que deveria ser parceira de nossa raça e livre de nossa contaminação, para que este desígnio de Deus pelo qual Lhe aprouve tirar o pecado do mundo na Natividade e Paixão de Jesus Cristo pudesse chegar a todas as gerações” [Sermão 23:3]” e “Pois por esta transferência, a propiciação do Cordeiro imaculado e o cumprimento de todos os mistérios passaram da circuncisão para a incircuncisão, dos filhos segundo a carne para os filhos segundo o espírito. Assim diz o Apóstolo, 'Cristo nossa Páscoa é sacrificado por nós', que se ofereceu ao Pai como um novo e verdadeiro sacrifício de reconciliação” [Sermão 59:5 https://www.newadvent.org/fathers/360359.htm].

Fomos reconciliados e nossos pecados foram apagados porque nosso Salvador inocente assumiu e reparou as falhas de nossa natureza culpada: “Foram nossas impurezas que foram lavadas, nossas ofensas que foram expiadas. Pois a natureza (que em nós sempre foi culpada e cativa) sofreu nele, embora inocente e livre. Para "tirar o pecado do mundo", aquele "Cordeiro se ofereceu" a si mesmo "como vítima'' a quem tanto sua substância corporal se uniu a todas as outras, quanto sua origem espiritual se distinguiu de todos os outros” [Sermão 56:3]. Ou, para resumir o assunto, ele tomou nosso lugar: “Ele somente, que era sem culpa, no qual estava a natureza de todos os homens , poderia empreender a causa de todos (...) Ele está disposto a ser conduzido; mas, se Ele quisesse resistir, as mãos perversas não lhe poderiam ter feito mal. No entanto, a redenção do mundo teria sido impedida, e Ele, que morreria pela salvação de todos os homens, não teria salvado absolutamente ninguém” [Sermão 59:1].

(...) A morte dos santos e mártires de Deus é de fato um exemplo precioso de virtude, mas só a morte do Salvador é uma expiação porque por meio dele nossa dívida foi paga, e porque Nele todos nós morremos e ressuscitamos:

“No entanto, a morte de nenhum ser humano inocente foi uma propiciação pelo mundo. Os justos na verdade receberam e não deram coroas. Da força dos crentes nasceram exemplos de longanimidade, não dons de justiça. Mortes separadas na verdade, ocorrem separadamente, nem ninguém pode pagar a dívida de outrem por sua própria conta. Entre os filhos do ser humano, apenas um se destaca, a saber, nosso Senhor Jesus. Cristo, em quem todos foram crucificados, todos morreram, todos foram sepultados e até ressuscitados [Sermão 64:3]”. (Rivière, p. 309-311)

Gregório Magno (?-604)

Gregório foi bispo de Roma e o último dos pais latinos. Ele iria recuperar muito do que foi dito por Agostinho. Sigamos com Rivière:

Seguindo os passos de St. Agostinho, St. Gregório pontua que, por causa dos nossos pecados, nós fomos condenados a uma dupla morte: a morte real, a qual é a morte da alma, e a morte corporal, que é a sombra da anterior. Cristo, através da sua morte corporal, nos livrou de ambas [A Moral no Livro de Jó 4:16]. A razão de tudo isso é que nosso senhor não merecia morrer [In Euang. Homi. xxv. 9]. Assim, Ele suportou a penalidade dos nossos pecados:

“Mas penso que entenderemos melhor essas palavras, se as entendermos como faladas pela voz da Cabeça. Pois, nosso Redentor, ao vir para nossa redenção, não cometeu nenhum pecado, e mesmo sendo sem pecado, Ele tomou a punição de nosso pecado” [A Moral no Livrode Jó 3:34]. E a morte imerecida do inocente compensa a pena merecida pelo culpado de acordo com o princípio jurídico estabelecido por St. Agostinho e repetido textualmente por Gregório:

(...) ele [Satanás] buscou que a carne Dele [Jesus] fosse morta, em quem ele não encontrou nenhum vestígio da dívida do pecado. Assim, nosso Senhor pagou em nosso nome a morte não devida [a Jesus], para que a morte devida [a nós] não nos ferisse [Ibid. 13:47]

Este mesmo princípio é expresso por nosso doutor de uma forma mais pessoal:

Pois era apropriado que a morte de um homem justo, que morresse injustamente, fosse um resgate pela morte de pecadores que morriam com justiça [Ibid. 33:31] e “Cristo, que, sem ele o ter, pagou por nós a dívida da morte, os livrou de suas dívidas. Assim, as nossas dívidas já não nos colocam debaixo do poder do nosso inimigo, visto que o Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo feito homem, cumpriu por nós com toda a gratuidade a dívida que ele próprio não havia contraído [Homilia sobre os Evangelhos 39:8]

Numa palavra, nosso salvador pagou a penalidade do pecado: “nosso Redentor por sua própria morte pagou a pena do homem” [A Moral no Livro de Jó 4:56]. Nessas palavras, vemos expresso com a máxima clareza a doutrina da satisfação penal. Esta doutrina sugere a Gregório a dificuldade clássica: Como pode Deus, que é justo, punir o inocente? A isso nosso doutor responde expondo o plano de Salvação e os resultados salutares da morte de Cristo:

Mas devemos considerar como Ele é justo e ordena todas as coisas com justiça, mesmo quando condena aquele que não merece ser punido. Pois, o nosso mediador não merecia ser punido por si mesmo, porque Ele nunca foi culpado de qualquer contaminação do pecado. Porém, se Ele não tivesse sofrido uma morte que não lhe fosse devida, nunca teria nos libertado de uma morte que era devida com justiça a nós. E assim, enquanto 'O Pai é justo', ao punir um homem justo, 'Ele ordena todas as coisas justamente’. É  por estes meios Ele justifica todas as coisas, tendo em vista que por causa dos pecadores, Ele condena aquele que não tem pecado para que todos os eleitos pudessem ser elevados a altura da justiça, na mesma proporção que Ele que, acima de todos, sofreu as punições de nossas injustiças. O que então está naquele lugar chamado de 'ser condenado sem merecimento', é aqui referido como sendo 'condenado sem causa’. No entanto, embora a respeito de si mesmo Ele tenha sido 'afligido sem causa', em relação aos nossos atos não foi 'sem causa. Pois a ferrugem do pecado não poderia ser removida, a não ser pelo fogo do tormento. Ele então veio sem pecado, e deveria se submeter voluntariamente ao tormento, para que os castigos devidos à nossa maldade pudessem com justiça perder as partes detestáveis, visto que injustamente haviam mantido Ele, que estava livre delas. Assim, foi ambos – com causa e sem causa - que Ele foi afligido, pois realmente ele mesmo não cometeu crimes, mas limpou com seu sangue a mancha de nossa culpa [Ibid. 3:27]

São Gregório também fala em outra passagem de nossa reconciliação, e nos diz que envolve duas coisas - a mudança de nossos corações pela penitência e o apaziguamento da ira de Deus, ambos os quais foram efetuados pela Paixão:

Portanto, deixe o homem santo se lembrar de onde a raça humana escapou, deixe-o olhar para as desgraças da morte eterna, sendo claro que a justiça humana nunca poderia resistir. Deixe-o ver quão perversamente o homem tem ofendido, deixe-o ver quão severamente a ira do Criador é dirigida contra o homem, e que ele clame pelo Mediador entre Deus e o homem (...) Pois o Redentor da Humanidade foi feito Mediador entre Deus e o Homem através da carne, porque só Ele apareceu justo entre os homens. Ainda que sem pecado, Ele veio para suportar a punição do pecado (...) Ele deu exemplos de inocência quando levou sobre Si o castigo devido à maldade. Assim, pelo seu sofrimento, Ele convenceu a Um e a outro, pois ele tanto repreendeu o pecado do homem infundindo-lhe a justiça como abrandou a ira do Juiz através de sua morte.  Ele impôs Sua mão sobre ambos, uma vez que Ele deu exemplos aos homens que eles poderiam imitar, e exibiu em Si mesmo aquelas obras para Deus, pelas quais Ele poderia ser reconciliado com os homens. (...) Assim, Ele impôs Sua mão sobre ambos, pois pelos mesmos passos ensinou as boas obras aos culpados, e também apaziguou o indignado Juiz. (Ibid. 9:61)

Disto vemos que se a morte do Salvador nos reconcilia e apaga nossos pecados, esta não é apenas porque tinha o valor de um exemplo - uma visão que Harnack aparentemente atribui a São Gregório, mas porque é uma expiação real. Tanto a expiação objetiva como a subjetiva ocupa lugar na mente de St. Gregório. (Rivière, p. 317-320)

Após esta bem documentada análise, resta evidente que Gregório entendia que, ao morrer, Cristo estava sofrendo a punição devida a nós e também estava apaziguando a Ira de Deus, permitindo o perdão dos pecados e a reconciliação. Rivière encerra o primeiro volume de sua obra sobre a expiação trazendo algumas conclusões a respeito dos pais gregos e latinos:

Eles [os Pais Latinos] nos dizem que Cristo morreu por nós e por nossos pecados, e que Sua morte apaga nossos pecados, nos reconcilia com Deus e destrói nossa morte. Para explicar a eficácia salutar de sua morte, eles usam as figuras de resgate e sacrifício. Eles apontam que a dívida do culpado foi paga pelo inocente. Examinando as condições da obra da redenção eles chegam à conclusão que não poderia ser realizado por ninguém, exceto por Cristo (...) Todos [Pais gregos e latinos] consideram a morte de Cristo como sendo mais do que um mero exemplo. Ela tem um valor fora de nós e nos planos Divinos. Tem uma eficácia real, embora misteriosa, e um valor ao mesmo tempo objetivo e final. Esta eficácia sobrenatural é vista em sua dupla ação: a morte de Cristo, em primeiro lugar, apazigua a ira de Deus, e, em segundo lugar, é a penalidade pelos nossos pecados suportada voluntariamente por nosso Salvador em nosso lugar. Essas duas ideias de sacrifício expiatório e de substituição penal parecem resumir todas as muitas palavras dos Padres sobre o assunto. (Rivière, p. 321)

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