Nas últimas semanas voltei a
discutir a oração aos santos nos três primeiros séculos da Igreja. Veja (aqui e aqui).
Como demonstrado, a doutrina romana não encontra nenhum apoio patrístico nesse período.
Além disso, diversos pais da Igreja desse período se manifestaram de forma
incompatível a oração aos falecidos. Alguns católicos comentaram no blog, mas
ao invés de desafiaram minhas conclusões, eles apelaram ao argumento que vários
Pais da Igreja após Niceia (sec. IV em diante) apoiam a oração aos falecidos.
Sendo assim, como esses homens poderiam apoiar uma prática que teria sido rejeitado
pela Igreja no princípio? Deixo abaixo os comentários de um católico que
utiliza tal argumento:
Convenhamos que para
vcs protestantes pouco importa se é possível provar por meio de escritos algo
que tenha sido praticado desde o início. Mesmo assim vcs não aceitam. Se fosse
assim já teriam acreditado na Eucaristia por exemplo que é nitidamente ensinado
desde os séculos I e II, entre outras coisas claras também.
Primeiramente, os Protestantes
acreditam na Eucaristia. O que rejeitamos é a ideia absurda da
transubstanciação. A visão espiritual (visão de Calvino) da Eucaristia foi
compartilhada por muitos pais da igreja e mesmo a visão simbólica, embora com
menor apoio, contou com alguns defensores. É totalmente falsa a
alegação de que a Igreja desde o início ensinou a transubstanciação (aqui).
O problema é que as doutrinas romanas não podem ser rastreadas até o início. Se
pudessem, os católicos não precisariam apelar a Pais da Igreja que viveram
séculos depois dos fatos. Eles poderiam apontar para o testemunho apostólico e
dizer “aqui está”. Como argumentei exaustivamente, o tema da oração foi
muitíssimo abordado na Escritura e na patrística. Se orar aos santos é uma
prática herdada dos apóstolos, porque não se encontra evidência
favorável mais antiga? Porque algo tão importante na espiritualidade católica seria
ignorado por séculos e séculos?
Quanto a crença na
intercessão dos santos, ela não era algo incomum, praticado apenas por um grupo
ou outro como vc afirma. Santo Agostinho por exemplo expõe muitíssimas vezes
testemunhos de pessoas que alcançaram graças de Deus por meio da intercessão
dos santos, principalmente de Santo Estevão. Lendo os sermões de Agostinho vc
percebe que era algo muito comum praticado pela igreja:
São muitos os que sabem quantos milagres são realizados nesta cidade pelo bem-aventurado mártir Estevão. (Santo Agostinho, Sermão 323)
São muitos os que sabem quantos milagres são realizados nesta cidade pelo bem-aventurado mártir Estevão. (Santo Agostinho, Sermão 323)
Eu trouxe várias citações dos três primeiros séculos. Se o católico deseja
desafiar minhas conclusões, é nesse período que ele deveria provar o contrário.
Mas o que ele traz? O suposto testemunho de Agostinho que escreveu no início do
século quinto. Embora Agostinho narre que
pessoas oraram para os mártires, é controverso que ele
pessoalmente apoiasse a oração aos santos (aqui).
Além disso, não há nada em Agostinho que sugira que tal prática era um artigo
de fé. Os católicos geralmente não fazem esse tipo de distinção. Uma prática
poderia ser tolerada na Igreja, mas isso não implicaria que se tratava de um
artigo de fé.
Se a prática da
intercessão dos santos não fosse um artigo de fé, certamente muitos teriam se
levantado contra ela, ainda mais tendo se tornado tão comum, seria conveniente
que a igreja combatesse isso, no entanto, vemos os grandes doutores da igreja
como Agostinho, Gregório de Nissa, Gregório de Nanzianzo, Jerônimo entre
outros, ensinando essa prática. Então porque nenhum dos pais da igreja
ensinaram contra? Porque não houve nenhum concílio que se opôs contra essa
prática? Muito pelo contrário, pois no primeiro grande concílio de Niceia em 325
onde foi formado o CREDO DA IGREJA CATÓLICA que é repetido até hoje, diz o
seguinte: CREMOS NA COMUNHÃO DOS SANTOS.
Esse argumento tem os seguintes problemas:
1. Mesmo no período pós-niceno
houve sim oposição a oração aos mortos. Vigilâncio se opôs a essa prática.
Ademais, ele era um presbítero da Igreja e como o próprio Jerônimo reconhece,
tinha o suporte de bispos da Igreja e cristãos leigos (Contra Vigilâncio cap.
2-3). Na Epístola 109, Jerônimo ainda diz: “Surpreende-me que o santo bispo em cuja
paróquia, pelo que dizem, [Vigilâncio] é presbítero, concorde com esta loucura
(...).
2. Os Concílios foram medidas
excepcionais na história da Igreja. Não houve nenhum Concílio a se opor
diretamente ao gnosticismo. Alguém então negaria a repreensão dessa heresia?
Obviamente não. Os Pais da Igreja do séc. II se opuseram ferozmente ao
gnosticismo e isso é mais do que suficiente elucidar qual era a doutrina da
Igreja. Porque em relação a oração aos mortos deveria ser diferente? Além
disso, nos três primeiros séculos da Igreja não houve qualquer concílio ecumênico. Alguém então diria que a Igreja não combatia as heresias que
surgiram porque não houve concílio ecumênico nesse período? Obviamente não. Se
o critério para definir o que é ou não heresia for uma decisão conciliar, o
gnosticsimo, o montanismo e diversas outras correntes não poderiam ser
consideradas heréticas. Dessa forma, em regra as heresias não eram objeto de decisão conciliar.
3. A utilização do Concílio de
Niceia é totalmente abusiva. Não há qualquer documentação
referente a Niceia ou aos bispos que dele participaram que sugiram o que o
católico alega. Se ele deseja defender que os pais nicenos tinham em mente a
oração aos mortos quando falavam em Comunhão dos Santos, o católico precisar
mostrar evidências disso e não apenas pressupor. O que a Igreja Romana hoje
entende por Comunhão dos Santos é irrelevante para determinar o que os cristãos
dos primeiros séculos entendiam por tal (vimos que a evidência sugere uma leitura
não favorável a oração aos mortos).
4. O católico tem uma visão
irreal da história da Igreja. A história está cheia de rupturas. Poderíamos
aqui citar uma longa lista de ideias que não estavam presentes no início e
foram aceitas mais tarde. Os Pais pré-nicenos foram severamente contrários ao
uso de imagens no culto cristão (aqui e aqui).
No entanto, esta prática seria aceita séculos depois. Os Pais da Igreja mais
antigos eram milenaristas, todavia a posição amilenista prevaleceria na Igreja
posterior. Os Pais mais antigos eram contrários ao envolvimento da Igreja com o
Estado e ao uso da força em prol da religião. Todavia, a Igreja posterior se
aliaria ao Estado e passou a defender o uso da força contra os hereges
(Agostinho foi o principal defensor dessa ideia).
Isso significa que
desde já, estamos misticamente unidos, desfrutando do convívio com todos estes.
Os fiéis do céu e da terra encontram-se unidos em comunhão na pessoa de Cristo.
Este é o significado da Comunhão dos Santos. É Jesus, cabeça do corpo quem
possibilita todas as coisas. É tão óbvio que a igreja no céu possa interceder
pela igreja na terra, que negar isso fere o conceito de unidade do
cristianismo. Afinal, de que adiantaria eu buscar viver a santidade e ser
salvo, e quando for para o céu, eu não vou poder ajudar meus irmãos na terra de
algum modo? Somos todos um só corpo 1COR12, todos uma só família, os do céu e da
terra Ef 3,15.
Como os católicos não podem
apresentar provas bíblicas em favor de sua doutrina, eles precisam apelar às falsas implicações. É verdade que uma doutrina não precisa estar explicitamente
contida no texto bíblico para ser verdadeira. Não há um texto afirmando que
Deus Pai, Jesus e Espírito Santo formam uma trindade. Todavia, a Escritura
contém afirmações que implicam na Trindade. O problema é que a doutrina da
comunhão dos Santos não implica em oração aos santos. Vejam a falha do
argumento: os cristãos na terra estão em comunhão, mas se eu orar a um cristão
na China, ele simplesmente não irá me ouvir. Se eu orar a meus irmãos de Igreja
pedindo que eles intercedam por mim a Deus, eles simplesmente não me ouvirão.
Se isso é um fato, mesmo eu estando em comunhão com eles, porque então a
comunhão com os cristãos que já faleceram implica que eles ouvem minhas orações? Como
um santo poderia ouvir milhões de orações feitas pelo mundo inteiro, decidir
quais delas merecem sua intercessão e leva-las a Deus? Os cristãos não têm essa
capacidade aqui na terra, porque teriam no céu?
Há uma segunda
posição que diz que os crentes no céu oram pela Igreja na terra, sem afirmar
que devemos orar a eles (acredito que Calvino a apoiava). Essa ideia
é menos problemática, mas seria temerário torná-la um artigo de fé. Nenhum de nós
pode ter informações sobre o pós-morte pela experiência. Dessa forma, para
fazermos afirmações convictas sobre o pós-morte carecemos de dados da revelação divina. Ocorre que a revelação nada nos diz sobre os
cristãos no céu orando por nós. É cabível até perguntar se eles mantem suas
memórias da vida que aqui levaram. Não há resposta para isso na revelação.
Assim, acreditar que os crentes no céu oram por nós é uma crença piedosa que
não fere as verdades do Evangelho, mas devido ao caráter especulativo, jamais
poderia ser alçada a artigo de fé.
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