terça-feira, 1 de março de 2016

O Oriente alguma vez reconheceu um primado de Roma?


Nota do tradutor: a tradução abaixo foi extraída do livro de Klaus Schatz: El primado del papa: su historia desde los orígenes hasta nuestros días. Ed. Sal Terrae, Maliaño 1996, pp. 96-98. O livro foi originalmente escrito em alemão e uma versão em inglês pode ser adquirida no site da Amazon. Schatz é um católico romano jesuíta e doutor em história eclesiástica.

Desde Paulo VI, tem se repetido uma e outra vez, entre outros, pelo cardeal Ratzinger que na relação com as igrejas ortodoxas se pretende restaurar a unidade que existiu durante o primeiro milênio. O problema é que essa unidade do primeiro milênio não é um conceito unívoco. Apresenta-se de muitas formas diferentes de acordo com o tempo, sendo objeto de várias interpretações, não somente pela parte oriental ou ocidental, mas especialmente dentro da Igreja do Oriente. A primeira questão, que não é de fácil resposta, é a seguinte: alguma vez a Igreja Oriental como um todo atribuiu à sede romana algo mais do que um mero "primado de honra", segundo o qual o bispo de Roma seria apenas uma espécie de "primus inter pares" com relação aos outros patriarcas?

Antes de tudo, o que importa metodologicamente é delimitar precisamente esse "algo mais". Porque se por ele se entende um "primado de jurisdição", no sentido de um governo da Igreja que se exerce e pode ser imposto em tempos normais, nesse caso, a resposta deve ser negativa. As controvérsias suscitadas em torno do cânon 28 de Calcedônia e acerca de Ilíria deixam claro que Roma tinha pouca capacidade de impor seu ponto de vista em questões importantes de jurisdição relativas à competência da Igreja universal, especialmente se o poder imperial se opunha a ela.

A resposta será diferente se você perguntar pelo reconhecimento Roma como a norma última da "comunhão" eclesial. Nesse caso, não seria difícil encontrar nas igrejas orientais e ao longo dos séculos, uma série de testemunhos envolvendo claramente esse reconhecimento e que falam, por exemplo, da igreja romana ou do bispo de Roma como cabeça ou presidente de todas as igrejas. Isso se verifica, em primeiro lugar, quando os líderes orientais procuram ajuda em Roma. No entanto, nem todos os testemunhos podem ser explicados a partir desse interesse. Por outro lado, a esses testemunhos se opõe outros, cujo tom é muito diferente. De qualquer forma, Roma é apenas a primeira sede na sequência dos patriarcados, e seu alcance não é qualitativamente diferente dos outros patriarcados. Na formulação tardia da pentarquia, o foco é posto mais na harmonia dos cinco patriarcas do que na unidade com Roma. Neste caso, Roma é particularmente importante para a "comunhão",  mas nem tudo depende de suas decisões. Também temos visto que a dinâmica é outra em Nicéia II e, em geral, entre os defensores do culto às imagens: nesse momento, Roma não é colocada ao mesmo nível que os outros patriarcados, exercendo uma função peculiar. Porém, se trata de uma linha determinada que não seria mantida posteriormente e ainda mais com todas as suas consequências. Em termos gerais, a questão de um centro de referência último para a unidade da Igreja não se coloca de forma crucial porque o Oriente, ao contrário do Ocidente, vive da unidade entre a Igreja e o Império.

No entanto, ocorrem momentos em essa unidade se torna problemática, por exemplo, na controvérsia sobre as imagens. Durante esses períodos, aparece também nos autores do Oriente a linha que mais tarde se imporia como "ortodoxa" e que expressa a consciência de que as controvérsias relacionadas à Igreja universal, especialmente em matéria de fé, somente poderiam ser solucionadas definitivamente em união com a sede romana, e nunca sem ela.

Quando o Império deixa de ser a realidade sustentadora, a valoração teológica e alcance da sede romana pôde crescer de forma notável, mesmo entre autores orientais. Theodore Abu Qurra, autor sírio que escreveu (cerca de 800) em árabe, fornece um bom exemplo. Para ele, o bispo de Roma é o sucessor de Pedro, a rocha da Igreja, portanto, por ele deve ser convocado o concílio, que não pode ser celebrado sem ele, que é o seu autêntico "diretor". Mas Abu Qurra não vivia mais no mundo da Igreja imperial; o império já não significava mais nada. Por isso, o papado devia ocupar o seu posto. Teodore estava comprometido de maneira especial na luta contra os monofisistas, o que implicava a necessidade de elaborar uma regra de fé clara e um critério inequívoco para a legitimidade formal dos concílios. Nesse sentido, a direção do concílio pelo imperador constituía um impedimento e um contra-argumento. Somente no papado se encontrava esse critério final para a legitimidade dos concílios.

É verdade que Abu Qurra não é de todo representativo, mas ele indica uma possibilidade determinada e uma lógica. Em qualquer caso, a convicção de que as diferenças que questionam a identidade da Igreja e da fé devem ser resolvidas de modo definitivo em união com Roma, representa uma tradição muito estendida no Oriente. Dado que essa convicção se encontra geralmente naqueles autores que desde então passaram a ser, tanto da parte católica romana como oriental, colunas de "ortodoxia", dado também que essa convicção tem contribuído notavelmente para a imposição da ortodoxia, e tendo em vista que essa convicção se expressa especificamente no momento em que a instituição imperial deixa de funcionar e ser o sustento da Igreja, é preciso reconhecer nesses "testemunhos sobre a primazia" o valor de testemunhos que atestam a fé comum do Oriente e do Ocidente.

Um comentário:

  1. Outros reconhecidos teólogos católicos romanos reconhecem o mesmo:

    O Oriente nunca aceitou a jurisdição regular de Roma, nem se submeteu ao julgamento de bispos ocidentais. Seus pedidos de ajuda a Roma não estavam relacionados com o reconhecimento do princípio da jurisdição romana, mas foram baseadas na visão de que Roma tinha a mesma verdade, o mesmo bem. O oriente ciosamente protegeu seu modo de vida autônomo. Roma interveio para garantir a observação das normas legais, para manter a ortodoxia da fé e para garantir a comunhão entre as duas partes da Igreja, Roma vem representar e personificar o Ocidente (...) Em segundo sobre o "primado de honra" para Roma, o Oriente nega que essa primazia se baseie sobre a sucessão e a presença ainda viva do apóstolo Pedro. Um modus vivendi foi alcançado, que durou, embora com crises, até meados do século XI. [Congar. Y, (1982) Diversidade e Comunhão (Mystic: Vigésima Terceira), pp. 26-27]

    Às vezes aconteceu que alguns Padres entendiam a passagem de uma maneira que não está de acordo com o ensinamento da Igreja mais tarde. Um exemplo: a interpretação da confissão de Pedro em Mateus 16: 16-19. Exceto em Roma, esta passagem não foi aplicada pelos Padres para o primado papal; eles trabalhavam fora de uma exegese ao nível do seu próprio pensamento eclesiológico, mais antropológica e espiritual do que jurídica. (Yves Congar, Tradição e tradições (New York: Macmillan, 1966), p 398)

    O padre Raniero Cantalamessa escreve:

    A noção de uma ortodoxia que saiu vitoriosa pela eliminação de seus concorrentes sob a poderosa orientação de Roma é uma lenda pura. Ortodoxia não foi estabelecida nas suas origens por meio de um movimento do centro para a periferia, mas, pelo contrário, pelo movimento da periferia para o centro. As lutas contra as crenças ebionitas, docetistas e encratistas não se moveram para fora de Roma, mas todas chegaram à Roma de Antioquia na Síria, da Ásia Menor, de Alexandria no Egito, de Cartago e de Lyon na França. Roma nos primeiros dois séculos e meio da história cristã era mais o árbitro entre as partes do que uma força de liderança nas lutas contra a heresia. Mesmo no Concílio de Nicéia, a influência de Roma e do Ocidente em geral foi mínima. Atribuir a Roma o triunfo da ortodoxia é, em grande medida, a consequência de retroceder situações posteriores, se não do presente estado de coisas! (http://www.catholic.org/featured/headline.php?ID=4611&page=6)

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