sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

João 6 e a Transubstanciação

Quando algum católico romano é desafiado a demonstrar base bíblica para suas doutrinas sobre a eucaristia, o capítulo 6 de João é sempre citado. Sem dúvida, é o principal fundamento apresentado para a doutrina da transubstanciação. Neste artigo, veremos como os argumentos católicos não resistem a uma análise profunda.

Vários pais da Igreja interpretavam João 6 de forma diferente dos Católicos. Eles não tomavam literalmente as palavras de Jesus, e alguns sequer à eucaristia se referiram. Como os protestantes, entendiam que comer a carne de Jesus e beber seu sangue significava ir a Cristo com fé [incluir link para os “Os Pais da Igreja e a Eucaristia”].

A melhor forma de saber se uma passagem é simbólica ou literal e analisar o contexto. A partir dele podemos tirar as seguintes conclusões que enfraquecem a posição romanista:

1.         João 6 ocorre antes de a eucaristia ser instituída por Cristo;
2.         Jesus menciona a fé repetidamente (versículos 29, 35, 40, 47, 63), mas não fala da eucaristia;
3.         Jesus nos diz que a nossa fome e sede são satisfeitas por chegarmos a Ele e cremos Nele (versículo 35), e não por uma eucaristia transubstanciada;
4.         Vinho, um dos elementos da eucaristia, nunca é mencionado no discurso;
5.         Jesus realizou vários milagres que envolviam mudança física, como transformar água em vinho. Já os católicos nos dizem que não há nenhuma evidência física da transformação da eucaristia.

Exegese do texto

Vs. 26-29 – Jesus tinha acabado de realizar o milagre da multiplicação dos pães e peixes. Após isso, ele se retira do meio da multidão por que queria o proclamar reino. A multidão o segue. Cristo diz que eles o seguiram por terem ficado fartos e não pelos milagres realizados. A incredulidade daqueles ouvintes começa a ser mostrada aqui. O vs. 27 é chave “Não trabalhem pela comida que se estraga, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do homem lhes dará. Deus, o Pai, nele colocou o seu selo de aprovação", o católico defende que essa comida é a eucaristia. Como Jesus afirma que seus ouvintes deveriam trabalhar por essa comida, eles então perguntam que trabalho é esse que deveriam fazer no vs. 29. A resposta é reveladora, para a interpretação católica fazer sentido, deveria ser comer (trabalho/obra) a Eucaristia (comida). Mas, a resposta foi “crer naquele que ele [o Pai] enviou". Aqui há um indício claro da mensagem dos próximos versículos. João 6 não fala da eucaristia, mas sim da salvação para os que se achegam a Cristo com fé.

Vs. 30-31 – Os ouvintes pedem um sinal para poderem crer. Eles citam um milagre do passado – o maná do deserto. Interessa notar que a figura do pão foi introduzida no discurso pelos ouvintes e não por Jesus. Até então o termo era comida. Se Cristo desejasse ensinar sobre a Eucaristia, seria mais natural que começasse o discurso mencionando os elementos pão e vinho, e não comida de forma genérica.

Vs. 32 e 33 - Nosso Senhor começa a estabelecer paralelos entre o maná do deserto (alimento físico) e o “pão vivo que desceu do céu” (alimento espiritual). As palavras são obviamente simbólicas e espirituais. Ninguém acredita que Jesus desceu do céu em forma de pão, muito menos que quem come a eucaristia nunca mais terá fome ou sede. O contexto inicial remete a algo simbólico.

Vs. 34 e 35 – A multidão se anima e deseja saber como obter sempre desse pão. A resposta de Cristo é que venham e creiam nele. É por se achegar com fé que somos salvos e sustentados, não por participar do sacramento da eucaristia. É simplesmente inexplicável não se falar do sacramento nesses momentos em que Jesus responde diretamente aos questionamentos do povo.

Vs. 36-40 – Esses versos claramente falam de eleição, nota-se que a ênfase continua sendo em aceitar Cristo com fé para salvação. Muitos que o ouviam não eram verdadeiros crentes, apesar de o considerarem um profeta.

Vs. 41-42 – Os judeus criticam Jesus por dizer que desceu do céu e não por ter dito que ele era um pão. Afinal eles conheciam sua família e sua origem.

Vs. 43-47 – Jesus afirma que apenas aqueles que o Pai atrair poderia vir a Ele.  É dito vs. 47 que os crentes terão a vida eterna.

Vs. 48-51 – Cristo afirma ser o pão da vida. Diferente do maná do deserto, os que creem em Cristo não morrerão, mas serão ressuscitados. Sabemos que suas palavras são simbólicas, pois Cristo não desceu do céu como um pão. Além do mais, todo o contexto anterior mostra que comer = crer. Ele ainda diz que o pão é sua carne que será dada pela vida do mundo – uma alusão ao seu sacrifício na cruz que salvará os que nele creem. Cristo alude ao seu sacrifício e não ao consumo literal da sua carne. O valor da sua carne não está em ser consumida pelo crente, mas no fato de que será sacrificada pelos pecadores.

Vs. 52 – Os judeus não compreenderam as palavras e pensaram que Cristo estava oferecendo sua carne para ser comida. O ponto chave é que Cristo disse que daria sua carne pela vida do mundo. O católico que interpreta isso como eucaristia está fazendo uma exegese errada. É óbvio que Cristo se refere ao seu sacrifício na cruz, este é o único momento em que ele dá sua vida pelo mundo, portanto, a única interpretação cabível. Não é de se espantar que os Judeus não tenham compreendido corretamente, afinal eles não sabiam nada sobre o sacrifício, esse ainda aconteceria. 

Vs. 53-56 – Esses são os versículos chaves da interpretação romana. Por todo o contexto já demonstrado aqui, poderíamos concluir que as palavras de Jesus são simbólicas. Como os ouvintes continuavam erroneamente interpretando suas palavras no plano físico, Ele utiliza as ações de comer e beber para expressar verdades espirituais. Vejam que em outras partes do evangelho de João, há construções paralelas a comer e beber como sendo ouvir sua palavra e crer. Em Jo 5:24 “Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida.” Em Jo 6:40 “Porquanto a vontade daquele que me enviou é esta: Que todo aquele que vê o Filho, e crê nele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia.” Também o vs. 47 “aquele que crê em mim tem a vida eterna”.

É visível que são construções paralelas a “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia”. No vs. 44 “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia.”. A evidência é muito clara, Jesus menciona em vários momentos o que é preciso fazer para ter a vida eterna e participar da ressurreição – é preciso crer. Paralelamente, ele diz a mesma coisa só que substituindo crer por beber seu sangue e comer sua carne, logo, a conclusão é que se trata de uma metáfora para crer Nele.

Nos vs. 56 e 57, é dito que ao se alimentar de sua carne e sangue faz com que permaneçamos e vivamos Nele. A metáfora aqui está em consonância com outra metáfora que nenhum católico compreende de forma literal – a metáfora da videira e dos seus ramos em João 15. Ao nos achegarmos a Cristo e confiarmos Nele, passamos a ser como ramos que se alimentam dele que é a videira. É dele que vem nosso alimento espiritual que nos sustenta em nossa caminhada cristã, pois sem Ele nada podemos fazer. Este é o significado de “comer sua carne e beber se sangue” para estar Nele.

Vs. 58-60 – Jesus reafirma ser o pão vivo que desceu do céu. No vs. 60, João diz que muitos de seus discípulos acharam o discurso muito duro. Os católicos argumentam que se a interpretação não literal protestante for correta, esses homens não teriam achado seu discurso duro e difícil. Jesus já havia dito que eles eram incrédulos e caso não cressem não poderiam ter a vida eterna, não teriam vida em si mesmos e não poderiam estar Nele, que era equivalente a estar no Pai. Jesus também disse que só poderia vir a Ele se o Pai os trouxessem, o que implica que eles não haviam sido atraídos pelo Pai. Independente da forma como estes discípulos interpretaram as palavras de Cristo, algo ficou muito claro – as consequências de não obedece-lo seriam nefastas. Portanto, o discurso era sim duro, não importando a literalidade do texto, pois o que estava em jogo era a vida eterna.

Vs. 61-62 – Jesus os repreende por se escandalizarem com verdades espirituais tão básicas.

Vs. 63 – Esse verso destrói qualquer pretensão de fundamentar a transubstanciação nesta passagem. Se a questão era a Eucaristia que consiste na presença física de Cristo em virtude da transformação dos elementos, como ele poderia dizer “a carne para nada se aproveita”.

Vs. 64-66 – Jesus sabia que muitos não criam e explica que isso se dava por que eles não tinham sido dados pelo Pai.

Vs. 67-69 – Cristo volta-se para os doze. Vemos que nem todos compreenderam as palavras da forma errada. Nota-se que neste momento de desfecho se esperaria uma menção direta a eucaristia, caso esse fosse o direcionamento do capítulo. Mas Pedro, ao responder a Cristo não fez menção alguma ao sacramento. Ele havia entendido que Cristo era o salvador ao dizer “tu tens as palavras de vida eterna”.

Respostas aos argumentos católicos

1.   Jesus não usaria a linguagem de comer carne e beber sangue se não falasse em termos literais.
R – O uso de linguagem chocante era comum na tradição judaica para realçar um ensinamento. Jesus inclusive a utilizou em outras passagens do evangelho, portanto, uma leitura metafórica de João 6 estaria de acordo com a tradição judaica. Em Deuteronômio 8:3 há uma analogia entre o pão e receber a palavra de Deus.  “Assim, ele os humilhou e os deixou passar fome. Mas depois os sustentou com maná, que nem vocês nem os seus antepassados conheciam, para mostrar-lhe que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca do Senhor.”  

2.   João 6:66 mostra pessoas abandonando Jesus por conta de seu ensinamento da transubstanciação.
R – Esta é uma petição de princípio, pois tenta provar o argumento de que Jesus estava ensinando a transubstanciação partindo do pressuposto que ele estava ensinando essa doutrina. Ao fazer isso, os católicos ignoram o contexto imediato da passagem. Os versículos anteriores (64 e 65) falam sobre a presciência e predestinação de Cristo, em que afirma saber que eles não criam Nele. É possível então que aquelas pessoas tenham abandonado a Cristo por isso, pois o próprio os acusou de serem incrédulos. Por que deveríamos acreditar que foi por conta do suposto ensino eucarístico de Jesus? Eles ouviram repetidas vezes essas palavras que supostamente ensinavam o consumo literal de sua carne e sangue e mesmo assim não o abandonaram, somente depois de serem chamados de incrédulos é que o fazem. Ainda que aceitemos a hipótese menos provável – de que eles abandonaram Jesus por tomarem suas palavras literalmente, isso não provaria que compreenderam de forma correta. Interpretar de forma errada palavras simbólicas de Jesus é muito frequente em todos os evangelhos, principalmente em João.

3.   Se Jesus não estivesse falando de forma literal ao ensinar que comessem sua carne e bebessem seu sangue, teria esclarecido o real significado àquelas pessoas, não as deixando ignorantes.
R – Jesus sabia que elas nunca acreditariam Nele (Jo 6:64). Em várias outras passagens, especialmente no Evangelho de João, Jesus não corrige os entendimentos errados de seus ouvintes. Em Mateus 13:10-17, Ele diz que fala por parábolas intencionalmente para que certas pessoas não compreendessem a mensagem. Em João 2:19-22, refere-se a seu corpo como um "templo", que muitas pessoas interpretaram incorretamente como uma referência ao templo real em Jerusalém. Ele não explicou a essas pessoas o que realmente queria dizer. Lemos em Marcos 14:56-59 que algumas pessoas, muito tempo depois que Jesus tinha feito a declaração em João 2:19, ainda pensavam que Ele se referia ao templo real em Jerusalém. E em João 21:22-23, lemos outra vez Jesus dizendo algo que foi mal interpretado por algumas pessoas, com o mal-entendido que conduziu à falsa conclusão de que o apóstolo João não morreria. No entanto, nenhum esclarecimento foi prestado. Foi João quem o esclareceu décadas mais tarde, em seu evangelho. Em João 3:3-4, Nicodemos não é corrigido por Jesus em sua errada compreensão sobre nascer de novo. Em João 4:4-15, a mulher samaritana entende erroneamente como literal a água que Jesus tinha a oferecer, mas em momento algum, Jesus diz “você está errada, estou falando de forma simbólica” ainda assim, ninguém tomaria suas palavras como literais. Nos versículos 31-34 do mesmo capítulo, ele fala sobre comer de forma metafórica ao afirmar "A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e concluir a sua obra”.

É impressionante a quantidade de vezes que Jesus utiliza linguagem metafórica para ensinar. Em todos os Evangelhos, constantemente, pessoas compreendem o Filho de Deus da forma errada por não entenderem os simbolismos. Da mesma forma fazem os católicos em João 6. O argumento romanista é enfraquecido quando se observa que isso é ainda mais frequente no Evangelho de João.

A premissa católica de que Jesus não esclareceu suas palavras também é defeituosa. No Versículo 35, ele diz ”Então Jesus declarou: "Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome; aquele que crê em mim nunca terá sede.” No verso 63 “O Espírito dá vida; a carne não produz nada que se aproveite. As palavras que eu lhes disse são espírito e vida.” Ele claramente esclareceu o sentido das suas palavras, tudo se referia a vir e crer Nele.

4.   Jesus passa usar o verbo grego trógó nos versos 54, 56, 57 e 58 em substituição ao verbo phago dos versos anteriores para enfatizar a literalidade do “comer” e “beber”.
R – Esse argumento só tem força quando se parte do pressuposto que a transubstanciação estava sendo ensinada nestes versículos, e como já visto, não era o caso. Trógó e phago são sinônimos e ambos podem ser usados para comer. Jesus poderia ter mudado o verbo apenas porque são sinônimos. É comum no Novo Testamento a utilização de palavras sinônimas dentro do mesmo discurso.

Há outro problema. No vs. 53, o mais utilizado pelos católicos, após o protesto dos judeus, não temos o verbo trógó, e sim phago. Se a intenção era enfatizar literalidade, deveria ter começado deste verso. No vs. 58, em “que comeram o maná e morreram”, temos novamente phago. Se Jesus queria enfatizar literalidade ao trocar de verbo, porque voltaria a usar o verbo menos literal? E no vs. 55 “minha carne é verdadeira comida”, a palavra comida é brósis, sendo que no vs. 27 também é usado para expressar comida num sentido não literal “Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna”.

5.   Jesus disse que a carne dele era verdadeiramente comida e verdadeiramente bebida.
R – Quando os católicos usam o batido argumento de que Jesus disse “isto é o meu corpo” e não “isto simboliza meu corpo”, os protestantes mostram diversas passagens em que o Filho de Deus usa a mesma fórmula para expressar algo simbólico como “Eu sou a porta” em João 10:9, “Eu sou o caminho” em João 14:6 e “Eu sou a luz do mundo” em João 8:12. O romanista pode então responder que Jesus não disse verdadeiramente sou a luz, o caminho ou a porta. Assim o termo “verdadeiramente” que no grego é “aléthés”, seria a prova da literalidade do texto. Mas, Ele disse em João 15:1 “Eu sou a videira verdadeira”, nem por isso poderíamos interpretar que Ele é literalmente uma videira. Portanto, esse argumento é falho.

Para encerrar este artigo, queria fazer dois apontamentos simples que passam despercebidos nesta discussão:

1.   Se interpretamos comer a carne e beber o sangue de Jesus de forma literal, como uma referência a eucaristia, teríamos que concluir que alguém terá a vida eterna apenas por participar do sacramento. Afinal, essa é a promessa que Jesus faz. E mesmo na teologia romana, participar do sacramento não é suficiente para ter a vida eterna. No entanto, se interpretamos como se achegar a Cristo e confiar Nele, podemos concluir que isso é suficiente para a salvação, pois está acordo com a doutrina bíblica da salvação pela graça mediante a fé.

O Evangelho de João não narra os elementos centrais da última ceia. O momento em que Cristo diz “isto é o meu corpo” está registrado nos outros três evangelhos, mas não no evangelho de João. Ele se limita a dizer nos vs. 1-2 do capítulo 13 “Ora, antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim. E, acabada a ceia, tendo já o diabo posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que o traísse”. Se João 6 é um texto eucarístico, devemos concluir que participar do sacramento é uma condição para a salvação. Em João 20:31, é dito que o Evangelho foi escrito para crermos e termos vida em seu nome, logo tudo que é necessário para ser salvo deve estar neste evangelho. Portanto, se João 6 se refere à eucaristia naqueles termos, seria esperado que narrasse a instituição da Ceia – essa seria uma das mais importantes narrativas do Evangelho. 

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