quarta-feira, 22 de maio de 2019

A Apologética Católica Romana e o Equívoco do Agostinho Papista





Recentemente tomei conhecimento das postagens de um apologista católico chamado Rogério endereçadas a minha série de artigos sobre Agostinho e o Catolicismo Romano (aqui). Há pouquíssimos argumentos a serem rebatidos, pois o apologista dedica a maior parte de seu texto a desferir ataques pessoais, fazendo um amplo uso de falácias ad hominem e falácias genéticas. Eu mantenho este blog há mais de três anos, e ainda que desenvolver um debate com um apologista católico que seja minimamente polido seja tão difícil quanto achar uma agulha no palheiro, iremos manter o compromisso de manter as discussões num nível mais elevado. Dessa forma, vou me ater aos poucos argumentos apresentados que tentam fazer crer que Agostinho cria no papado. O texto do católico estará em vermelho.

A primazia de Pedro

Para apoiar a doutrina papal usando Agostinho, é preciso provar que o teólogo acreditava que Pedro tinha primazia jurídica sobre os demais Apóstolos. É aqui que os apologistas começam a se fazer de desentendidos e tentam provar demais. Geralmente, eles selecionam citações nas quais o pai da igreja elogiou a Pedro ou cometeu ao Apóstolo alguma posição de destaque no círculo apostólico. Alguns Pais da Igreja concedem a Pedro o que teólogos ortodoxos, protestantes e católicos romanos chamam de primado de honra. Contudo, existe uma distância abissal entre primado de honra e primado jurídico. O último implica que Pedro tinha uma autoridade jurídica concedida por Cristo sobre os demais, o primeiro implica apenas que o pescador tinha uma posição privilegiada no colégio apostólico, mas ainda assim não poderia impor suas decisões a despeito dos demais. Richard McBrien - um proeminente padre católico e professor de Teologia na Universidade de Notre Dame – escreveu a respeito:

Pedro era uma figura de importância central entre os discípulos do Senhor (...) No entanto, os termos primazia e jurisdição é provavelmente melhor evitar ao descrever o papel de Pedro no Novo Testamento. Eles são pós-bíblicos, de fato. (MCBRIEN, Richard P. Catolicism. San Francisco: Harper, 1994, p. 753)

J. Michael Miller - o arcebispo de Vancouver - foi nomeado pelo papa para presidir como Secretário da Congregação da Educação Católica, um alto escalão da Cúria Romana. Em seu livro The Shepherd and the Rock, com o Nihil obstat e o Imprimatur, escreveu de forma detalhada sobre a diferença entre primado de honra e primado jurídico:

Nas primeiras gerações, o pleno significado, autoridade e importância do ministério petrino não estava imediatamente evidente. Parece que a Igreja de Roma e as outras Igrejas da koinonia compreendiam pouco sobre o significado do ministério de Pedro ou como ele iria funcionar (...). Enquanto o ministério petrino está em causa, o papel do papa evoluiu dentro de um conjunto de fatores históricos complexos. Parece que ele não usou autoridade primacial completamente desde o início. Sem anacronismo, não podemos dizer que os primeiros papas exerceram a sua jurisdição no sentido solenemente definido no Concílio Vaticano I, em 1870. Só no processo de cumprir a sua missão é que a Igreja reconheceu as implicações mais amplas do ofício de Pedro. No início, o ministério petrino foi pelo menos parcialmente "adormecido" (...) O Oriente, portanto, amplamente aceitou Pedro como corifeu (cabeça) do colégio apostólico, o primeiro dos discípulos que confessou a verdadeira fé em nome de todos. No entanto, como o teólogo ortodoxo John Meyendorff explica, os orientais "simplesmente não consideravam este louvor e reconhecimento como relevante de qualquer forma para as reivindicações papais." Enquanto os padres gregos reconheceram a liderança de Pedro na comunidade primitiva, eles negaram que ele teve um papel de direção que envolvia exercer poder sobre os outros apóstolos. Por instituição divina, Pedro teve uma preeminência e uma dignidade acima dos outros, mas não teve jurisdição sobre eles. Louvado embora estivesse no oriente, Pedro tinha apenas uma primazia de honra e proeminência. Os orientais respeitavam Pedro pelo seu testemunho da fé apostólica, e não por seu poder de jurisdição” (MILLER, Michael. The Shepherd and the Rock. Huntington, Indiana: Our Sunday Visitor, 1995, p. 71-72, 116)

O também renomado teólogo católico romano Hans Kung escreveu:

Na Igreja primitiva, sem dúvida, Pedro teve uma autoridade especial. No entanto, ele não a possuía sozinho, mas sempre colegialmente com os outros. Ele estava muito longe de ser um monarca espiritual ou até mesmo um único governante. Não há nenhum vestígio de qualquer quase monárquica autoridade exclusiva como líder. (KUNG, Hans. The Catholic Church: A Short History . Modern Library, 2001, p. 19)

Cardeal Newman, cuja importância para o catolicismo moderno é difícil de exagerar, também escreveu:

Enquanto os Apóstolos estavam na terra, não havia bispo ou papa. (Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã, Cap. 4, Seção 3)

Esta é apenas uma pequena amostra. Muitos outros historiadores católicos romanos poderiam ser citados. A ideia de que Pedro tinha autoridade jurídica sobre os demais apóstolos é amplamente desacreditada pelos acadêmicos católicos romanos. Especificamente sobre Agostinho, meu oponente defendeu:

Todavia, vamos às afirmações do artigo onde ele induz o leitor ao erro. Por quê? Por usar de forma parcial uma afirmação de Agostinho como se o autor fosse contra a Primazia Petrina.

Santo Agostinho acreditava que Pedro representa toda a igreja, Sermão 295:2+. J1526, 391 A.D.

'Antes de sofrer, o Senhor Jesus Cristo, como você sabe, escolheu Seus discípulos, a quem chamou apóstolos. Entre esses apóstolos, em quase toda parte, só Pedro mereceu representar toda a Igreja. Para representar toda a Igreja, o que ele sozinho poderia fazer, ele mereceu ouvir: "Eu te darei as chaves do reino dos céus (Mt 16:19)."'

Ou seja, como Pedro, na visão de Agostinho, foi escolhido para representar toda a Igreja e recebeu as chaves, ele teria a primazia jurídica e seria um papa. Há uma falácia clara neste raciocínio. Porque Pedro ter sido escolhido o representante da Igreja implica num primado jurídico e não apenas num primado de honra? Uma analogia jurídica pode ser útil aqui. Órgãos colegiados possuem um presidente, que vota juntamente com os demais. Apesar de o presidente representar o colegiado e ter uma função de destaque, ele não pode decidir sozinho, nem contra o colegiado. O fato de Pedro ter tido, segundo Agostinho, a honra de ser o representante da Igreja no recebimento das chaves, não implica que ele detinha a primazia jurídica sobre os demais. Vejamos a continuação desta citação:

Antes de Sua paixão, o Senhor Jesus, como você sabe, escolheu aqueles discípulos dos Seus, os quais chamou apóstolos. Entre aqueles foi somente a Pedro que em quase toda a parte foi dado o privilégio de representar toda a Igreja. Foi na pessoa de toda a Igreja, que ele sozinho representou, que ele foi privilegiado em ouvir: “Dar-te-ei as chaves dos céus” (Mateus 16:19). Depois de tudo, não foi somente um homem que recebeu aquelas chaves, mas a Igreja em sua unidade. Assim, está é a razão da preeminência reconhecida de Pedro, de que ele estava representando a universalidade e unidade da Igreja, quando lhe foi dito “A você estou confiando”, que de fato tem sido confiado a todos. (Sermão 295)

A preeminência de Pedro não envolve qualquer autoridade jurídica sobre outros apóstolos, mas sim um privilégio especial de ter atuado como representante de toda a Igreja. O apologista católico também ignora uma porção importante para as pretensões papais. Ao atuar como representante de todos, toda a Igreja em unidade teria recebido as chaves e não apenas o bispo de Roma. Observem que ele aplica o dito “A você estou confiando” a todos quando diz “que de fato tem sido confiado a todos”. A visão Agostiniana é similar à de Cipriano. Lembremos que ele era um bispo norte-africano, portanto, bastante influenciado pela teologia de Cipriano. O bispo de Cartago, tendo vivido no séc. III, foi um grande oponente das tentativas de supremacia do bispo de Roma sobre a Igreja norte-africana. Ele também acreditava que Pedro atuou como um representante de toda a Igreja ao receber as chaves, mas contra as pretensões do bispo de Roma, afirmou que todos os bispos eram detentores do poder das chaves concedido a Pedro (aqui). O apologista também ignora porções centrais do meu artigo que apontam a crença agostiniana segundo o qual a rocha na qual a Igreja fora fundada não era a pessoa Pedro, mas Cristo:

Numa passagem neste livro, eu disse sobre o Apóstolo Pedro: “Sobre ele, como uma pedra, a Igreja foi construída” (...) Mas eu sei que mui frequentemente em um tempo atrás, eu expliquei que o Senhor disse: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”, que é para ser entendido como construída sobre Ele, a quem Pedro confessou dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Assim Pedro, chamado depois esta pedra, representou a pessoa da Igreja que é construída sobre esta pedra, e recebeu “as chaves do reino do céu”. Porque “Tu és Pedro” e não “Tu és a pedra” foi dito a ele. Mas “a pedra era Cristo”, em quem confessando, como também toda a Igreja confessa, Simão foi chamado Pedro. (The Fathers of the Church (Washington D.C., Catholic University, 1968), Saint Augustine, The Retractations Capítulo 20.1)

Dessa forma, Pedro era figura da Igreja e atuou como seu porta-voz, mas a rocha não era Pedro, caso contrário, seria ilógico acreditar que a Igreja ali representada no apóstolo fora fundada sob si mesma. A rocha era o Cristo a quem Pedro (a Igreja) confessa. O bispo de Hipona voltaria a condenar a ideia de que a rocha poderia ser Pedro em outros escritos:

Previamente, é claro, ele foi chamado Simão. Este nome de Pedro lhe foi concedido pelo Senhor, e isto com a intenção simbólica de sua representatividade da Igreja. Porque Cristo, você vê, é a petra ou pedra. Pedro, ou Rochoso, é o povo Cristão. (Sermão 76)

Novamente, Pedro é destacado em sua posição como representante da Igreja. Ao confessar Jesus como o filho de Deus, ele representou a confissão que todo cristão faz, mas o fundamento era Cristo. Agostinho prossegue:

Porque os homens que desejavam edificar sobre homens, diziam, ‘Eu sou de Paulo; e eu de Apolo; e eu de Cefas, que era Pedro. Mas outros que não desejavam edificar sobre Pedro, mas sobre a Pedra, diziam, ‘Mas eu sou de Cristo'. E quando o Apóstolo Paulo averiguou que ele foi escolhido, e Cristo desprezado, ele disse, ‘Está Cristo dividido? Foi Paulo crucificado por vós? Ou fostes vós batizados em nome de Paulo?' E, como não no nome de Paulo, assim nem também no nome de Pedro; mas no nome de Cristo: que Pedro deveria ser edificado sobre a Pedra, não a Pedra sobre Pedro. Este mesmo Pedro, portanto, que tinha sido declarado ‘bem-aventurado' pela Pedra, carregando a figura da Igreja. (Philip Schaff, Nicene and Post-Nicene Fathers (Grand Rapids: Eerdmans, 1956), Volume VI, St. Augustin, Sermon XXVI.1-4, pp. 340-341).

Ainda no mesmo sentido, Agostinho escreveu:

Porque, como algumas coisas são ditas que parecem peculiarmente se aplicar ao Apóstolo Pedro, e todavia não são claras em seu significado, a menos quando se refere à Igreja, a quem ele é reconhecido ter figurativamente representado, por causa da primazia que ele tinha entre os Discípulos; como está escrito, ‘Dar-te-ei as chaves do reino dos céus', e outras passagens de propósito semelhante: assim Judas representa aqueles Judeus que eram inimigos de Cristo. (Exposição sobre o Livro de Salmos, Salmos 199)

Observem a natureza da analogia. Da mesma forma que Pedro atuou como representante da Igreja (e esta era a primazia de Pedro), Judas atuou como representante dos judeus que eram inimigos de Cristo. Agora, isto permitiria afirmar que Judas era chefe jurídico dos Judeus? Obviamente não. O mesmo raciocínio se aplica a Pedro. A questão que se coloca é se tal interpretação é apenas uma elaboração de um humilde apologista de internet como eu ou possui lastro nos especialistas em história da Igreja. John Rotelle, especialista em Agostinho e editor da série Católica Romana dos sermões de Agostinho, faz estas observações:

Pedro existia, e ele não tinha sido ainda confirmado na pedra: Isto é, em Cristo, como participante em seu “rochedo” pela fé. Isto não significa confirmado como a pedra, porque Agostinho nunca pensou de Pedro como a pedra. Jesus, apesar de tudo, não lhe chamou de fato a pedra (...) mas “rochoso”. A pedra na qual ele construiria sua Igreja era, para Agostinho, tanto o próprio Cristo como a fé de Pedro, representando a fé da Igreja. (John Rotelle, Ed., The Works of Saint Augustine (New Rochelle: New City, 1993), Sermons, Sermon 265D.6, p. 258-259, n. 9)

W.H.C. Frend – outro especialista em Agostinho – escreveu:

Agostinho (...) rejeitou a ideia de que “o poder das chaves” tinha sido confiado somente a Pedro. Sua primazia era simplesmente uma questão de privilégio pessoal, e não um ofício. Similarmente, ele nunca reprovou os Donatistas por não terem comunhão com Roma, mas pela falta de comunhão com a visão apostólica como um todo. (W.H.C. Frend, The Early Church (Philadelphia: Fortress, 1965), p. 222)

A primazia jurídica do bispo de Roma

Suponha para o bem do debate que o apologista tenha evidenciado que Pedro de fato tinha primazia jurídica no colégio apostólico. Isto, por si só, ainda seria insuficiente para suas pretensões. Ele precisaria evidenciar que o bispo de Roma, de forma exclusiva, herdou tal primazia e atuaria como chefe de toda a Igreja. O bispo de Roma seria então a instância máxima de autoridade na Igreja. Além disso, ele precisaria provar que Agostinho acreditava em algum tipo de infalibilidade do bispo de Roma, pois este é um conceito chave para a doutrina papal. Sobre este último ponto, ele sequer argumentou. O apologista disse:

Santo Agostinho acreditava na sucessão apostólica em Roma, Carta a Generosus 53:1:2. J1418, 400 A.D.

“Se a própria ordem da sucessão episcopal deve ser considerada, quanto mais seguramente, verdadeiramente, e com segurança, os numeramos desde o próprio Pedro, a quem, como um representante de toda a Igreja, o Senhor disse: "Sobre esta rocha eu edificarei a Minha Igreja, e as portas do inferno não a vencerão (Mt 16:18). "Pedro foi sucedido por Linus, Linus por Clemente, Clemente por Anacletus, etc”

O argumento se desfaz na medida em que Pedro atuou como representante de toda a Igreja e não apenas de Roma. Dessa forma, as chaves que ele recebeu, como já demonstrado, foram passadas a toda a Igreja e não apenas a Roma. Nenhuma das prerrogativas de Pedro são exclusivamente passadas para Roma. Além disso, se a simples crença de que Pedro deixou uma sucessão de bispos em Roma implica no papado romano, o mesmo deveria ser dito de Antioquia, pois era acreditado pelos pais da Igreja do período que Pedro também deixou uma sucessão de bispos em Antioquia. A lista de bispos de Antioquia pode ser vista aqui. Ademais, a lista de Agostinho (Pedro, Lino, Clemente, Anacleto....) é diferente da lista oficial adotada pela Igreja Romana (aqui). O apologista então comenta em cima da citação que eu já apresentei na qual Agostinho afirma que não Pedro, mas Cristo era a rocha:

Novamente a sucessão e primazia, o apologeta mirim diz que Agostinho estava errado em acreditar que Pedro foi bispo de Roma. Caraca, Bruno está tentando desqualificar o primado dos sucessores de Pedro? Porque Pedro não foi bispo de Roma, infelizmente (para Bruno) um grupo expressivo de autores patrísticos acreditavam em Pedro como bispo de Roma. Se há um ponto central de há erro na crença de Agostinho, ele deveria ter usado isso. Por que não começou a partir daí? Então, Agostinho acreditava que Pedro foi bispo de Roma? Para o rapaz, sim. “Algo errado não está certo”. Parece-me muito seletivo isso. Percebe-se no texto que, para o autor, alguns argumentos de Santo Agostinho estão certos, outros errados. Ele fica somente com aqueles que combinam com sua ideias.

Quando ele diz “novamente a sucessão e primazia”, falha em não perceber que não há primazia jurídica em vista e que as prerrogativas de Pedro não são adquiridas exclusivamente pelo bispo de Roma. O teólogo e cardeal católico romano Yves Congar afirmou a respeito da interpretação patrística de Mateus 16:18:

Às vezes aconteceu que alguns Padres entendiam a passagem de uma maneira que não está de acordo com o ensinamento da Igreja mais tarde. Um exemplo: a interpretação da confissão de Pedro em Mateus 16:16-19. Exceto em Roma, esta passagem não foi aplicada pelos Padres para o primado papal; eles trabalhavam fora de uma exegese ao nível do seu próprio pensamento eclesiológico, mais antropológica e espiritual do que jurídica. (CONGAR, Yves. Tradição e tradições. New York: Macmillan, 1966, p. 398)

Com exceção de Roma, os demais teólogos (inclui Agostinho) não aplicaram Mateus 16 ao primado papal e aplicaram uma exegese “espiritual” e não uma interpretação jurídica, ou seja, eles não viram primado jurídico nesta passagem. O apologista então passa a reclamar porque eu disse que Agostinho e outros pais da Igreja estariam errados em acreditar que Pedro foi bispo Roma e lá deixou uma sucessão de bispos. Ao apresentar as visões de um pai da igreja, eu não estou vinculado a elas. Eu posso discutir sobre as opiniões de qualquer teólogo sem endossá-las. Isto vale inclusive para a Igreja de Roma. O teólogo católico romano Peter Stravinskas admite:

Apesar da tremenda influência de Agostinho, várias de suas opiniões nunca ganharam aceitação na Igreja. Entre elas, podemos destacar as seguintes teorias: que Deus condenaria crianças não batizadas ao inferno, simplesmente por causa da herança do pecado original; que Deus justamente condena adultos que nunca tiveram a oportunidade de serem apresentados ao Evangelho, mais uma vez, devido unicamente ao pecado original contraído por eles; que algumas pessoas sofreriam condenação eterna por nenhuma outra razão do que a falta de interesse de Deus em salvá-las. Ao refletirmos sobre essas posições agostinianas, devemos lembrar do fato de que só porque alguém é um santo ou mesmo um doutor da Igreja não torna todo seu corpo de ensinar aceitável, somente o Magistério da Igreja pode decidir o que é ou não é conforme sua compreensão da verdade de Cristo. (Envoy, Setembro/Outubro de 1998)

A respeito do fato de que Pedro não foi bispo de Roma e de que não havia bispos monárquicos em Roma até meados do séc. II, já apresentei argumentos em outro artigos (aqui) e principalmente (aqui) onde me baseio na obra do renomado eclesiologista católico romano Francis Sullivan . Além disso, a visão de que Roma não possui bispos monárquicos no princípio é amplamente defendida pelos historiadores católicos romanos. Você pode ver aqui uma amostra de vários enunciando esta visão (aqui).

O fato de Agostinho acreditar que o pescador foi bispo de Roma e lá deixou uma sucessão de bispos é insuficiente para pretensão papal e perfaz uma tentativa de provar demais. Contudo, o momento em que sua defesa fica mais frágil é quando ele tenta explicar as posições conciliaristas de Agostinho apresentadas na citação abaixo:

Bem, vamos supor que aqueles bispos que decidiram o caso em Roma não eram bons juízes, ainda resta o concílio plenário da Igreja universal, em que esses juízes podem apresentar sua defesa, de modo que, se eles foram condenados por erro, as suas decisões podem ser revertidas. (Carta 43:19)

O católico comentou:

Essa citação que ele até faz no artigo talvez seja pior de todas. Fecha o caixão. Como todo apologista que odeia a Igreja Bruno age talvez por ingenuidade ou mau-caratismo. Possível ver a falcatrua ao usar esta fonte primária. Quando ele cita Carta 43, que foi escrita de Santo Agostinho, nela Agostinho criou uma hipótese sobre um POSSÍVEL erro de julgamento e não defendendo o conciliarismo, pois em primeira instância crer no juízo de Roma. Só em último caso Agostinho falava em recorrer ao concílio para poder reverter um SUPOSTO mau juízo romano, mas vemos que acreditava que Roma era a primeira a julgar, ou seja, um local de decisões sobre a Igreja Universal. Falha de interpretação e leitura apaixonada.

(1) Ele afirma que esta citação aponta que Roma era “um local de decisões sobre a Igreja Universal”. Mais uma vez tenta provar demais. Provavelmente por desconhecer o contexto desta carta (aqui), ele desconheça que o pano de fundo é a controvérsia donatista, ou seja, algo restrito à Igreja Ocidental. Por isso, era natural que a sé romana fosse consultada. O mesmo já não poderia ser dito a respeito de controvérsias da Igreja Oriental, pois Roma não era uma instância recursal de toda a Igreja neste período. Mas até mesmo em relação à Igreja norte-africana (parte da Igreja Ocidental), Agostinho quis manter sua autonomia. O renomado historiador católico romano Klaus Schatz atesta:

A igreja africana preservou sua autonomia de modo ainda mais decidido no terreno da jurisdição. Nos concílios de Cartago realizados em 419 e 424, se chega a proibir o recurso a Roma. O contexto dessa medida foi o caso do presbítero Apiario, que tinha sido excomungado pelo seu bispo e, em Roma (sem o conhecimento da situação) foi reabilitado em seus direitos. Os norte-africanos reagiram, por um lado, concedendo aos presbíteros a possibilidade de uma instância de recurso (o julgamento de seu bispo pelo concílio norte-africano de Cartago), com o qual se satisfazia o desejo de segurança jurídica. Por outro lado, se defenderam energicamente contra uma intervenção de Roma: ela de longe incorria em julgamentos errados, pela simples razão de que em tais processos judiciais era impossível fazer chegar da África as testemunhas necessárias. Além disso, é impensável que Deus conceda o espírito de juízo justo a um particular, isto é, ao bispo de Roma, e não a todo um concílio de bispos. Por isso, os norte-africanos proibiram para o futuro qualquer recurso "ultramarino", mesmo para o caso dos bispos, opondo-se assim os cânones de Sárdica. Essa proibição tinha um precedente no caso de um bispo afastado de sua comunidade, mas que Roma tinha amparado. Por causa disso, o mesmo Agostinho ameaçou se demitir. A instância de recurso era apenas o concílio norte-africano de Cartago. Este caso repetidamente fornecido ao longo da história oferece o exemplo para apoiar a resistência episcopalista das igrejas nacionais contra o centralismo romano. (Papal Primacy, Minnesota: The Liturgical Press, 1996, p. 35-36)

Observem que mesmo uma Igreja como a norte-africana, que não poderia reivindicar fundação apostólica, proibiu o envio de recursos à Roma. Ainda, a justificativa não era apenas prática, mas teológica – o bispo de Roma não poderia ser uma instância de julgamento melhor do que um concílio de bispos do norte da África.

(2) O católico também enfatiza que Agostinho tratou apenas de uma hipótese, mas observem que conforme relato de Schatz, isto não ficou apenas no campo das possibilidades. Ainda sem perceber, ele assassinou sua própria premissa neste trecho: “Só em último caso Agostinho falava em recorrer ao concílio para poder reverter um SUPOSTO mau juízo romano, mas vemos que acreditava que Roma era a primeira a julgar”. Se Roma funcionava como instância inicial, segue-se que ela não era uma instância final, logo seria uma instância inferior. Surpreende que ela não siga o seu próprio raciocínio. Se alguém afirma que tribunal x é a primeira instância, segue-se que há outras instâncias superiores cujas decisões sobrepujam a deste tribunal. O raciocínio implica que o concílio universal era a instância superior, e não o bispo de Roma. Ele também ignorou outras citações do meu artigo inicial que inequivocamente demonstram o conciliarismo agostiniano:

Portanto, se Pedro, sobre como fazendo isso, é corrigido pelo seu mais tarde colega Paulo, e ainda é preservada [a amizade de Paulo] pelo vínculo da paz e da unidade até que ele é promovido ao martírio, quanto mais prontamente e constantemente devemos preferir, ao invés da autoridade de um único bispo ou o concílio de uma única província, a regra que foi estabelecida pelos estatutos da Igreja universal? (...) [citando Cipriano] Pois nenhum de nós coloca-se como um bispo de bispos, nem por terror tirânico alguém força seu colega à obediência obrigatória; visto que cada bispo, de acordo com a permissão de sua liberdade e poder, tem seu próprio direito de julgamento, e não pode ser julgado por outro mais do que ele mesmo pode julgar um ao outro. Mas esperemos todos o julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, que é o único que tem o poder de nos designar no governo de Sua Igreja, e de nos julgar em nossa conduta nela. (Sobre o Batismo, contra os donatistas, 2:1-2)

Esta citação não poderia ser mais clara. Percebam que mesmo com Pedro em vista, Agostinho defende a ideia de que a autoridade de um único bispo não é maior do que a de um concílio universal. Como alguém que era papista poderia fazer tal afirmação? Na continuação da citação, ele cita Cipriano. O contexto desta citação de Cipriano é bastante relevante para este debate. Estas foram as palavras do sétimo concílio de Cartago liderado por Cipriano. As palavras se dirigem a Estevão (bispo de Roma no séc. III) que desejava impor o costume romano à Igreja norte-africana. Em sua reação, Cipriano faz a famosa defesa de que todos os bispos eram igualmente sucessores de Pedro e que nenhum bispo poderia se colocar como “bispo dos bispos”, ou seja, um papa. Para mais detalhes (aqui). O já citado historiador católico romano Klaus Schazt elucida este ponto:

A questão aqui era o 'reconhecimento de uma autoridade superior pertencente aos sucessores de Pedro, que não podiam ser adequadamente descritas em termos jurídicos. Em princípio, o bispo romano não tinha mais autoridade do que qualquer outro bispo, mas na hierarquia de autoridades, sua decisão tomou o lugar mais importante. Por outro lado, Cipriano considerava cada bispo como sucessor de Pedro, titular das chaves do reino dos céus e possuidor do poder de ligar e desligar. Para ele, Pedro encarna a unidade original da Igreja e do escritório episcopal, mas, em princípio, esses também estavam presentes em cada bispo. Para Cipriano, a responsabilidade por toda a Igreja e a solidariedade de todos os bispos também poderia, se necessário, voltar-se contra Roma. Há um exemplo marcante desta relação no mesmo período envolvendo dois bispos espanhóis, Basilides e Marcial. Durante a perseguição não tinham sacrificado aos ídolos, mas como muitos outros cristãos, haviam subornado funcionários para obter "certificados de sacrifício" (libelli). Como resultado, eles haviam perdido credibilidade em suas congregações e tinham sido expulsos. No entanto (na opinião de Cipriano por deturpar os fatos), eles conseguiram obter o reconhecimento de Estevão de Roma. Cipriano reagiu imediatamente chamando um Sínodo Africano para avisar as duas comunidades que rejeitassem a decisão de Estevão e se recusassem a readmitir os dois bispos. (Papal Primacy, Minnesota: The Liturgical Press, 1996, p. 35-36, pp. 20-21)

Observem que a tradição conciliarista de Agostinho não era uma inovação, mas fora recebida das mãos de Cipriano. Na visão desses pais da Igreja, até mesmo um concílio local da Igreja Norte-Africana tinha precedência sobre as decisões do bispo de Roma. Não por acaso, a sé romana foi diversas vezes contrariada pela igreja africana. Robert Eno – um historiador católico romano e especialista em Agostinho – atesta em duas de suas obras:

Em outro lugar eu argumentei em detalhes a visão de Agostinho sobre a autoridade na Igreja e que, na minha opinião, o concílio [não o Papa] foi o principal instrumento para resolução de controvérsias (...) Eu acredito que Agostinho tinha grande respeito pela igreja romana cuja antiguidade e origens apostólicas ofuscou, de longe, outras igrejas no Ocidente. Mas, assim como em Cipriano, a tradição colegial e conciliar africana foi preferida na maioria das vezes. (The Rise of the papado [Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1990] p. 79)

É claro que Agostinho tinha um respeito genuíno para a posição da igreja de Roma na Igreja universal. Na verdade, seus pontos de vista eram provavelmente mais amigáveis do que os de muitos de seus colegas africanos. Agostinho, afinal de contas, tinha um conhecimento pessoal da cidade, bem como de alguns clérigos romanos. Não obstante, sua ação na crise pelagiana não alterou sua visão básica do concílio plenário como a última instância em disputas na Igreja, nem a sua visão da atividade conciliar em geral como o caminho comum para resolver problemas intra-eclesiais além do nível da igreja local (...) (Doctrinal Authority In Saint Augustine, Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 171)

W.H.C. Frend expressa o mesmo:

Sua visão do governo da Igreja era que questões menos importantes deveriam ser resolvidas por concílios provinciais, grandes questões em concílios gerais. (W.H.C. Frend, The Early Church (Philadelphia: Fortress, 1965), p. 222)

Há uma importante questão em que ausência de uma visão papista fica evidente em Agostinho. Nos debates entre católicos romanos e protestantes, o cânon é um item frequente. Eles nos dizem que precisamos do papado para saber qual é o cânon correto. O bispo de Hipona, por outro lado, expressou visão distinta:

Agora, a respeito das Escrituras canônicas, deve-se seguir o julgamento do maior número de igrejas católicas; e entre estas, é claro, um lugar de destaque deve ser dado ao que se achar digno de ser a sede de um apóstolo ou receber epístolas. Consequentemente, entre as Escrituras canônicas deve-se julgar de acordo com a seguinte regra: preferir aqueles que são recebidos por todas as igrejas católicas do que aqueles que alguns não recebem. Entre aqueles, novamente, que não são recebidos por todos, deve-se preferir aqueles que têm a sanção do maior número e daqueles de maior autoridade, do que aqueles que são recebidos pelo menor número e os de menos autoridade. Se, contudo, se achar que alguns livros são tidos pelo maior número de igrejas e outros pelas igrejas de maior autoridade (apesar de isto não ser algo muito provável de acontecer), eu acho que em tal caso a autoridade dos dois lados deve ser considerada igual. (On Christian Doctrine, Livro 2, seção VIII (Nova York: Liberal Arts Press, 1958), p. 41)

Agostinho estabelece um conjunto de critérios que apela ao consenso da Igreja, sem sequer mencionar qualquer papel do bispo de Roma. Ele cita as igrejas de maior autoridade, mas entre elas, Roma não era única. Estariam aí as igrejas fundadas por apóstolos ou que receberam epístolas de apóstolos. No entanto, ele contrabalanceia as igrejas de maior autoridade com as igrejas que poderiam estar me menor número. Neste caso “a autoridade dos dois lados deve ser considerada igual”. O fato de ele não atribuir ao bispo de Roma nenhum papel exclusivo e superior é indicativo da ausência de uma mentalidade papal neste período. Numa última tentativa, o católico romano traz a famosa citação na qual o bispo de Hipona diz:

Eu não creria no Evangelho, se a isso não me levasse a autoridade da Igreja católica. (Contra a Carta de Mani 5,6)

Eu já tratei do contexto desta citação em outro artigo (aqui). O que importa mencionar é que esta citação não tem qualquer relação com o bispo de Roma. Agostinho tem em vista a autoridade da Igreja Universal, que ele invocou contra os donatistas. E, como já extensivamente demonstrado, o órgão máximo de autoridade da Igreja não era o bispo de Roma e sim o concílio universal. Por isso, esta citação em nada endossa o papado. O também teólogo católico romano Hans Kung afirma o consenso acadêmico:

Para Agostinho, em qualquer caso, todos os bispos eram fundamentalmente iguais, embora ele pensasse que Roma era o centro do império e da Igreja, ele não deu impulso ao papismo. Ele não achava de qualquer forma, ele não pensava em termos de uma primazia de governo ou jurisdição de Roma. Pois, não foi sobre Pedro como uma pessoa (ou até mesmo seu sucessor), que a Igreja foi fundada, mas sobre Cristo e a fé Nele. O Bispo de Roma não era a autoridade suprema na Igreja. A autoridade suprema era o concílio ecumênico, como era para o conjunto do oriente cristão, e Agostinho não atribuiu qualquer autoridade infalível, mesmo para esse. (Hans Kung. The Catholic Church: A Short History . Modern Library, 2001, p. 51-52)

Considerações Finais

O apologista católico em questão começou a sua resposta apontando o fato de eu ter linkado um artigo protestante na primeira parte da série, o qual afirma que Agostinho não acreditava na eficácia na ex opere operato dos sacramentos. Segundo ele, ao trazer a perspectiva do blog protestante que havia iniciado a discussão inspiradora da minha série, eu estaria necessariamente endossando tudo o que o blog disse. Ocorre, que em nenhum lugar da série eu abordo a questão. Mesmo no artigo que trata especificamente dos sacramentos (aqui), eu não a abordo. Ao observarmos os argumentos do apologista, fica óbvio porque ele necessita destacar um ponto sobre o qual não argumentei ao invés de focar naquilo sobre o qual de fato escrevi, afinal os argumentos por ele apresentados são frágeis e sequer interagem com a maior parte do meu artigo. Agora, o mais contraditório é o trecho seguinte:

Bruno Lima é outro farsante que não conhece nada de Patrística ou de doutrina da Igreja Católica. Ele deveria ler livros sobre o assunto ao invés de só se informar em sites de apologética estrangeiros. O choro é livre.

O meu blog fala por si. Quem leu meus artigos sabe que eles são fartamente documentados com citações (como este artigo), e em sua maioria de renomados historiadores católicos romanos. É no mínimo estanho que a pessoa que me deu esse conselho não tenha fundamentando sua tese do Agostinho papista com nenhuma citação de qualquer historiador. Ou seja, o problema do nobre apologista não é comigo, mas com os melhores teólogos e historiadores da sua própria denominação. Encerro aqui sumarizando os dois pontos em que a apologética católica tem falhado em evidenciar: (a) a primazia jurídica de Pedro e; (b) a primazia jurídica do bispo de Roma sobre toda a Igreja.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Salvação Fora da Igreja: A Igreja de Roma Antiga vs A Igreja de Roma Atual (Parte 3)



Nesta terceira parte, vou abordar aquela que considero a evidência mais clara e inequívoca de que o magistério de Roma mudou seu ensino doutrinal. Vamos abordar os concílios medievais e o Concílio de Trento que teriam definitivamente exposto a doutrina sobre a salvação fora da Igreja. O primeiro documento a ser analisado é a Bula Unam Sanctam do Papa Bonifácio VIII (texto na íntegra aqui). Vejamos:

Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já que é isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o esposo no Cântico: "Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe que a gerou" (Ct 6:9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo e Deus é a cabeça de Cristo. Nela existe "um só Senhor, uma só fé e um só batismo" (Ef 4:5). De fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada da única Igreja; encerrada com "um côvado" (Gn 6:16), teve um único piloto e um único chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.

A esta única Igreja, nós a veneramos, como diz o Senhor pelo profeta: "Salva minha vida da espada, meu único ser, da pata do cão" (Sl 21:21). Ao mesmo tempo que Ele pediu pela alma - ou seja, pela cabeça - também pediu pelo corpo, porque chamou o seu corpo como único, isto é, a Igreja, por causa da unidade da Igreja no seu esposo, na fé, nos sacramentos e na caridade. Ela é a veste sem costura (Jo 19:23) do Salvador, que não foi dividida, mas tirada à sorte. Por isso, esta Igreja, una e única, tem um só corpo e uma só cabeça, e não duas como um monstro: é Cristo e Pedro, vigário de Cristo, e o sucessor de Pedro, conforme o que disse o Senhor ao próprio Pedro: "Apascenta as minhas ovelhas" (Jo 21:17). Disse "minhas" em geral e não "esta" ou "aquela" em particular, de forma que se subentende que todas lhe foram confiadas. Assim, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e aos seus sucessores, é necessário que reconheçam que não fazem parte das ovelhas de Cristo pois o Senhor disse no evangelho de São João: "Há um só rebanho e um só Pastor" (Jo 10:16). ("Bula Unam Sanctam" MONTFORT Associação Cultural)

O último parágrafo da Bula não deixa margem para dúvidas:

Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice.

A bula também expõe a teoria das duas espadas, segundo a qual a Igreja detém a espada espiritual, a qual exerce diretamente, e a temporal, a qual exerce por intermédio do Estado. Em síntese, o Papa estava defendendo seu poder sobre os reis, pois ele era o vigário de Cristo e autoridade suprema não somente em assuntos espirituais, mas também temporais. Sullivan traz os comentários:

Uma Bula é uma carta papal que é selada com uma bulla, que é um tipo especial de selo anexado a documentos de importância particular. A bula Unam Sanctam começa com uma profissão de fé na unidade da igreja, fora da qual não há salvação. Ele enfatiza, mais do que as declarações papais e conciliares anteriores a esta doutrina haviam feito, o papel do papa como cabeça sob Cristo desta única igreja.

Deve-se notar que, ao enunciar a doutrina tradicional sobre a necessidade de estar na igreja para a salvação, Bonifácio VIII enfatiza particularmente o papel do papa como cabeça da igreja, com a consequência de que aqueles não podem ser membros do rebanho de Cristo se não estão submetidos ao seu pastor visível.

Na nota histórica que Adolf Schonmetzer, o erudito editor das edições recentes de Denzinger, ofereceu a esta bula, ele afirma que apenas essa sentença final é uma definição dogmática. Ele a interpreta à luz dos primeiros parágrafos da bula, que afirmam a necessidade de pertencer à Igreja Católica para a salvação, em vez de definir a teoria da supremacia do espiritual sobre o poder temporal de Bonifácio. Em apoio a essa interpretação, Schonmetzer observa que a sentença final é tirada de uma obra de São Tomás, onde a necessidade de sujeitar-se ao Romano Pontífice é simplesmente outra maneira de expressar a necessidade de estar na comunhão da Igreja Católica para ser salvo. (Contra errores graecorum, 2, cap. 32 (ed. Parma 15 :25 7)

A nota histórica de Schonmetzer reflete a interpretação mais comum da bula entre os teólogos católicos, a saber, que o Papa Bonifácio, sem dúvida, sustentava e ensinava a teoria medieval da supremacia do espiritual sobre o poder temporal, e o que ele definiu solenemente na sentença final nada mais é do que a doutrina clássica de que não há salvação fora da Igreja Católica. No entanto, um estudo recente da questão, de George Tavard, oferece uma abordagem diferente. Tavard insiste que a sentença final deve ser entendida à luz do tema principal da Bula, que é a supremacia papal sobre os governantes temporais. Por outro lado, Tavard acredita que faltava uma condição essencial para uma definição dogmática, uma vez que, mesmo na época de Bonifácio, não havia consenso sobre essa doutrina na igreja, e ela não sobreviveu como parte do patrimônio de fé da igreja. (George Tavard, “The Bull Unam sanctam of Boniface VIII,” in Papal Primacy and the Universal Church (Lutherans and Catholics in Dialogue, V), Minneapolis: Augsburg, 1974, pp. 105—119)

Sem tentar decidir qual dessas duas interpretações é preferível, podemos concluir observando que nenhum teólogo católico sustenta agora que a teoria de Bonifácio sobre a supremacia do espiritual sobre o poder temporal é um dogma da fé católica. É seguro dizer que se a Bula definia alguma coisa, era simplesmente a doutrina tradicional de que não há salvação fora da Igreja Católica. (F.A Sullivan, p. 65-66)

Em suma, a Bula define dogmaticamente a doutrina tradicional, segundo a qual ninguém poderia ser salvo estando fora da Igreja. Estar na igreja tinha uma consequência inevitável, que era se submeter ao bispo de Roma. Observem que a divergência interpretativa em relação ao texto da bula não se refere a doutrina da salvação fora da igreja. Sobre isto, não resta dúvida. A divergência é sobre a doutrina da submissão dos governantes ao papa. A maioria dos teólogos católicos concordam que Bonifácio estava dogmaticamente definindo isto também – o Papa considerava que o poder temporal também deveria ser submeter ao seu comando. Dessa forma, a bula contradiz o atual ensino de Roma nesses dois aspectos: a impossibilidade de salvação dos que não estão sob o domínio do papa, bem como a submissão do poder temporal a ele.

Eu já presenciei todo tipo de malabarismo para tentar conciliar a Bula com o ensino moderno de Roma, mas não há para onde escapar – submissão explícita ao papa é condição indispensável para salvação. Observem que o documento cita os “gregos”. Oram, estes eram os cristãos ortodoxos orientais que não se submetiam ao papa. A bula os cita como exemplo de grupo que estava perdido. Agora, imaginem a situação dos mulçumanos, judeus e outros que sequer cristãos eram.

Outro documento que não deixa margem para dúvidas é o Decreto dos Jacobitas do Concílio de Florença, que fora concluído em 1445. Segue os comentários de Sullivan juntamente com o texto do decreto:

O concílio que é comumente chamado de Florença começou em Basileia em 1431, foi transferido para Ferrara em 1438, para Florença em 1439 e, finalmente, para Roma, onde foi concluído em 1445. O principal esforço deste concílio era trazer a reunião com as igrejas orientais separadas. Vários decretos de união foram promulgados, mas os eventos subsequentes provaram que a maioria deles era ineficaz para uma união duradoura. Entre esses decretos estava o da união de várias igrejas coptas, cujos membros também eram chamados de Jacobitas. O decreto tinha a forma de uma profissão de fé católica, à qual os jacobitas eram obrigados a declarar sua adesão. Entre outros artigos estava o seguinte:

A Igreja crê firmemente, professa e prega que todos aqueles que estão fora da Igreja Católica, não só pagãos, mas também judeus ou hereges e cismáticos, não podem compartilhar a vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos, a menos que eles estejam ligados à Igreja Católica antes do final de suas vidas, pois a unidade do corpo eclesiástico é de tal importância que somente aqueles que recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo jejuns, obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica. (Decreto dos Jacobitas – Concílio de Florença)

O leitor atento reconhecerá, sem dúvida, a primeira sentença deste decreto conciliar como uma que citamos anteriormente de uma obra do discípulo do século VI de Santo Agostinho - Fulgêncio de Ruspe. A frase final é também uma citação da mesma obra de Fulgêncio. Como vimos acima, Fulgêncio seguiu Agostinho mesmo em suas teorias mais extremas sobre as consequências do pecado original (...)

[Nós] Temos boas razões para entender este decreto à luz do que era então a crença comum de que todos os pagãos, judeus, hereges e cismáticos eram culpados do pecado da infidelidade, com base no fato de que eles se recusaram culposamente a aceitar a verdadeira fé ou permanecer fiel a ela. Vimos como São Tomás distinguiu três tipos de descrença pecaminosa: a dos pagãos, a dos judeus e a dos hereges e cismáticos cristãos. Os bispos em Florença estavam apenas esboçando a conclusão lógica do ensinamento de São Tomás sobre esses pecados de infidelidade. Seu decreto não pode ser entendido, exceto à luz de seu julgamento sobre a grave culpabilidade de todos aqueles que eles declararam que seriam condenados para o inferno.

Temos que tentar entender o fato de que simplesmente não ocorreu à mente medieval que pessoas como os judeus, vivendo no meio da cristandade, pudessem persistir em sua crença judaica e sua rejeição da fé cristã, e não serem culpados desse pecado. Ainda menos podiam os cristãos medievais acreditar na inculpabilidade dos muçulmanos, que eram os inimigos da cristandade contra os quais as cruzadas haviam sido travadas, e que até na época do Concílio de Florença estavam ameaçando conquistar a cidade de Constantinopla, a última fortaleza do cristianismo no leste (...)

A conclusão inescapável é que eles devem ter acreditado que todos pagãos, judeus, hereges e cismáticos eram culpados e merecedores de punição eterna. Podemos concordar com eles que o grave pecado do não arrependimento contra a fé excluiria as pessoas da salvação eterna. No entanto, não podemos concordar com o julgamento deles de que todas aquelas pessoas eram indubitavelmente culpadas por tais pecados.

Ao mesmo tempo, temos que admitir que esse julgamento, aprovado pelo Concílio de Florença em 1442, representa o que havia sido o pensamento comum dos cristãos durante toda a Idade Média sobre o estado pecaminoso dos que estavam fora da igreja. Podemos aqui tomar um tempo para refletir sobre as consequências práticas da aprovação de tal julgamento para as várias categorias de pessoas que os cristãos julgaram culpadas do pecado da infidelidade. Para St. Tomás, como vimos, a heresia é o tipo mais grave de infidelidade e, de fato, era considerada não apenas um pecado, mas um crime, punível tanto pela Igreja quanto pelo Estado, mesmo com pena capital. Como a unidade na fé cristã era um elo essencial da unidade da sociedade cristã, a heresia e o cisma eram vistos como crimes contra a sociedade, bem como contra a religião.

Os judeus também foram julgados culpados de descrença pecaminosa. A mente medieval não podia conceber como poderiam ser inocentes em sua rejeição a Cristo, já que o cristianismo parecia ter sido tão abundantemente provado ser a verdadeira religião, até pelo fato de que a grande massa da sociedade a aceitara. Os judeus eram vistos como um povo amaldiçoado por Deus, condenados a vagar pelo mundo sem uma pátria própria como punição pelo crime de deicídio. Como os cristãos julgavam que eles eram um povo sob a condenação de Deus, destinados ao fogo eterno do inferno a menos que aceitassem a fé cristã e fossem batizados, não é de surpreender que o tratamento dado aos judeus refletisse esse tipo de julgamento. É verdade que a prática da fé judaica não era considerada crime punido por lei, como era a heresia dos cristãos. Foram apenas os judeus que aceitaram o batismo cristão e, posteriormente, retornaram às práticas judias, que eram passíveis de serem punidos pelo crime de apostasia. Mas as várias formas de incapacidade civil impostas aos judeus na Europa medieval, e os massacres que eles sofreram de tempos em tempos, especialmente nas mãos dos cruzados enquanto marchavam pela Europa a caminho do Leste, eram certamente influenciados pelo comum julgamento de que os judeus estavam sob a condenação de Deus e destinados à punição eterna por seu pecado de rejeição da verdadeira fé.

Enquanto, para St. Tomás e os cristãos medievais em geral, a incredulidade daqueles que, como os muçulmanos, não eram nem hereges cristãos nem judeus, era um pecado menos grave, ainda resultava que eles fossem destinados ao castigo eterno por Deus, uma vez que foi tomado por concedido que eles sabiam o suficiente sobre a fé cristã para serem culpados por terem a rejeitado. De fato, eles eram os inimigos jurados da religião cristã, contra os quais, a partir do ano 1095, sucessivas cruzadas foram travadas. A justiça de empreender a guerra contra os “infiéis” era óbvia para a mente medieval, tanto pela ocupação da terra santa como pela rejeição pecaminosa de Cristo e da religião cristã. (F.A Sullivan, p. 68-69)

Um fato importante para nosso estudo é o descobrimento da América. A partir deste fato, ficou evidente que não apenas indivíduos isoladamente eram ignorantes sobre a fé cristã, mas nações inteiras nunca receberam o evangelho. Obviamente, isto suscitou questionamento sobre a situação dos povos indígenas. Apologistas católicos costumam dizer que como a Igreja Medieval não sabia da existência desses povos, era aceitável a solução anterior. Portanto, a nova doutrina seria resultante das informações as quais a Igreja agora dispõe. Esta desculpa incorre em sérios problemas.

(1) Uma vez que a Igreja é infalivelmente guiada pelo Espírito Santo, ignorância não pode ser invocada, afinal o Espírito Santo detém todo conhecimento;

(2) Definições dogmáticas são irreformáveis, logo, se falta de conhecimento é aceitável, todos os dogmas da Igreja passariam a ser reformáveis ma medida que novo conhecimento é adquirido. Isto inclusive reflete a opinião de alguns teólogos católicos que sugerem um novo entendimento sobre as doutrinas da Eucaristia e da virgindade no parto de Maria, pois o conhecimento científico atual tornaria o entendimento tradicional inaceitável;

(3) Os primeiros teólogos a lidarem com o problema dos indígenas se mantiveram fiéis à solução medieval (sacramentada por Aquino, a Bula Unam Sanctam e o Concílio de Florença). Levaria séculos até que o atual ensino de Roma se tornasse o padrão. Isto é problemático para uma igreja que apela à tradição para validar seus ensinos. Como já evidenciado, o atual é ensino de Roma é uma inovação dos tempos modernos e não pode ser rastreado sequer até o século XV, que dirá até os Apóstolos. Abaixo, vamos apresentar as opiniões dos teólogos católicos a respeito dos índios americanos. Sullivan escreve:

Como a Espanha foi a primeira nação europeia a estabelecer colônias na América, não é de surpreender que os dominicanos espanhóis que ensinaram na faculdade de teologia da Universidade de Salamanca estivessem entre os primeiros teólogos a lidar com esse problema. Vamos agora ver o progresso que três deles fizeram em direção à sua solução. Os três cuja contribuição ao nosso tópico consideraremos são Francisco de Vitória (1493-1546), Melquior Cano (1505-1560), e Domingo Soto (1524-1560). Esses homens estavam lecionando na Universidade de Salamanca durante o primeiro meio século da colonização espanhola da América Latina. Eles estavam cientes do fato de que havia um grande número de pessoas na América que nunca ouviram a mensagem cristã antes da chegada dos missionários. No entanto, sendo fiéis seguidores de St. Tomás, como todos os dominicanos seriam, eles tiveram que lidar com seu ensino que não havia salvação sem a fé explícita em Cristo, e sem pelo menos o desejo de ser batizado e entrar na igreja (...)

O primeiro desses teólogos dominicanos [Francisco de Vitória] na verdade não ofereceu uma nova solução para o problema de como Deus teria providenciado a salvação dos nativos da América antes que os missionários chegassem para pregar o evangelho a eles. Ele continuou a sustentar, com São Tomás, que na era do Novo Testamento não havia salvação sem fé explícita em Cristo. Sobre a questão da vontade salvífica de Deus em relação às pessoas que não tiveram chance de ouvir o evangelho, ele seguiu a solução que São Tomás deu. Eis como Vitoria afirmou:

“Quando postulamos a ignorância invencível sobre o tema do batismo ou da fé cristã, não se segue que uma pessoa possa ser salva sem o batismo ou a fé cristã. Os aborígenes, a quem nenhuma pregação da fé ou religião cristã veio, serão condenados pelos pecados mortais ou pela idolatria, mas não pelo pecado da incredulidade. No entanto, como São Tomás diz, se eles fazem o que podem, acompanhado por uma boa vida de acordo com a lei da natureza, é consistente com a providência de Deus que ele irá iluminá-los em relação ao nome de Cristo". (De Indis et de Iure Belli Relectiones, ed. E. Nys, tr. J.P. Bates (The Classics of International Law), Washington, 1917, p. 142.) (F.A Sullivan, p. 69-70)

A solução de Francisco era a mesma de Aquino. Os indígenas teriam uma revelação privada que lhes permitiria responder positivamente ao Evangelho. Fé explícita continuava necessária. Sullivan comentou a respeito da solução de Cano:

Ele [Cano] concluiu que seria mais razoável acreditar que tais pessoas teriam recebido iluminação suficiente para fazer um ato de fé em Deus, como descrito em Hebreus 11: 6, a qual, como São Tomás ensinara, implicitamente continha a fé em Cristo como mediador da salvação. Desta linha de raciocínio ele concluiu que uma fé meramente implícita em Cristo deveria ter sido suficiente para justificar as pessoas na América que haviam "feito o que estava em seu poder" para manter a lei natural. (F.A Sullivan, p. 74)

Cano apresentou alguma inovação, pois agora bastava a fé em Deus para que alguns fossem salvos. Todavia, a manifestação de fé explícita continuava indispensável e a iluminação interior proposta por Aquino continuava a vigorar. Soto, por sua vez, apresentaria solução semelhante à de Cano:

Soto concluiu que a fé implícita em Cristo, que São Tomás reconheceu como suficiente para a salvação dos gentios que viveram antes de Cristo, também deveria ser reconhecida como tendo sido suficiente para a salvação do povo do novo mundo durante os séculos anteriores ao evangelho ser pregado a eles. (Opera, ed. Cologne, 1678, pp. 753ff) (F.A Sullivan, p. 76)

Sullivan traz a posição de Albert Pigge (1490-1452), que escreveu a obra “Do Livre Arbítrio do Homem e a Divina Graça” contra a doutrina da predestinação defendida por Calvino. Pigge continuava a manter a solução tradicional de que os povos americanos poderiam receber alguma iluminação e expressar fé explícita em Deus e assim serem salvos. Contudo, ele foi o primeiro a aplicar este mesmo raciocínio a um mulçumano:

Até onde pude constatar, ele [Pigge} foi o primeiro pensador cristão a sugerir que a falta de fé cristã de um muçulmano poderia realmente ser inculpável e que ele poderia ser salvo por sua fé em Deus (...) Parece claro que foi o estímulo de ter que refletir sobre o estado de ignorância inculpável dos povos recém-descobertos da América e das Índias, e sua conclusão de que para eles a fé em Deus, sem fé em Cristo, deveria ser suficiente para salvação, que levou Albert Pigge a tirar uma conclusão que, até onde eu sei, nenhum cristão havia traçado antes dele: que os muçulmanos também podiam ser inculpavelmente ignorantes da verdade da religião cristã, e podiam encontrar a salvação através de sua fé sincera em Deus (...) É uma impressionante coincidência que esta obra do teólogo católico Albert Pigge tenha sido publicada exatamente cem anos depois do Concílio de Florença ter declarado que os católicos devem acreditar que qualquer pessoa que morresse fora da Igreja Católica estaria inevitavelmente condenada ao fogo eterno do inferno. (F.A Sullivan, p. 80-81)

Pigge continuou a adotar a solução tomista para os índios americanos. A inovação seria a aplicação da mesma solução para os mulçumanos. Sullivan reconhece que Pigge estava inovando e contradizendo o Concílio de Florença. Avançando um pouco, chegamos ao século XVI, quando ocorreu a reforma protestante e a contrarreforma. Sullivan atesta como os reformadores estavam de acordo com o ensino tradicional. Martinho Lutero declarou em seu Catecismo:

Pois onde Cristo não é pregado, não há o Espírito Santo para criar, chamar e reunir a Igreja Cristã, e fora dela ninguém pode ir ao Senhor Cristo (...) Mas fora da Igreja Cristã (isto é, onde o Evangelho não existe) não há perdão e, portanto, não há santidade. (Large Catechism, II, 45, 56)

Isto explica porque o Concílio de Trento não contém o slogan “Fora da Igreja não é salvação”. Esta era uma doutrina já estabelecida na igreja que não fora questionada pelos reformadores. Como o concílio ocorreu em meio às controvérsias da Reforma, não haveria porque reafirmar uma doutrina não contestada. Contudo, Trento afirmaria doutrinas que são absolutamente incompatíveis com a ignorância invencível como a necessidade da fé e do batismo (ainda que de desejo) para a salvação:

A causa instrumental [da justificação] é o sacramento do batismo, que é o sacramento da fé, sem o qual [fé] ninguém jamais foi justificado. (DS 1529)

Após a promulgação do Evangelho, essa transição [do estado em que o homem nasce filho do primeiro Adão até o estado de adoção como filho de Deus] não pode ocorrer sem o banho da regeneração ou do desejo dele, como está escrito: “A menos que alguém nasça da água e do Espírito, ele não pode entrar no reino de Deus (Jo 3: 5)”. (DS 1524)

Um expediente comum na teologia católica é reinterpretar os concílios passados a luz do ensino atual para assim dirimir as contradições. Obviamente esta solução comete o erro crasso de não considerar o que a fonte originalmente diz - o espírito do Concílio e de seus membros. Dessa forma, além dos textos conciliares, temos as ideias dos teólogos da época que expressam o pensamento do período. Nenhum exemplo poderia ser melhor do que Roberto Belarmino. Ele foi um grande opositor da Reforma e trouxe pensamentos claros a respeito do tema em questão:

Dizemos “em algum momento e lugar”, porque aqui não determinamos se tal ajuda está disponível em todos os momentos da vida de uma pessoa (...) Estamos dizendo que não há ninguém que, em algum momento, não receba tal ajuda. Então, nós dizemos “mediata ou imediatamente”, porque acreditamos que aqueles que têm o uso da razão recebem inspirações sagradas de Deus, e assim, sem outra mediação, eles têm graça capacitadora e se cooperarem com isso, eles podem ser dispostos para a justificação e, eventualmente, chegarem à salvação. (De gratia et libero arbitrio, lib. 2, cap. 5, ed. Giuliano, vol. 4, p. 301)

Belarmino então apresenta a objeção a sua posição:

O começo da salvação é a fé (...) Mas muitos não têm ajuda suficiente de Deus para vir à fé, uma vez que o evangelho ainda não foi pregado a eles e muitos outros no passado não tiveram tal ajuda, visto que a pregação do evangelho ainda não havia chegado até eles.

Ele então responde:

Este argumento prova apenas que nem todos recebem a ajuda pela qual podem ser imediatamente convertidos e acreditar, mas não prova que algumas pessoas simplesmente não têm ajuda suficiente para salvação. As pessoas a quem o evangelho ainda não foi pregado podem saber através da criação que Deus existe, e então elas podem ser movidas pela graça preveniente a crer que Deus existe e recompensa aqueles que o buscam. A partir de tal fé elas podem ser dirigidas e ajudadas por Deus ao caminho da oração e das obras de caridade, e desta forma podem obter através da oração uma maior luz da fé, que Deus irá comunicar facilmente a eles, por si mesmo, ou através da mediação de anjos ou homens. (Ibid)

Belarmino expressa a ideia tomista. O não evangelizado seria levado diretamente por Deus, ou até mesmo através de anjos ou homens a uma “maior luz da fé”. Esta maior luz da fé começaria apenas com a revelação da natureza, mas se desenvolveria até um estágio de maior conhecimento. É um fato que este importante teólogo e doutor da Igreja está apenas expressando a doutrina católica de seu tempo – ninguém poderia ser salvo estando ignorante a respeito da fé. Sullivan comenta:

(...) é certo que Belarmino sustentou, juntamente com São Tomás, que a fé explícita em Cristo era necessária para salvação de todos na era neotestamentária. (Sullivan, p. 91)

Para concluir, é preciso dizer que é impossível afirmar que Roma não alterou seu ensino doutrinal quando se leva em conta o atual ensino a respeito da salvação fora da Igreja. Roma mudou radicalmente o significado do slogan e abarcou ideias incompatíveis com seu ensino histórico.