O apologista católico Rogério
Fernandes publicou mais um artigo respondendo meu último artigo sobre Agostinho
e Papado (aqui).
Irineu
de Lyon (Séc. II) – Uma visão geral
Ele começa o artigo citando
Irineu de Lyon. Eu já tratei em detalhes sobre testemunho deste pai de Igreja.
Já foi demonstrado com amplo aporte acadêmico que Irineu desconhecia totalmente
qualquer ideia papal (a controvérsia pascal é prova inequívoca disto) e sua noção
sobre sucessão apostólica é radicalmente distinta daquela hoje ensinada por
Roma (seção sobre Irineu).
O apologista também usa o
testemunho de Irineu para afirmar que já havia no período deste autor uma
divisão tripartite em Roma: bispo monárquico, presbíteros e diáconos. Irineu
escreveu na segunda metade do séc. II, período em que os historiadores da
Igreja concordam que o episcopado monárquico já havia emergido em Roma. No
entanto, há um consenso acadêmico sobre o fato de que Roma não teve bispos
monárquicos até o fim da primeira metade do séc. II, com base em autores mais
antigos do que Irineu (Inácio de Antioquia, Clemente de Roma e Pastor de
Herma). Eu já publiquei artigo sobre a ausência do episcopado monárquico em
Roma (aqui)
e também sobre o fato de que este tipo de estrutura organizacional não foi
instituída pelos Apóstolos (aqui e aqui).
Além disso, o conceito de tradição de Irineu não ajuda em nada a causa
católica. O que Irineu chama de tradição é radicalmente distinto dos vários
conceitos de tradição hoje vigentes na Igreja Romana. Muitas das distintas
doutrinas romanas estão ausentes ou são incompatíveis com as doutrinas de
Irineu (aqui).
A tradição de Irineu nada mais era do que um sumário de doutrinas claramente
expostas na Escritura. Tratava-se da regra da fé que daria origem ao que hoje
conhecemos como credo apostólico.
O apologista relacionou o protestantismo ao gnosticismo,
quando, claramente o conceito de tradição historicamente defendido por Roma é
muito semelhante ao argumento gnóstico combatido por Irineu. O bispo de Lyon
apelava a uma tradição pública, universalmente pregada pelas Igrejas e
claramente exposta nas Escrituras. Já os gnósticos apelavam a uma tradição
secreta, não verificável nas Escrituras e que apenas uma corrente especial de
sucessores teria acesso. Qual dos dois conceitos está mais próximo da tradição
católica romana? Pegue o caso da Assunção de Maria. Não há o mínimo rastro de
apostolicidade desta tradição, e as primeiras fontes a citá-la são de um
período muito posterior aos apóstolos e ainda eram heréticas (aqui).
Mesmo que esta tradição não tenha sido pública, nem universalmente defendida
pela Igreja, Roma afirma que é um dogma de fé. Tomemos o fato de Roma ter
redefinido o conceito de tradição (aqui).
O conceito de tradição de Irineu é totalmente incompatível com a teoria do
desenvolvimento da doutrina, conforme defendida por Roma. Segundo este
conceito, um magistério supostamente infalível e guiado pelo Espírito Santo
como o de Roma pode deixar a Igreja durante séculos ou até milênios no escuro,
até que finalmente se descubra o correto significado da doutrina. Já para Irineu,
a tradição da Igreja era historicamente verificável e rastreável até as fontes
apostólicas, sempre com o mesmo sentido. Roma defendeu no passado a ideia de
que a tradição era um suplemente doutrinário às Escrituras, ou seja, havia doutrinas que foram ensinadas
apenas oralmente pelos Apóstolos. Embora este argumento seja cada vez menos
abraçado pelos teólogos católicos, ainda é comum na apologética popular.
Contudo, o bispo de Lyon acreditava numa tradição não materialmente distinta da
Escritura.
O artigo católico, na incapacidade de citar autores acadêmicos
que apoiem suas teses papistas, traz citações irrelevantes. Ele trouxe um autor
que implicitamente afirma que o episcopado monárquico só se tornou
universalmente difundido nos tempos de Irineu. Isto implica que esta estrutural
eclesial não estava presente em todas as igrejas desde os apóstolos.
Pelo final desse século, o monoepiscopado,
também chamado “episcopado monárquico”, já era difundido universalmente,
mas não ainda padronizado. (Fonte)
Este é um problema central
para o papado. Se não há uma sucessão de bispos monárquicos que remontam até o
apóstolo Pedro, o argumento papista desmorona. Eu recomendo fortemente a obra
seminal de Peter Lampe que traz inúmeras evidências históricas sobre a Igreja
Romana dos primeiros dois séculos e atesta que a estrutura eclesial de Roma era
formada por uma rede de igrejas domésticas que não possuía um cabeça central
(aqui). Se o apologista católico
deseja realmente desafiar minhas teses, ele precisa ser menos preguiçoso e
interagir com o que já escrevi a respeito. Quem ler os artigos linkados observará
que ele não aborda nenhum dos vários argumentos apresentados. Acredito que ele
sequer os tenha lido.
A fuga
dos termos do debate
Desde o início , ele
tem insistentemente fugido dos termos que ele inicialmente atacou. E como
dizem, quando você precisa mudar os termos de um debate, isto quer dizer que
você já perdeu. Como já demonstrei nos
meu artigos anteriores (aqui, aqui e aqui),
ele iniciou estes debates respondendo a um artigo sobre Agostinho e o Papado,
no qual defendi que o bispo de Hipona não acreditava que o bispo romano exercia
uma primazia jurídica sobre a Igreja Universal. Na medida em que o debate se
desenvolveu, ele passou a defender que não é bem assim. Não é que o bispo de
Hipona e outros pais da Igreja como Irineu acreditavam que o bispo de Roma
tinha primazia jurídica sobre toda a Igreja. Eles acreditavam apenas num
“primado”. O primado que Irineu atribuiu a Roma, a qual abordei em detalhes nos
artigos linkados, não envolvia qualquer jurisdição de Roma sobre as
demais Igreja. E as razões dadas por Irineu para esse primado são distintas
daquelas afirmadas pelo bispo de Roma para defender o papado.
Contudo, como o primado de
honra dado a Roma por outras Igrejas se constitui numa prova da ausência e não
da presença do papado, ao apelar a isto, os apologistas católicos estão
refutando a si mesmos. Se você precisa utilizar uma ideia incompatível e
distinta do papado para defender esta doutrina, isto quer dizer que o argumento
é bem frágil. O artigo do Rogério apela a crença na sucessão apostólica por
parte de Agostinho para apoiar sua tese, porém, o papado é um tipo específico
de sucessão, a qual o bispo de Hipona não defendeu. Como disse em artigos
anteriores, há duas premissas fundamentais para a doutrina papal, a qual o católico
nem se esforça para evidenciar:
(1) Pedro
tinha primazia jurídica sobre os demais apóstolos e toda a Igreja;
(2) O
bispo de Roma herdou esta primazia jurídica de forma exclusiva. Por isso, ele
tinha o direito de governar de forma soberana toda a Igreja.
A
relevância da ausência do papado nas fontes primitivas
No entanto, o máximo que o Rogério consegue é apelar a um
primado que não envolvia nenhuma das duas premissas acima. Os pais da Igreja
defenderam diferentes ideias de sucessão apostólica. Porém, nem Irineu nem
Agostinho defendeu o tipo especial de sucessão que era o papado, sendo esta
doutrina não somente ausente de seus escritos, mas incompatível com suas
eclesiologias em geral. Ainda, estes autores escreveram bastante a questão da
autoridade da Igreja (Agostinho mais ainda do que Irineu). Será que, mesmo num
período de quase 400 anos após os Apóstolos, Agostinho teria se esquecido de
mencionar a doutrina fundamental do papado? Eu já traduzi um artigo sobre a
relevância da ausência do papado em fontes primitivas (aqui).
Pense em quão relevante seria o apelo ao infalível bispo romano para defender a
Igreja das heresias. Se Cristo instituiu um bispo em particular como a rocha de
toda a Igreja, nós sequer estaríamos aqui discutindo esta questão. Eles teriam
apelado a autoridade infalível do papa de forma exaustiva como os católicos
modernos fazem. A razão pela qual eles não mencionam esta ideia, que seria o
fundamento da Igreja Cristã, é porque sequer existia em suas mentes.
A autoridade da Igreja foi bastante discutida pelos pais da
Igreja e pelos escritos do Novo Testamento. Qual a probabilidade de que eles
deixassem de abordar uma doutrina tão fundamental e simples? A ideia de que um
bispo governaria monarquicamente toda a Igreja não requer grandes refinamentos
filosóficos e poderia ter sido claramente exposta nas inúmeras controvérsias
teológicas da Igreja Antiga. Os autores cristãos, além de não mencionar esta
doutrina, desenvolveram eclesiologias incompatíveis com a ideia de papado. Há
vários artigos neste blog que atestam isso.
Irineu,
o primado de Roma e a hierarquia de autoridades
Sobre Irineu e o primado de Roma, vou deixar que William La
Due – um teólogo católico romano formado pela Universidade Gregoriana de Roma e
doutor em lei canônica pela Pontifícia Universidade Laterana explique:
Uma das mais celebradas e discutidas passagens
da obra [Contra as Heresias] lida com a posição da Igreja Romana na Igreja
Universal (...) Irineu estava destacando a importância da cadeia de sucessão
nas Igrejas apostólicas para mostrar que a doutrina ensinada nestas comunidades
era precisamente o que havia sido transmitido pelos próprios apóstolos. Ele
afirma:
Mas visto que seria coisa bastante longa
elencar, numa obra como esta, as sucessões de todas as igrejas,
limitar-nos-emos à maior e mais antiga e conhecida por todos, à igreja fundada e constituída em Roma,
pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e Paulo, e, indicando a sua tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada
aos homens, que chegou até nós pelas sucessões dos bispos, refutaremos todos os
que de alguma forma, quer por enfatuação ou por vanglória, quer por cegueira ou
por doutrina errada, se reúnem prescindindo de qualquer legitimidade. Com
efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua origem
mais excelente, toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque
nela sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos
apóstolos (...) Podemos ainda
lembrar Policarpo, que não somente
foi discípulo dos apóstolos e viveu familiarmente com muitos dos que tinham
visto o Senhor, mas que, pelos próprios apóstolos, foi estabelecido bispo
na Ásia, na Igreja de Esmirna (...) E é disso que dão testemunho todas as
Igrejas da Ásia e os que até hoje sucederam a Policarpo, que foi testemunha da
verdade bem mais segura e digna de confiança do que Valentim e Marcião e os
outros perversos doutores (...) Também a
igreja de Éfeso, que foi fundada por Paulo e onde João morou até os tempos de
Trajano, é testemunha verídica da tradição dos apóstolos. (Contra as
Heresias 3:3:2-4)
Na verdade, é compreensível que esta passagem
tenha confundido os estudiosos por séculos! Aqueles que queriam encontrar nela
uma evidência do primado romano foram capazes de interpretá-la dessa maneira.
No entanto, há muita ambiguidade aqui e deve-se ter cuidado para não exagerar a
evidência (...) De acordo com o eminente historiador Karl Baus, a ideia de
Irineu pode ser explicada da seguinte forma:
A tradição apostólica é encontrada mais
certamente nas comunidades que receberam uma fundação apostólica direta. Há
várias delas e cada uma delas tinha
mais poder do que outras comunidades cristãs, com fundamento em sua origem
apostólica, para se saber a verdade. Porém, Roma se destaca entre as sedes apostólicas, porque como era
reconhecido, Pedro e Paulo foram seus fundadores. Então Irineu sumariza que
com tais igrejas de fundação apostólica cada Igreja individual deveria
concordar, porque este tipo de Igreja havia sempre preservado a tradição
apostólica. Uma dessas Igrejas era a romana, a qual estava numa posição
favorável para estabelecer a tradição apostólica, mas não de forma exclusiva.
A interpretação de Karl Baus é a mais fiel ao
texto e não presume ler no texto um significado que não está lá. De fato, ele
nem superestima nem subestima a posição de Irineu. Para ele, são as Igrejas
de fundação apostólica que dão uma maior autoridade ao ensino e doutrina
autêntica. Entre elas, Roma, com sua dupla fundação apostólica, certamente
ocupava um importante lugar. No entanto, todas as Igrejas apostólicas
desfrutavam do que ele chamou de “preeminente autoridade” em questões
doutrinais. (William La Due, The Chair Of Saint Peter
[Maryknoll, New York: Orbis Books, 1999], p. 28-29)
O argumento de Irineu levava em conta a tradição da Igreja
de Roma, que por ter contado com a pregação dos Apóstolos Pedro e Paulo,
ocupava um lugar especial entre as sedes apostólicas. Contudo, esta mesma
tradição poderia ser verificada nas outras igrejas apostólicas. Na mesma parte,
ele cita Policarpo e a Igreja de Éfeso. O argumento não implica em nenhuma
autoridade jurídica sobre outras Igrejas, mas numa autoridade da tradição
daquela Igreja que era pública e verificável e compartilhada por outras
Igrejas.
É aqui que ocorre o erro fatal do argumento católico. Todo
o argumento gira em torno de uma tradição específica e historicamente situada
no século II. É com esta tradição que toda a Igreja deveria concordar. O
problema se coloca: o que Roma define hoje como tradição é radicalmente
distinto e incompatível com o que Irineu defendeu como tradição. Irineu não
estava defendendo os dogmas marianos, a infalibilidade papal ou outras
doutrinas que Roma acrescentou durante os séculos. Irineu nunca afirmou
qualquer infalibilidade da Igreja Roma. Ele não disse que o resto da Igreja
deveria concordar com Roma para todo sempre porque esta era o oráculo infalível
da fé. Na verdade, ele pode ser contado como testemunha de como as coisas
mudaram, na medida em que cita Roma e Éfeso como Igrejas que ensinavam a mesma
doutrina. Todavia, estas Igrejas sequer estão em comunhão nos dias de hoje, e
uma das razões foi a tentativa romana de impor o primado jurídico sobre as
Igrejas Orientais.
O argumento de Irineu aplica-se somente a Igreja de Roma de
seus dias. A única forma de torna-lo válido para os séculos seguintes seria
provando que Roma manteve sua tradição inalterável ao longo dos séculos, o que
é uma afirmação absurda que nenhum historiador sério da Igreja defenderia.
Acredito que nem o apologista defenda isto, uma vez que abraça a tese
modernista de Newman. Estes contra-argumentos são expandidos por mim AQUI
(Seção sobre Irineu).
La Due também expressa o consenso acadêmico a respeito da estrutural eclesial
romana mais primitiva:
A pesquisa mais autoritativa indica que,
diferentes de outras sedes como Antioquia na Síria, a sede romana não
possuía bispo monárquico até a metade do século II. Até este tempo, a
igreja na capital do império foi governada por um colégio de presbíteros ou
presbíteros-bispos. (p. 1)
Ele explora no capítulo (p. 1-19) os diferentes modelos de
estrutura eclesiástica apresentados pelos documentos do N.T. Nenhum desses
modelos envolvia a existência do bispo monárquico. O estudioso também explora
as evidências históricas da ausência desta estrutura em Roma (p. 25-32). O
apologista, como de costume, traz a opinião do erudito Jaroslav Pelikan de
forma descontextualizada. Na resposta anterior, ele usou vários autores protestantes,
inclusive Pelikan, totalmente fora do contexto. Eu trouxe o contexto das
respectivas obras e evidenciei que os autores em questão contradiziam
frontalmente as teses do apologista (aqui).
Vejamos a parte destacada da citação:
A principal entre essas em autoridade, e com
prestígio, era a igreja de Roma, na qual a tradição apostólica
compartilhada por todas as igrejas de todos os lugares era preservada. (Jaroslav
Pelikan. A tradição cristã: uma História do desenvolvimento da doutrina. O
surgimento da tradição católica. p. 133)
O contexto expandido:
Tanto a unidade doutrinal quanto a continuidade
apostólica foram contrastadas com os ensinamentos dos gnósticos. Ireneu falou
da “variedade deles” e das “doutrinas e sucessões deles” (Iren. Her. 3. pr.
[Harvey 2:1]), mas alegava que a igreja, dispersa pelo mundo e falando muitas
línguas, tinha um só coração e uma só mente, mantendo a unidade da fé (Iren.
Her. 1.10.2 [Harvey 1:92-94]). Seu argumento de que a tradição apostólica
fornecia a interpretação correta do Antigo e do Novo Testamentos e que a
Escritura provou a correção da tradição apostólica, de algumas maneiras, era um
argumento circular. Mas, em pelo menos duas maneiras, esse argumento escapou
dessa circularidade. Uma era a identificação da tradição com “o evangelho”,
o qual servia como uma norma do ensinamento apostólico. A outra era o apelo
para as igrejas de fundação apostólica como os afiançadores da continuidade com
os apóstolos. Pois quando nem a Escritura nem a tradição conseguiam
convencer os opositores, Ireneu insistia que estava no “poder de todos em toda igreja
que quisesse ver a verdade contemplar claramente a tradição dos apóstolos
totalmente manifestada em todo o mundo; e tínhamos condição de avaliar os que
tinham sido instituídos bispos das igrejas pelos apóstolos e de [demonstrar] a
sucessão desses homens para o nosso tempo” (Iren. Her. 3.3.1 [Harvey
2:8-9]). A principal entre essas em autoridade, e com prestígio, era a
Igreja de Roma, na qual a tradição apostólica compartilhada por todas as
igrejas de todos os lugares foi preservada. A fundação apostólica e a
sucessão apostólica eram outro critério da continuidade apostólica.
Pelikan está afirmando o mesmo que La Due. Roma
compartilhava de uma tradição preservada em outras Igrejas que também possuíam
a mesma preeminência de autoridade de Roma. O que tornava Roma especial era a
presença de Pedro e Paulo. Não há qualquer primazia jurídica (a premissa papal)
no argumento de Irineu, nem isto está sendo defendido por Pelikan. O apologista
comentou:
Vale notar que, para Santo Irineu, a autoridade é
definida porque para combater os hereges as Escrituras não bastavam.
Santo Irineu de Lyon é um obstáculo intransponível aos protestantes:
Ele então traz a citação de um apologista católico sem
qualquer valor para a discussão e prossegue:
A destruição das relíquias de Santo Irineu tem um
valor simbólico de contestação pela nova ordem calvinista que negava o valor da
tradição e autoridade da Igreja.
Observem que ele ocultou o seguinte trecho da citação de
Pelikan:
Pois quando nem a Escritura nem a tradição conseguiam
convencer os opositores, Ireneu insistia que estava no “poder de todos em
toda igreja que quisesse ver a verdade contemplar claramente a tradição dos
apóstolos totalmente manifestada em todo o mundo (...)
Eu já discuti a tradição de Irineu e a doutrina da Sola
Scriptura (aqui).
O primeiro recurso de Irineu para refutar os gnósticos foi a Escritura, a qual
considerava a autoridade suprema, bem como suficiente materialmente e
formalmente. Eles então respondiam afirmando que a Escritura não era clara e
que tiveram acesso às doutrinas secretas a partir dos próprios apóstolos. Irineu
passava então a apelar a tradição que era o ensino público e consensual da
Igreja desde o princípio como um elemento de prova. Os gnósticos também não
aceitaram e foram inclusive os primeiros a produzirem suas próprias listas de
sucessão de mestres. Foi aí que os pais da Igreja passaram a produzir as listas
de mestres da Igreja cristã para refutar este último argumento dos gnósticos. A
eclesiologia de Irineu comportava uma hierarquia de autoridades da qual o
papado não fazia parte.
Não há incompatibilidade entre uma hierarquia de
autoridades e a doutrina da Sola Scriptura. Esta afirma que a Escritura é a
única regra infalível de Fé. Irineu também afirma a suficiência formal e
material das Escrituras (documentação nos artigos linkado acima). Diferente do espantalho católico, a Sola Scriptura
não exclui a autoridade da Igreja ou da Tradição, mas afirma que a Escritura é
a autoridade final. O que Irineu fez, ao apelar a outras autoridades, é
basicamente o trabalho de qualquer apologista de respeito. Ele não considerava
a Escritura insuficiente, mas no trabalho de convencer seu opositor, precisava
apelar ao mesmo tipo de autoridade que eles. O mesmo ocorre nos debates entre
católicos e protestantes. Ao refutar o catolicismo romano, nos apelamos aos
pais da Igreja, aos concílios, aos próprios textos do magistério romano. Isto
implicaria que colocamos essas fontes em pé de igualdade com as Escrituras?
Obviamente não. De forma semelhante, o católico romano apela a historiadores
pagãos para atestar a existência de Jesus. Isto implicaria que as fontes pagãs estão
no mesmo patamar de autoridade que o N.T? A doutrina protestante comporta a
validade de outras autoridades como a tradição, os concílios da Igreja, a
razão, a história. O que a distingue é que a infalibilidade é atribuída apenas
à Escritura porque somente esta foi inspirada pelo Espírito Santo. O apologista também comentou:
Neste texto de Pelikan fica evidente como surge o
conceito de tradição e como ele é associado a apostolicidade e o primado
Romano-Petrino, que são indissociáveis. Portanto, o conceito de
apostolicidade é referente à questão de autoridade emanado dele.
Primeiro, Pelikan se refere ao conceito de tradição de
Irineu, que não é o mesmo conceito defendido pelo Rogério, uma vez que ele abraça
a teoria modernista de Newman. Segundo, não há em Irineu qualquer primado
Petrino. Quando ele se refere a posição especial de Roma, sempre destaca o
papel de Pedro e Paulo. A citação trazida por ele atesta isto:
Até o final do século II, a literatura Cristã
mencionava tanto Pedro como Paulo como fundadores e organizadores da igreja em
Roma. Depois, o
foco e a ênfase se voltaram para Pedro. Assim, Tertuliano de Cartago
(AD.150-230) mencionou que algumas ‘igrejas apostólicas’ possuíam registros de
sucessão episcopal e a igreja romana possuía registros provando que Clemente
tinha sido ordenado por Pedro para ser seu sucessor como bispo de Roma. Escritores posteriores honram de forma
especial por ter sido o fundador das congregações e da sucessão episcopal de
Roma. […] (Denis Kaiser, Leo the Great on the Supremacy of the
Bishop of Rome. Andrews University Seminary Student Journal, Volume 1, Number 2
Fall 2015).
Sobre esta fonte, que pode ser vista aqui,
o apologista comenta:
Para defender minha tese uso bibliografia e
fontes variadas. Começo com Denis Kaiser, PhD; que escreve para o artigo de uma
faculdade adventista americana, portanto, nenhum pouco filocatólica.
Não há nada na fonte citada que referende as teses do
Rogério. O autor em questão não afirma que havia em Irineu a visão de que Roma
governava outras Igrejas. Pelo contrário, ele cita nas notas de rodapé obras
que referendam a visão padrão de que Irineu não atribui a Roma qualquer
autoridade de natureza jurídica sobre a Igreja Universal. O artigo citado é
sobre as opiniões do papa Leão I (séc. V), que é de fato o primeiro a expressar
em termos claros os argumentos que iriam sustentar o papado. O autor afirma nas
conclusões:
Então ideias eclesiásticas e imperiais
convergiram para formar o fundamento monárquico do papal e do trabalho do bispo
de Roma. Enquanto Leão tentou impor essa autoridade em todas as questões
eclesiais e seculares, suas tentativas ocasionalmente encontraram resistência, como
a sua visão do poder episcopal do sucessor de Pedro, que nem sempre foi
compartilhada por todos os bispos ou governantes seculares, especificamente não
no Oriente (...) Este estudo destaca as significativas adições que os
pontos de vista de Leão, o Grande, fizeram à lógica dos bispos e líderes da
igreja anteriores em relação ao poder e autoridade do bispo romano. Enquanto
ele forneceu a justificativa para o absoluto e completo domínio universal do
episcopado romano, não foi senão séculos mais tarde que essa autoridade pôde
realmente ser executada pelo papado.
As pretensões papais não foram completamente exercidas nem
no séc. V, tão pouco no séc. II. Após muita resistência, só seriam impostas no
Ocidente. Já o Oriente nunca aceitou este tipo de autoridade e de fato não
aceita até hoje. Ainda, os escritos de
Irineu são do período até o fim do séc. II (período em que Paulo e Pedro são
citados com igual importância). Isto evidencia a ausência da doutrina papal no
pensamento de Irineu. Caso contrário, ele destacaria Pedro e não o colocaria em
igualdade com Paulo. Terceiro, a primazia Romana de Irineu é incompatível com a
doutrina do papado. Irineu diz
Os bem-aventurados apóstolos que fundaram e
edificaram a Igreja transmitiram o governo episcopal a Lino, o
Lino que Paulo lembra na carta a Timóteo. (Contra as Heresias
3:3:3)
Além de colocar Paulo e Pedro em pé de igualdade, afirma
que Lino foi o primeiro bispo de Roma e não Pedro. Ele sempre coloca os bispos
de Roma como sucessores dos apóstolos no plural e nunca como sucessores de
Pedro exclusivamente. O renomado eclesiologista católico romano – Francis Sullivan
- comenta:
De acordo com Irineu, Pedro e Paulo, não
somente Pedro nomeou Lino como o primeiro na sucessão dos bispos de Roma. Isso
sugere que Irineu não pensava em Pedro e Paulo como bispos ou de Lino e aqueles
que o seguiram como sucessores de Pedro mais do que de Paulo. Irineu viu
uma distinção clara entre apóstolos e bispos, embora ele entendesse bispos como
os "sucessores" a quem os apóstolos entregaram o seu ofício de
ensino. (Sullivan F.A. From Apostles to Bishops: the development
of the episcopacy in the early church. Newman Press, Mahwah (NJ), 2001, p. 149)
Irineu provavelmente derivou
sua lista de um autor mais antigo chamado Hegésipo. Sullivan diz:
O que eu disse sobre a lista de Hegésipo também
se aplica à de Irineu, a saber, dado o fato desses homens como os principais
líderes e professores entre os presbíteros romanos. Em que momento os
principais presbíteros em Roma começaram a ser chamado de "bispos"
permanece desconhecido. (Sullivan, p. 150)
Hegésipo foi um autor cristão que viajou a Roma e lá
compilou uma lista de bispos. Infelizmente não temos a íntegra das obras de
Hegésipo, mas alguns extratos constam da História da Igreja de Eusébio.
Sullivan atesta, em consonância com a historiografia padrão, que a lista de
Hegésipo não era de bispos monárquicos, mas de presbíteros destacados. Peter
Lampe, autor da obra mais reconhecida na academia sobre o cristianismo em Roma
nos primeiros séculos, afirma sobre Hegésipo:
Não está em causa de nenhuma maneira provar uma
sucessão de bispos monárquicos dos apóstolos até o presente. O
que ele retrata em sua mente eram cadeias de portadores de crenças corretas,
ele tinha a opinião de que poderia reconhecer tal afirmação também em Roma. Mais
do que isso não está no texto. (Christians at Rome in the
First Two Centuries: From Paul to Valentinus. A&C Black, 2006, pp. 404)
Quasten, um estudioso patrístico católico romano, vai na
mesma direção:
As palavras de Eusébio 'Γενομενος δε εν Ρωμη,
διαδοχην εποιησαμην μεχρις Ανικητου' não indicam que Hegésipo compilou uma
lista dos bispos de Roma, na ordem da sua sucessão, mas que em sua
cruzada contra as heresias de seu tempo, visitou Corinto, Roma e outras
cidades, a fim de averiguar a διαδοχην, ou seja, a tradição ou a preservação da
verdadeira doutrina. (Johannes Quasten, Patrology Volume I (Ave
Maria Press: Notre Dame, 1976), 286)
Controversamente os protestantes fazem uma
distinção de primado romano e de primado petrino. Há uma confusão de DISCURSO
aqui, pois não se pode pensar que esses
são opostos, visto que são complementares. Mesmo porque os primeiros cristãos
não diferenciavam isso,
Que tipo de primado? Novamente, ele usa as palavras sem
defini-las. O Rogério é adepto da filosofia de Orkut “quem se define se
limita”. Os autores protestantes e outros acadêmicos afirmam que a primazia de
Pedro era apenas de honra e não dava ao apóstolo qualquer autoridade singular
sobre os outros. E não há nenhuma complementaridade com a primazia de Roma
aqui. Como já visto, Irineu não atribuiu a Pedro primazia (mesmo de honra)
sobre Paulo. Nem todos autores cristãos antigos atribuíram sequer a primazia de
honra a Roma. A primazia de Pedro foi inclusive utilizada para estabelecer a
autoridade da Igreja de Antioquia. Dessa forma, não existe complementariedade
necessária dessas duas ideias, e ainda que houvesse, o máximo que se
conseguiria é uma primazia de honra e não a autoridade jurídica que a doutrina
papal requer.
Contudo, se o artigo é sobre Santo Agostinho não
deveria começar ou forrar exclusivamente de citações deste Santo? Não, pois a
base de um argumento sobre Agostinho está alicerçada nos argumentos de Irineu.
Sem pensar dialeticamente acabamos assumindo os erros de outros autores
motivados ideologicamente: os textos de Irineu vão influenciar toda
cristandade. E o argumento de
apostolicidade vem com o de sucessão apostólica e do primado que são
indissociáveis.
A ideia de sucessão apostólica em Irineu não é igual a de
Agostinho. Irineu estava mais preocupado com a sucessão doutrinária, enquanto
Agostinho com uma sucessão de ordenações. Além disso, os principais teólogos a
inspirarem Agostinho foram Cipriano e Ambrósio, e não Irineu. Em todo o caso, a
eclesiologia do bispo de Lyon vai na contramão da eclesiologia romana. O que o
apologista entende por “primado” não fazia parte da ideia de sucessão
apostólica destes teólogos antigos.
O Imprimatur e a ineficiência
do magistério romano
Sobre o imprimatur gostaria de mostrar uma tabela
ao leitor sobre a falácia usada pelo apologeta: de que a validação de um bispo
é algo que encerra o caso sobre terminada opinião.
Eu gostaria que ele apontasse onde afirmei
que o imprimatur encerrava algum caso. Ele apresenta uma tabela onde é
discriminado o que seria ou não infalível, como se alguém tivesse dito que o
imprimatur era uma manifestação infalível da Igreja de Roma. Esta questão se
deu porque a maioria dos historiadores católicos que apresento tiveram o
imprimatur e/ou nihil obstat em suas obras. O apologista, sem sequer conhecer
as obras, desqualificou os autores apelando a todo o tipo de teoria
conspiratória, apenas porque eles contradizem sua ingênua narrativa da história
da Igreja. Além disso, o nihil obstat afirma que a obra não possui erros morais
ou doutrinais. Agora, quem tem mais autoridade para expressar a visão da Igreja
Romana? O bispo ou o leigo? Com base na tabela que ele trouxe, o bispo em
comunhão com o papa tem autoridade, mas não infalibilidade. Logo o imprimatur
e/ou nihil obstat são declarações eivadas de autoridade. O apologista já
demonstrou por meio de algumas pérolas ter um conhecimento bem limitado. No
texto a qual respondo, ele diz:
Irineu é discípulo direto dos
apóstolos e defende a Primazia Romana.
Como isto seria possível, se Irineu nasceu
por volta do ano 130, quando todos os apóstolos já haviam morrido? Irineu
afirma ter conhecido Policarpo, a qual teria conhecido o Apóstolo João. Embora
esta afirmação histórica provavelmente não seja verdadeira, o máximo que se
poderia dizer é que Irineu conheceu alguém que conheceu um apóstolo. Como isto
o tornaria um discípulo direto? Outra
pérola:
(...) o conceito de trindade,
homousius, consubstancial e etc não seriam válidos. Pq? Surgiram 4 séculos
depois da primeira geração cristã.
É neste ponto que precisamos salvar a
Igreja Romana dos seus próprios apologistas. Pais da Igreja como Atanásio (o
campeão da fé nicena) e a própria Igreja de Roma afirmaram que estes conceitos
são bíblicos, embora o termo em si não pudesse ser achado na Escritura. Mesmo
em relação ao termo, a afirmação é absurda, pois Tertuliano, no início do séc.
III, já utilizara o termo trindade. A cristologia trinitária foi afirmada em
Niceia (325). A primeira geração cristã viveu até o fim do séc. I. “Quatro
séculos depois” daria algo em torno do ano 500. Se tomarmos como referência o
início do ministério de Jesus, daria algo em torno do ano 433. Neste período,
os conceitos em questão já haviam sido amplamente defendidos pelo pais da
Igreja com base na Escritura e definidos pelos Concílio de Niceia (325) e
Constantinopla I (381). No entanto, de acordo com o católico, deveríamos
desprezar a historiografia padrão sobre o papado e levar em conta opiniões de
pessoas que demonstram este nível de conhecimento sobre a história. É como
dizer para o doente procurar um curandeiro para ser benzido com folhas de
arruada ao invés de ouvir a opinião de um médico e tomar os remédios.
Além disso, os apelos à infalibilidade da
Igreja são vazios. As inúmeras contradições do magistério são resolvidas
através de decisões arbitrárias dos católicos leigos. Não há uma lista
infalível de todos os ensinamentos infalíveis do magistério. O leigo precisa
arbitrariamente decidir o que está ou não sujeito ao erro. Esta não é uma
tarefa simples, pois o magistério extraordinário (infalível) nem sempre traz
uma indicação de que determinado ensino é irreformável. Não há consenso sobre
quantos são os concílios ecumênicos. Não há consenso sobre quantos são os
concílios infalíveis. E mais, os teólogos católicos admitem que mesmo num
concílio infalível, nem todas as declarações são infalíveis. Todavia, há
consenso de que o exercício do magistério extraordinário é extremamente raro.
Não seria exagero dizer que nem 1% das declarações do magistério podem ser
classificadas como “infalíveis”. Cardeal Dulles afirma:
Não existe, no
entanto, uma lista canônica de todos os concílios ecumênicos. (Magisterium:
Teacher and Guardian of the Faith (Sapientia Press 2007) p. 68)
E:
Concílios como a Trento e o
Vaticano I muitas vezes dividiram seus decretos em capítulos e cânones, de modo
que os capítulos declararam positivamente o contraditório do que o anátema
nega. O ensino do capítulo é definitivo pelo menos na medida em que contradiz o
anátema no cânon. Mas, além de incluir doutrina definida, os capítulos
geralmente contêm questões explicativas adicionais que não são infalivelmente
ensinadas. (Ibid. p. 68)
E também:
Exceto pela definição da
Imaculada Conceição, há pouca clareza sobre quais declarações papais
antes do Vaticano I são irreformáveis. A maioria dos autores concordaria
com cerca de meia dúzia de declarações. (Ibid.
p. 72)
Dulles demonstra que nem o magistério tem
conclusões exatas sobre o exercício do próprio magistério:
No início do século XX,
houve um debate inconclusivo sobre se a Igreja pode definir
dogmaticamente o que é apenas "virtualmente" ao invés de
"formalmente” revelado. (p. 75).
O católico que acredita poder dispensar o
magistério ordinário (falível) e seguir sua consciência está agindo em
desacordo com a doutrina historicamente defendida pela Igreja Romana. Liberdade
de consciência sempre foi vista como uma “heresia” protestante ou praga da
modernidade. O catecismo afirma:
A assistência divina é também
dispensada aos sucessores dos Apóstolos, quando
ensinam em comunhão com o sucessor de Pedro, e de modo particular ao bispo de
Roma, pastor de toda a Igreja, quando, mesmo sem chegarem a uma
definição infalível e sem se pronunciar de «modo definitivo», no exercício
do seu Magistério ordinário, propõem uma doutrina que leva a uma melhor
inteligência da Revelação em matéria de fé e de costumes. A este
ensinamento ordinário devem os fiéis «prestar o assentimento religioso do seu
espírito» (429), o qual, embora distinto do assentimento da fé, é, no entanto,
seu prolongamento. (CCC 892)
Há também um problema de origem histórica.
Essa distinção entre magistério ordinário e extraordinário é um desenvolvimento
recente (lembremos que a infalibilidade papal só foi declarada no séc. XIX). Os
cristãos das diferentes épocas dificilmente saberiam onde o magistério oficial
estava. Dulles escreve:
No ensino católico moderno, o
termo "Magistério" geralmente designa os professores hierárquicos - o
papa e os bispos que em virtude de seu ofício têm autoridade para ensinar
publicamente em nome de Cristo e julgar oficialmente o que pertence à fé cristã
e o que não pertence. Este conceito do Magistério, embora pareça quase evidente
hoje, é relativamente recente. Antes do século XIX, a dicotomia entre
privado e público, não oficial e oficial não estava tão claramente desenhada. (Ibid.,
p. 35)
Essa é uma das razões pelas quais se
Cristo tivesse deixado um magistério infalível para manter o povo de Deus na
doutrina correta, este não poderia ser o romano.
Como vemos na tabela, o
Imprimatur não diz que a obra é infalível e nem que os textos na obra não são
objetos de debates e estudos, mas é apenas uma licença da Igreja para
publicação.
Já o Nihil Obstat afirma que a obra
não tem erro doutrinal ou moral, logo, as acusações do apologista a autores
como Raymond Brown se mostram infundadas diante da autoridade de sua própria
Igreja. Além disso, como já visto, os católicos não tem obrigação de seguir
apenas o magistério infalível, pois se assim fosse, a Igreja Romana não
exerceria uma autoridade de fato, haja vista que o magistério falível é o que
está sendo exercido na maior parte do tempo. Sem contar que a própria distinção
entre o que falível e infalível já é um problema. O resultado prático é isto.
Há uma Igreja que supostamente deveria manter seus fiéis longe do erro, mas
autoriza e endossa a publicação de livros, que segundos os leigos, estão cheios
de heresia.
Alguns protestantes acham que
tudo que teólogo católico diz é dogmático ou que no catolicismo não pode haver
discordâncias na unidade.
Se a discordância se refere a algo que a
Igreja de Roma declarou como parte do depósito da fé, constitui-se sim numa
quebra da unidade.
Talvez seja porque, dentro do
protestantismo, a discordância leve ao sectarismo, à divisão, e à heresia. Ou
talvez pela teologia protestante ser tão fragmentada que toda hora é preciso
inventar rótulos para identificar alguma corrente de pensamento, mesmo que seja
mínima.
Pelo contrário, o protestantismo é muito
mais tolerante às discordâncias. A teologia protestante não exige que todos
estejam debaixo da autoridade de um mesmo bispo para que sejam considerados
verdadeiros cristãos. Presbiterianos e batistas, por exemplo, se consideram
irmãos de fé, apesar de possuírem divergências doutrinárias. O quadro que ele
pinta não é fidedigno ao catolicismo moderno. O que se vê são grupos
antagônicos, a exemplo de modernistas e sedevecantistas, com interpretações
divergentes sobre os documentos magisteriais, e tantas vezes excomungando-se
mutuamente. O papa Francisco mesmo é algo desse tipo de ataque. Se a existência
de grupos excomungando o papa não é sinal de falta de unidade, o que poderia
ser? Discutir unidade com católicos é geralmente tedioso, pois eles pressupõem
que seu modelo de unidade (todos debaixo da autoridade do papa) é o padrão pela
qual a unidade entre os cristãos deve ser julgada. Além de ser um padrão
inválido do ponto de vista bíblico e histórico, já foi responsável por várias
divisões na cristandade a exemplo do cisma oriental (1054) e ocidental
(1378-1417).
Sobre
a citação de Newman
Inicialmente o Rogério havia me acusado de
citar Newman de forma errada, porém, agora, ele afirma que Newman estava
errado. Parece que ele descobriu que o autor inglês não é tão favorável as suas
teses. Conforme demonstrei, Newman afirma que enquanto os apóstolos estiveram
na terra, não havia bispo ou papa – uma estrutura que só surgiria depois.
No meu entender como
historiador, Newman não percebeu que havia bispos e presbíteros pois não lidou
com a análise de Fontes Primárias (talvez, pelo fato de a epistemologia
histórica no século XIX não ser muito desenvolvida); mas, de qualquer modo, a
divisão e diferenciação do trabalho evangelístico já ocorre no Novo Testamento.
A única fonte trazida pelo apologista é
baseada na citação já trazida da coleção patrística da Paulus, na qual se diz
que no período em que Irineu escreveu, já havia a divisão tripartite
(bispo monárquico, presbíteros, diáconos). No entanto, Newman se referiu ao
período apostólico, quando escreveu:
Enquanto os Apóstolos estavam
na terra, não havia bispo ou papa. (Ensaio sobre o Desenvolvimento
da Doutrina Cristã, Cap. 4, Seção 3)
Ele ainda afirma que Newman não “lidou com
a análise das fontes primárias”, o que simplesmente não é verdade. A obra pode
ser vista aqui e muitas fontes primárias são citadas. Vejamos o contexto da citação:
Enquanto os apóstolos estavam
na terra, não havia nem bispo nem papa; seu poder não tinha proeminência,
como sendo exercido pelos apóstolos. Com o passar do tempo, primeiro o
poder do bispo se mostrou e depois o poder do papa. Quando os apóstolos
foram levados, o cristianismo não se quebrou em partes. No entanto, localidades
separadas poderiam começar a ser o cenário de dissensões internas, e um
árbitro local, em consequência, seria desejado.
(Fonte)
Newman está se referindo ao bispo
monárquico. O apologista disse que “Newman não percebeu que havia bispos e
presbíteros”. Newman não diz nada sobre a ausência de bispos ou presbíteros
como liderança colegiada. No N.T os termos gregos para bispos e presbíteros são
intercambiáveis. Isto fica claro quando Newman diz: “e um árbitro local,
em consequência, seria desejado”. O cardeal está reverberando a
ideia amplamente defendida pelos historiadores de que o bispo monárquico surgiu
no âmbito da Igreja local por conta de divisões internas. Isto fica mais
evidente no trecho seguinte:
Quando a Igreja, então, foi
lançada sobre seus próprios recursos, os primeiros distúrbios locais deram
exercício aos Bispos, e os distúrbios ecumênicos seguintes deram força aos
Papas.
O cardeal está explicando o surgimento do
bispo monárquico, e posteriormente, do papado.
A
estrutura eclesial da Igreja Antiga
O apologista faz diversos comentários
sobre a Igreja Antiga que ou são factualmente errado ou são conclusões
falaciosas dos fatos históricos. Não vou responder nesta primeira parte aqueles
referentes a Agostinho, pois este pai da igreja merece um artigo separado, que
será publicado ainda nesta semana.
Podemos, finalmente, concluir
que a construção do discurso do Primado de Pedro foi uma evolução constante
relacionada à herança apostólica de Pedro para a cidade de Roma.
Pedro não era considerado um papa e o
primado que alguns pais da Igreja concederam a ele não envolvia qualquer
jurisdição sobre os demais apóstolos. Logo, não há como estabelecer o papado
apelando a este tipo de primado. Não é suficiente afirmar um primado de forma
vaga como o apologista faz. Ele precisa provar que a natureza desse primado era
de acordo com o que afirma a doutrina papal.
No Oriente existiam cidades que
reivindicavam herança apostólica, mas isso não invalida a Romana, pelo
contrário. Tertuliano, Cipriano (este desenvolveu o conceito de Primatus Petri,
e derivando Cathedra Petri) e Clemente também expressaram o valor da sucessão
apostólica como fonte de autoridade.
Na medida em que nenhum apóstolo tinha
jurisdição sobre os demais, todas as sucessões seriam igualmente válidas. A
sucessão de Roma não dá a esta Igreja o direito de governo sobre outras Igrejas
que também poderiam reivindicar sua própria sucessão. Mesmo Roma, durante
séculos, esteve em comunhão com as Igrejas Orientais sem que aceitassem as
reivindicações papais. Então, apelar à sucessão apostólica se torna um
argumento contra o papado, na medida em que todos os outros supostos sucessores
dos apóstolos não aceitaram o papado.
Tertuliano sustentou uma ideia de sucessão
apostólica radicalmente distinta da atual doutrina de Roma e não há nele
qualquer resquício do papado (aqui).
Cipriano defendeu que todos os bispos eram igualmente herdeiros da cátedra de
Pedro, e foi com base neste pensamento que se opôs ao bispo romano Estevão. Não
por acaso, ele é considerado um dos grandes exemplos no ocidente de resistência
ao centralismo romano (aqui).
Ele é um exemplo de como um apelo genérico a sucessão apostólica é insuficiente
ou até mesmo desfavorável ao papado. O
que Clemente (suponho que de Roma) disse a respeito da sucessão também é
radicalmente distinto do que Roma ensina (aqui).
Ele é visto pela historiografia padrão como testemunha da ausência do
episcopado monárquico na Igreja de Roma, e por consequência, da ausência do
papado neste período.
Podemos refletir sobre esse
artigo? Sim. Quais as reflexões conclusivas? A primeira e mais importante é a
noção de apostolicidade na qual eu embarco três coisas complementares:
autoridade apostólica, sucessão apostólica e primazia Romano-Petrina.
Ele citou diferentes pais da Igreja com diferentes
conceitos de sucessão apostólica. Além disso, em nenhum deles há a “primazia
romano-petrina” a qual defende. Clemente, Irineu, Inácio, Tertuliano, Cipriano,
Ambrósio e Agostinho, em nenhum desses, há a remota ideia que o bispo de Roma
detinha um direito de governo supremo sobre toda a Igreja. Pelo contrário, ao
estudarmos a eclesiologia desses autores, notamos que não havia espaço para tal
modelo absolutista.
A terceira é que as igrejas
estavam longe de serem autarquias independentes uma das outras, bem ao gosto
descentralizado protestante.
Não se
pode fazer tal afirmação sem especificar o período histórico. De fato, o
cristianismo se tornou, com o passar do tempo, uma religião cada vez mais
hierarquizada. No entanto, no séc. I até meados do séc. II, as Igrejas eram sim
autarquias autônomas que mantinham laços de irmandade. Após a morte dos
Apóstolos (que eram a autoridade suprema), nenhum cabeça central foi deixado. Quando se
trata do papado, é um fato que Roma só conseguiu depois de vários séculos impor
a soberania somente sobre as Igrejas Ocidentais, após inúmeros exemplos de
resistência. Por outro lado, Roma nunca se impôs como uma autoridade suprema
sobre o Oriente.
Elas procuravam respaldo em suas
tradições fundadoras apostólicas e, caso não tivessem, recorriam às que tinham.
Quais
Igrejas procuraram respaldo? Você não pode pegar o argumento de Irineu e
Tertuliano e generalizá-lo para todo o resto do mundo cristão. Além disso, é
falacioso extrair desse apelo a tradição o tipo de primazia que o apologista
precisa estabelecer. Pais da Igreja como Irineu e Tertuliano não estavam
apelando a nenhum tipo de infalibilidade da Igreja de Roma, mas à tradição
desta Igreja no séc. II, que poderia ser verificada em outras Igrejas como
Éfeso. Além disso, estes autores defendiam uma hierarquia de autoridades, e
embora as igrejas apostólicas fossem uma das autoridades desta hierarquia, a
Escritura ainda era suprema. Se tudo o que Roma ensinasse hoje fosse a tradição
aludida por Irineu no séc. II, os protestantes não teriam razão para não
estarem em comunhão com Roma. Porém, o tempo passou e várias doutrinas estanhas
foram acrescentadas.
Ora quem era a principal e mais
prestigiada dessas fundações, segundo Santo Irineu e Santo Agostinho? Roma.
Isto vale para o Ocidente (principalmente) e vale (em parte) para o Oriente.
Está nos escritos patrísticos.
Eles apenas atribuíram a Roma uma posição
de destaque na Igreja cristã que não implicava na primazia papal. Boa parte das
razões para isto sequer eram teológicas. Alguns dos motivos teológicos para o
prestígio de Roma eram verificáveis até em maior grau na Igreja de Jerusalém.
Contudo, por contingências históricas, o prestígio de Roma aumentou e o de
Jerusalém declinou. O estudo da eclesiologia desses pais Igreja revela uma
incompatibilidade profunda com o papado, conforme definido no Concílio Vaticano
I.
Na dissertação acima o autor
concorda com a ideia de Primazia Romana. A argumentação de Bruno é que a
Primazia não era universal. Ora, se a Primazia não era universal, por
definição, ela não existiria! Mas segundo vários autores ela existia, talvez
não exercida de forma completa.
O autor a qual se refere não concorda com
o que o apologista entende por primazia romana. Isto será explorado no artigo
sobre Agostinho. Até agora estou procurando nos artigos do apologista qualquer
autor que tenha afirmado o primado jurídico e universal de Roma. Simplesmente
não há. O que seria uma primazia universal “incompleta”? Novamente, como no
artigo anterior, ele usa a teoria do “quadrado redondo”, que é afirmar duas
ideias excludentes numa mesma frase. Se é universal, necessariamente deve ser
exercida sobre toda a igreja. Caso contrário, até Constantinopla poderia alegar
uma primazia universal por exercer jurisdição sobre uma porção da Igreja. Ou é
sobre o todo ou não é universal. E porque um primado de honra teria que ser
universal? Se Roma era muito estimada pela Igreja Africana, isto não implica
que também deveria ter a mesma estima de outra Igreja no Oriente. A relação de
Roma com o ocidente não era igual com o Oriente. O apologista parece ter uma
visão idealista da igreja antiga como um lugar de enorme uniformidade.
Podemos ter vozes discordantes
na Antiguidade que questionavam a primazia/jurisdição Romana? Sim. E isso não a
invalida de modo algum, ao contrário, apenas a valida, porque não se pode
discordar de algo que não existe.
Haviam vozes que discordavam, mas ainda
assim a primazia era universal? Essas vozes eram a maior parte da Igreja (o
Oriente e outras Igrejas Ocidentais). Vejamos o raciocínio. A Igreja “X” diz ter
o direito de governar todos os outros. A maior parte das outras Igrejas não
aceitam esta forma de governo. A Igreja X, inclusive, é durante séculos forçada
a aceitar decisões contra sua vontade. No fim da história, depois de a Igreja
“X” muito insistir, uma boa parte das outras igrejas rompem a comunhão. Segundo
o apologista, tudo isso não depõe contra o papado, mas a favor, sabe porquê?
Porque “X” disse que é assim e pronto. Ou seja, basta reivindicar a autoridade.
Se Roma tinha o direto divino de agir como
tal, porque aceitou cânones conciliares contra a sua vontade (cânon 28 de
Calcedônia e 3 de Constantinopla I)? Porque não cortou da comunhão todas as
Igrejas que não reconheceram a primazia papal? Porque várias decisões dos
bispos de Roma precisaram ser ratificadas por concílios? A resposta é óbvia:
Roma estava consciente dos limites de sua jurisdição.
A ideia de que só pode ser contradito
aquilo que já existe necessita ser melhor detalhada. É preciso colocar isto na
linha do tempo. Não há evidência de que os bispos de Roma estivessem
reivindicando o governo supremo sobre a Igreja Universal nos sécs. II, III, IV.
O que se vê nestes períodos são tentativas de se impor sobre igrejas regionais,
especialmente no Ocidente, ou no máximo a atuação como tribunal de revisão para
as Igrejas no Oriente (séc. IV). Ainda assim, conforme se verificou em Sardica,
este tribunal de revisão apenas garantiria que outro julgamento fosse dado ao
bispo excomungado. A palavra final sequer seria de Roma. Dessa forma, Roma não
apresentou uma consciência papal desde o início. Até mesmo a defesa que Roma
fez do papado foi evoluindo e mudando radicalmente ao longo do tempo.
Como podemos então afirmar que as
primeiras fontes como Irineu, Tertuliano e Cipriano eram incompatíveis com o
papado? Embora as ideias papais não tivessem sido apresentadas, a eclesiologia
geral desses teólogos tinha elementos irreconciliáveis com o papado. Seria como
alguém dizer que nenhum pai da Igreja disse explicitamente que a teologia da
prosperidade era condenável, logo eu não posso afirmar que eles seriam contra
tal doutrina. É um raciocínio falacioso. Podemos demonstrar os elementos
irreconciliáveis dos teólogos antigos com esta doutrina.
Quando Roma passou a reivindicar o governo
de toda a Igreja? Provavelmente no séc. V, num período posterior a morte de
Agostinho (430). O melhor candidato é Leão I que teve um papel destacado no
Concílio de Calcedônia. No entanto, ainda assim, o concílio ignorou seus
protestos e aprovou o cânon 28. Ou seja, suas reivindicações não foram levadas
a sério pelo Oriente. A doutrina do papado passou por um longo e gradual
processo de mudança até chegar às definições de Vaticano I. Só para se ter uma
ideia, ninguém nos primeiros mil anos do cristianismo afirmou que o bispo de
Roma era infalível. Nem os próprios bispos de Roma afirmaram isso, porque tal
ideia sequer lhes passava pela cabeça. Quando o primeiro teólogo (Pedro Olivi)
afirmou tal coisa, o próprio papa rejeitou a ideia como uma heresia (aqui).
Era uma doutrina tão secreta e bem guardada que nem o papa a conhecia. Alguém
poderia objetar nos mesmo termos: nenhum pai da Igreja afirmou explicitamente
que o bispo de Roma não era
infalível. Obviamente, pois ninguém sequer cogitava tal ideia. Por outro lado,
ao tomarmos o exemplo de Agostinho, podemos afirmar que seu pensamento era
incompatível com a infalibilidade papal, pois ele dava ao concílio, do qual não
há evidência que tenha considerado infalível, e não ao papa a palavra final da
Igreja nas controvérsias doutrinárias.
E a Jurisdição universal? Como
ela poderia ser exercida universalmente?
A Igreja estava ainda se consolidando e para os primeiros cristãos pouco
importava, já que os alicerces de autoridades estavam em outros conceitos –
apostolicidade, antiguidade, catolicidade -.
Vejam aqui a jurisdição universal
incompleta, ou seja, o universal que não era universal. O que ele chama de
“primeiros cristãos” se refere a homens que viveram 5, 6, 7 séculos após Jesus
Cristo. É neste sentido que o catolicismo moderno se assemelha ao gnosticismo.
As doutrinas romanas seriam tradições secretas, que estavam tão escondidas que
somente uma parcela da Igreja (a própria Roma é claro) descobriu um dia que
elas existiam. Como ele pode apelar aos “alicerces de autoridade”, se entre
eles não estava o papado. Como a Igreja teria sobrevivido por séculos sem a
doutrina fundamental do papado? No sistema católico romano, o papado não é algo
secundário. Trata-se do alicerce de toda a teologia romana. No entanto, de
acordo com o apologista, a Igreja teria ignorado a sua doutrina mais
fundamental. Ademais, apelar a conceitos como “apostolicidade, antiguidade,
catolicidade” é uma cortina de fumaça na medida que nenhum desses elementos
foram compreendidos pelos Pais da Igreja da forma como o catolicismo moderno
compreende, e acima de tudo, não implicam no papado. Pelo contrário, tais
elementos formavam uma estrutura de autoridade que excluía a pretensão papal. O
mais relevante é que, supondo a validade das sucessões apostólicas das diferentes
Igrejas, uma concessão que faço para o bem do debate, a Igreja Universal nunca
reconheceu o papado. As outras Igrejas que também poderiam reclamar
apostolicidade, antiguidade e catolicidade romperam a comunhão com Roma por não
aceitarem as pretensões papais. Dessa forma, o apelo a esses elementos de
autoridade é um argumento contra e não a favor do papado. Roma era antiga?
Jerusalém e Antioquia mais ainda? Roma teria sucessão apostólica? Várias outras
Igrejas Orientais como Antioquia, Éfeso e Jerusalém também.
Porém, a exemplo do apologeta,
que não percebe o tamanho do Império e as dificuldades de comunicação, no texto
de Santo Irineu percebemos que já havia uma jurisdição sobre algumas igrejas do
Oriente e que Roma já era considerada a Primeira entre os Pares.
Roma não teria exercido a primazia por
dificuldades de comunicação? Este argumento não condiz com o que o próprio
Irineu defendeu. Ele alegou que a tradição apostólica era pública e verificável
em toda a Igreja. Alguém acredita
que os apóstolos trouxeram o evangelho como uma espécie de quebra-cabeça? João
pregou um pedado na Ásia, Paulo um pedaço em Roma, Pedro um pedaço em
Antioquia. Só depois de séculos, a Igreja se reuniu, juntou os pedaços e
descobriu que havia um papa. Obviamente é uma tese absurda. Além disso, os apóstolos
teriam deixado de pregar um elemento fundamental como o papado? Tanto os
apóstolos como os primeiros pais da Igreja (Irineu por exemplo) falaram
bastante sobre a questão da autoridade? Qual a probabilidade de eles terem
esquecido o pequeno “detalhe” do papado? É por esta razão que os defensores
mais sofisticados de Roma admitem que Irineu desconhecia a ideia de um papa.
Como Newman reconheceu, quando se referiu ao período apostólico. Não há como
seriamente considerar os escritos patrísticos primitivos e acreditar que eles
estavam conscientes da existência das prerrogativas papais. Não por acaso,
mesmo em Roma, os bispos mais antigos não estavam reclamando as prerrogativas
que os papas modernos reclamam. Ninguém nos primeiros séculos estava consciente
da existência do papado. Klaus Schatz disse:
No
entanto, as reivindicações concretas de uma primazia sobre toda a Igreja não
podem ser inferidas a partir desta convicção. Se alguém tivesse perguntado a um
cristão no ano de 100, 200 ou mesmo 300, se
o bispo de Roma era a cabeça de todos os cristãos, ou se houve um bispo supremo
sobre todos os outros bispos e que teria a última palavra em questões que
afetam toda a Igreja, ele ou ela certamente teria dito não. (Schatz,
p. 3)
Não era um problema de comunicação por
causa do tamanho do império porque não havia o que ser comunicado. Os cristãos
dos primeiros séculos desconheciam tal doutrina. Além disso, não há nada nos
escritos de Irineu que afirme a jurisdição de Roma sobre Igrejas do Oriente.
Pelo contrário, quando Vítor quis excomungar as Igrejas da Ásia por uma
diferença de costumes, Irineu foi um dos bispos a repreender Vítor. O
especialista em Irineu - Eric Osborn – escreveu:
A
sujeição de todas as igrejas a Roma seria
impensável para Irineu. (Irineu de Lyon [New York: Cambridge
University Press, 2005] p. 130)
Fontes
Primárias e Secundárias e os Historiadores
Entretanto, estou à espera
desses contemporâneos dos primeiros séculos prometidos por Bruno mostrando
essas vozes discordantes, pois tudo o que ele fez foi apresentar apenas
intérpretes e não Fontes Primárias.
Meu blog tem 36 artigos sobre o papado
recheados de fontes primárias. Fica claro nos artigos do apologista que ele
sequer os leu, pois apresenta vários argumentos já respondidos por mim, sem
interagir com minhas respostas. Além disso, eu apresentei várias fontes
primárias nas respostas direcionadas a ele. E mais importante, fontes
secundárias apontam para fontes primárias. Na maioria das vezes em que
apresento os historiadores, eu sequer estou apresentando a interpretação
acadêmica do fato, mas o fato em sim. Quando os historiadores apresentam sua
interpretação do fato, eles geralmente apontam a fonte primária, seja por
citação direta ou indireta. Não por acaso, há livros de história da Igreja que
ocupam mais espaços nas notas de rodapé do que no corpo principal do texto.
Philip Schaff é um bom exemplo disso (aqui). É instrutivo recuperar algo da primeira
resposta do apologista:
Bruno Lima é outro farsante que
não conhece nada de Patrística ou de doutrina da Igreja Católica. Ele deveria
ler livros sobre o assunto ao invés de só se informar em sites de apologética
estrangeiros. O choro é livre.
Agora ele reclama por eu fazer o que? Citar
muitos livros. Eu aceitei o desafio nos termos dele. O que ficou claro foi o
pouco conhecimento que ele possui sobre a historiografia da Igreja. Um católico
um pouco mais profundo no assunto saberia que as fontes acadêmicas têm ido no
sentido contrário das reivindicações históricas de Roma. Ele até que tentou nas
respostas anteriores trazer a autoridade acadêmica em seu favor, mas os
historiadores trazidos vão no sentido diametralmente oposto do que ele defende.
Interpretação de autores e
historiadores é levantamento bibliográfico, nós chamamos de Fontes Secundárias.
Estou a escuta para que você apresente um bispo ou textos claros, da época,
contra a primazia ou contra a jurisdição Romana. Devem existir, então
apresentá-los engrandece a discussão.
Eu já apresentei vários. Agora, eles devem
ser claros na opinião de quem? Para quem já cometeu suicídio intelectual e não
está disposto a seguir o rumo da evidência histórica, qualquer texto será ou
desqualificado, ou considerado obscuro, ou será preferida uma interpretação
alternativa, por mais esdrúxula que seja. De forma semelhante a Escritura,
católicos romanos como este não podem por paradigma seguir a evidência. Por
mais que a Escritura contradiga as distintas doutrinas romanas, o fiel não pode
deixar que a Bíblia fale por si mesma. O mesmo se aplica a história. A mim,
mais importa a opinião dos especialistas em história da Igreja. E para eles, há
provas claras e inequívocas de que o papado não foi aceito por vários teólogos
cristãos da antiguidade. Eu já explorei
em artigo anterior porque a apologética católica é semelhante ao movimento
terraplanista em sua rejeição dos historiadores da Igreja (veja em “sobre oshistoriadores citados na resposta”)
Ao responder Bruno Lima penso
que não apenas vale citar pensadores
católicos e protestantes, como também acadêmicos dos meios seculares. O diálogo apresentado aqui com vários
segmentos historiográficos permite uma análise da história e dos documentos.
Ele não apresentou um único historiador
favorável a tese que precisa estabelecer. O que ele faz é pegar citações que
afirmam, por exemplo, que Irineu defendeu um conceito de sucessão apostólica, o
que ninguém duvida. E partir disso, ele tira
implicações que o próprio autor não está fazendo.
Alguns poderão me perguntar o
porquê de eu não me concentrar mais nos especialistas de Bruno, mas se ficarmos
só falando deles só iremos descobrir mais erros e não apresentar nada de novo.
Sem apresentar uma tese nova seremos sempre intelectuais de recorte.
Como ele poderia tratar dos especialistas
se sequer os conhece? É óbvio do artigo dele que ele nunca teve contato com
esta literatura, tanto é que ele se limita às citações que fiz destes autores,
e não traz outras citações do mesmo livro. Quando ele citou autores
protestantes, eu fui capaz de trazer o contexto das citações e trazer mais
conteúdo dos mesmos autores. Isto se deu porque eu tinha os livros citados e já
os tinha lido. Dizer que pesquisar um livro que você não conhece resultará
apenas em mais erros é uma ode a ignorância. Observem que ele rejeita os mais
renomados historiadores da Igreja a priori, sem interagir com seus argumentos.
Essa é uma das características da apologética católica – desprezar a priori
qualquer autor que não se encaixe em sua narrativa. O problema é que não vai sobrar quase nenhum
historiador para os católicos citarem. Não por acaso, a maior parte dos artigos
católicos ou são pobres de citações acadêmicas, ou abundam em citações de
outros apologistas católicos cuja autoridade no assunto é nula.
Eu já acredito que o termo “intelectual de
recorte” seja bem útil para descrever pessoas que citam livros que não leram, e
apresentam a citação com o contexto radicalmente distinto do original. Quem fez
isto foi o Rogério. Ele apresentou a citação abaixo de Alister McGrath:
Era
amplamente aceito que o árbitro final em todas as disputas doutrinárias dentro
da igreja era o papa. Alister E. McGrath (p. 25), Reformation Thought:
An Introduction, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 2nd edition, 1993.
Grifo nosso.
E comentou:
Não bastando isso, segundo o
“historiador anglicano” Alister E. McGrath, que não é nem um pouco favorável ao
catolicismo, ao escrever sobre o Cisma
Oriental, mostra que no período antes deste Roma era o árbitro final das
questões doutrinárias, como eu mesmo já havia dito isso na minha postagem do
Facebook (que tanto magoou Bruno):
No entanto, vejamos o contexto:
A questão crucial era esta:
como poderia a disputa sobre quem era realmente o papa ser resolvida? Foi
amplamente aceito que o árbitro final em todas as disputas doutrinária dentro
da igreja era o papa - mas qual papa poderia resolver essa disputa?
Eventualmente, foi acordado que um Concílio deveria se reunir com
autoridade para resolver o litígio. O Concílio de Constança (1414–1417) foi
convocado para escolher entre os três candidatos rivais para o papado (Gregório
XII, Bento XIII, e João XXII). O Concílio convenientemente resolveu a
questão depondo todos os três, e escolhendo seu próprio candidato (Martin
V). Parecia que um princípio geral foi estabelecido: os Concílios têm
autoridade sobre o papa. Mas Martin V pensava o contrário.(Fonte)
Mcgrath se refere ao evento conhecido como
grande cisma do Ocidente (séc. XV), na qual três papas simultaneamente
reclamavam o papado. Não há qualquer relação com o cisma do Oriente (1054). Em
outra resposta, o Rogério comentou:
O mais interessante nesses
apologetas de internet é essa citação de livros em inglês. O erro não é citar
uma obra em outra língua, mas fazer citação da citação (alguns vivem de provar
o que dizem sem nunca ler a obra citada).
Ao me chamar de
intelectual de recorte, o apologista está novamente descrevendo a si próprio. O
próximo artigo será apenas sobre Agostinho, onde pretendo detalhar argumentos
apresentados em artigos anteriores.