Esta será a parte II da resposta ao apologista
católico Rogério Fernandes em continuidade ao último artigo (aqui)
sobre
o papado na história da igreja. Aqui vou abordar apenas Agostinho. O apologista requentou os
argumentos já respondidos numa resposta anterior sobre Agostinho e o
papado (aqui). Na resposta mais recente, ele abandonou
os termos iniciais do debate. O apologista precisaria demonstrar que o bispo de
Hipona cria em duas coisas:
(1) O primado jurídico de Pedro: isto quer
dizer que o pescador tinha autoridade sobre os demais apóstolos, como um papa
tem autoridade sobre os demais bispos;
(2) O bispo de Roma como herdeiro exclusivo do
primado jurídico de Pedro. Desta forma, ele teria o direito divino de governar
soberanamente toda a Igreja atuando como árbitro final em questões
eclesiásticas e doutrinais.
Ele sequer tenta provar as premissas acima. O
argumento é resumidamente este: Agostinho cria na doutrina da sucessão
apostólica e atribuía a Pedro e a Igreja de Roma um primado. Estas três coisas
implicariam que ele cria na doutrina do papado. Trata-se apenas de uma enorme
falácia. A doutrina da sucessão apostólica é necessária, mas não suficiente
para evidenciar o papado. Segundo a teologia romana, o papado é um tipo
especial de sucessão, aos quais poderes de governo sobre toda a Igreja são
concedidos. É este tipo especial de sucessão que é preciso demonstrar nos
textos de Agostinho.
Ele trouxe a já batida citação,
na qual o bispo de Hipona enumera a sucessão de bispos de Roma desde Pedro. De fato, o bispo
de Hipona detinha a crença historicamente infundada de que Pedro foi bispo
desta Igreja e lá deixou uma sucessão de bispos monárquicos. Contudo, para que
isto evidenciasse o papado, seria antes necessário demonstrar as duas premissas
fundamentais citadas. Nenhuma das duas coisas são encontradas na eclesiologia
agostiniana. Como argumentei extensivamente no artigo anterior, Agostinho
atribuía a Pedro um primado de honra por ter sido escolhido por Cristo para
representar toda a Igreja quando recebeu as chaves. E o mais importante – ele
não considerava Pedro a rocha, mas Cristo. A doutrina papal foi desenvolvida
com base na interpretação de que Pedro era a rocha. Este foi o ensino histórico
de Roma. Logo, Agostinho não pode ser contado como testemunha a favor desta
doutrina. A necessidade de apelar a este tipo de primado para defender o papado
já demonstra a fraqueza do argumento. Não é suficiente afirmar um primado de
forma vaga, antes é preciso evidenciar que a natureza deste primado é de acordo
com a doutrina papal.
O mesmo raciocínio se aplica ao primado de
Roma. Esta igreja era a única sede apostólica do ocidente. A Igreja africana
não poderia reclamar ter sido fundada por um apóstolo, logo Roma desfrutava no
Ocidente de um prestígio que nenhuma outra Igreja detinha. Há uma distância gigante entre este prestígio e o direito divino de governar toda a Igreja. Eu argumentei
extensivamente em meus artigos que para Agostinho o órgão supremo dentro da
autoridade da Igreja era o concílio ecumênico. As decisões deste tipo de
concílio são superiores as de qualquer bispo em particular, inclusive de Roma.
Isto se dava porque o concílio ecumênico era o melhor representante da mente da
Igreja. O apologista sequer aborda este argumento na resposta. Creio que estas
poucas linhas já desmontam o argumento do texto católico. Contudo, terminei
recentemente algumas leituras sobre Agostinho e a questão da autoridade. Por
isso, com base nelas, vou trazer mais detalhes
sobre a eclesiologia agostiniana.
Agostinho e o primado de Pedro
No artigo anterior, eu trouxe a seguinte citação do historiador da
Igreja - W.H.C Frend:
Agostinho (...) rejeitou a ideia de que “o poder das
chaves” tinha sido confiado somente a Pedro. Sua primazia
era simplesmente uma questão de privilégio pessoal, e não um ofício.
Similarmente, ele nunca reprovou os Donatistas por não terem comunhão
com Roma, mas pela falta de comunhão com a visão apostólica como um todo. (W.H.C. Frend, The Early Church
(Philadelphia: Fortress, 1965), p. 222)
Agostinho rejeitou? Onde? Qual
texto? O que vemos é Agostinho reforçando a ideia de que Pedro recebe as
chaves. Que especialista é esse?
Contudo, o que me diz a fonte primária que o os escrito diretos de Agostinho no
Comentário ao Evangelho do III domingo da Páscoa – ano C (Jo 21,1-19)
“Entre estes somente Pedro mereceu
representar toda a Igreja. Por causa desta representação da Igreja, que somente
ele conduziu, mereceu escutar ‘Eu te darei as chaves do reino dos Céus’”
(Sermões 295,2; Grifos nossos)
“Desta forma, se a linha sucessória
dos apóstolos deve ser levada em consideração, com que maior certeza e
benefício à Igreja devemos retornar até alcançar o próprio Pedro, a quem, como
uma figura que comporta toda a Igreja, o Senhor disse ‘Sobre esta pedra
edificarei e minha Igreja, e os portões do inferno não prevalecerão contra
ela’”. (Carta 53, 2; Grifos nossos)
Quando pergunta “que especialista é este?”,
ele demonstra sua ignorância sobre história da Igreja. W.H.C Frend é
considerado um dos maiores historiadores da Igreja do séc. XX (aqui). Suas obras sobre a Igreja primitiva e a
Igreja donatista são considerados clássicos. O historiador afirmou que o poder das chaves
não foi confiado somente a Pedro. O apologista o “refuta” trazendo
textos em que Agostinho afirma que “somente Pedro mereceu representar toda a
Igreja”. Onde está a contradição? Frend está afirmando que o privilégio de
Pedro foi ter representando a Igreja ao receber as chaves antes dos demais.
Contudo, o texto bíblico afirma que os demais apóstolos também receberam as
chaves (Mateus 18:18). As citações de Agostinho trazidas apenas evidenciam que o primado de Pedro não era
de jurisdição, mas um privilégio pessoal. Os católicos é que precisam
demonstrar como o privilégio de ter atuado como representante de toda a Igreja
fez de Pedro ou dos bispos romanos papas. Sobre o poder das chaves e o primado
de Pedro, vejamos as citações de Agostinho:
E esta Igreja, simbolizada em sua generalidade,
foi personificada no apóstolo Pedro, em razão da primazia de seu apostolado.
Pois, em relação à sua própria personalidade, ele era por natureza um homem,
pela graça um cristão, por uma graça ainda mais abundante, foi também o
primeiro apóstolo; mas quando lhe foi dito: Dar-te-ei as chaves do reino dos
céus, e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; e tudo o que
desligares na terra será desligado no céu”, ele representou a Igreja universal,
que neste mundo é abalada por diversas tentações, que vêm sobre ela como torrentes
de chuva, inundações e tempestades. Ainda assim ela não cai, porque é fundada
sobre uma rocha (petra), da qual Pedro recebeu seu nome. Pois petra (pedra) não
é derivada de Pedro, mas Pedro de petra; assim como Cristo não é chamado assim
de cristão, mas o cristão de Cristo. Pois exatamente nesse relato o Senhor
disse: 'Sobre esta rocha edificarei minha Igreja', porque Pedro disse: 'Tu és o
Cristo, o Filho do Deus vivo'. Nesta rocha, portanto, Ele disse, que tu
confessaste, eu edificarei a minha igreja. Pois, a rocha (Petra) era Cristo
e sobre este alicerce foi o próprio Pedro edificado. Outro fundamento
não pode ser posto sobre aquele que já foi posto, o qual é Cristo Jesus.
A Igreja, portanto, que é fundada em Cristo, recebeu dEle as chaves do reino
dos céus na pessoa de Pedro, isto é, o poder de amarrar e soltar pecados. A
Igreja está essencialmente em Cristo, tal representativamente é Pedro na rocha
(petra); e nesta representação, Cristo deve ser entendido como a Rocha,
Pedro como a Igreja. (Philip
Schaff, Nicene and Post-Nicene Fathers (Grand Rapids: Eerdmans, 1956), Volume
VII, St. Augustin, On the Gospel of John, Tractate 124.5)
E:
É claro, você vê, de muitos lugares nas
escrituras que Pedro pôde representar a Igreja; acima de tudo naquele lugar
onde diz: A ti entregarei as chaves do reino dos céus. Tudo o que ligares na
terra será ligado também no céu; e tudo o que você desligar na terra será
desligado no céu (Mt 16:19). Pedro recebeu essas chaves e Paulo não as
recebeu? Pedro os recebeu e João e Tiago e os outros apóstolos não as
receberam? Ou as chaves não são encontradas na Igreja, onde os pecados
estão sendo perdoados todos os dias? Mas porque Pedro representava simbolicamente a Igreja, o que foi dado a ele foi
dado a toda a Igreja. (John Rotelle,
Ed., The Works of Saint Augustine,New Rochelle: New City, 1992, Sermons, III/5,
Sermon 149.6-7, p. 21)
A interpretação é simples. Pedro recebeu as
chaves, mas não de forma exclusiva. Ele atuou como um representante, uma
espécie de delegado da Igreja. Quando ele recebe as chaves, não somente Pedro
ou os bispos de Roma estão as recebendo, mas toda a Igreja, o que obviamente
incluía os demais apóstolos. Se a apologética católica fizer do poder das
chaves a evidência do poder papal, o argumento desaba, pois toda a Igreja, e
por consequência, todos os bispos teriam o poder das chaves. Fica claro também
que o texto base da doutrina papal era interpretado por Agostinho de forma
diversa. A rocha era Cristo, e não Pedro. A distinção de Pedro é apenas o
privilégio de ter atuado como o representante. Na medida que o poder dado a ele
é compartilhado com os demais apóstolos, qualquer primazia jurídica do pescador
não condiz com a interpretação agostiniana.
Um dos grandes embates de Agostinho foi contra
a Igreja donatista. Os donatistas eram rigoristas e defendiam que aqueles que
negaram a fé nas perseguições deveriam ser rebatizados quando voltassem a
Igreja. Eles também consideravam os sacramentos ministrados por um sacerdote
pecador inválidos. Este debate é vital para nosso estudo, pois foi nesta
controvérsia que Agostinho desenvolveu detalhadamente sua eclesiologia. Se ele
acreditava no papado, os escritos contra os donatistas apresentariam evidências
inequívocas. Contudo, como Frend mencionou, o que se vê é o contrário. Ele
nunca recriminou os donatistas por não terem comunhão apenas com Roma, o que
seria o argumento principal, caso pensasse que a comunhão com bispo de Roma
fosse o critério final para definir quem estava ou não na Igreja. O argumento
de Agostinho era que os donatistas eram um grupo sectário que estava indo
contra a corrente representada por todo o resto da Igreja e não apenas Roma. O
historiador católico e especialista em Agostinho – Robert Eno – escreveu:
Na controvérsia com os donatistas, Agostinho
estava lidando com adversários que reivindicavam sucessão apostólica para si
mesmos. Aqui, numa variação de seu tema da catolicidade geográfica, Agostinho
enfatizou a união com as sedes apostólicas históricas. Em seu orgulho, os
donatistas rejeitaram "... bispos cuja linhagem inabalável desce desde
as próprias sedes dos apóstolos até nossos dias" [C. Cresc. 3.21 (CSEL
52.427]. Como os fundadores do Donatismo repudiaram insensatamente a Igreja no
exterior com seus milhares de bispos, agora os bispos donatistas "foram
afastados da raiz da sociedade cristã, que através das sedes apostólicas e da
reconhecida sucessão de bispos se espalhou pelo mundo e embora eles são
agora como ramos secos que chamamos de heresias e cismas, eles ainda se gabam
da semelhança externa de sua origem sob o nome de cristão ... " [ep. 232.3
(CSEL 57.513); também ep. 43.11 (CSEL 3412.94)]. (Doctrinal Authority In Saint Augustine,
Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, p. 151)
Agostinho apelou não somente à sucessão de
Roma, mas às sucessões das várias sedes apostólicas. Isto é sim um problema
quando um lado reivindica ter uma sucessão especial e ser o critério da
comunhão da Igreja. Outra crítica feita pelo apologista é a suposta falta de
fontes primárias nos meus artigos. Primeiro, é falso, pois meus artigos citam
sim as fontes primárias, mas também as citações de historiadores contém as
fontes primeiras. A obra de Robert Eno tem mais de 100 citações de Agostinho.
Então ao citá-lo, estou citando as fontes primárias juntamente com a
interpretação do historiador. O que o apologista faz é apresentar a sua pouco
qualificada interpretação das obras de Agostinho e rejeitar a opinião dos
especialistas a respeito. Ele defendeu que Pedro não era apenas representante
da Igreja, mas o símbolo (no sentido de regra de fé) da Igreja. O termo símbolo
era também utilizado por Agostinho para designar a regra da fé recebida pela
Igreja. Esta interpretação não se encaixa nas citações aqui exploradas. Eu já
discuti esta questão em mais detalhes (seção O salmo de Agostinho). O bispo de Hipona foi ainda mais preciso
sobre a natureza do primado de Pedro:
Antes de sua paixão, o Senhor Jesus, como você
sabe, escolheu seus discípulos, a quem chamou de apóstolos. Entre estes, foi
apenas Pedro que em quase todos os lugares recebeu o privilégio de representar
toda a Igreja. Foi na pessoa de toda a Igreja, a qual ele sozinho
representou e teve o privilégio de ouvir: “A ti darei as chaves do reino dos
céus” (Mt 16, 19). Afinal, não é apenas um homem que recebeu essas chaves,
mas a Igreja em sua unidade. Portanto, esta é a razão da preeminência
reconhecida de Pedro, que ele representou a universalidade e unidade da Igreja,
quando lhe foi dito: “A você, eu estou confiando”, o que de fato foi
confiado a todos. Quero dizer, para lhe mostrar que é a Igreja
que recebeu as chaves do reino dos céus, ouça o que o Senhor diz em
outro lugar a todos os seus apóstolos: "Recebei o Espírito
Santo"; e depois "os pecados que você perdoa", serão perdoados;
aqueles pecados que retiveres, serão retidos” (Jo 20:22-23). Isto se refere
às chaves, sobre as quais se diz: “tudo o que desligares na terra será
desligado no céu, e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus” (Mt
16:19). Mas isso foi dito a Pedro. Para mostrar a você que Pedro naquela
época representava a Igreja universal, ouça o que é dito a ele e o que é
dito a todos os fiéis, os santos: "Se seu irmão pecar contra você,
corrija-o em secreto. Se ele não te ouvir, traga com você um ou dois; porque
está escrito: Pela boca de duas ou três testemunhas todas as questões serão
resolvidas. Se ele não os escutar, encaminhe-o à Igreja; se ele não a escutar,
que ele seja para você como um pagão e um coletor de impostos. Em verdade vos
digo que tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo quanto
desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16:18). (John Rotelle, Ed.,
The Works of Saint Augustine (Hyde Park: New City, 1994), Sermons, III/8
(273-305A), On the Saints, Sermon 295.1-3, pp. 197-198)
Esta última citação é interessante porque o
poder das chaves é atribuído até mesmo aos leigos. A implicação é que ao
receber as chaves, Pedro não estava recebendo qualquer poder especial que os
outros apóstolos não possuiriam. Ele define o primado de forma precisa: “esta é
a razão da preeminência reconhecida de Pedro, que ele representou a
universalidade e unidade da Igreja”. Quem está familiarizado com os escritos de
Cipriano, reconhece a semelhança. Este pai da Igreja africano do séc. III
disse:
É verdade que os demais [Apóstolos] eram o
mesmo que Pedro, mas o primado é conferido a Pedro para que fosse
evidente que há uma só Igreja e uma só cátedra. Todos são pastores, mas é
anunciado um só rebanho, que deve ser apascentado por todos os Apóstolos em
unânime harmonia. Aquele que não guarda esta unidade, proclamada também por
Paulo, poderá pensar que ainda guarda a fé? Aquele que abandona a cátedra de
Pedro, sobre o qual foi fundada a Igreja, poderá confiar que ainda está na
Igreja? (Da Unidade da Igreja)
Cipriano afirma a igualdade dos apóstolos, mas
também afirma haver uma cátedra de Pedro. O argumento é semelhante. Esta
cátedra representaria a unidade do episcopado. A atuação de Pedro como
representante da Igreja fica evidente no trecho seguinte da epístola de
Cipriano:
No entanto, Pedro, sobre quem pelo próprio
Senhor a Igreja foi construída, falando um por todos, e respondendo com a
voz da Igreja, diz, “Senhor, a quem devemos ir? Tu tens as palavras de vida
eterna; e nós cremos, e estamos certos que tu és o Cristo, o Filho do Deus
vivo”. (Epístola 59)
E:
Sem dúvida o resto dos apóstolos foram também
o mesmo que era Pedro, favorecidos com uma igual parceria tanto de honra
quanto poder, mas o princípio procede da unidade. (Da Unidade da Igreja, cap. 4)
Se os apóstolos eram iguais em poder, o
privilégio de Pedro por atuar como representante da Igreja não pode ser tomado
como um primado jurídico. Os apologistas católicos, ao usarem os “óculos de
Roma”, tendem a atribuir de forma exclusiva ao bispo de Roma tudo o que os pais
da Igreja falaram sobre Pedro. Este argumento é falacioso e Cipriano é
pedagógico neste caso. Ao defender a cátedra de Pedro, ele afirmou que todos
os bispos eram herdeiros legítimos desta cátedra:
Nosso Senhor, cujos preceitos e admoestações
nós devemos observar, descrevendo a honra de um bispo e a ordem de sua Igreja,
fala no Evangelho dizendo a Pedro: “Eu te digo, Tu és Pedro, e sobre esta pedra
eu edificarei minha Igreja; e os portões do inferno não prevalecerão contra
ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus, o que for que você ligar na
terra será ligado no céu e o que for que você desligar na terra será desligado
no céu”. Por isto, através das mudanças dos tempos e sucessões, a ordenação de
bispos e o plano da Igreja continuam fluindo, de forma que a Igreja é
fundada sobre os bispos, e cada ato da Igreja é controlado por estes mesmos
governantes. (Epístola 33:1)
Anos depois, o bispo de Roma Estevão iria
ameaçar Cipriano de excomunhão por causa da controvérsia do rebatismo. Esta
controvérsia seria revisitada por Agostinho no seu embate com os donatistas e
será muito importante para entender a eclesiologia do bispo de Hipona. Cipriano
convocou um sínodo em Cartago e dirigiu as seguintes palavras ao bispo romano:
Pois nenhum de nós coloca-se como um bispo de
bispos, nem por
terror tirânico alguém força seu colega à obediência obrigatória; visto
que cada bispo, de acordo com a permissão de sua liberdade e poder, tem seu
próprio direito de julgamento, e não pode ser julgado por outro mais do que ele
mesmo pode julgar um outro. Mas esperemos todos o julgamento de nosso
Senhor Jesus Cristo, que é o único que tem o poder de nos designar no
governo de Sua Igreja, e de nos julgar em nossa conduta nela. (Sétimo concílio de Cartago)
A interpretação é simples. Cada bispo era
herdeiro da cátedra de Pedro. Roma era, mas o próprio Cipriano também.
Portanto, o bispo romano não poderia julgar Cipriano, uma vez que não havia um
bispo dos bispos (um papa). O único que poderia julgar os bispos era Cristo.
Estas palavras iriam ser mais tarde recordadas por Agostinho na disputa com os
donatistas. O bispo africano foi um ferrenho defensor da memória de Cipriano, e
embora viesse a discordar na questão do rebatismo, ele nunca condenou Cipriano
por ir contra a Igreja de Roma. Este argumento será expandido a seguir. Mais
detalhes sobre Cipriano (aqui e aqui)
Agostinho, Cipriano, os Donatistas e os
Concílios
O meu principal argumento contra o Agostinho
papista é sua visão da autoridade dos concílios. Eno escreve sobre Agostinho,
os donatistas e Roma:
Neste último caso [dos donatistas], não
houve apelo eclesiástico a Roma para resolver a questão. Foi travada quase
exclusivamente na África. Os donatistas no início da disputa apelaram para
Constantino. Ele entregou para Miltiades e um concílio romano. Quando os
donatistas se recusaram a aceitar seu veredicto, Constantino convocou um concílio
em Áries. Não há evidência de que Agostinho tenha visto algo especialmente
censurável com essa superação de uma decisão romana. (Eno, p. 167)
Um sínodo em Roma sob a liderança de seu bispo
(Miltiades) condenou os donatistas. Contudo, outro concílio em Áries foi
convocado para lidar com a mesma questão. A implicação é que a decisão de Roma
não foi final e era superável por outro concílio. Agostinho nunca censurou os
donatistas com base neste sínodo romano. Se ele defendesse o papado, a decisão
de Roma seria o seu argumento final contra o donatismo. Os relatos da
controvérsia podem ser vistos na carta 43. Eu citei esta carta no artigo respondido
pelo apologista:
Bem, vamos supor que aqueles bispos que
decidiram o caso em Roma não eram bons juízes, ainda resta o concílio
plenário da Igreja universal, em que esses juízes podem apresentar sua
defesa, de modo que, se eles foram condenados por erro, as suas decisões
podem ser revertidas. (Carta
43:19)
Os bispos em Roma foram liderados pelo papa. É
com base neste documento que Eno afirma: “Não há evidência de que Agostinho
tenha visto algo especialmente censurável com essa superação de uma decisão
romana”. De fato, ele via as decisões de Roma como passíveis de reversão, e ao
explicar o porquê, ele deixa claro que a decisão do concílio universal era de
maior autoridade. Vejamos a continuação:
Quer tenham feito isso ou não, que provem: pois
provamos facilmente que isso não foi feito, pelo fato de que o mundo
inteiro não se comunica com eles; ou se foi feito, eles também foram
derrotados ali, e o estado de separação da Igreja é uma prova.
Agostinho está dizendo que os donatistas
poderiam levar seu caso para um concílio plenário, que poderia legitimamente
reverter as decisões do sínodo romano. No entanto, os donatistas não fizeram
isto pois sabiam que iriam perder, afinal a Igreja Universal como um todo não
mantinha comunhão com eles. A este fato o apologista católico teceu os
seguintes comentários em sua primeira resposta:
Essa citação que ele até faz no
artigo talvez seja pior de todas. Fecha o caixão. Como todo apologista que
odeia a Igreja Bruno age talvez por ingenuidade ou mau-caratismo. Possível ver
a falcatrua ao usar esta fonte primária. Quando ele cita Carta 43, que foi
escrita de Santo Agostinho, nela Agostinho criou uma hipótese sobre um POSSÍVEL
erro de julgamento e não defendendo o conciliarismo, pois em primeira
instância crer no juízo de Roma. Só em último caso Agostinho falava em recorrer
ao concílio para poder reverter um SUPOSTO mau juízo romano, mas vemos que
acreditava que Roma era a primeira a julgar, ou seja, um local de decisões
sobre a Igreja Universal. Falha de interpretação e leitura apaixonada.
Aqui se vê mais um palpite a partir de um
conhecimento superficial. A afirmação de que Roma era um lugar de decisões
sobre a Igreja universal é uma interpretação inválida da Carta 43. Foram os
donatistas que recorreram ao sínodo Romano e não Agostinho. Após isto, os
donatistas recorreram a Constantino também que convocou outro sínodo em Áries,
que depois foi transferido para Milão. Isto implicaria então que Constantino
era um “local de decisões sobre a Igreja Universal”? Além disso, a questão
donatista estava restrita à Igreja Norte-Africana, que era parte do Ocidente.
Dessa forma, qualquer decisão a respeito não pode ser tomada como evidência de
uma jurisdição universal, o que incluiria o Oriente.
Agora, o mais interessante é que ele refutou o
papado sem perceber. Ele afirmou que Roma era a “primeira julgar”. Se era a
primeira e não a última, a decisão de Roma não era final, logo não há papado. É
justamente este o argumento feito por mim. As decisões de Roma poderiam ser
revertidas por outros sínodos e, em última instância, por um concílio plenário
segundo Agostinho. Mas temos mais. Agostinho acreditava que, tempos depois do
sínodo romano, um concílio plenário havia condenado o donatismo. Eno escreveu:
A que concílio plenário se referia Agostinho? Sua
visão histórica como dada em De Baptismo era a seguinte: A prática da
Igreja em geral não era rebatizar aqueles que vinham de grupos heréticos. Mais
tarde, houve um período de debate causado pelo questionamento africano.
Finalmente, depois de uma busca mais cuidadosa da verdade, o costume
anterior foi reconfirmado pela decisão de um concílio plenário da Igreja
universal (103). Esse concílio deve ter sido um evento-chave na Igreja
primitiva. Certamente foi chave na refutação de Agostinho da posição de
Donatista. (Eno, p. 161)
Eno cita as seguintes fontes na nota de rodapé
n. 103:
Diligente inquirição sobre a verdade: Do
batismo 2.5 e 6.82; A prática primitiva confirmada pelo concílio plenário: Do
batismo 1.9; 2.5; 4.12 e 6.12.
A obra sobre o batismo, escrita contra os
donatistas, está disponível online (aqui). Eno cita uma versão das obras de Agostinho
que é diferente da hospedada no New Advent (edição de Philip Schaff).
Infelizmente, a versão de Eno não está disponível online. Todas as citações
podem ser encontradas, mas as vezes em capítulos diferentes. No Livro I, cap.
18 (aqui):
Pois naquele tempo, antes do consentimento
de toda a Igreja declarar autoritariamente, pelo decreto de um Concílio
Plenário, que a prática deveria ser seguida neste assunto, parecia-lhe, em comum com cerca de oitenta
dos seus colegas bispos da Igreja Africana, que todo homem que tivesse sido
batizado fora da comunhão da Igreja Católica deveria, ao se unir à Igreja, ser
batizado de novo.
E:
Pois, em outro lugar, parece que não posso me
basear em meros argumentos humanos, já que há tanta obscuridade nessa questão.
Nas épocas anteriores da Igreja, antes do cisma de Donato, ela fez com que
homens de grande peso e até nossos pais, os bispos, cujos corações estavam
cheios de caridade, disputassem e duvidassem entre si, guardando sempre a paz
da Igreja, de forma que os vários estatutos de seus Concílios em seus
diferentes distritos variaram muito um do outro, até que finalmente a
opinião mais saudável estabeleceu-se, e todas as dúvidas foram removidas por um
concílio plenário do mundo inteiro. (Livro
I, cap. 7)
A mesma referência se verifica no Livro II,
cap. 12 (aqui) e também nos demais livros da obra sobre o
batismo. A controvérsia donatista e esta obra em especial são cristalinos ao
demonstrar que o concílio e não o bispo de Roma era o ápice da autoridade da
Igreja. A dúvida é qual concílio era este? Não poderia ser o sínodo romano, uma
vez que se tratava de um concílio plenário. Roma já havia se manifestado
oficialmente contra os donatistas, ainda assim, a decisão de um órgão de
autoridade superior era requerida. Até hoje, é obscuro que concílio era este,
mas há alguns prováveis candidatos:
A fonte da garantia de Agostinho era
simplesmente a seguinte: os círculos católicos na África acreditavam que
houvera tal Concílio. Essa crença não era fruto de suas imaginações nem uma
invenção de propaganda zelosa. A base factual pode ter sido o oitavo cânon do concílio
de Arles. Ao longo dos anos, essa base modesta foi ampliada na crença de que
havia uma decisão clara sobre a questão oriunda de um Concílio plenário da
Igreja universal. (Eno, p. 162)
Como fica evidente na obra sobre o batismo, a
decisão final que autorizava Agostinho afirmar que os donatistas estavam fora
da Igreja era tal concílio plenário. Eles já haviam sido cortados da Igreja. Há
outro aspecto desta controvérsia que muito nos interessa: a autoridade de
Cipriano. Os donatistas poderiam citar Cipriano em seu favor, uma vez que o
bispo de Cartago defendeu o rebatismo. Esta opinião colocou Cipriano contra o
bispo de Roma Estevão. Eles romperam a comunhão e este exemplo é até hoje
bastante explorado como um exemplo de resistência da Igreja Africana contra as
intervenções de Roma. Como Agostinho lidou com isto? Cipriano era uma grande
influência para ele e a autoridade teológica deste bispo era indisputável no Norte
da África. A obra sobre o batismo aborda com detalhes o uso de Cipriano pelos
donatistas. Embora o bispo de Hipona tome a posição contrária a Cipriano, ele o
desculpa porque neste período nenhum concílio plenário havia decidido a
questão:
Há grandes provas disto existentes a partir do
abençoado mártir Cipriano, em suas cartas - para finalmente chegar àquela cuja
autoridade eles carnalmente se bajulam de possuir, enquanto por seu amor são
espiritualmente derrubados. Pois, naquele tempo, antes do consentimento de
toda a Igreja declarar autoritariamente pelo decreto de um concílio plenário
que prática deveria ser seguida neste assunto, parecia-lhe, em comum com
cerca de oitenta dos seus colegas bispos das Igrejas da África, que todo homem
que tivesse sido batizado fora da comunhão da Igreja Católica deveria, ao se
unir à Igreja, ser batizado de novo. (Livro I, cap. 18)
E:
Também não deveríamos nos aventurar a afirmar
algo do tipo, se não estivéssemos apoiados pela autoridade unânime de toda a
Igreja, a qual ele mesmo [Cipriano] inquestionavelmente teria cedido, se
naquele momento a verdade desta questão tivesse sido colocada além de
disputa pela investigação e decreto de um concílio plenário. (Livro II, cap. 4)
Eno comenta:
Agostinho argumentou que Cipriano não deveria
ser culpado por cometer um erro numa questão complexa. Ele viveu antes que um
concílio plenário ou universal pudesse decidir a questão. Se tal decisão
tivesse sido tomada durante sua vida, não há dúvida de que ele teria aceitado
desde que ele, ao contrário dos donatistas, era amante da unidade da Igreja. (Eno, p. 161)
Agostinho desculpa Cipriano e a Igreja
Africana que se reuniu num concílio em Cartago (256) porque a decisão de um
concílio plenário ainda não havia sido tomada. No entanto, os bispos africanos
reunidos em concílios, decretaram uma doutrina contra a posição do bispo de
Roma. Como Agostinho poderia desculpá-los, se o bispo de Roma fosse o árbitro
final da controvérsia? A implicação é inescapável – só o concílio podia
oferecer uma decisão final, o bispo de Roma não. Em toda a controvérsia, nem os
donatistas nem Agostinho apelaram ao bispo romano como uma autoridade final.
Agostinho também expressa que a opinião da Igreja Universal era superior à de um
bispo em particular:
Portanto, se Pedro, ao fazer isso, é corrigido
por seu colega Paulo, e ainda é preservado o vínculo de paz e unidade até ser
promovido ao martírio, quanto mais prontamente e constantemente devemos
preferir, ou à autoridade de um único bispo, ou ao concílio de uma única
província, a regra que foi estabelecida pelos estatutos da Igreja universal? (Livro II, cap. 1)
Embora o contexto seja o apelo dos donatistas
a Cipriano, o princípio geral estabelecido é também aplicável ao bispo de Roma.
A autoridade da Igreja universal sobrepõe a opinião de um único bispo. Por esta
razão, o concílio universal, ao reunir a igreja como um todo, tinha mais
autoridade que o bispo individual ou concílios provinciais. Agostinho também
cita com aprovação uma carta de Cipriano, cujas palavras foram proferidas em
meio a controvérsia com o bispo romano Estevão:
Resta-nos declarar nossa opinião sobre este
assunto, não julgando ninguém, nem privando ninguém dos direitos de comunhão se
ele diferir de nós. Pois, nenhum de nós se coloca como bispo dos bispos,
ou, pelo terror tirânico, força seus colegas a uma necessidade de obedecer, visto
que todo bispo, no livre uso de sua liberdade e poder, tem o direito de formar
seu próprio julgamento, e não pode mais ser julgado por outro do que ele
próprio pode julgar a alguém. Mas todos nós devemos aguardar o julgamento
de nosso Senhor Jesus Cristo, o único que tem o poder tanto de nos colocar
no governo de Sua Igreja, como de julgar nossos atos. (Livro II, cap. 2)
Cipriano acreditava que todos os bispos eram
legítimos sucessores da cadeira de Pedro. Assim como Agostinho, quando Pedro
recebeu as chaves, todos os bispos as receberam, logo nenhum bispo poderia ser
colocado como “bispo dos bispos”, ou seja, um papa. O fato de Agostinho não
condenar tais palavras de Cipriano torna impossível que ele defendesse o
papado. Em diversos trechos, Agostinho expressa a autoridade final do concílio
para decidir a questão:
Pois como poderia uma questão que estava
envolvida em névoas de disputa ter sido levada até a plena iluminação e
decisão autoritária de um concílio plenário, se primeiro não se soubesse
que era discutido por um tempo considerável nos vários distritos do mundo, com
muitas discussões e comparações dos pontos de vista do bispo de todos os lados?
(Livro II, cap. 4)
Ele está desculpando Cipriano, pois um
concílio plenário, que poderia decidir finalmente, não ocorreria sem antes
haver genuína controvérsia. Este concílio ocorreu apenas após a morte de
Cipriano.
O caso de Apiário
O caso de Apiário é apontado pelos
historiadores da Igreja como o exemplo claro de que Roma ainda não havia
imposto sua jurisdição sobre a Igreja Africana nos tempos de Agostinho. O
historiador ortodoxo A. Edward Siecienski comenta:
Em 424, um padre africano de nome Apiario
(nomeado “poço de vícios” pelos seus acusadores), apelou a Roma após sua
sentença de excomunhão, mais uma vez levantando a espinhosa questão da
habilidade do papa de se envolver em questões puramente locais. Os ferozes e
independentes bispos africanos – significativamente sem a participação de
Agostinho – escreveram para Celestino, pedindo a ele para não “admitir em sua
presença pessoas [como Apiario] vindo de lá, nem deveria aqueles que
são do além-mar estarem dispostos, daqui em diante, a aceitar de volta a
comunhão aqueles que foram excomungados”, desde que isto era uma
clara violação do cânon 5 de Niceia. Numa carta na qual eles “nem mesmo
tentaram esconder sua fúria", os bispos sarcasticamente perguntaram a
Celestino se “há alguém que acredita que nosso Deus escolheu dotar apenas
uma pessoa com o senso de justiça e negar isto ao incontável número de bispos
reunidos num concílio”. Apesar de eles “considerarem Roma como uma
indispensável fonte de conselho e julgamento”, os bispos africanos
agora rejeitam o papa em termos muito fortes. Eles haviam falado, a questão
estava encerrada.(The Papacy and
the Orthodox: Sources and History of a Debate, Oxford University Press, 2017,
p. 168)
Todavia, quando o historiador
especifica que os bispos do norte da África ameaçaram quem recorresse a Roma,
não pode está colocando no mesmo balaio Agostinho. Devemos pensar o contexto
histórico do norte-africano e o pensamento de Santo Agostinho. Segundo o
Dicionário de Literatura Patrística, de Angelo di Berardino, Giorgio Fedalto e
Manlio Simoretti, na página 76:
“Contra a concepção separatista dos
donatistas, que acabaram por aprisionar a Igreja dentro dos limites da África
romana, Agostinho defende a catolicidade em nome da perene validade da promessa
feita a Abraão, estender sua descendência até as extremidades da terra.”
Ele defende que Agostinho não poderia ter
apoiado seus colegas africanos na proibição dos apelos a sé romana porque o
bispo de Hipona era contra a atitude separatista dos donatistas. Observem que a
fonte citada afirma que Agostinho condenou os donatistas porque eles se
separaram do resto da Igreja que povoava todo o mundo, e não apenas da Igreja
de Roma. Os donatistas estavam apenas no norte da África, enquanto a Igreja
estava espalhada por todo o mundo. Agora, a parte mais sem sentido do argumento
é acusar os bispos africanos de cisma. De onde ele tirou isso? A questão
envolvia direito canônico. Os bispos da África não estavam rompendo a comunhão
com Roma. Isto viria a acontecer séculos depois por causa da questão dos “três
capítulos”. O que eles estavam fazendo é defender, com base nos cânones do
Concílio de Niceia, o direito canônico da Igreja Africana de julgar seus
próprios casos de excomunhão. Tanto é que Roma precisou apelar às falsificações
e apresentar os cânones de Sardica como se fossem de Niceia:
Roma apresentou um dos cânones de Sardica
como um cânone de Niceia. Os bispos africanos disseram corretamente que
não encontraram tal cânon em seus registros (...) Em Roma, os cânones de
Sardica foram assimilados aos cânones de Niceia (uma afirmação que continuou a
ser feita mesmo depois da correção africana!) (Eno, p. 162)
O concílio de Sardica (aqui) atribuiu a Roma a função de tribunal de
apelação a bispos excomungados por outras Igrejas. O bispo de Roma poderia
ordenar que o caso fosse novamente julgado por outro tribunal. Ocorre que os
orientais abandonaram este concílio, e sua autoridade nunca se impôs sobre a
Igreja Universal, apesar dos esforços de Roma. Mesmo no Ocidente, a Igreja
Norte-Africana se manteve fiel aos cânones disciplinares de Niceia (aqui), que não permitiam a intrusão de uma sede
nas questões disciplinares de outra. A autoridade de Sardica era tão
contestável que Roma precisou apresentá-los como cânones nicenos para poder
intervir em outras Igrejas.
Um ponto importante é que a carta na qual os
bispos africanos severamente condenaram a intervenção romana não foi assinada
por Agostinho. As razões para este fato são desconhecidas, no entanto, a condenação
de Apiário ocorreu num concílio. O erudito patrístico J.N.D Kelly escreveu:
Sua convicção [de Celestino] de
que Roma poderia receber apelos de qualquer província o colocou em
coalizão com a igreja norte-africana. Apesar de ele ter se rendido ao
apelo de Agostinho para não atender a demanda de reinstaurarão de Antônio de
Fussala – um bispo deposto que apelou para Bonifácio I, ele solicitou a
reabilitação de Apiario, um sacerdote desonrado que havia sido restaurado
mediante o pedido de Zósimo, mas novamente caiu e foi excomungado, e fora
enviado de volta para África com um legado notoriamente arrogante – Faustino. Um
concílio plenário ocorreu em Cartago (426), no qual Apiario desmoronou e
admitiu sua culpa. Os bispos africanos aproveitaram a oportunidade para
lembrar ao papa a respeito de sua tradicional autonomia, e o pressionaram para
não entrar em comunhão com pessoas que eles excomungaram. (Kelly,
The Oxford dictionary of popes, 3ª edição, p. 41)
Agostinho fez parte deste
concílio, pois além de ser um bispo, era o teólogo mais influente do Norte da
África. Dessa forma, a não ser que o apologista apresente alguma fonte
mostrando o desacordo de Agostinho com seus colegas, o argumento se mostra bem
frágil. É muito improvável que ele não estivesse junto com a Igreja Africana
nesta, até porque, a autoridade do concílio plenário de Niceia dava razão aos
africanos. Agostinho já considerava Niceia um concílio plenário. Dessa forma,
entre Niceia e o papa, o bispo de Hipona obviamente atribuía maior autoridade
ao concílio.
Aspas, sem contar que a
afirmação de não se recorrer a Roma teria para ele forte cheiro donatista,
fecha aspas.
Absolutamente falso. Os
donatistas foram condenados por terem cortado a comunhão com o resto da Igreja.
Os africanos não tomaram tal atitude e apenas defenderam seus diretos
canônicos.
Não obstante, essa ameaça deve ser
entendida no contexto da Controvérsia contra os pelagianos.
O caso de Apiário não tem qualquer
relação com a controvérsia pelagiana. A primeira era uma questão disciplinar, a
última uma questão doutrinária. Não impressiona o Rogério dispensar toda a
historiografia sobre Agostinho, afinal ele acaba de criar a inovadora e
“brilhante” tese de que os bispos africanos, que lutaram e condenaram o
donatismo, estavam sendo donatistas ao defenderem seus direitos canônicos
diante da Igreja de Roma. É óbvio que ele está apenas dando palpites, e tem um
conhecimento bem superficial sobre a controvérsia donatista. Dessa forma,
concluo esta parte afirmando que o problema não é a interpretação de
historiadores como Klaus Schatz, mas os palpites do Rogério que carecem de
qualquer fundamento. O historiador católico William La Due expressa o consenso
acadêmico:
O papa Inocente I (401-417)
direcionou às Igrejas do Ocidente as mesmas pedras que Siricio, apesar de que
pouco após sua morte, o sínodo norte africano de 419 restringiu de forma
inequívoca os direitos dos bispos e do clero de apelarem a Roma. (La due, p. 48)
Destaca-se que aqui não estava em
questão sequer uma primazia jurídica de Roma sobre a Igreja Universal, mas o
direito de Roma de funcionar como uma corte de apelação no Ocidente.
A controvérsia
pelagiana
Nesta parte, o apologista católico
não apresenta qualquer fonte primária e cita uma dissertação do programa de
pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo. O autor não possui até
hoje qualquer artigo publicado sobre História da Igreja. É interessante notar
que para alguém que está disposto a rejeitar a historiografia padrão sobre
Agostinho, um autor como este possa ser usado como autoridade na questão. Para
quem citou apologistas como Ybarra e Amstrong como “historiadores católicos”,
até que já é uma evolução. Contudo, o autor da dissertação não está afirmando o
que o apologista defende:
(...) depois da queda de Roma em
410 (sem a qual a controvérsia provavelmente não teria surgido), as Igrejas
africana e italiana competiram pela influência sobre o ocidente, mas ao
mesmo tempo, os cristãos orientais de diversas maneiras também conseguiram se
envolver na disputa (KARFÍKOVÁ, 2012, p. 159). Para Karfíková, fica claro
que a teologia agostiniana está permeada de fatores extra filosóficos. A
autoridade de bispo, as inevitáveis diferenças na organização das Igrejas
nas diversas regiões provinciais, a relação destas com o poder espiritual e
principalmente com o secular em Roma, representado pelo imperador, e a
ideia de um cristianismo não somente ortodoxo, mas cada vez mais ecumênico, são
concepções possíveis de serem notadas a seu ver nos escritos do hiponense.
Nesse sentido, ela retoma um
posicionamento já apresentado por outro autor, Serafino Prete (1962), mas que é
pouco abordado pela maioria dos pesquisadores. Desta vez, porém, ela já o
consolida na trajetória dos eventos: a atuação do bispo de Roma, Zózimo, e
sua postura dúbia diante do julgamento de Pelágio e de seus seguidores.
Primeiramente, Zózimo aceitou a retratação de Celéstio e a profissão de fé
de Pelágio mesmo após estes terem sido condenados pelos concílios africanos,
porém posteriormente o bispo condenou-os diante dos processos ocorridos no
sínodo de Cartago, em 418 (KARFÍKOVÁ, 2012, p. 162-163). Ambos os autores
concordam que a atitude de Zózimo caracteriza um bispado romano já amplamente
reconhecido como autoridade conciliatória e decisória em relação aos demais e
diante de questões fundamentais envolvendo a sociedade romana, fossem
religiosas, fossem políticas, embora ainda não houvesse uma completa
primazia, tal como nos séculos subsequentes. Haja vista que, embora no
âmbito espiritual, e até mesmo no jurídico em termos locais, os bispos tivessem
poder, a decisão final e o poder político supremo estavam nas mãos do imperador
romano. (Fonte)
Na dissertação acima o autor concorda com
a ideia de Primazia Romana.
O apologista omitiu em sua citação a parte final “a
decisão final e o poder político supremo estavam nas mãos do imperador romano”.
Observem que ele afirma tal coisa até mesmo no “âmbito espiritual”. A
dissertação não é uma obra com foco na teologia nem na doutrina. Como pode ser
visto na conclusão, a preocupação maior era a análise do discurso de Agostinho
e como este foi decisivo para a condenação dos pelagianos. Eu não concordaria
com a afirmação a respeito do poder do imperador sem maiores qualificações
(algo que a dissertação não oferece), mas é óbvio que o autor não está
defendendo a primazia jurídica e universal de Roma sobre toda a Igreja. O que
ele afirma, quando se refere ao poder do imperador, é o cesaropapismo.
Além disso, no trecho: “um bispado romano já amplamente reconhecido como autoridade
conciliatória e decisória em relação aos demais e diante de questões
fundamentais envolvendo a sociedade romana, fossem religiosas, fossem
políticas, embora ainda não houvesse uma completa primazia, tal como nos
séculos subsequentes”, ele afirma uma primazia sobre a sociedade romana. Não
está claro e nem é oferecido maiores explicações sobre o que serial tal
sociedade? Ele está se referindo à sociedade de Roma (a cidade)? Acredito que provavelmente
sim, pois ele está citando outros autores (Prete e Karfikova). A citação de
Karfikova traz o fundo histórico – a queda de Roma em 410. Este evento foi o
saque da cidade de Roma realizado pelos visigodos (aqui). Então, me parece provável que a primazia se refere à
cidade de Roma. Não há como interpretar isto como uma referência a toda a
Igreja. Seria estranho alguém se referir à cidade de Roma como lugar de
primazia incompleta do seu próprio bispo. No entanto, a dissertação não está se
referindo apenas a questões espirituais, mas principalmente políticas. Neste
sentido, a primazia do bispo era ainda incompleta, na medida em que o Imperador
era a autoridade suprema sobre a cidade.
Diante disso,
fui a procura dos dois autores citados para ter mais detalhes. A obra de
Karfikova pode ser vista (aqui). No entanto, não achei nada sobre um primado de Zósimo neste livro.
Na página 159 (a citada pela dissertação), vemos o seguinte:
(...) as Igrejas africana e italiana competiram pela influência sobre o
ocidente, mas ao mesmo tempo, os cristãos orientais de diversas maneiras também
conseguiram se envolver na disputa (1).
A nota de rodapé diz:
Sobre o desenvolvimento da disputa
pelagiana entre os bispos africanos, de Roma e da Igreja Oriental, veja O.
Wermelinger, Rom und Pelagius, Stuttgart 1975.
Ou seja, quando se refere à Igreja
Italiana, está se referindo a Roma. Dessa forma, ela não poderia estar
defendendo um primado de Roma sobre a Igreja africana, uma vez que elas estavam
disputando entre si. Sobre o outro autor – Serafino Prete – não tive acesso a
obra. Em todo o caso, o autor da dissertação usa obras de historiadores que
enunciam a visão padrão da historiografia sobre Agostinho e o papado. Ele traz
J.N.D Kelly que afirmou:
Ao mesmo tempo, não existem
dados de que ele [Agostinho] estivesse disposto a atribuir ao bispo de Roma, em
sua condição de sucessor de Pedro, um magistério doutrinário soberano e
infalível. Por exemplo, quando apelou a Inocêncio em sua controvérsia com
Juliano de Eclano, sua concepção era que o papa seria apenas o porta-voz de
verdades que a igreja romana, desde épocas antigas, sustentava em harmonia com
outras igrejas católicas. Em assuntos práticos, ele também não estava
disposto a abrir mão, mesmo em questões insignificantes, da independência
disciplinar da igreja africana, que Cipriano havia defendido com tanta
intrepidez em sua época. (J.N.D Kelly, Patrística, Origem
e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã (Editora Vida Nova,
1994), pág. 318)
A dissertação também traz Henry
Chadwick (biógrafo protestante de Agostinho) que apresenta opinião semelhante.
Outra obra citada - Agostinho através das Eras – é uma enciclopédia a respeito
do pensamento do africano sobre vários temas. No tema autoridade é trazido um
artigo de Robert Eno, o principalmente especialista citado em meu artigo. Ele
traz a mesma opinião sobre a visão de Agostinho a respeito dos concílios
plenários como o ápice da autoridade da Igreja:
Enquanto para Agostinho a
autoridade dos concílios plenários era “a mais salutar na Igreja” (Ep.
54:1), sua própria experiência era de concílios locais, provinciais ou
regionais na África (...) Agostinho mostrou pessoalmente grande respeito pela
sé romana e seus bispos, apesar de a maioria das questões a respeito da
autoridade romana não terem ainda emergido. Para Agostinho, a autoridade
última residia no consenso da Igreja Católica. Teoricamente, este seria
expresso no concílio da Igreja Universal. (FITZGERALD, A
(ed.). Augustine through the ages: an encyclopedia. Michigan: Erdmans, 1999, p.
81-82)
A carta 54 pode ser vista aqui. A edição de Philip Schaff traz:
(...) Concílios
plenários cuja autoridade na Igreja é a mais competente.
A controvérsia pelagiana
evidenciou os limites da autoridade de Roma. O historiador jesuíta Klaus Schatz
fornece um útil resumo:
No caso do Norte de África é
interessante observar a atitude de uma igreja autoconfiante e
organizacionalmente intacta em relação a Roma. A declaração do
Bispo Agostinho de Hipona (396-430), Roma locuta, causa finita ("Roma
falou, o assunto está resolvido") foi citada repetidamente. No entanto,
a citação é realmente uma ousada reformulação das palavras do pai da igreja
tomadas completamente fora de contexto.
Concretamente a questão era o
ensinamento de Pelágio, um asceta da Grã-Bretanha, que viveu em Roma. Pelágio
tomou uma posição contra o cristianismo permissivo e minimalista que recuava da
seriedade moral do discipulado cristão e usava a incapacidade humana e
confiança somente na graça para desculpar a preguiça pessoal. Ele, portanto,
enfatizou um cristianismo ético de obras e desafio moral no qual a graça era
principalmente um incentivo para a ação; os seres humanos continuam a ser
capazes de escolher entre o bem e o mal por sua própria capacidade. Esse
ensinamento foi condenado por dois concílios do Norte da África em Cartago e
Mileve em 416. Mas como Pelágio viveu em Roma, e Roma foi o centro do
movimento pelagiano, pareceu apropriado informar ao Papa Inocêncio I da
decisão. Em última análise, a luta contra pelagianismo só poderia ser
realizada com a cooperação de Roma. O Papa respondeu finalmente em 417,
aceitando as decisões dos dois Concílios. Agostinho, em seguida, escreveu:
"Já sobre esta causa dois concílios foram enviados à Sé Apostólica,
donde também rescritos chegaram. A causa está terminada. Que o erro possa
igualmente terminar".
Tanto o contexto dessa declaração
e sua continuidade com o resto do pensamento de Agostinho não permite outra
interpretação que não seja a de que o veredicto de Roma somente não é decisivo;
em vez disso, dispõe de todas as dúvidas depois de tudo que a precedeu. Isso
é porque não restava nenhuma outra autoridade eclesiástica de qualquer consequência
para quem os pelagianos poderiam apelar, e em particular a própria autoridade
da qual eles poderiam mais facilmente ter esperado uma decisão favorável, ou
seja, Roma, tem claramente decidido contra eles!
Em geral, Agostinho atribui um
peso relativamente importante de autoridade para a igreja romana em questões de
fé, mas não considera que ela tenha um ofício superior de ensino. Tem
auctoritas, mas não potestas sobre a Igreja no Norte da África. Os próprios
concílios acima mencionados dão uma imagem clara da forma como os africanos,
incluindo Agostinho, consideravam a autoridade de ensino de Roma. Eles
enviaram seus registros a Roma não para obter a confirmação formal, mas porque
reconheciam que a Igreja Romana, com a sua tradição, tinha um auctoritas
recebido em questões de fé; portanto, eles desejavam ter uma decisão Romana
junta com a sua própria. Isso é especialmente evidente em uma carta de
Agostinho escrita para cinco bispos: “não estamos, disse ele, derramando nossa
pequena gota de volta para sua ampla fonte para aumenta-la, mas (...) nós
desejamos ser reafirmados por vocês a respeito destas nossas gotas, que
escassas todavia, fluem a partir da mesma fonte que seu córrego abundante, e
nós desejamos o consolo de seus escritos, tirados de nossa comum partilha da
mesma graça”. Toda a Palavra desta deve ser observada: a igreja romana não
é a fonte da igreja africana, pois ambos, em fluxos paralelos, fluem do rio da
mesma tradição, mesmo que o rio seja mais completo na igreja romana. Roma
tem, assim, uma autoridade relativamente maior e mais importante, sendo por
isso que a Igreja Africana procura um veredicto de Roma. (Papal Primacy,
Minnesota: The Liturgical Press, 1996, p. 34-35)
Destaca-se que, na controvérsia
donatista, Agostinho nunca apelou a Roma e os motivos são óbvios: um concílio
plenário, segundo o africano, já havia decidido contra eles. Já o pelagianismo
era mais disseminado, e seu epicentro fora na própria Roma. Como se tratava de
uma heresia tipicamente ocidental, seriam necessários decisões das duas grandes
igrejas do ocidente: Roma e Norte-Africana. Além disso, os sínodos africanos
eram meramente provinciais. Com o apoio de Roma, eles conseguiriam um plus de
autoridade.
Klaus Schatz usou as expressões
“Auctoritas” para se referir à autoridade da Igreja Romana e mencionou que não
tinha “potestas”. Essas expressões são do direito romano. Autorictas envolve a
autoridade de alguém que possui excelência moral ou notório saber em algo. Eu
mesmo fiz uso dessa ao citar Klaus Schatz. Ele possui “autorictas” porque é um
estudioso no assunto, portanto, sua opinião tem maior peso. Potestas seria a
autoridade institucionalmente e legalmente constituída. Um juiz tem este tipo
de autoridade, sua autoridade nasce do poder legal, sendo obrigatória. Desta
forma, apesar de Roma ter uma autoridade em virtude de sua tradição e
prestígio, não possui uma autoridade vinculante e obrigatória por si mesma.
Essa é uma distinção importante. O apelo de Agostinho a Roma não é uma
evidência de que essa Igreja tivesse a autoridade final em questões
doutrinárias. Na verdade, Agostinho apelou até mesmo ao imperador contra os
pelagianos (aqui). Se os africanos, ao buscarem o apoio do papa, tivessem recebido uma
resposta contrária, e a partir disto tivessem retrocedido de sua posição apenas
porque o papa havia dito, aí sim teríamos uma evidência da primazia jurídica de
Roma. No entanto, a continuidade da controvérsia demonstra o oposto. Karfikova
escreveu:
Enquanto o Papa Inocêncio, tendo
examinado toda a questão, cumpriu a exigência dos bispos africanos de que o
pelagianismo fosse condenado como uma perigosa heresia (janeiro de 417)
(Ep. 181 e 182), seu sucessor grego Zósimo reabilitou tanto Pelágio como seu
discípulo Celéstio (verão de 417). Os bispos africanos reagiram a isso
convocando um sínodo em Cartago em 1º de maio 418, que condenou os
ensinamentos de Celéstio e Pelágio (Concilia Africae, CCL 149, 69–73) e
também viu um edito imperial anti-pelagiano em 418 (uma delegação em Ravena
liderada pelo comissário imperial Marcelino). Foi somente devido a essa
pressão que Zósimo confirmou a decisão do seu antecessor, emitida numa
carta encíclica (Tractoria) no verão de 418. (Karfikova, p. 162)
O papa Zósimo reabilitou os
pelagianos. Os que os africanos fizeram? Acataram a decisão de Roma porque esta
era final? Obviamente não. Eles resistiram e convocaram novo concílio, no qual
Pelágio fora novamente condenado. Eles também apelaram ao imperador, de forma
que uma decisão imperial foi lançada contra Pelágio. Alguém estaria disposto a
dizer que o imperador era um árbitro final na disputa? Creio que não. Estando
pressionado, Zósimo retrocedeu e condenou os pelagianos através de uma carta
encíclica que foi enviada para assinatura dos outros bispos da Itália:
No entanto, o decreto de Zósimo foi
rejeitado por dezoito bispos italianos liderados por Juliano de Eclano
porque eles consideravam a doutrina do pecado original uma superstição
não-cristã fundamentada na religiosidade popular africana. A vitória
africana provocou discórdia entre o episcopado italiano e uma escalada
acentuada de toda a situação. (Karfikova, p. 163)
A autoridade do papa era
questionada mesmo entre os bispos italianos. Precisamos retroceder um pouco. A
primeira condenação de Pelágio ocorreu em 416 por dois sínodos africanos.
Porém, em 415 Pelágio já havia sido considerado ortodoxo por um sínodo
palestino (Sobre o pecado origina, capítulo 15), embora o pelagianismo nunca
tivesse interessado ao Oriente. Em 411, Celéstio, um discípulo de Pelágio havia
sido condenado por um sínodo africano. Esta era mais uma razão do porque a
condenação do sínodo romano era importante, afinal, apesar de ter sido
condenado na África, Pelágio ainda tinha o sínodo palestino ao seu favor. Eno
comenta:
Por que Roma de repente se
envolveu neste momento, quando seu papel tinha sido menor no problema do
donatismo? Os africanos condenaram os ensinamentos pelagianos apenas para
encontrar seu trabalho desfeito por um concílio palestino. A condenação
de uma parte da Igreja foi neutralizada pela aprovação de outra parte. Se a
prestigiada Sé de Roma com o seu mundial respeito aprovasse uma decisão
africana, então haveria um efeito maior e duradouro. Outro aspecto significativo
era a conexão romana do próprio Pelágio. Este monge passou muitos anos
em Roma e adquiriu a reputação de ser um cristão sério trabalhando por reforma.
Ele tinha círculos de amigos e discípulos tanto do clero romano como dos
leigos. Teria sido desastroso para sua causa se sua condenação tivesse sido
desfeita pela aprovação romana. Como os africanos escreveram para Inocêncio, as
visões do papa tinham "grande peso com ele (pelágio)." (Ep. 177.15
(CSEL 44.684) (Eno, p. 169)
Eno também explica porque Agostinho
não apelou ao concílio plenário na questão pelagiana:
Por que os africanos com Agostinho
na vanguarda se voltaram para Roma ao invés de um concílio plenário para
resolver esta questão? Além da especial relevância de Roma para esta questão
particular que discutimos acima, havia também a necessidade de rapidez. Agostinho
afirmou que não havia uma situação real de dúvida ou incerteza na Igreja, para
se pudesse convocar um concílio plenário. Ele sustentou que a visão pelagiana
tinha já há muito tempo sido rejeitado de fato por homens como Cipriano e
Ambrósio. Ao contrário dos donatistas, católicos e pelagianos reconheceram os
mesmos bispos. Esses bispos já haviam julgado os pelagianos e os condenado.
Os Pelagianos eram poucos em número e exigiram um concílio, não porque era
necessário, mas para ganhar notoriedade para si mesmos. (128) Pode-se
também levantar a questão se Agostinho estava disposto a um confronto com os
bispos orientais em um concílio sobre o pecado original, especialmente após o
fiasco palestino. Por sua vez, Juliano preferiu ver a si mesmo como um dos
pequenos remanescentes ortodoxos que sustentavam a fé católica, assim como
Atanásio havia feito contra os concílios imperiais. (Eno, p. 171)
Nota de rodapé n. 128: Não necessidade de um concílio - Contra Juliano
3.1.5 (PL 44.704) e Contra as duas epístolas dos pelagianos 4.12.34 (CSEL
60.570).
Vejamos tais fontes:
Ou, de fato, havia alguma
necessidade da reunião de um sínodo para condenar esta praga evidente, como se
nenhuma heresia pudesse ser condenada a qualquer tempo exceto por uma reunião
sinodal? Quando, ao contrário, podem
ser encontradas muito poucas heresias
que demandaram uma necessidade deste tipo; e foram muitas e
incomparavelmente mais numerosas as [heresias] que mereceram ser acusadas e
condenadas no lugar onde surgiram, e dessa forma puderam ser conhecidas e
evitadas nas outras terras. Mas o orgulho de tais pessoas, que se ergue tanto
contra Deus a ponto de não querer se gloriar nEle, mas sim do livre arbítrio, é entendido como agarrando-se também a essa
glória, que um Sínodo do Oriente e do Ocidente devesse ser reunido por causa
deles. De fato, eles tentam perturbar o mundo católico, porque, sendo o
Senhor contra eles, eles são incapazes de pervertê-lo. (Contra as duasepístolas dos pelagianos 4.12.34)
O pelagianismo nunca teve uma adesão
significativa de setores da Igreja. De fato, foi uma controvérsia ocidental que
em quase nada afeitou o Oriente. Não era uma controvérsia que demandasse um
concílio plenário. Agostinho afirma que as heresias eram geralmente debeladas
em nível local, de forma que o resto da Igreja não fosse afetada. Também, a
defesa da não necessidade do concílio revela a ausência do papado em Agostinho.
Se o bispo de Roma fosse o árbitro final da doutrina, o bispo africano
simplesmente diria que o concílio era desnecessário porque uma autoridade maior
já havia decidido.
Estes são bispos, instruído, sérios, santos e zelosos defensores da
verdade contra vaidades tagarelas; em cuja razão, aprendizado, liberdade - três
qualidades que você diz serem necessárias para um juiz - você não encontra nada
para desprezar. Se um sínodo episcopal
fosse reunido de todo o mundo, seria surpreendente se tantos homens de tal
calibre pudessem ser membros dele. Pois
estes não viveram todos de uma só vez, mas Deus, como lhe agradou e Ele
julgou conveniente, distribui Seus mordomos, fiéis, poucos, mais excelentes que
muitos, em diversas eras, épocas e lugares. Então você os vê reunidos de vários períodos e regiões, do Oriente e do
Ocidente, não em um lugar para o qual os homens são obrigados a viajar, mas em
um livro que pode viajar para os homens. (Contra Juliano 3.1.5)
Os bispos referidos no início da
citação são pais da igreja como Cipriano, Ambrósio, Atanásio. Aqui, ele usa o
argumento de que estes homens testemunharam claramente contra o pelagianismo e
que mesmo um concílio plenário não reuniria tantos homens de tal calibre. Fica
evidente outra diferença entre as duas controvérsias para Agostinho: enquanto
os donatistas poderiam apelar a Cipriano – alguém cujo prestígio era
inquestionável, os pelagianos não tinham ninguém parecido a seu favor. Este é
mais um fator a explicar porque uma controvérsia mereceu um concílio plenário, enquanto
a outra não. É com base em tais fontes e argumentos que Eno assevera:
É claro que Agostinho tinha um
respeito genuíno pela posição da igreja de Roma na Igreja universal. Na verdade,
seus pontos de vista eram provavelmente mais amigáveis do que os de muitos de
seus colegas africanos. Agostinho, afinal de contas, tinha um conhecimento
pessoal da cidade, bem como de alguns clérigos romanos. Não obstante, sua
ação na crise pelagiana não alterou sua visão básica do concílio plenário como
a última instância em disputas na Igreja, nem a sua visão da atividade
conciliar em geral como o caminho comum para resolver problemas intra-eclesiais
além do nível da igreja local. (Eno, p. 171)
Tenhamos em mente que Agostinho se
envolveu em duas grandes controvérsias: donatismo (quando mais jovem) e
pelagianismo (envolveu o período mais próximo ao fim de sua vida em 430). É neste
sentido que Eno afirma que a questão pelagiana não modificou a visão de
Agostinho a respeito do concílio plenário já exposta neste artigo. Ainda sobre
a Igreja Oriental, de fato, esta parte da Igreja nunca aceitou a visão
agostiniana sobre o pecado original. Provavelmente o bispo de Hipona teria
dificuldades num debate sobre isto com os orientais. Há outros aspectos da
controvérsia pelagiana que evidenciam os limites do poder de Roma. Mesmo após
todos esses sínodos ocidentais, alguns pelagianos buscaram refúgio em
Constantinopla. O patriarca desta Igreja (Nestório) enviou cartas a Roma
informando a possibilidade de reabrir o caso dos pelagianos, o que angariou a
fúria de Roma (aqui na seção Nestório e os limites da jurisdição romana). A pedido do
papa Celestino, a condenação ao pelagianismo foi ratificada pelo Concílio
Ecumênico de Éfeso (aqui na seção Éfeso e a condenação ao pelagianismo). Enfim, mais uma evidência de que as decisões de Roma não eram finais e
de que o Concílio plenário gozava de autoridade superior.
O
termo papa
Um argumento apologético popular
é a afirmação de que o bispo de Roma era chamado de papa, logo, era de fato um
papa com todos os poderes que só vieram a ser associados ao papado séculos
depois. É um terrível anacronismo supor que só porque um termo é utilizado num
determinado período, seu significado seja o mesmo em todos os outros períodos.
Mas espere! Parece
que o termo papado não existia antes do século V. Sim, a população local
tratava o bispo de Roma como “papa”, que significa pai, entretanto, o termo não
era usado oficialmente exclusivamente para a igreja Romana.
Na verdade, o primeiro
registro histórico do termo se referia ao bispo de Antioquia e ocorrera no séc.
IV. Ele parece concordar que a presença do termo não é evidência do papado
neste período, uma vez que o termo expressava respeito e afeição e não uma
posição de autoridade oficial. O próprio Agostinho se referia ao bispo Aurélio
- primaz do Norte da África - como papa (De gestis 1:1)
Porém, o fato de o
termo não ser utilizado oficialmente nesse sentido à época não é de forma
alguma indicativo de que a instituição não houvesse. Não é porque antes de
Newton não se conhecia o termo gravidade que nossos antepassados saíram
flutuando para fora da órbita da Terra. Não é?
De fato, Newton não inventou a
gravidade, ele apenas a descobriu. Caso contrário, nossos antepassados teriam
flutuado como ele disse. É interessante que ele não tenha notado como essa
analogia demonstra a falácia de seu argumento. Ele admite que o bispo de Roma
não exercia primazia jurídica sobre toda a Igreja neste período. No entanto, ao
mesmo tempo a instituição do papado já existia. Ou seja, seria o mesmo que
dizer que a gravidade já existia, mas seus efeitos ainda não. Analogamente, é
sem sentido dizer que o papado estava operante neste período, mas sua
jurisdição não era universal, pois o último é efeito necessário do primeiro.
Considerações
Finais
Creio ter ficado evidente do
porquê a tese do Agostinho papista ser amplamente rejeitada pela historiografia
da Igreja. Ele escreveu exaustivamente sobre a questão da autoridade e as
controvérsias nas quais se envolveu teriam deixado claro a ideia do papado. No
entanto, viu-se o contrário. Agostinho formulou sua eclesiologia especialmente
na controvérsia donatista, sendo evidente que o concílio plenário era para ele
o órgão máximo de autoridade da Igreja. Além disso, ele viu o primado de Pedro
apenas como um privilégio pessoal e não como um ofício de autoridade sobre os
outros apóstolos. Dessa forma, não há no africano as duas premissas
fundamentais do papado. O fato de Agostinho acreditar em sucessão apostólica ou
na autoridade da tradição são insuficientes para estabelecer tais premissas. A
hierarquia de autoridades do pai da Igreja comportava tais autoridades, mas a
Escritura ainda era suprema:
Na visão de Agostinho, havia
uma hierarquia definida de autoridades. À Sagrada Escritura foi
atribuída a mais alta autoridade para a determinação do ensino. Depois da
Escritura vinha a tradição e a prática da Igreja universal. Finalmente, havia
os órgãos de autoridade dentro da Igreja que possuíam poderes de decisão. O mais notável desses órgãos era o
"concílio plenário da Igreja universal". Além disso, dentro de
qualquer processo teológico, a razão desempenhou um papel importante, embora
subordinado (...) Concílios também estão subordinados à Escritura (...)
Em outros lugares, o bispo de Hipona observou que tanto católicos como
donatistas estavam de acordo sobre a supremacia da Escritura .... Mas
Agostinho, recorde-se, subordina tudo às Escrituras, não só os escritos
de bispos influentes como Cipriano, mas também costumes da igreja universal. (Eno,
p. 133-134, 138-139, 141)
Pretendo no futuro entrar em
mais detalhes sobre esta complexa hierarquia de autoridades e como elas foram
abordadas por Agostinho. Eu já escrevi sobre isto aqui, aqui e aqui.
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