Um dos temas mais debatidos
entre romanistas e protestantes é a unidade. Os católicos romanos
frequentemente apontam a falta de unidade do protestantismo como algo
problemático e referem-se a si mesmos como um exemplo de unidade, afinal eles
teriam um papa que mantém a unidade da Igreja. Qualquer pessoa que estude a
fundo o romanismo perceberá que esta não e uma descrição correta da realidade.
A igreja romana está cheia de grupos lutando entre si para decidir quem guardou
“o verdadeiro ensino da igreja”. É comum também que a falta de unidade do
protestantismo seja superestimada. Não raro, grupos como Testemunhas de Jeová e
Mórmons são citados como protestantes, algo que nem os próprios afirmariam. Não
seria errado afirmar que há mais unidade entre batistas e presbiterianos, a
título de exemplo, do que entre os católicos romanos brasileiros. O romanismo
no Brasil é bastante sincrético, e não raro os seus membros aderem a todo o
tipo de doutrina estranha à fé cristã (o espiritismo kardecista é um exemplo
recorrente).
E como seria a igreja
primitiva? Será que os pais se referiam à igreja como uma unidade encabeçada
pelo bispo de Roma? A resposta é definitivamente não. Havia um grau
considerável de diversidade doutrinária na igreja dos primeiros séculos. Qualquer
pessoa que estude a patrística a fundo perceberá que o consenso dos pais é
obtido apenas em questões que os cristãos hoje considerariam bem fundamentais
(inspiração das Escrituras, nascimento virginal, morte e ressurreição de Cristo
....). Cardeal Newman, ao comentar o princípio do consentimento unânime dos
Pais de Vicente, escreveu:
Não
parece possível, então, evitar a conclusão de que, qualquer que seja a chave
apropriada para harmonizar os registros e documentos da Igreja Primitiva e da
Igreja mais tardia e considerando como verdadeiro o ditado de Vicente, deve ser
considerado em abstrato, e como possível a sua aplicação em sua própria época,
quando ele quase poderia pedir aos séculos primitivos o seu testemunho. Isso dificilmente está disponível agora, ou
efetivo para qualquer resultado satisfatório. A solução que ele oferece é tão
difícil quanto o problema original. (An Essay on the Development of Christian Doctrine
(New York: Longmans, Green and Co., reprinted 1927), p. 27)
Newman reconhece que o
consentimento dos Pais não seria suficiente para harmonizar os documentos da
igreja antiga e moderna. Ou seja, ele reconhece que apelar aos pais da igreja
para rastrear as inovações romanistas não soluciona o problema. Isso ocorre
porque mesmo que os apologistas católicos encontrem algum testemunho patrístico
favorável a uma doutrina “X”, vários outros testemunhos incompatíveis podem ser
oferecidos. Não raro os apologistas falsificam ou deturpam citações dos pais da
igreja no afã de demonstrar a antiguidade das inovações. Um dos relatos mais
impressionantes é fornecido por Orígenes em seu livro contra Celso. Uma das
críticas mais frequentes era a falta de unidade:
E
como não se pode censurar a filosofia por causa dos sofistas, dos epicureus,
dos peripatéticos ou de quaisquer outros defensores de opiniões falsas, tampouco é razão de queixa contra o
verdadeiro cristianismo a existência daqueles que manipulam os evangelhos e
introduzem heresias estranhas ao sentido do ensinamento de Jesus. (Contra
Celso 2:27)
Orígenes se refere
especificamente aos hereges. Eles não invalidavam a mensagem cristã. Da mesma
forma, o fato de existirem igrejas que se autodenominam evangélicas ou
protestantes, mas que não são fiéis aos princípios da Reforma (ex. igrejas
neopentecostais) não invalida a igreja cristã protestante. Toda religião
organizada precisa lidar com heresias internas. O mesmo se aplica ao romanismo.
Orígenes escreveu:
Considera
igualmente a prova que ele [Celso] apresenta para isto: “Na origem eram um pequeno número, animados todos do mesmo pensamento;
mas logo que se propagam em grande número, dividem-se e separam-se, e cada qual
quer ter sua própria facção: a tanto aspiravam desde a origem”. É evidente
que, comparados com o grande número que eles seriam mais tarde, os cristãos na
origem eram um pequeno número (...)
Também declara ele que todos eram animados pelo mesmo pensamento. Nem mesmo enxerga que desde a origem houve
desacordo entre os crentes sobre a interpretação dos livros considerados
divinos. Pelo menos, enquanto os apóstolos ainda pregavam e as testemunhas
oculares de Jesus ensinavam o que tinham aprendido dele, surgiu uma discussão
importante entre os judeus crentes com relação aos gentios que chegavam ao
evangelho: devia-se porventura fazê-los observar os costumes judaicos ou
tirar-lhes a obrigação relativa aos alimentos puros e impuros, que não devia
abranger aqueles que tinham deixado os costumes antepassados na gentilidade e
criam em Jesus (cf. At 10,14; 11,8; 15,28). Além disso, nas cartas de Paulo,
contemporâneo dos que haviam visto Jesus, encontramos alusões a certas discussões
sobre a questão se a ressurreição tinha acontecido, e se “o dia do Senhor”
estava próximo ou distante (cf. 1Cor 15,12s; 2Tm 2,18; 1Ts 5,2). Há também esta
passagem: “Evita o palavreado vão e ímpio e as contradições de uma falsa
ciência, pois alguns, professando-a, se desviaram da fé” (1Tm 6,20-21; 1,19); ele mostra que desde a origem houve
interpretações diferentes, quando os cristãos, nas palavras de Celso, ainda não
eram numerosos. (Contra Celso 3:10)
Celso afirma que os cristãos
se dividiram à medida que cresceram em número. O que Orígenes responde? Ele
diz: “não, é uma mentira. Todos nós estamos unidos ao sucessor de Pedro, o
bispo de Roma. Todos acreditamos nas mesmas coisas”. Definitivamente não. Ele
reconhece que há divergências doutrinárias. Ainda diz que estas divergências existiram
desde o início. E mais, ele não considera esses divergentes como hereges.
Orígenes se refere a eles como cristãos. É óbvio que ele considerava certo
nível de divergência tolerável – algo que não invalidava a fé cristã:
Em
seguida, numa nova afronta à nossa doutrina, ele [Celso] nos censura por causa da existência de seitas no seio do
cristianismo: “Mal se propagam em grande número, eles se dividem e se separam, e cada qual quer ter sua própria facção.”
E declara: “Separados novamente por
causa de seu grande número, eles se anatematizam uns aos outros; nada mais têm
em comum, por assim dizer, a não ser o nome, se é que ainda o têm! Pelo
menos é a única coisa que tiveram vergonha de abandonar; de resto, cada qual abraçou uma seita diferente”. A isto respondo: não há disciplina com instituição séria e
útil à vida que não tenha visto nascer seitas diferentes. Sendo a medicina
útil e necessária ao gênero humano e abordando muitas questões discutidas sobre
a maneira de cuidar do corpo, encontramos por este motivo na medicina entre os
gregos escolas bem numerosas, como todos atestam; o mesmo sucede, suponho eu,
entre os bárbaros, pelo menos entre os que declaram praticar a medicina. Por
sua vez, a filosofia, ao prometer a verdade e o conhecimento dos seres,
prescreve como se deve viver e procura ensinar o que é útil à nossa raça, enquanto o objeto de suas investigações
apresenta grande diversidade; por este motivo, constituíram-se na filosofia
escolas tão numerosas, algumas célebres, outras menos. Além disso, o judaísmo deu margem ao nascimento de seitas
na interpretação diferente dada aos escritos de Moisés e aos discursos
proféticos. Por isso também, quando
o cristianismo foi valorizado aos olhos dos homens, não só por causa do
ajuntamento de escravos que Celso nele via, mas também por causa dos numerosos
sábios gregos, inevitavelmente se
formaram seitas, jamais em razão das rivalidades e do espírito de disputa, mas
porque também muitos desses sábios procuravam compreender os mistérios do
cristianismo. O resultado de suas
interpretações das Escrituras, que todos juntos julgavam divinas, foi o
surgimento de seitas patrocinadas por autores cuja admiração pela origem da
doutrina não tinha impedido de serem incitados de um modo ou de outro, por
motivos plausíveis, a opiniões divergentes. Mas não seria razoável fugir da
medicina por causa de suas escolas; tampouco seria razoável, quando se tem em
vista o melhor, odiar a filosofia alegando para justificar esta antipatia o
grande número de suas escolas; igualmente
não seria razoável, por causa das seitas do judaísmo, condenar os livros
sagrados de Moisés e dos profetas. (Contra Celso 3:11-12)
Mais uma vez ele admite a
existência de grupos divergentes no seio do Cristianismo. Ele usa as escolas de
medicina e filosofia como exemplo do fato de que algum grau de divisão é
inevitável. O revelador é que mais uma vez ele não trata os grupos divergentes
como hereges de fora da igreja. Ele os trata como verdadeiro cristãos. Orígenes
vê com naturalidade o fato de existirem mestres cristãos com interpretações
diferentes da Escritura – o mesmo que ocorria no judaísmo. Ele reconhece que o
fato de os mestres se interessarem pelo estudo da Escritura inevitavelmente
levava a opiniões diferentes, que o próprio Orígenes considerava plausíveis e
aceitáveis. Como alguém que supostamente tinha um papa poderia se defender
dessa forma contra um crítico? Quantos teólogos católicos ao discutirem esse
tema se esqueceriam de citar o papado? E ainda veriam como plausíveis e
naturais interpretações divergentes da Escritura? Os romanistas costumam citar
as divergências interpretativas das Igrejas protestantes. Para Orígenes, isso
não necessariamente era um problema:
E
havendo a esse respeito um modo de ver coerente, por que não justificar também as seitas entre os cristãos? Paulo me
parece ter falado delas de maneira particularmente admirável: “É preciso que
haja até mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos entre vós os
que são comprovados” (1Cor 11,19) (...) E
criticar nossa doutrina por causa das seitas seria igualmente criticar o ensino
de Sócrates, porque de sua escola se originaram muitas outras com doutrinas
divergentes. Além disso, deveríamos criticar as doutrinas de Platão porque
Aristóteles deixou de frequentar sua escola para abrir uma nova, como aludimos
acima. Celso, porém, me parece ter tido conhecimento de certas seitas que não têm
em comum conosco sequer o nome de Jesus. Talvez
tenha ouvido falar dos “ofitas” e “caimitas” ou de qualquer outra seita
semelhante que abandonou inteiramente Jesus. Aliás, nada há neste ponto que mereça crítica à doutrina cristã. (Contra
Celso 3:13)
Neste trecho, Orígenes
diferencia as seitas que ele considerava cristãs daquelas que já não poderiam
ser consideradas cristãs como os ofitas e caimitas. Os protestantes
acertadamente defendem que existem fundamentos que são inegociáveis – para ser
cristão é preciso acreditar neles – mas que há questões secundárias sobre as
quais há liberdade para divergência. O pai alexandrino compreendia da mesma
forma. Algum grau de liberdade era aceitável:
Continua
Celso: “Ninguém imagine que eu ignore isto: alguns deles concordam em que
possuem o mesmo Deus que os judeus, mas os outros pensam que existe um Deus
diferente ao qual se opõe o primeiro, e do qual veio o Filho”. Se ele acredita que a existência de várias
seitas entre os cristãos constitui um agravo ao cristianismo, por que não se
veria uma censura análoga à filosofia no desacordo que existe entre as escolas
filosóficas, não sobre assuntos irrelevantes, sem importância, mas sobre
questões capitais? Deveria igualmente acusar a medicina por causa das
escolas que ela apresenta. (Contra Celso 5:61)
Celso afirmou que alguns
cristãos acreditavam que o Deus dos judeus era diferente dos cristãos (uma
referência aos marcionitas). Na continuação de sua resposta, Orígenes nega que
algum cristão acredite nisso. Ele considerava que essa doutrina era um
fundamento inegável. Percebam que o pai da igreja claramente diferenciava
interpretações diferentes que eram aceitáveis de outras doutrinas que eram
inegociáveis. Por isso, havia seitas que eram cristãs e outras que já não mais
poderiam ser chamadas assim.
Outro ponto destacado pelos
protestantes é a diferença entre unidade institucional e unidade de fé. A
igreja romana pode abrigar sob o “guarda chuva” de sua hierarquia diversos
grupos (tradicionalistas, modernistas, carismáticos, sedevacantistas,
conservadores, liberais, teólogos da libertação ...), mas como é sabido, estes
grupos possuem divergências importantes. Firmiliano (bispo norte-africano do
séc. III) escreveu:
Pois,
assim como o Senhor que habita em nós é um e o mesmo, Ele em todos os lugares
junta e acopla seu próprio povo no vínculo da unidade, pois sua voz tem saído
para toda a terra, que são enviados pelo Senhor correndo no espírito da
unidade. Por outro lado, não é vantajoso
que alguns sejam muito próximos e unidos num mesmo corpo, se no espírito e na
mente eles divergem, já que as almas não podem ser unidas naquilo que
separa elas próprias da unidade de Deus. (Carta de Cipriano 74:3)
Unidade de fé e comunhão são
mais importantes do que unidade orgânica. A última sem a primeira não significa
absolutamente nada. Outro ponto ignorado pelos apologistas de Roma é o intenso
debate teológico entre os pais da igreja. Não faltam exemplos de discussões que
apontam divergências, e nenhum deles apelava a um suposto juiz infalível para
resolver a contenda. Em alguns casos, esses debates iam muito além de meras
discussões e levavam ao derramamento de sangue. A sucessão dos bispos romanos
não raramente estava envolta em muita violência. Um exemplo conhecido é de Dâmaso
e Ursino (dois candidatos ao bispado de Roma). O erudito patrístico J. N. D
Kelly escreve:
Dâmaso
contratou uma gangue de bandidos que invadiu a Basílica Juliano, realizando um massacre de três dias dos
ursinianos. (The Oxford Dictionary of Popes - USA: Oxford University Press. pp. 32)
Hipólito de Roma foi outro não
muito simpático aos bispos romanos de seu tempo:
Mas
o próprio Zeferino, sendo com o
passar do tempo seduzido, precipitou-se nas mesmas opiniões, e teve Calisto como seu conselheiro e um
companheiro-campeão destas doutrinas perversas. Sobre a vida deste Calisto
e a heresia inventada por ele, vou depois explicar mais. A escola desses
hereges continuou a adquirir força e aumentou durante a sucessão de tais
bispos, pelo fato de Zeferino e Calisto ajudarem a prevalecer. No entanto, em nenhum momento fomos
culpados de conluio com eles. Frequentemente
lhes oferecemos oposição e os refutamos, e os obrigamos a reconhecer com
relutância a verdade. E eles, confusos e constrangidos pela verdade,
confessaram seus erros por um curto período, mas depois de um tempo, nadam
novamente no mesma lama. (A Refutação de Todas as Heresias, 9:2)
Zeferino e Calisto foram
bispos de Roma e foram acusados por Hipólito de serem modalistas (uma heresia
cristológica). Percebam como Hipólito considera mais importante seguir o que
ele acreditava ser a doutrina correta ao invés de aderir ao ensino desses
bispos. Esse definitivamente não me parece a descrição de uma igreja unida, e
com o passar do tempo se acumularão exemplos parecidos. Não por acaso, a igreja
romana teve mais de quarenta antipapas. João
Crisóstomo também testemunha sobre a falta de unidade em seus dias:
O que se pode dizer das
desordens nas outras Igrejas? Porque o mal não parou aqui [Constantinopla], mas
fez o seu caminho para o Oriente.
Pois, quando alguma desgraça se abate sobre a cabeça, todas as outras partes
são corrompidas, e agora também estes males, tendo se originado nesta grande
cidade [Roma] como de uma fonte, a confusão se espalhou em todas as direções, e o clero em toda parte revolta-se contra
os bispos. Houve cisma entre bispo e bispo, povo e povo e terá ainda mais:
todo lugar está sofrendo as angústias da calamidade e da subversão de todo o
mundo civilizado. (Carta de Crisóstomo para o Bispo de Roma,
Carta 1:4)
Jerônimo também diz:
Pois o Imperador e todos os
homens bons tinham um mesmo objetivo, que o Oriente e o Ocidente fossem unidos
pelo laço da comunhão,
mas a maldade não se esconde muito e a ferida que é curada superficialmente tem
Valens e Ursacio e outros associados a eles em sua perversidade, eminentes bispos cristãos,
naturalmente, começaram a agitar suas palmas, e dizer que não negaram que Ele
era uma criatura, mas que Ele era como os outros. Naquele momento o termo Usia
foi abolido: a fé de Nicéia foi
condenada por aclamação, o mundo inteiro gemeu e ficou surpreso ao se achar
Ariano. (O Diálogo Contra os Luciferianos, 19)
O arianismo se tornou a
regra na igreja. Imagine um fiel do séc. IV – se ele aderisse
incondicionalmente à autoridade da igreja, abraçaria a heresia. Jerônimo também
comenta:
A
igreja foi rachada em três facções,
e cada uma delas está ansiosa para me agarrar.
(Carta 16:2)
A unidade cristã é primariamente
organizacional ou espiritual? Os católicos romanos muitas vezes tentam
minimizar os desacordos entre os membros de sua denominação maximizando a
desunião organizacional entre os evangélicos, mesmo quando esses evangélicos
concordam amplamente sobre as questões de fé. Atanásio não concordaria com as
prioridades dos modernos apologistas romanos. Ele escreveu o seguinte no quarto
século, quando os hereges arianos conseguiram as posições de liderança na
maioria das igrejas, incluindo a igreja Romana:
Eu
sei que não só isso entristece, mas também o fato de que enquanto outros
obtiveram as igrejas por violência, você está expulso de seu cargo. Pois eles ocupam os cargos, mas você [tem]
a fé apostólica. Eles estão nos
cargos, mas fora da verdadeira fé; enquanto estiver fora dos cargos de fato,
mas na fé, você está dentro. Vamos considerar o que é maior, o cargo ou a
fé. É evidente que a verdadeira fé. Quem perdeu mais ou possui mais? Aquele que
ocupa o cargo ou tem a fé? Na verdade bom
é o cargo, quando a fé apostólica é lá pregada, santo ele [cargo] é se um
santo habita lá (...) Mas sois abençoados, que
pela fé estão na Igreja, habitam sobre os fundamentos da fé, e tem plena
satisfação, até mesmo o mais alto grau de fé que permanece entre vocês
inabalável. (Carta festiva 29)
Como podemos identificar a
verdadeira igreja? Se você adota o paradigma romanista, dirá que está onde há
uma hierarquia visível liderada pelo suposto sucessor de Pedro. Se adotar o
paradigma protestante, dirá que está onde o evangelho genuíno é pregado.
Atanásio adotava o segundo critério. Os arianos poderiam ocupar os cargos –
eles eram a hierarquia, todavia, eles não guardavam a fé apostólica. A
verdadeira igreja era formada pelos que guardavam a fé, mesmo tendo sido
excluídos da hierarquia.
Os concílios merecem um
capítulo a parte. A história da igreja contém vários exemplos de concílios que
eram aceitos por uma igreja, mas não pela outra. O historiador católico romano
Eamon Duffy escreveu:
Mas,
além de sua obra doutrinal, o Concílio de Constantinopla emitiu uma série de
cânones disciplinares, que foram direto
para o coração das reivindicações romanas ao primado sobre toda a Igreja. O
concílio decretou que os apelos nos casos dos bispos deveriam ser ouvidos na
própria província do bispo - uma
refutação direta da pretensão de Roma de ser a última corte de apelação em
todos os casos. Continuou a estipular que "o bispo de Constantinopla
terá a preeminência em honra após o bispo de Roma, pois Constantinopla é a Nova
Roma". Este último cânon era
totalmente inaceitável para Roma por duas razões. Em primeiro lugar,
capitulou na pretensão imperial de controlar a Igreja, uma vez que
Constantinopla não tinha senão o estatuto secular da cidade para justificar
dar-lhe esta precedência religiosa. Pior, no entanto, a redação implicava que a primazia da própria Roma derivava não de seu
pedigree apostólico como Igreja de Pedro e Paulo, mas do fato de que ela já
havia sido a capital do império. Dâmaso e seus sucessores recusaram-se a
aceitar os cânones. (Saints and Sinners: A History of the Popes [New Haven
and London: Yale University Press, 1997], pp. 25-26)
O historiador católico
romano Klaus Schatz dá um importante relato de outra controvérsia que gerou uma
série de cismas:
A
"disputa dos três capítulos" se relaciona com a intenção do Imperador
Justiniano de restaurar a unidade com os monofisitas, ao condenar os escritos
de três teólogos (Teodoro de Mopsuéstia, Tedodoreto de Cirro e Ibas de Edessa) que
pertenciam à linha de Antioquia. O imperador pensava que Calcedônia não poderia
ser livre da suspeita dos monofisitas de ser um concílio "nestoriano"
a menos que estes três teólogos, autênticas bestas negras para os monofisitas,
fossem considerados ortodoxos. Para fazer isto, naturalmente, tinha que
convencer o Papa Vigilio (537-555), que, pouco amigo de conflitos, se rendeu em
primeira instância por "judicatum" (548) e condenou os três capítulos.
Dada à onda de indignação que surgiu no Ocidente, onde se dizia que o papa
tinha traído Calcedônia, este modificou seu julgamento e anulou a condenação ("Constitutum"
553). O Imperador, por sua vez, convocou
um concílio em Constantinopla (Constantinopla n, 553), que, composto unicamente
por inimigos dos três capítulos, não somente condenou estes, mas também
excomungou o papa. Este é o único caso em que um concílio ecumênico tomou
abertamente postura contra um papa e não teve o mesmo destino de Éfeso, mas
acabou sendo recebidos e até mesmo papalmente reconhecido como legítimo. O
Concílio poderia superar a oposição do Papa apelando para Mt 18:20 ("Onde
dois ou três estiverem reunidos em meu nome... "), segundo o qual nenhum indivíduo pode prevalecer sobre a decisão da
igreja universal. Embora este argumento não fosse robusto, uma vez que o
Papa não estava sozinho, mas teve o apoio de todo o Ocidente, que, no entanto,
não estava representado no concílio, o fato é que derrotado, Virgílio terminou capitulando após o
encerramento do concílio e deu a aprovação para a condenação dos três capítulos.
O resultado foi um cisma no Ocidente,
acusando o papa de ter traído Calcedônia, que resultou na excomunhão do
pontífice por um sínodo de bispos norte-africanos e a ruptura da comunhão com
Roma pelas províncias de Milão e Aquileia (Milão retornaria à unidade com
Roma cinquenta anos mais tarde, e Aquileia não iria até o ano 700, ou seja,
depois de um século e meio). Também
manifestam sua oposição os bispos da Gália. Por seu lado, a Igreja espanhola,
embora não tenha se separado de Roma, não reconheceu o concílio durante a Idade
Média. (Papal Primacy [Collegeville, Minnesota: The Liturgical
Press, 1996], pp. 52-53)
A controvérsia dos três
capítulos demonstra a limitação jurisdicional do bispo de Roma (o Concílio
estava acima do “papa”) e também deu início a uma série de cismas na Igreja.
Controvérsias a respeito da aceitação de Concílios foram uma constante na
história. Outro exemplo notável é o Concílio de Trullo que é aceito pelos
ortodoxos como continuação do Quinto e Sexto Concílios Ecumênicos, no entanto,
não é reconhecido pela igreja romana. Para
onde quer que olhemos, a igreja antiga não se parece em nada com uma unidade
cujo centro é o bispo romano.
Bem plausível seu texto, Bruno.
ResponderExcluirNão pensa em escrever também sobre a acusação do desencadeamento do laicismo que os católicos nos imputam?
Pretendo sim Felipe, mais para frente.
ExcluirMuito obrigado pelo texto meu amigo.
ResponderExcluirDe nada meu amigo. Esse texto é apenas um pequeno esboço de um argumento maior. Se o nível de unidade que é exigido pelos católicos for de fato verdadeiro, poderíamos concluir algumas coisas:
Excluir(1) A Igreja Católica Antiga era tudo menos católica romana pois continha um nível de divergência considerado intolerável para os católicos romanos;
(2) Nem a própria Igreja Romana seria verdadeira, pois a própria tem um nível de divergência acima do que os católicos romanos consideram tolerável quando debatem com protestantes.
É bem típico da apologética católica. Se considerarmos os argumentos que eles usam verdadeiros, teríamos que invalidar o próprio cristianismo.