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segunda-feira, 20 de março de 2017

O Cânon do Antigo Testamento: De Jerônimo até a Reforma - Parte 1


Neste artigo faremos algo diferente do habitual. Geralmente nos concentramos na evidência histórica dos primeiros séculos da igreja. Dessa vez, falaremos da evidência medieval a respeito do uso dos apócrifos do Antigo Testamento (A.T). Os apologistas católicos argumentam que os apócrifos foram desde sempre aceitos como Escritura canônica pela igreja. É comum ouvirmos que os Concílios de Hipona e Cartago (séc. IV) definiram oficialmente o cânon do A.T e que Lutero veio no séc. XVI e retirou esses livros da Bíblia. Esta ideia não poderia estar mais longe da verdade. Os Concílios de Hipona e Cartago eram locais, não poderiam vincular toda a igreja. Antes desses concílios e depois deles, diversos teólogos cristãos não iriam considerar os apócrifos como livros canônicos. Recomendo fortemente a leitura de dois artigos de William Webster traduzidos para o português: o primeiro mostra a evidência do cânon judaico que já existia nos tempos de Cristo (aqui) e o segundo mostra o testemunho patrístico até Jerônimo (aqui). Nós, portanto, abordaremos o período de Jerônimo (séc. V) até a Reforma Protestante (séc. XVI). Na maior parte do tempo, faremos uso do terceiro artigo de Webster que é continuação dos citados acima. Como adicionaremos mais material e outras citações, este artigo não será uma tradução literal do trabalho de Webster, mas dependerá em sua maior parte dele. Dividiremos em três partes devido ao tamanho do artigo, assim facilitando a leitura.

Cardeal Caetano (1469-1534)

Este é uma grande testemunha que foi adversário de Lutero e tinha grande prestígio na Igreja Romana como teólogo e exegeta. Seguindo a posição de Jerônimo, ele disse:

Aqui vamos fechar os comentários sobre os livros históricos do Antigo Testamento. Para o resto (isto é, Judite, Tobias, e os livros dos Macabeus) são cortados dos livros canônicos por São Jerônimo, e são colocados entre os apócrifos, junto com Sabedoria e Eclesiástico, como é normal a partir da Galeatus Prologus. Tu nem fique perturbado, como um estudioso cru, se fosses encontrar em qualquer lugar, seja nos Concílios sagrados ou nos Doutores, estes livros sagrados contados como canônico. As palavras, tanto dos concílios como dos mestres devem ser reduzidas à correção de Jerônimo. Agora, de acordo com o seu julgamento, na epístola aos bispos Cromácio e Heliodoro, esses livros (e qualquer outro, como livros no cânon da Bíblia) não são canônicos, isto é, não são da natureza de uma regra para certificação de elementos da fé. No entanto, eles podem ser chamados de canônicos, isto é, na natureza de uma regra para a edificação dos fiéis, como sendo recebido e autorizado no cânon da Bíblia para o efeito. Com a ajuda desta distinção vejas o teu caminho claramente através do que diz Agostinho, e o que está escrito no concílio provincial de Cartago. (Commentary on all the Authentic Historical Books of the Old Tesdtament, In ult. Cap., Esther. Taken from A Disputation on Holy Scripture by William Whitaker (Cambridge: University, 1849), p. 48)

Assim como outros autores, ele considerava os apócrifos leitura edificante, mas não canônicos no sentido estrito do termo. Este é um resumo fiel da visão da Igreja do Ocidente desde a Idade Média até o século XVI. Opinião de Jerônimo dominará o debate como será visto a seguir. Os apócrifos poderiam ser lidos, mas não poderiam ser usados para definir disputas doutrinárias.

Glossa Ordinária

A Glossa Ordinária é um testemunho importante da posição da Igreja sobre o status dos apócrifos porque era o comentário bíblico oficial e autoritário para toda a Igreja Ocidental. Ela carregava imensa autoridade e foi usado em todas as escolas para o treinamento de teólogos. Esta obra era formada por comentários de pais da igreja e grandes teólogos medievais sobre os livros da Escritura. Alister McGrath escreveu:

(...) a Glossa Ordinária pode ser considerada como um comentário composto sobre o texto da Bíblia, caracterizado pela sua brevidade, clareza e autoridade, recorrendo às principais fontes do período patrístico (...) Tão influente foi este comentário que, no final de do século XII, muitos comentários bíblicos e exegéticos foram reduzidos a reafirmar os comentários da glossa. (The Intellectual Origins of the Reformation (Oxford: Blackwell, 1987), p. 126)

A importância da Glossa Ordinária relativa à questão dos Apócrifos é vista a partir das afirmações no prefácio da obra. Ela repete o julgamento de Jerônimo segundo o qual a Igreja permitia a leitura dos livros apócrifos apenas para edificação, mas que eles não têm autoridade para encerrar controvérsias em questões de fé. Afirma que há vinte e dois livros do Antigo Testamento, citando os testemunhos de Orígenes, Jerônimo e Rufino como apoio. Ao comentar os livros apócrifos, prefixa uma introdução a eles dizendo: Aqui começa o livro de Tobias que não está no cânon; aqui começa o livro de Judite que não está no cânon e assim por diante para Eclesiástico, Sabedoria e Macabeus etc. Esses prólogos do Antigo Testamento a livros apócrifos repetiram as palavras de Jerônimo. Por exemplo, o seguinte é um trecho do Prólogo à Glossa Ordinária, escrito em 1498 DC, também encontrado em uma obra atribuída a Walafrid Strabo no século X:

Muitas pessoas, que não dão muita atenção às sagradas Escrituras, pensam que todos os livros contidos na Bíblia devem ser honrados e adorados com igual veneração, sem saber distinguir entre os livros canônicos e não canônicos (...) Aqui, então, distinguimos e numeramos primeiro os livros canônicos e depois os não-canônicos, entre os quais distinguimos ainda o certo e o duvidoso. Os livros canônicos foram trazidos através do ditado do Espírito Santo. Não se sabe, contudo, em que época ou por quais autores os livros não canônicos ou apócrifos foram produzidos. Desde que, no entanto, são bons e úteis, e nada é encontrado neles que contradiz os livros canônicos, a igreja lê-los e permite que eles sejam lidos pelos fiéis para a devoção e edificação. Sua autoridade, no entanto, não é considerada adequada para provar as coisas que entram em dúvida ou contenção, ou para confirmar a autoridade do dogma eclesiástico, como o bem-aventurado Jerônimo afirma em seu prólogo a Judite e aos livros de Salomão. Já os livros canônicos são de tal autoridade que tudo o que está contido neles é mantido com firmeza e indisputavelmente. (Biblia cum glosa ordinaria et expositione Lyre litterali et morali (Basel: Petri & Froben, 1498), British Museum IB.37895, Vol. 1, On the canonical and non-canonical books of the Bible)

Na Glossa Ordinária também se encontra:

Há, então, vinte e dois livros canônicos do antigo testamento, correspondendo às vinte e duas letras do alfabeto hebraico, como Eusébio relata no livro sexto da História Eclesiástica, que Orígenes escreve no primeiro Salmo. Jerônimo diz a mesma coisa de maneira mais completa e distinta em seu prólogo aos livros dos reis. Todos os livros são divididos em três partes pelos judeus: na lei, que contém os cinco livros de Moisés, nos oito profetas e nos nove hagiográficos. Isso será mais claramente visto em breve. Alguns, no entanto, separam o livro de Rute do livro de Juízes e as Lamentações de Jeremias de Jeremias, e os contam entre os hagiógrafos para fazer vinte e quatro livros, correspondentes aos vinte e quatro anciãos que o Apocalipse apresenta adorando o cordeiro. Estes são os livros que estão no cânon, como o bem-aventurado Jerônimo escreve com mais detalhes no prólogo aos livros dos Reis. Em primeiro lugar estão os cinco livros de Moisés, que são chamados a lei, o primeiro dos quais é Gênesis, segundo Êxodo, terceiro Levítico, quarto Números, quinto Deuteronômio. Em segundo lugar, siga os oito livros proféticos, primeiro Josué, segundo o Livro de Juízes, juntamente com Rute, terceiro Samuel, isto é, primeiro e segundo Reis, quarto Malaquim, isto é, terceiro e quarto Reis, quinto Isaías, sexto Jeremias com Lamentações, sétimo Ezequiel. O oitavo livro é de doze profetas, o primeiro dos quais é Oséias, o segundo Joel, o terceiro Amós, o quarto Obadias, o quinto Jonas, o sexto Miquéias, o sétimo Naum, o oitavo Habacuque, o nono Sofonias, o décimo Ageu, o décimo primeiro Zacarias e o décimo segundo Malaquias. Em terceiro lugar, seguem-se os nove hagiográficos, primeiro Jó, segundo Salmos, terceiro Provérbios de Salomão, quarto seu Eclesiastes, quinto seu Cântico dos Cânticos, sexto Daniel, sétimo Crônicas, que é um livro e não dois entre os judeus. Neemias (pois tudo é um livro), nono Ester. E tudo o que está fora destes (eu falo do Velho Testamento), como diz Jerônimo, deve ser colocado no apócrifo. (Biblia cum glosa ordinaria et expositione Lyre litterali et morali. Basel: Petri & Froben, 1498. British Museum IB.37895, vol. 1. Translation by Dr. Michael Woodward. See also Walafrid Strabo, Glossa ordinaria, De Canonicis et Non Canonicis Libris. PL 113:19-24)

Não poderia ser mais claro. A Glossa Ordinária ainda cita os apócrifos:

Estes são os livros que não estão no cânon, que a igreja inclui como bons e úteis, mas não canônicos. Entre eles estão alguns de mais e alguns de menos autoridade. Os livros de Tobias, Judite e os livros de Macabeus, também o livro da Sabedoria e Eclesiástico, são fortemente aprovados por todos. Assim, Agostinho, no livro dois da Da Doutrina Cristã, conta os três primeiros entre os livros canônicos. Sobre a Sabedoria e o Eclesiástico, ele diz que mereceram ser recebidos como autoridade e devem ser contados entre os livros proféticos. Sobre os livros de Macabeus, no livro 18 da Cidade de Deus, falando dos livros de Esdras, diz que, embora os judeus não os considerem canônicos, a Igreja os considera canônicos por causa das paixões de certos mártires e poderosos milagres. De menor autoridade são Baruque e Terceiro e Quarto Esdras. Agostinho não faz nenhuma menção a eles no lugar acima citado, enquanto ele incluiu (como já disse) outros trabalhos apócrifos entre os canônicos. Rufino também, em sua exposição do credo, e Isidoro, no livro 6 das Etimologias, onde repetem esta divisão de Jerônimo, não mencionaram nada desses outros livros. E que possamos enumerar os livros apócrifos na ordem em que aparecem nesta Bíblia, embora tenham sido produzidos em uma ordem diferente, primeiro vêm o terceiro e quarto livros de Esdras. Eles são chamados de Terceiro e Quarto Esdras porque, antes de Jerônimo, gregos e latinos costumavam dividir o livro de Esdras em dois livros, chamando o primeiro de as palavras de Neemias e o segundo de o livro de Esdras. Estes Terceiro e Quarto Esdras são, como já disse, de menor autoridade entre todos os livros não canônicos. Por isso, Jerônimo, em seu prólogo aos livros de Esdras, os chama de sonhos. Encontram-se em muito poucos manuscritos bíblicos e há muitas Bíblias impressas em que somente Terceiro Esdras é encontrado. O segundo é Tobias, um livro muito devoto e útil. O terceiro é Judite, que Jerônimo diz em seu prólogo ter sido contado pelo Concílio de Nicéia no número de escrituras sagradas. O quarto é o livro da Sabedoria, que quase todos afirmam que Filo de Alexandria, um judeu muito sábio, escreveu. O quinto é o livro de Jesus, filho de Siraque, chamado Eclesiástico. O sexto é Baruque, como diz Jerônimo em seu prólogo a Jeremias. O sétimo é o livro de Macabeus, dividido em primeiro e segundo livros (...) Além disso, deve ser conhecido que no livro de Ester, só essas palavras estão no cânon até o lugar onde inserimos: o fim do livro de Ester na medida em que está em hebraico. O que se segue depois não está no cânon. Da mesma forma em Daniel, só essas palavras estão no cânon até aquele lugar onde inserimos: O profeta Daniel termina. O que se segue depois não está no cânon. (Biblia cum glosa ordinaria et exposé, Lyre litterali et morali (Basileia: Petri & Froben, 1498), British Museum IB.37895, Vol. 1. Ver também Walafrid Strabo , Glossa ordinaria, De Canonicis e Non Canonicis Libris, PL 113: 19-24)

Não poderia haver obra mais esclarecedora sobre a posição da Igreja Ocidental. Este comentário que era utilizado nas escolas teológicas em todo o mundo está claramente adotando o cânon hebraico. Sobre a importância e autoridade da Glossa Ordinária, a Enciclopédia Católica afirma:

A Glossa Ordinária mais antiga é aquela feita da Bíblia, provavelmente no século XII (...) Embora as glosas originalmente consistissem em apenas algumas palavras, elas cresciam em comprimento à medida que os glossadores as ampliavam com seus próprios comentários e citações dos Padres. Assim, o minúsculo brilho evoluiu para o comentário de um livro inteiro. O comentário mais conhecido desse tipo é a vasta Glossa Ordinária dos séculos XII e XIII (...) Tão grande foi a influência da Glossa Ordinária em estudos bíblicos e filosóficos na Idade Média que foi chamado de a "língua das Escrituras" E "a bíblia da escolástica". (New Catholic Encyclopedia, Glossa Ordinaria; Glosses, Biblical, pp. 515-516)

Cesáreo de Arles (470-542)

Cesáreo foi bispo de Arles. Ao interpretar a passagem do Apocalipse que fala sobre os vinte e quatro anciãos, ele conecta este número ao número de livros do Antigo Testamento. Trata-se especificamente do número de livros do cânon hebraico. Essa correlação será vista com frequência nos autores medievais:

E eles nunca descansam. As criaturas vivas são a igreja que nunca descansa, mas louvam a Deus sem cessar. Podemos também interpretar os vinte e quatro anciãos como sendo os livros do Antigo Testamento ou os patriarcas e os apóstolos. (Exposition of the Apocalypse, Homily 3, in Latin Commentaries on Revelation, Weinrech trns., p. 70)

Primásio (morreu em 560)

Primásio foi um bispo africano do sexto século que esteve presente no quinto concíclio ecumênico. Em seu comentário sobre o livro de Apocalipse, ele citou o número de livros canônicos autoritários do Velho Testamento como vinte e quatro, igualando o número de livros com o número de anciãos representados nos capítulos quatro e cinco que adoram diante do trono de Deus:

De uma maneira, para frente e para trás, porque a Igreja em todos os lugares dando frutos é estendida. Anda na luz do rosto de Deus, e revelado o seu rosto, olha para a glória de Deus. De outra maneira, ele sugere que as asas de seis folhas, que são vinte e quatro, são os livros do Antigo Testamento, que assumimos sobre a autoridade canônica do mesmo número, assim como há vinte e quatro Anciãos sentados acima dos tronos. (Comentário ao Apocalipse de João, Livro I, Capítulo IV)

Como vimos na Glossa Ordinária, o cânon hebraico poderia ser citado como vinte de dois livros ou vinte e quatro (uma alusão ao número de anciãos do Apocalispe).

Gregório o Grande (bispo de Roma em 590-604)

Gregório foi bispo de Roma, portanto, supostamente um papa. Em seu comentário de Jó, ele declara que 1 Macabeus não era canônico:

Com referência a este em particular não estamos agindo irregularmente se dos livros, embora não canônicos, ainda são trazidos para a edificação da Igreja, apresentemos testemunho. Assim Eleazar na batalha feriu e derrubou um elefante, mas caiu sob a própria besta que ele matou (1 Mac 6:46). (Morals on the Book of Job, Volume II, Parts III and IV, Book XIX.34, p.424)

Esses comentários sobre o livro de Jó foram concluídos em 595, portanto, quando Gregório já era bispo de Roma. Os apologistas católicos tentam fugir da conclusão inescapável afirmando que Gregório estava apenas manifestando sua opinião privada e não a posição da Igreja. O problema é que absolutamente nada nas obras de Gregório sugere isso. Pelo contrário, o seu comentário do livro de Jó se tornou a obra padrão utilizada pela igreja ocidental. Além disso, ele nunca se retratou dessa afirmação. Isso é suficiente para demonstrar que Gregório estava expondo a posição da igreja – isso muito tempo depois de Hipona e Cartago. Um suposto papa jamais ensinaria algo diferente daquilo que a igreja supostamente havia declarado autoritariamente.

Aprígio de Beja (século VI)

Ele diz que viu este Cordeiro no meio do trono, isto é, no poder e na majestade divina. "E entre os quatro seres viventes", isto é, porque ele é reconhecido quatro vezes nos Evangelhos. "E entre os anciãos" [os vinte e quatro], no qual ele indica o coro da lei e os profetas, ou dos apóstolos. (Explanation of the Revelation at Revelation 5:6, in Latin Commentaries on Revelation, Weinrech trns., p. 44)

Aprígio utiliza uma tradição interpretativa que se se tornará muito comum na idade média – a conexão do número de anciãos com o número de livros do Antigo Testamento.

Beda (672-735)

Beda foi um teólogo inglês, considerado o homem mais instruído de seu tempo e um grande estudioso da Escritura. Muitos de seus comentários bíblicos foram incluídos na Glossa Ordinária:

Cada um deles tem seis asas. Eles elevam a Igreja às alturas pela perfeição de seus ensinamentos. Pois o número seis é chamado perfeito por essa razão, que é o primeiro número completado por suas próprias partes. Na verdade um, que é a sexta parte de seis, e dois que é um terceiro, e três, que é metade, compõem seis em si. De outro modo, seis asas de quatro animais, que compõem vinte e quatro, sugerem os livros de todo o Antigo Testamento, através dos quais se apoia a autoridade dos evangelistas e se prova a sua verdade. (Comentário sobre o Apocalipse PL 93:144)

Beda, ao fazer referência aos vinte e quatro anciãos do Apocalipse, adota o cânon hebraico de vinte e quatro livros (uma citação semelhante à de Primásio).

Agobardo de Lyon (779-840)

Agobardo foi bispo de Lyon na França durante o século IX. Ele seguiu o cânon hebraico, afirmando que os livros que carregam autoridade divina do Antigo Testamento eram vinte e dois em número, excluindo assim os Apócrifos:

É uma coisa maravilhosa e extremamente espantosa! Todos os levitas, a quem Moisés e Arão contaram conforme a instrução do Senhor, por meio de suas famílias no lado masculino sobre uma mesa, eram vinte e dois mil (assim como os hebreus tinham vinte e duas cartas e vinte e dois livros de autoridade divina no Antigo Testamento). Esta mesma coisa está escrita em Deuteronômio: Então Moisés escreveu esta lei e a deu aos sacerdotes, os filhos de Levi, que levaram a arca da aliança do Senhor, e a todos os anciãos de Israel. (Agobardo de Lyon ao Bispo Bernardo, sobre os privilégios e direitos do sacerdócio VI)

Alcuíno de Iorque (735-804)

Alcuíno de Iorque foi um monge anglo-saxão beneditino, poeta, professor e sacerdote católico. Em um tratado escrito contra Elipantos, o bispo de Toledo na Espanha, Alcuíno rejeitou a autoridade do livro de Eclesiástico, mantendo, com a autoridade de Jerônimo e Isidoro, que o livro era apócrifo e de autoridade duvidosa porque não foi escrito durante o tempo dos profetas:

Enquanto o testemunho que corresponde ao seu erro falhou na sua perversidade nos profetas de Deus, você estabeleceu a si mesmo para falar de um novo profeta (...) Mas você deixou o Deus que o libertou e esqueceu de seu Redentor. No livro de Jesus, filho de Siraque, lê-se esta ideia acima mencionada, que o abençoado Jerônimo e Isidoro julgaram, sem dúvida, estar entre os apócrifos, ou seja, escrituras duvidosas. (Alcuin, Adversus Elipandum Toletanum, Liber Primus XVIII. Instituto Medieval, Universidade de Notre Dame)

Wilafrid Strabo (808-849)

Walafrid é conhecido por ter sido o criador da Glossa Ordinária. Ele seguiu Jerônimo ao separar os livros apócrifos do status canônico em seu prólogo à Glossa (conforme visto anteriormente):

Poeta alemão e teólogo do século IX (...) Em 829 tornou-se preceptor do jovem príncipe Carlos (o Calvo) na corte de Luís o Pio. Em 838 sucedeu Erlebold como abade de Reichenau (...) As obras de Walafrid, escritas em latim fluente e elegante, consistem de poemas e de tratados teológicos em prosa (...) De suas obras a mais famosa é a Glossa ordinaria, um comentário sobre as Escrituras, compilado a partir de várias fontes. O trabalho teve o maior prestígio durante a Idade Média. (Catholic Encyclopedia, 16 Volumes (New York: Encyclopedia Press, 1913)

Haimo of Halberstadt (morreu em 853)

Haimo foi um monge beneditino germânico que serviu como bispo de Halberstadt e se destacou como escritor. Em seu comentário sobre o Livro do Apocalipse, Haimo seguiu a exegese de Primásio e numerou os livros autoritários canônicos do Velho Testamento aos vinte e quatro:

A Santa Igreja quer no Antigo Testamento quer no Novo recorda e venera as obras de Deus e preserva os livros dos Santos Evangelhos, dessa forma a Igreja é também corretamente entendida nos vinte e quatro anciãos, ou certamente de acordo com os vinte e quatro livros do Antigo Testamento, que são usados de acordo com a autoridade canônica, no qual o Novo Testamento e as coisas que são levadas ao cumprimento nele são reconhecidos como sendo preditos. (Exposition of the Apocalypse of S. John, Book 7, Book I, Chapter IV. PL 117:1007, 1010)

Ambrósio de Autpert (séc. IX)

Ambrósio, um teólogo do século IX, escreveu um comentário sobre o livro do Apocalipse no qual ele, assim como Haimo de Halberstadt e Primásio, citou o número de livros canônicos do Velho Testamento como vinte e quatro:

E assim, uma vez que a Igreja cumpre as obras dos Padres do Antigo e do Novo Testamento completadas nas seis eras do mundo, exatamente como em seis dias, e os quatro livros do santo Evangelho, tudo é corretamente descrito nos vinte e quatro anciãos, pois quatro vezes seis faz vinte e quatro. Ou certamente, uma vez que usa vinte e quatro livros do Antigo Testamento que aceita com autoridade canônica em que também reconhece que o Novo Testamento foi revelado. A Igreja é, portanto, figurada em vinte e quatro anciãos. Por esta razão, a pregação do Novo Testamento é fecunda e  fortalecida a partir do Antigo, assim como a Igreja toma o número destes mesmos [livros], pelos quais se aperfeiçoa na santidade. (Expositionis em Apocalypsin, Libri III (4, 4) Tradução de Benjamin Panciera, Instituto Medieval, Universidade de Notre Dame)

Radulfo Flaviencio (séc. X)

Radulfo foi um teólogo do século X. Em seu comentário sobre Levítico, ele afirmou que os livros de Tobias, Judite e Macabeus eram úteis para a leitura na Igreja, mas não foram considerados autoritários, uma vez que não foram considerados canônicos:

Na Sagrada Escritura, há quatro tipos de discurso: histórico, profético, proverbial e simples. A história é o relato de acontecimentos passados, como nos cinco livros de Moisés. Apesar de as matérias sobre as quais está escrito estarem cheias de figuras, o legislador declara essas coisas ordenadas pelo Senhor ou cumpridas por ele próprio ou por seu povo. Da mesma forma, os livros de Josué, Juízes, Rute, Reis, Crônicas, Esdras, Ester, os quatro Evangelhos e os Atos dos Apóstolos pertencem à história sagrada. Tobias, Judite e Macabeus, embora lidos para a instrução da igreja, não têm a autoridade completa. (Commentary on Leviticus, Preface to Book XIV)

Hugo de São Vítor (1096 - 1141)

Hugo de São Vítor foi um dos principais teólogos do século XII que teve grande influência sobre os teólogos das eras posteriores. Ele foi o prior da escola de St. Vítor de 1133 a 1141. George Tavard refere-se a ele como "a maior figura teológica do século XII". Foi uma das grandes figuras da Escolástica.

Hugo escreveu que a totalidade das Escrituras está contida no Antigo e Novo Testamento. Ambos os Testamentos são divididos em três classes distintas de livros, o do Antigo Testamento sendo a Lei, os Profetas e os hagiográficos. Ele enumerou os livros canônicos do Antigo Testamento exatamente como Jerônimo fez e afirmou que eram vinte e dois. Ele concluiu dizendo que no Velho Testamento existem alguns livros que não foram incluídos no cânon, mas foram lidos, especificamente a Sabedoria de Salomão, o livro de Jesus, o filho de Siraque (Eclesiástico), Judite, Tobias e os livros de Macabeus:

Existem outros livros além desses do Antigo Testamento, que às vezes são lidos, mas não estão escritos no corpo do texto ou no cânon autoritário, como os livros de Tobias, Judite e os Macabeus, e o outro Chamado a Sabedoria de Salomão e Eclesiástico. (De sacramentis. Prologue, Cap. VII. PL 176:185D-186D)

F.F. Bruce escreve sobre a importância de Hugo e sua atitude em relação aos livros apócrifos:

Hugo de São Vítor (...) enumera os livros da Bíblia hebraica em um capítulo "Sobre o número de livros na Santa Escritura" e continua: "Há também no Velho Testamento alguns outros livros que são realmente lidos [na Igreja], mas não estão inscritos no corpo do texto ou no cânon autoritário: tais são os livros de Tobias, Judite e os Macabeus, a chamada Sabedoria de Salomão e Eclesiástico. Aqui, é claro, a influência de Jerônimo pode ser percebida: para os estudantes medievais da Bíblia na igreja latina não havia mestre comparável a ele. (The Canon of Scripture (Downers Grove: Intervarsity, 1988), pp. 99-100)

Ricardo de São Vítor (morreu em 1173)

Ricardo, um nativo da Escócia, foi discípulo de Hugo de São Vítor e eventualmente prior do mosteiro. Ele morreu em 1155 d.C. Era um teólogo altamente influente e compartilhou a mesma opinião sobre o cânon que Hugo. Ele enumerou os livros canônicos do Antigo Testamento de acordo com a tradução hebraica em vinte e quatro e afirmou que os livros apócrifos de Sabedoria, Eclesiástico, Tobias, Judite e os Macabeus, embora autorizados a serem lidos na Igreja, não foram recebidos como canônicos:

A Sagrada Escritura está contida em dois testamentos, a saber, o Velho e o Novo. Cada testamento é dividido em três subsecções: o Antigo Testamento contém a lei, os profetas e a hagiografia. O Novo contém o Evangelho, os apóstolos e os pais. A primeira subseção do Antigo Testamento é a lei, que os hebreus chamam Torá contendo o Pentateuco, que são os cinco livros de Moisés. Nesta subseção, o primeiro é o Gênesis; segundo é Êxodo; terceiro é Levítico; quarto é Números; quinto é Deuteronômio. A segunda subseção é de profetas e contém oito textos. O primeiro é Josué; o segundo é Juízes; terceiro é Samuel, que é primeiro e segundo Reis; quarto Malaquias que é o terceiro e quarto Reis; quinto Isaías; sexto Jeremias; sétimo Ezequiel; oitavo são os doze profetas. A terceira subseção tem nove livros. O primeiro é Jó, o segundo Davi, o terceiro é Provérbios de Salomão; quarto é Eclesiastes; quinto é o Cântico dos Cânticos; sexto Daniel, sétimo é Crônicas; oitavo Esdras; nona Ester. Eles são vinte e quatro em número. Há outros livros além destes, como a Sabedoria de Salomão, o Livro de Jesus, filho de Siraque [Eclesiástico], o Livro de Judite, Tobias e o livro dos Macabeus, que são lidos, de fato, mas não estão no cânon. (Tractatus Exceptionum: Qui continet originem et discrétionum artium, situmque terrarum, et summam historiarum, distinctus in quatuor libros, Livro II, Cap. IX De duobus Testamentis. PL 177: 193)

João de Salisbury (1120-1180)

João de Salisbury foi um dos mais brilhantes teólogos do seu tempo e um dos principais estudiosos do século XII. Numa carta endereçada a Henrique I, o conde de Champagne, ele respondeu a uma série de questões teológicas que lhe haviam sido submetidas. Em particular, Henrique I queria saber a opinião de João quanto ao número de livros Velho e Novo Testamento. João respondeu que seguia Jerônimo. Ele então enumerou os livros específicos do cânone autoritário, totalizando o número deles em vinte e dois. Depois de enumerar os livros do Novo Testamento, ele disse que esse catálogo era fruto da tradição bem conhecida e indubitável da Igreja, que este era o número de livros que foram aceitos no cânon das Sagradas Escrituras e que estes livros somente foram considerados verdadeiramente inspirados. Ele ainda explicou que os livros apócrifos, embora não canônicos, foram recebidos pela Igreja para fins de edificação:

As perguntas eram: o que eu acredito ser o número de livros no Antigo e Novo Testamento, e quem foram seus autores (...) Eu encontro na minha leitura diversas e numerosas opiniões dadas pelos pais sobre o número dos livros. E assim sigo Jerônimo, professor da Igreja Católica, a quem eu considero ser o testemunho mais seguro ao estabelecer a base da interpretação literal. Assim como é aceito que existem vinte e duas letras no alfabeto hebraico, então creio, sem dúvida, que existem vinte e dois livros no Velho Testamento, divididos em três categorias. O primeiro contém o Pentateuco, que são os cinco livros de Moisés, que são divididos neste número para representar os diferentes sacramentos. Estes são Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. O segundo contém profecias e é completado em oito livros (...) Entre estes estão contados Josué e Juízes, aos quais Rute também está ligada, já que a história contada nela foi posta nos dias dos juízes; também Samuel, cuja história é completada nos dois primeiros Livros de Reis, e juízes, nos dois seguintes. Estes são seguidos por Isaías, Jeremias, Ezequiel - contando um livro cada um - e o livro dos Doze Profetas. A terceira categoria consiste na Hagiografia, contendo Jó, o Saltério [Salmos], os Provérbios, o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos, Daniel, Crônicas, Esdras e Ester. E assim o total dos vinte e dois livros do Velho Testamento é constituído, embora alguns considerem que Rute e as Lamentações de Jeremias deveriam ser adicionados ao número do Hagiógrafo, e assim o total aumentou para vinte e quatro. Tudo isso se encontra no prólogo dos Livros dos Reis, que São Jerônimo chama de frente armada de todas as escrituras que ele mesmo fez fluir da fonte hebraica para a compreensão das palavras latinas. O livro da Sabedoria, Eclesiástico, Judite, Tobias e o Pastor não são contados no cânon, como também afirma São Jerônimo, nem o Livro dos Macabeus, que é dividido em dois, dos quais o primeiro tem o sabor da eloquência hebraica, o segundo do grego, como prova seu estilo. (The Letters of John of Salisbury, W.J. Millor S.J. and C.N.L. Brooke, editors (Oxford: Clarendon, 1979), Letter 209, pp. 317, 319, 321, 323, 325).

Pedro Celênsio (morreu em 1183)

Pedro foi sucessor de João de Salisbury como bispo de Chartres. Ele também escreveu que o cânon do Antigo Testamento consistia em vinte e quatro livros:

Para este número [vinte e quatro], ambos os filhos de Jacó e dos apóstolos de Cristo significam o dobro do número doze. E assim sob este número estão contidos os livros do Antigo Testamento. Dessa forma, a completa instrução das almas é oferecida a partir deste número de livros e não menos refresco é tirado deste número de pães. (De Panibus, Cap 2, PL 202: 935-936)

Ruperto de Deutz (1075-1129)

Ruperto foi um teólogo do início do século XII. Em seu comentário sobre o Gênesis, ele ensinou que o livro da Sabedoria não era canônico:

A respeito desta coisa, se às vezes por Cristo ele quer misericórdia, através da qual somos salvos e libertados e hoje alguns afirmam isso, uma vez que claramente as escrituras canônicas nunca mostram que ele sofreu punição. Isto somente é escrito no Livro da Sabedoria em que está escrito assim: A sabedoria protegeu o primeiro pai formado do mundo, quando só ele havia sido criado, ela o livrou da sua transgressão, e deu-lhe força para governar todas as coisas. Mas esta escritura não é do cânon nem foi esta ideia tirada da escritura canônica, como as outras coisas que são lembradas pelos pais neste mesmo livro em louvor da sabedoria. (Commentary on Genesis, Livro III, Cap. 31)

Além disso, em seus comentários sobre os vinte e quatro anciãos do Apocalipse, ele aplicou esse número aos livros do cânon do Antigo Testamento, como outros fizeram antes dele:

Ao redor do trono há vinte e quatro tronos e sentados nos tronos estão vinte e quatro anciãos vestidos com mantos e com coroas de ouro em suas cabeças (...) Mas por que os anciãos sentados nos assentos mostrados são vinte e quatro em número? Sobre este assunto divergem as explicações dos Padres. Para alguns (dos quais São Jerônimo é um dos mais notáveis) desejou-se que os anciãos sejam entendidos como os vinte e quatro livros da antiga lei. Alguns outros compreendem nestes mesmos anciãos a Igreja nascida através dos testamentos gêmeos dos patriarcas e dos apóstolos, ou certamente aqueles que levaram à perfeição da obra, que é recomendada ao número seis vezes, por clara pregação do Evangelho. (Commentary of Rupert, Abbot of Deutz, On the Apocalypse of John, Book III, Chapter IV)

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