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quinta-feira, 16 de julho de 2020

A Ausência do Episcopado Monárquico em Roma



Hoje, iremos revisitar um tema já apresentado neste blog. Já abordamos o fato de o episcopado monárquico não ter sido instituído pelos Apóstolos (aqui) e (aqui), bem como discutimos a ausência desta estrutura na Igreja de Roma, o que perfaz um forte argumento histórico contra o papado (aqui). Vamos entrar em maiores detalhes sobre este último ponto interagindo com o livro do teólogo e historiador protestante Peter Lampe (aqui).

Este livro provavelmente é a obra mais completa a abordar o cristianismo em Roma nos dois primeiros séculos. A quantidade de evidência arqueológica, sociológica e histórica abordada é impressionante. A tese de Lampe (amplamente apoiada pela academia) é de que o cristianismo em Roma era fracionado. Os cristãos se reuniam em casas, sem possuir um lugar centralizado de adoração. A Igreja de Roma era formada uma rede de Igrejas domésticas, sem a existência de um bispo com autoridade central. Este fracionamento fez com que a Igreja de Roma apresentasse significativo nível de pluralismo teológico, bem como demorasse mais do que outras Igrejas (ex. Ásia Menor) a desenvolver o episcopado monárquico. Desta forma, adiante, vamos apresentar o argumento e as respectivas evidências trazidas por Lampe 

Romanos 16 e as Igrejas domésticas em Roma 

Se há um lugar onde o Bispo de Igreja de Roma seria mencionado é no capítulo 16 de Romanos. Paulo saúda vários grupos de pessoas e menciona explicitamente: 

Saudai a Priscila e a Áqüila, meus cooperadores em Cristo Jesus, os quais pela minha vida expuseram as suas cabeças; o que não só eu lhes agradeço, mas também todas as igrejas dos gentios. Saudai também a igreja que está em sua casa. Saudai a Epêneto, meu amado, que é as primícias da Acáia em Cristo. (Romanos 16:3-5) 

Após, Paulo passa a saudar outros grupos de pessoas e famílias, o que implica que havias outras Igrejas domésticas além desta. Os versículos 14 e 15 dizem: 

Saudai a Asíncrito, a Flegonte, a Hermes, a Pátrobas, a Hermas, e aos irmãos que estão com eles. Saudai a Filólogo e a Júlia, a Nereu e a sua irmã, e a Olimpase a todos os santos que com eles estão. 

Os versículos 10 e 11 que mencionam grupos das casas de Aristóbolo e Narciso também parecem se referir a Igrejas domésticas. Dessa forma, teríamos cinco comunidades domésticas. Levando-se em conta que outras 14 pessoas são mencionadas no capítulo, é provável que o número de igrejas domésticas fosse maior. Lampe comenta: 

Não há indicação de uma localização central para os diferentes grupos espalhados pela cidadeCada círculo de cristãos deve ter conduzido os cultos por si próprios numa casa ou apartamento, então isto pode ser referido como uma comunidade doméstica. (Christians at Rome in the First Two CenturiesFrom Paul to Valentinus. A&C Black, 2006, p. 359) 

Os cristãos provavelmente herdaram este modelo fracionário das sinagogas judaicas: 

O fracionamento cristão está no contexto da comunidade judaica na cidade de Roma que foi dividida em várias sinagogas independentes (veja em detalhes o Apêndice 4). O paralelismo é incrível, caso se deseje considerar a estrutura judaica como modelo direto para os cristãos ou não. (Ibid., p. 364) 

Lampe sumariza a evidência em favor da rede doméstica de Igrejas. Ele trata cada evidência abaixo em detalhes. Por razões de brevidade, não vou trazer toda a argumentação, caso contrário este artigo excederia 50 páginas: 

Eu já ofereci mais evidências para as comunidades das igrejas domésticas espalhadas pela cidade: 

a. No cap. 27, a comunidade valentiniana na vila suburbana Via Latina; 

b. No material lendário (dos capítulos 3, 13), a estrutura fracionada das comunidades das igrejas domésticas era pressuposta por toda parte. Também devem ser mencionados os atos de Nereu e Aquiles (cap. 22); Atos dos Vercelensses (13-15, 19, 29), Epístola de Pseudo-Clemente (2.144), e outros lugares; 

c. O círculo de Justino se encontrava numa moradia alugada "acima do banho de Mirtino" (Atos de Justino 3). No mesmo trabalho, Justino atesta que existem outras igrejas domésticas em Roma além da sua. Para a pergunta "Onde você se reúne?", ele responde: "Lá, onde cada um pode ir." "Ou você quer dizer que todos estamos acostumados a nos reunir num mesmo lugar? Não, de forma alguma." Justino afirma que nem mesmo conhece os outros locais de reunião (ibid.); 

d. Justino, em Diálogo com Trifo 47.2, testemunha que os cristãos se encontravam em habitações privadas; 

e. Pode-se concluir a partir dessa evidência de fracionamento uma interpretação da Apologia 1:67. Neste texto, Justino relata uma liturgia de domingo "num lugar", mas uma assembleia central do cristianismo na cidade de Roma não é de forma alguma prevista. Justino aqui elabora mais geralmente descrevendo o culto dominical dos cristãos, não somente em Roma, mas em todo o mundo, em "cidades e vilas" (67.3). Eles se reúnem "em um só lugar" e juntos todos realizam uma assembleia. Apologia 1:67 é análogo a Atos de Justino 3, onde Justino fala das assembleias em sua casa alugada com o mesmo termo. Apologia 1.67 descreve uma típica liturgia numa igreja doméstica como um padrão que ocorre em todos os lugares no mundo aos domingos. Identificar o "presidente" da liturgia, que aparece em Apologia 1:65:3, 5:67:4, como um bispo monárquico que conduz uma liturgia central para os romanos seria ler na passagem coisas que não estão lá. A liturgia descrita em Apologia1:67 era celebrada aos domingos em vários lugares ao mesmo tempo. (Ibid., 364-365) 

O Pluralismo Teológico de Roma no Séc. II 

O autor evidencia no cap. 39 o relevante pluralismo teológico presente em Roma no séc. II: 

O fracionamento em comunidades domésticas dispersas por toda a metrópole favoreceu o desenvolvimento do pluralismo? Na Roma do século II, encontramos muitas evidências de diversidade teológica. Além dos representantes do cristianismo ortodoxo, vimos que, em seus próprios círculos, marcionitas desenvolveram escolas, valentinianoscarpocratianos, monarquistas dinâmicos (Teodotianos), monarquistas modalistas sob Praxeas, os montanistas (mesmo em dois grupos teologicamente distintos), quartoduodécimos, cristãos judeus com observância da Torá, Cerdo com sua gnose. Hermas está irritado com os "falsos" professores. O autor anônimo em Hipólito aponta a multiplicidade dos cristãos. (Ibid., p. 381-382) 

Lampe argumenta que o fracionamento dos cristãos romanos pode ter estimulado o pluralismo teológico. Ele também aponta que Roma era uma cidade que recebia pessoas de todos os lugares, e não raramente os cristãos se agrupavam de acordo com sua nacionalidade. Movimentos como os quartoduodécimos e montanistas estavam vinculados aos cristãos com origem na Ásia Menor. O mesmo era observado nas sinagogas judaicas em Roma. Por último, pode-se dizer que este fato é também uma evidência indireta da ausência do episcopado monárquico. O pluralismo é resultado do fracionamento, que por sua vez, só subsistiu por causa da ausência de um líder central.  

Leitores podem afirmar que esses grupos citados eram heréticos, mas esta é uma leitura anacrônica da história. Alguns desses grupos foram tolerados pelos cristãos romanos de seus dias e nunca foram de fato excomungados de suas respectivas Igrejas. Essa tolerância do cristianismo primitivo não existia apenas em Roma. Já tratamos em outro artigo da evidência que Orígenes oferece a respeito da diversidade de posições teológicas entre os cristãos do segundo e terceiro séculos (aqui).
  
A Ausência do Episcopado Monárquico 

Tendo já desenhado o pano de fundo onde se desenvolveu o cristianismo em Roma, passaremos a examinar as evidências mais primitivas onde, se existisse, o episcopado monárquico seria apresentado: 

O fracionamento em Roma favoreceu um sistema presbiteral colegial de governança e impediu por um longo período de tempo, até a segunda metade do século II, o desenvolvimento de um episcopado monárquico na cidade. Victor (189-99) foi o primeiro que, após tentativas de Eleutério (175-89), Sotero (c. 166-75) e Aniceto (155-66), energicamente avançou como bispo monárquico e (às vezes, apenas porque ele foi incitado de fora) tentou colocar os diferentes grupos na cidade sob sua supervisão ou, quando isso não foi possível, traçar uma linha divisória por meio de excomunhão. Antes da segunda metade do segundo século, não havia em Roma episcopado monárquico para os círculos mutuamente ligados em comunhão. (Ibid., p. 397) 

Lampe então traz o importante testemunho de Hermas e Marcião (primeira metade do séc. II), Inácio de Antioquia (início do séc. II) e do Apóstolo Paulo: 

Hermas sabe relatar o lado humano dos presidentes: eles discutem entre si sobre status e honra (Visão 3.9.7-10). O que são os presidentes? São os presbíteros "disputando" o primeiro lugar dentro de suas próprias fileiras, o lugar de primeiro entre os iguais? Qualquer que seja a resposta, Hermas - na primeira metade do segundo século - nunca menciona o sucesso de tais esforços, a existência real de um único líder. Em vez disso, ele se refere a todos eles sempre no plural (Visão 2:4:2; 2:2:6 e 3:1:8). 

Correspondentemente, não encontramos nas cartas de Paulo e Inácio aos romanos nada a respeito de um líder monárquico romano, mesmo que Inácio conheça o ofício de um bispo monárquico a partir de sua experiência no leste. No ano de 144, Marcião, na reunião do Sínodo Romano que ele iniciou, também se viu diante de "presbíteros e mestres" e não de um bispo monárquico. Primeira Clemente também pressupõe o mesmo tipo de governança presbiteral: (44:5; 47:6; 54:2; 57:1). Assim como em Hermas (Vis. 3.5.1), a palavra "bispo" está no plural (...) Em resumo, por presbítero ou bispo, 1 Clemente designam as mesmas pessoas. Os dois termos são intercambiáveis, como em Hermas (Vis. 3.5.1). (Ibid., p. 398-399) 

Eu já abordei em detalhes as citações de Inácio, Clemente e Hermas a respeito da estrutura colegial que apresentam, quando discuti a origem da doutrina da sucessão apostólica (aqui) e (aqui). Contudo, Lampe apresentou uma evidência que eu nunca havia me atentado – Marcião. Ele foi cristão em Roma e passou a liderar um grupo herético na cidade. É muito relevante que o sínodo que ele provocou mencione mais uma vez a liderança colegiada dos presbíteros. Aqui, seria mais um lugar onde a existência de um bispo monárquico seria ressaltada. A fonte em questão é uma tradição preservada por Epifânio em sua obra chamada Panarion (cap. 42). 

Uma questão que se coloca é porque esses autores usam termos diferentes “bispos” e “presbíteros” para designar as mesmas pessoas. Lampe afirma que que “bispos” seriam presbíteros com uma função especial (p. 399). Esta função seria o cuidado para com os pobres, os órgãos e as viúvas. Hermas parece apoiar esta visão: 

Os bispos, com seu ministério, continuamente protegeram os necessitados e as viúvas, e sempre levaram vida pura. (Pastor de Hermas, Parábola 9:27) 

Hermas também atribui aos diáconos esta função (Parábola 9:27). Vejam que ele cita diáconos e bispos como categorias distintas de pessoas, mas em toda a obra, nunca o faz com relação a presbíteros e bispos. Lampe propõe dois modelos para explicar a relação entre bispos e presbíteros: 

Sobre a relação entre "presbíteros" e "bispos", vejo duas possibilidades. O modelo 1 é dois círculos concêntricos. Os bispos pertencem ao grupo dos presbíteros. Eles são uma parte disso, mas nem todos os presbíteros cuidam dos pobres. O modelo 2 é de dois círculos congruentes. Todos os presbíteros são ao mesmo tempo "bispos", e a última designação especifica um de seus deveres especiais. A evidência para o modelo 2 vem da obra Apologia de Justino (1.67.6). O dirigente do culto sempre é também responsável por cuidar dos membros mais pobres em sua assembleia litúrgica. Cada presbítero em Roma aparentemente lidera uma assembleia de adoração em uma comunidade doméstica e também cuida de companheiros cristãos necessitados. Eu sumarizo minha visão das fontes da seguinte forma: presbíteros individuais presidem as diferentes comunidades domésticas da cidade, liderando o culto e, como bispos, dirigindo o cuidado dos pobres em sua própria congregação. Cada congregação individual, portanto, também tem sua própria tesouraria, administrado pelo "episcopus" individualmente (Apologia 1.67).   (Ibid., p. 400) 

Lampe ainda cita os exemplos dos teodotianos e montanistas: “ambos exemplos do final do [segundo] século ilustram como era costume para cada grupo na cidade: cada grupo era individualmente presidido por seu próprio bispo/presbítero” (p. 400). Em suma, bispo era uma designação ligada a uma função específica dos presbíteros: o cuidado para com os necessitados. A luz da evidência, o mais provável é que todos os presbíteros tivessem esta função e o termo “bispo” foi usado para enfatizá-la. 

O responsável pelos negócios externos da Igreja Romana 

Lampe afirma que havia alguém (provavelmente um presbítero) responsável pelas relações externas de Roma: 

A totalidade das congregações romanas delegou a um "ministro de assuntos externos" as tarefas que surgiram através da comunicação com comunidades cristãs de outras cidades (Hermas, Visão 2.4.3). O cristianismo romano era capaz de atuar como uma unidade para lidar com assuntos externos. As cartas enviadas para fora eram sempre compostas em nome dos romanos e não em nome de um indivíduo. (p. 400) 

Vejamos a citação de Hermas referida: 

Farás duas cópias do livrinho e as mandarás, uma a Clemente e outra a GraptaClemente, por sua vez, mandará a cópia às outras cidades, porque esta missão é deleGrapta exortará as viúvas e os órfãos. Tu o lerás para esta cidade, na presença dos presbíteros que dirigem a Igreja. (Visão 2.4.3) 

Observem como cabia a um tal Clemente encaminhar cópias para outras cidades. Ao que parece, Grapta era uma mulher responsável pelo cuidado dos órfãos e das viúvas. Nosso autor comenta que esse “ministro das relações exteriores” também deveria ser responsável por realizar coletas de recursos e encaminhar as doações para outras Igrejas. Inácio de Antioquia louva a Igreja romana em sua carta pela postura caridosa. A figura de um presbítero responsável pelas interações de Roma com outras Igrejas será importante para explicar mais a frente como as primeiras listas sucessórias de bispos de Roma foram produzidas. É importante notar que Hermas não entregou pessoalmente os livros a Clemente e Grapta, mas os enviou para eles, o que sugere que eles não tinham contato pessoal. Hermas provavelmente não pertencia a mesma comunidade doméstica que eles.  

O surgimento do episcopado monárquico 

Lampe esquematiza o surgimento do bispo monárquico: 

Como se desenvolveu o episcopado monárquico na segunda metade do segundo II? Na primeira metade do segundo século, um "ministro dos assuntos externos" foi responsável pela correspondência com outras cidades (Hermas, Vis. 2.4.3). As remessas de doações a congregações em outras cidades provavelmente também passaram pelas mãos dele. A remessa de ajuda a pessoas de fora pressupõe, em minha opinião, que deve ter havido em Roma um local centralizado de coleta de ofertas para tais remessas: um fundo central - além dos fundos em dinheiro das comunidades individuais administradas pelos "bispos" dessas congregações - e que era usado para cuidar dos necessitados da cidade. A seguinte observação é interessante: Os primeiros presbíteros que podemos abordar como precursores e figuras de transição em direção a um episcopado monárquico na segunda metade do segundo II aparecem nas poucas notas contemporâneas que existem sobre eles sempre neste papel de "ministro de assuntos externos": 

a. Sotero: Dionísio de Corinto (História Eclesiástica de Eusébio 4.23.10) escreve para Roma: "Desde o começo você tinha o costume ... de enviar suporte para muitas comunidades em todas as cidades ... Sotero não apenas manteve esse costume, ele até o expandiu." Além disso, Dionísio (ibid.) descreve Sotero como anfitrião paternal para os peregrinos em Roma. Aparentemente, sob sua liderança, a carta dos romanos a Dionísio e aos coríntios também foi composta (ibid., 11), embora isso não esteja explicitamente declarado.  

b. Antes de Sotero, Aniceto é identificável (após a metade do segundo século). O pouco que sabemos sobre ele é que cuidou de convidados estrangeiros em Roma: Policarpo de Esmirna (Irineu em Eusébio, História Eclesiástica 5.24.16) e Hegesipo (História Eclesiástica 4.22.3) 
c. O cuidado para com convidados estrangeiros é registrado novamente para o sucessor de Sotero - Eleutério. Os mártires da Gália enviaram uma carta para ele (História Eclesiástica 5.4.2) e solicitaram que ele cuidasse do portador carta. (ibid., p. 402-403) 

Para entender o esquema acima, é útil ter em mente a lista dos bispos de Roma (aqui). Aniceto, Sotero e Eleutério são identificados como elementos de transição e os registros sobre eles sempre mencionam a função de responsável pelos assuntos externos, seja no envio de doações, de cartas ou no cuidado para com convidados e peregrinos. Lampe prossegue: 

O seguinte é a construção mais plausível: 

a. Um governo presbiteral ainda prevalecia na primeira metade do segundo século. Os presbíteros discutiam ocasionalmente sobre a superioridade de um sobre o outro (Hermas, Visão 3.9.7 e Parábola 8.7.4-6), então havia uma tendência incipiente para o estabelecimento de um monarca a ser reconhecido. Nenhum deles, no entanto, conseguiu ascender sobre o governo plural. Mesmo aquele encarregado dos assuntos externos ainda não é de forma alguma um "primus" entre os "pares"; 

b. A partir de meados do século II, este presbítero encarregado dos assuntos externos ganhou cada vez mais "proeminência", até que o mais recente com Vitor (c. 189-99), um poderoso monarca se desenvolveu. Antes dele, Eleutério (c 175-89), com sua tentativa de intervir contra os montanistas (veja acima, cap. 40), mostrou uma notável autoconfiança. Além disso, o famoso catálogo de bispos romanos de Irineu (Contra as Heresias 3.3.3) se originou nos tempos de Eleutério. Isso mostra que em torno de 180, Eleutério já se vê como o guardião romano da tradição apostólica, não como um entre outros, mas como portador autorizado da tradição que se elevou acima das outras de sua geração. Antes de Eleutério, Sotero (166-175) é referido por Dionísio (História Eclesiástica 4.23.10) como “bem-aventurado bispo”. Contudo, se alguém se aproxima do texto imparcialmente, continua incerto dizer se um bispo monárquico é o caso. Mais instrutivo para a autoconfiança de Sotero, em vez disso, é que ele aumenta por si próprio as doações romanas para os de fora. Não apenas Eleutério, mas Aniceto, antes de Sotero, pode se apresentar com confiança para o hóspede estrangeiro Hegésipo, por volta de 160, como o guardião autorizado da tradição apostólica em Roma (História Eclesiástica 4.22.3) 

As quatro pessoas nomeadas da segunda metade do segundo século devem ser reconhecidas não apenas como "ministros romanos de assuntos externos", mas também como precursores e figuras transitórias em direção ao episcopado monárquico em Roma. Por que o superintendente externo, que é claramente atestado pela primeira metade do segundo século, transformou-se, na segunda metade do século, em um poderoso monarca? Que tarefas originalmente foram atribuídas a ele? Ele deveria enviar cartas de Roma (Hermas, Visão 2.4.3; 1 Clemente como uma carta de todo o cristianismo romano). Alguém teve que organizar a circulação de cartas endereçadas para Roma dentro da cidade e teve que garantir que os cumprimentos conectados a ela fossem transmitidos (Romanos 16). Alguém tinha que organizar as doações de Roma para outras cidades - uma antiga tradição dos cristãos romanos muito antes de Sotero (História Eclesiástica 4.23.10).  

É importante que em todas essas tarefas o "ministro de assuntos externos" representava a totalidade das comunidades domésticas romanas para o mundo exterior, e dentro da cidade ele teve que coordenar as congregações para poder cumprir as tarefas externas. Dessa maneira, sua autoridade também aumentou internamente. Além disso, ele concentrou uma parte do poder econômico em suas próprias mãos. Ele administrou o tesouro central para remessas de ajuda para o exterior. Em suma, o papel de "ministro externo" foi predestinado a fluir para um ambiente de episcopado monárquico na segunda metade do segundo século. (Ibid., p. 403-404) 

A teoria de Lampe, que é amplamente referendada pelos estudiosos do cristianismo romano primitivo, é de que o presbítero responsável pelos assuntos externos passou a ganhar notoriedade externa e interna, e diante do contexto de combate a grupos heréticos na Igreja Romana, emergiu como um líder monárquico.  

As listas de bispos romanos produzidas por Irineu e Hegésipo 

O contra-argumento mais forte a respeito do episcopado monárquico em Roma é apresentar as listas de bispos romanos produzidas por Hegésipo e Irineu. O problema deste argumento é que ele pressupõe que os nomes apresentados são bispos monárquicos, quando esta informação não é explicitamente expressa por esses autores. Lampe disse: 

Qual é o significado das chamadas "listas de bispos romanos" de Irineu (180) e de Hegésipo (160)?  

Hegésipo, em Eusébio (História Eclesiástica 4:22:1-3) escreveu: “Durante minha visita a Roma eu fiz uma lista de sucessão até Aniceto, cujo diácono era Eleutério. Sotero seguiu Aniceto e então seguiu Eleutério”. Hegésipo visitou Roma por volta de 160 na época de Aniceto e registrou suas memórias sobre a visita por volta de 180 na época de Eleutero. Apesar de todas as dificuldades que o texto apresenta ao pesquisador, um consenso foi formado. O interesse de Hegésipo estava na doutrina pura (4.22.2), como alegadamente foi passada ininterruptamente dos apóstolos até o presente. Durante sua viagem, Hegésipo testou sua convicção de que essa passagem de fato ocorreu nas diferentes cidades do mundo. Também em Roma ele investigou com satisfação que tinha sido assim. Em outras palavras, de modo algum ele se preocupou em provar uma sucessão de bispos monárquicos dos apóstolos até o presente. O que ele imaginou em sua mente eram cadeias de portadores de crença correta, e ele acreditava que podia reconhecer essa corrente também em Roma. Mais do que isso não está no texto. 

Irineu, em Contra as Heresias 3.3.3, fornece pela primeira vez um longo catálogo de doze nomes dos apóstolos até Eleutério. O interesse da lista é ancorar a presente doutrina com uma cadeia sucessiva de autoridades de volta aos apóstolos. Na minha opinião, podemos estimar com segurança a idade da lista. Não foi o próprio Irineu quem montou o catálogo, mas, em Conta as Heresias 3.3.3, usa uma lista preparada anteriormente. Isso não significa que a lista seja antiga: 

a. Eleutério constitui o último e décimo segundo membro (...) O número "apostólico" doze empresta beleza à lista: os apóstolos são seguidos por doze guardiões da tradição, de Lino a Eleutério. O número doze não é acidental, mas deliberado. Alguém poderia ter começado com Pedro ao invés de Lino, então teria treze membros. Além disso, que Sisto [sexto] "marca o meio do caminho" é notório (como sexto, Sexto é nomeado). Isto mostra que a estrutura de doze membros é intencional, mesmo na composição da lista antes de Irineu. Isso significa que o décimo segundo - Eleutério - é absolutamente essencial para o catálogo. Assim, não é possível provar que o catálogo é anterior à Eleutério (175-89); 

b. Por volta de 180, quando Hegésipo registra suas memórias, ele menciona pelo nome apenas três membros da igreja romana: Aniceto, Sotero e Eleutério. Todos os três pertencem à segunda metade do segundo séculoHegésipo considera que, durante o período anterior a metade do século II, a continuidade da tradição de volta aos apóstolos também pode ser afirmada. Curiosamente, no entanto, ele não dá nomes, mas está satisfeito com uma declaração geral. O catálogo preservado em Irineu, em Contra as Heresias 3.3.3, que identifica nove pessoas pelo nome no período anterior a 150, em contraste com a lista de Hegésipo, fornece uma descrição mais elaborada e, portanto, mais jovem. 

Por volta de 160, durante sua visita a Roma, Hegésipo simplesmente reconheceu que Aniceto estava na sucessão da doutrina correta. Uma cadeia de guardiões monárquicos da tradição, como Hegésipo alegremente apresenta a eles durante o tempo após sua visita a Roma na sucessão de Aniceto - Sotero - Eleutério, não lhe ocorreu naqueles dias de sua visita a Roma. O motivo é simples. Naqueles dias ainda não existia uma cadeia de portadores monárquicos da tradição. Antes da metade do século II, em Roma, em nenhum momento uma única pessoa proeminente passou uma tradição. Isto foi feito por uma pluralidade de presbíteros. 

Qual é o resultado? No momento em que Roma experimenta o desenvolvimento de um episcopado monárquico, uma lista de nomes de doze membros que remonta aos apóstolos é construída. Analogamente à situação do presente de Eleutério, agora alguém também presume uma individual e proeminente cadeia de tradição, passando a tradição um a um. A presença de um portador monárquico da tradição é projetada de volta ao passadoEste modelo de história abstrai do curso real da história. Alguém teria que apresentar um "feixe" de correntes antes do meio do século II, a fim de retratar corretamente a pluralidade histórica dos presbíteros como portadores romanos da tradição. Mas esse tipo impopular de representação complexa era pouco apropriado para um modelo prático de história pela qual a integridade da doutrina de Eleutério teria que ser provada. 

Resultado: a lista de Irineu tem alta probabilidade de ser uma construção histórica dos anos 180, quando o episcopado monárquico já havia se desenvolvido em Roma. Acima de tudo, a estrutura "apostólica" de doze membros (de Lino a Eleutério) aponta na direção de uma construção fictícia. Os nomes que foram tecidos na construção certamente não foram inventados livremente, mas foram tomados emprestados da tradição da cidade de Roma (por exemplo, "Clemente" ou o irmão de Hermas "Pio"). Eles pertenceram aos presbíteros da história da igreja romana. Essas pessoas, no entanto, nunca se entenderiam como líderes monárquicos - especialmente Pio na época de Hermas. (Ibid., p. 405-406) 

Eu gostaria de tecer alguns argumentos adicionais que Lampe não fez. Observem que Hegésipo é uma testemunha confiável pois ele viajou até a cidade de Roma. O mais importante é que sua lista exibe apenas três nomes (Sotero, Eleutério e Aniceto). Se a intenção dele era formar uma lista de bispos monárquicos como defendem os papistas, ele não ignoraria os bispos mais antigos. Notem que os bispos citados pertencem ao que Lampe chamou de período de transição, no qual, tais figuras desempenhavam a função de “ministro das relações externas” e já vinham ganhando proeminência interna e externa. Dessa forma, a explicação mais provável é que antes de Aniceto, não era sequer possível identificar um bispo mais proeminente, por isso, Hegésipo não produz uma lista de sucessão que remonta até os apóstolos.  

É preciso também entender o contexto em que essas listas foram elaboradas. Os hereges gnósticos afirmavam ter acesso a doutrinas secretas que os apóstolos haviam ensinado apenas para alguns privilegiados. Eles então produziram listas de mestres que teriam sido os portadores dessas doutrinas que remontavam a algum apóstolo. O mais relevante é que foram os gnósticos os primeiros a utilizaram esse tipo de argumento. Os cristãos ortodoxos então se viram no encargo de produzir listas análogas que pudessem comprovar a doutrina cristã e assim refutar o argumento gnóstico. Em suma, o objetivo da lista não era demonstrar uma cadeia bispos monárquicos, mas uma cadeia de portadores da tradição correta. Eu não vou me alongar aqui porque já abordei esta questão em detalhes na série sobre sucessão apostólica cujo link está no início desse artigo. 

Além disso, o diagnóstico de Lampe é um consenso, sendo referendado por historiadores católicos também. Quasten, um estudioso patrístico católico conservador, reconhece que o texto recebido de Eusébio não está tentando definir uma sucessão de bispos, mas uma sucessão de doutrina: 

As palavras de Eusébio 'Γενομενος δε εν Ρωμηδιαδοχην εποιησαμην μεχρις Ανικητου' não indicam que Hegésipo compilou uma lista dos bispos de Romana ordem da sua sucessão, mas que em sua cruzada contra as heresias de seu tempo, visitou Corinto, Roma e outras cidades, a fim de averiguar a διαδοχην, ou seja, a tradição ou a preservação da verdadeira doutrina. (Johannes QuastenPatrology Volume I (Ave Maria Press: Notre Dame, 1976), 286) 

eclesiologista católico Fracis A. Sullivan também concorda que essas listas não eram de bispos monárquicos. Contudo, ele segue uma teoria diferente da defendida por Lampe quanto ao surgimento do bispo monárquico. Para ele, alguns presbíteros começaram a se destacar no clero romano como líder ou mestre mais competente. Ele não parece conectar o fenômeno ao presbítero responsável pelos assuntos externos, como Lampe faz. Sullivan também defende que a lista de Irineu deriva de Hegésipo – afirmação que Lampe não faz. Em todo o caso, não há discordância quanto ao cerne da questão: a ausência do episcopado monárquico. 

Mais tarde (séc. IV em diante), essas listas serão anacronicamente apresentadas (ex. Jerônimo e Agostinho) como sucessões de bispos monárquicos. Em todo o caso, o valor histórico do testemunho de Hermas, Marcião, Justino, Inácio, 1 Clemente – todos escrevendo na primeira metade do séc. II – é de importância histórica muito maior do que autores que viveram temporalmente distantes do período analisado.  

Um argumento do silêncio 

Já li alguns apologistas católicos tentarem refutar a conclusão dos historiadores afirmando que eles usam argumentos do silêncio. Isto revela ignorância quanto ao fato de que argumentos do silêncio são comuns no método historiográfico. Há contextos em que o silêncio é importante. Imagine que um autor antigo deseja escrever sobre a Eucaristia. Ele então não diz nada sobre a estrutura de governança da Igreja. O silêncio seria um argumento frágil neste contexto, tendo em vista que o autor discorre sobre um tema que não é a governança da Igreja. Contudo, no caso em questão, os autores citados falam sobre a estrutura hierárquica da Igreja, e as repetidas ausências ao cargo do bispo monárquico em contextos em que a menção seria esperada, produz sim um poderoso argumento histórico. Isto fica mais evidente quando o bispo monárquico em questão seria o chefe da Igreja mais importante. Tome o exemplo das cartas de Inácio. Ele se dirige aos bispos em todas as Igrejas a qual endereça, mas, em Roma, ele não o menciona. Qual a explicação mais provável? É a de que ele simplesmente desconhecia o bispo monárquico de Roma. Esperar que um autor antigo diga explicitamente que não existia algo que ele não conhecia é um contrassenso.  

Além disso, o argumento dos historiadores não repousa apenas sobre o silêncio. Quando tomamos a evidência de Hermas, o vemos dizer que um colégio de presbíteros presidia a Igreja. Uma liderança colegiada exclui a possibilidade de uma liderança monárquica. Trata-se de um argumento por implicação lógica. O mesmo pode ser afirmando sobre 1 Clemente que também estabelece uma liderança colegiada. Já Justino, assim como Hermas, era um cristão romano, portanto, sua ignorância sobre a existência de um bispo central em Roma conduz à provável conclusão de que tal estrutura não existia em seu tempo. Isto se dá porque Justino era alguém que estava numa ótima posição para conhecer tal estrutura. Por isso, o argumento de que se ele não a conhecia é porque provavelmente não existia é perfeitamente razoável.  

O episcopado monárquico e o desenvolvimento da doutrina 

Defensores mais sofisticados do papado já não mais afirmam que o bispo de Roma funcionou como o chefe supremo de toda a Igreja desde os apóstolos. Esta afirmação se tornou absurda a luz da evidência histórica. Hoje, é dito que o papado é uma doutrina que se desenvolveu ao longo da história até encontrar sua forma presente. Esta doutrina teria existido apenas na forma de “semente” nos séculos iniciais do cristianismo. Embora esta teoria tenha uma série de problemas e demande um ônus probatório que os apologistas de Roma não costumam enfrentar, é importante mencionar que sem o episcopado monárquico, sequer há que se dizer que havia uma semente da doutrina. O papado nada mais é do que um tipo especial de sucessão apostólica. Sem o episcopado monárquico, não há sucessão apostólica (ao menos como Roma e as Igrejas orientais afirmam). O papado pressupõe uma autoridade central sobre toda a Igreja. Se esta autoridade não existia sequer dentro da Igreja de Roma, não há como falar em desenvolvimento. 

Conclusões 

A questão do episcopado monárquico é de vital importância, pois sem ele não há doutrina do papado, nem doutrina da sucessão apostólica. Estas doutrinas são primordiais para o catolicismo romano e oriental. Acredito que temos evidências robustas para desacreditá-las. Os apóstolos não as ensinaram e o seu surgimento na história da Igreja se deu por questões práticas, e não por tradição apostólica. Acredito que é um tema que os protestantes devem pressionar mais em seus debates contra as alegações romanas ou orientais. 

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