O texto de Gênesis 3:15 é
frequentemente citado por apologistas católicas como uma referência mariana.
Segundo eles, quem esmagaria a cabeça da serpente seria Maria. O argumento
exegético é frágil e já há diversos artigos expondo a correta exegese do texto
(aqui).
Diante disso, os católicos costumam apelar à “tradição”. No fim das contas,
tradição é tudo que Roma diz que é. Ainda que haja diferentes conceitos de
tradição circulando na teologia romana, é comum apelar aos Pais da Igreja como
evidência. O problema é que geralmente este apelo é seletivo ou enganoso. A
grande questão é quem iria ferir a cabeça da serpente. Vejamos então a
interpretação patrística do texto bíblico em ordem cronológica:
Justino Mártir (?-165) é as
vezes citado como exemplo da interpretação mariana com base no texto abaixo:
Porque
Eva, que era virgem e pura, tendo concebido a palavra da serpente, produziu
desobediência e morte. Mas a Virgem Maria recebeu fé e alegria quando o anjo
Gabriel anunciou as boas novas de que o Espírito do Senhor viria sobre ela, e o
poder do Altíssimo a ofuscou: por isso o que é gerado por ela é o Filho de
Deus; e ela respondeu: 'Seja para mim segundo a tua palavra'. Através dela Ele nasceu, a quem temos provado
que tantas Escrituras se referem, e
por quem Deus destrói a serpente e
os anjos e homens que são como ela; mas
opera a libertação da morte para aqueles que se arrependem de sua iniquidade e
acreditam Nele. (Diálogo com Trifo 100:5-6)
Justino estabelece um paralelo
entre Eva e Maria que muitas vezes é utilizado para referendar doutrinas
marianas sem qualquer respaldo nos escritos do autor. Ele não é claro sobre a
identidade da “semente da mulher”. Não há como afirmar certamente que era Maria
ou Jesus, mas Jesus parece ser o melhor candidato. Ele menciona que Jesus
“destrói a serpente”. Embora não seja uma referência direta a quem esmaga a
cabeça da serpente, é no mínimo uma indicação de Jesus como aquele que vence a
serpente. Ele alude a esta passagem outras vezes na mesma obra (91:4, 94:1,
100:5-6, 102:3, 103:5 e 112:12). Em nenhuma delas há alusão direta sobre quem
esmaga a serpente.
Irineu de Lyon (?-220) faz
várias alusões ao texto em questão:
Aquele
que deveria nascer de uma mulher, [ou seja] da Virgem, à semelhança de Adão, foi proclamado como vigiando a cabeça da
serpente. Esta é a semente da qual o
apóstolo diz na Epístola aos Gálatas: “que a lei das obras foi estabelecida
até que a semente viesse a quem a promessa foi feita.” Este fato é exibido mais
claramente na mesma Epístola, onde ele fala assim: “Mas quando a plenitude do
tempo chegou, Deus enviou Seu Filho, feito de uma mulher.” Pois, de fato, o inimigo não teria sido derrotado, a menos
que um homem [nascido] de uma mulher o dominasse.
(Contra as Heresias 5:21:1)
Ele claramente aduz ao texto
de Gênesis 3:15 “proclamado como vigiando a cabeça da serpente” e o conecta à
Epístola de Gálatas na qual Cristo é chamado de semente (Gal. 3:19). Logo, a
“semente” da mulher que esmagou a cabeça da serpente é Cristo. Interessa notar
que Irineu também fez uma analogia entre Maria e Eva na mesma obra (3:22:4 e 5:19:1),
mas não identifica Maria como a mulher de Gênesis 3:15. Ele novamente identifica
Jesus como aquele que pisou na cabeça da serpente em outro lugar:
Como
também a Escritura nos diz que Deus disse à serpente: “E eu colocarei inimizade
entre você e a mulher, e entre sua semente e sua semente dela. Esta te ferirá a
cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”. E o Senhor recapitulou em Si mesmo essa
inimizade, quando foi feito homem por uma mulher, e pisou em sua cabeça [da serpente], como eu indiquei no livro anterior.
(Contra
as Heresias 4:20:3)
Clemente de Alexandria
(150-215) alude ao texto bíblico sem identificar aquele que esmagaria a
serpente:
Um
e o mesmo é também nosso auxiliador e defensor, o Senhor, que desde o princípio predisse a salvação na profecia. (Cohortatioad Gentes 1)
Orígenes (184-253) identifica
a semente da mulher com a Igreja:
Vamos
então orar para que nossos pés sejam tão formosos, tão fortes, para que possam esmagar a cabeça da
serpente a fim de que ela não possa morder o nosso calcanhar (Gn 3:15)
(...) Então você vê que quem luta debaixo de Jesus [Josué], deve retornar a
salvo da batalha. (Homilias em Josué 12:2)
Em outro lugar, ele relaciona
a inimizade predita no texto bíblico com o sofrimento de Jeremias:
É necessário que a amizade de
Cristo gere inimizade contra a Serpente,
e a amizade da Serpente traga inimizade contra Cristo.
(Homilias em Jeremias 19:7)
Jeremias seria então um
exemplo de semente da mulher. Isto é consistente com a ideia de que a Igreja é
a semente da mulher, que, com a força de Cristo, esmaga a cabeça da serpente.
Sendo a Igreja a semente, é improvável que ele interpretasse a mulher como
sendo Maria, haja vista que Maria não é quem gera a Igreja.
Cipriano de Cartago (?-258),
citando Isaías 7:10-15, interpreta a semente como sendo Jesus:
(...)
o próprio Deus lhe dará um sinal. Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um
filho, e tu chamarás o seu nome Emanuel.
Manteiga e mel ele comerá, e antes que Ele saiba o que é preferir o mal, Ele
deverá se voltar para o bem. Essa
semente que Deus predisse que viria da mulher e que iria pisar na cabeça do
diabo. Em Gênesis: "Então Deus disse à serpente: Feito isto,
amaldiçoado és tu de todo tipo dos animais da terra. Sobre o teu peito e o teu
ventre arrastarás e a terra será a tua comida todos os dias da tua vida. E
colocarei inimizade entre ti e a mulher e sua semente. Ele considerará a tua
cabeça, e tu olharás o seu calcanhar". (Três Livros de Testemunhos contra os Judeus 2:9)
Em outras partes, Cipriano
identifica os membros da Igreja como aqueles que esmagam a cabeça da serpente,
ou seja, uma interpretação coletiva:
Que
nossos pés sejam calçados com o ensino do Evangelho e armados para que, quando a serpente começar a ser pisada e
esmagado por nós, ela não possa ser capaz de nos morder e derrubar. (Carta 55:9)
Ele também aplica o mesmo a um
cristão que não negou a fé sob tortura:
E
embora seus pés estivessem amarrados com cordas, a cabeça da serpente [estava]
esmagada e dominada. (Carta 39:2)
Dessa forma, vemos que, nestes
testemunhos referentes aos primeiros três séculos da Igreja, não há nenhum pai
da Igreja indicando Maria como aquela que esmagaria a cabeça da serpente. Isto
está de acordo com o fato de que a devoção Mariana e a elevação da mãe de Jesus
ao status que atualmente ocupa nas Igrejas de Roma ou Igrejas Orientais levaria
ainda séculos para ocorrer, e não fazia parte do período mais primitivo da
Igreja.
Serapião de Thumis (?-359),
escrevendo no séc. IV, disse que a semente era Cristo:
Mas
uma mulher não tem semente, só o homem tem. Como então foi dito da mulher? Está claro que foi dito a respeito de
Cristo a quem a virgem pura gerou sem semente? Certamente, Ele é uma semente singular, não sementes
no plural. (Tiburtius Gallus, S. J., Interpretatio
Mariologica Protoevangelii [Gen. 3:15], Tempore postpatristico usque ad
Concilium Tridentium [Rome: n.p., 1949], 24)
Cirilo de Jerusalém parece
interpretar como sendo a Igreja (?-386):
Pois
há também uma inimizade que é certa, como está escrito, eu porei inimizade
entre ti e a sua semente, pois a amizade
com a serpente opera a inimizade contra Deus e a morte. (Leituras Catequéticas 16:10)
Optato de Mileve (?-400) deu
uma interpretação coletiva:
No
começo do mundo, a inimizade começou com o Diabo. Foi quando a sentença de Deus colocou as duas sementes uma contra
a outra em rivalidade hostil. Ele disse: "Vou colocar inimizade entre
tua semente e a semente da mulher; ela (ipsa) ferirá a tua cabeça, e tu ferirá
o seu calcanhar ” (Gn 3:15). Essa inimizade (...) derrama sangue santo desde o princípio. Logo depois, o justo Abel é
assassinado por seu irmão (Gn 4). (In Natale Infantium
qui pro Domino occisi sunt, 5; FG, 173-74; Unger cites source for text as A.
Wilmart, RevScRel 2 (1922), 271-302; 283)
A semente da serpente seria
representada pelo ímpio, e a da mulher pelo justo. O primeiro caso de inimizade
entre as duas sementes seria Caim e Abel. Dessa forma, a mulher dificilmente
seria Maria aqui, pois não faria sentido relacioná-la a Caim e Abel.
João Crisóstomo (?-400) indica
os membros da Igreja como a semente da mulher. Num sermão sobre Gênesis 3, ele
fala da inimizade entre as serpentes (no sentido natural) e a humanidade. É
então que ele diz sobre Gênesis 3:15:
Deve
ser levado muito mais em conta a serpente intelectual [o diabo], Pois também
Deus o humilhou e o sujeitou debaixo de nossos pés e nos deu o poder para pisar em sua cabeça. (Homilias em Gênesis 17:7)
Jerônimo (?-420), o tradutor
da vulgata. Esta tradução é em grande parte responsável pela confusão que se
seguiu na interpretação da passagem, pois Jerônimo usou o pronome feminino
(ipsa), em contraste a forma como havia traduzido numa obra exegética anterior
(Quaestiones hebraicae), na qual ele
traduziu: "Ele esmagará a sua cabeça e você
esmagará o calcanhar". Em todo o caso, não há registros de que
o próprio Jerônimo tenha identificado a mulher ou a semente da mulher como
sendo Maria. Ele aplicou uma interpretação coletiva quando abordou a
passagem. Em seu comentário sobre
Ezequiel, ele fala das águas que “alcançam
os tornozelos que estão perto das solas e do calcanhar, e estão expostos às picadas da serpente”
(Comentário sobre Ezequiel 14.47:3). Ele comenta sobre a serpente mencionada em
Eclesiastes 10:8 e diz que ela é a mesma “que enganou Eva no paraíso, a qual
por ter destruído o preceito de Deus, expôs-se
as suas mordidas e ouviu do Senhor: ‘Tu lhe ferirás a cabeça e ele (ille-coluber)
ferirá o teu calcanhar" (Comentário em Isaías 16, 58:12). Nesta
interpretação, a mulher seria Eva. Em suma, ele aponta Eva como a mulher e, ao
se referir aos que são feridos pela serpente, adota uma interpretação coletiva,
não indicando Maria individualmente. É razoável supor que ele interpretasse que
os membros da Igreja esmagariam a cabeça da serpente.
Agostinho (354-430)
identificou a semente como as boas obras:
Foi
colocada inimizade entre a semente do diabo e a semente da mulher. A semente do
diabo significa a sugestão perversa e da
mulher significa o fruto da boa obra pela qual se resiste à sugestão perversa.
Assim, ele vigia o pé da mulher para que, caso a mulher escorregue em algum
prazer proibido, ele possa se aproveitar dela. Já ela vigia sua cabeça a fim de
que possa evitá-lo já no início de qualquer tentação maligna.
(Sobre o Gênesis contra os Maniqueus, cap. 18)
Em outro lugar, ele identifica
Eva como a mulher e a Igreja como a semente:
Essa
cabeça é a parte que recebeu a maldição,
a saber que a semente de Eva deveria marcar a cabeça da serpente. Pois a Igreja
foi admoestada a evitar o começo do pecado. Qual é o começo do pecado, como a cabeça da serpente? O começo
de todo pecado é o orgulho. (Comentário sobre o Salmo 74, v. 14)
Aqui, fica claro que Igreja (a
semente de Eva) deveria vigiar e evitar o pecado, ou seja, esmagar a cabeça da
serpente. Em suma, Agostinho não aponta nem a semente da mulher nem a própria
mulher como Maria. Ele faz alusões a Gênesis 3:15 em outros lugares
(Comentários sobre os Salmos 36:12-13 e 49:6 – aqui),
sem
estabelecer qualquer relação da passagem com Maria. João Cassiano ofereceu uma interpretação
similar ao identificar a cabeça da serpente como o início do pecado e o
calcanhar como o fim de nossas vidas (Institutas 4:37).
Um antigo manuscrito traz a
interpretação de Pais da Igreja Sírios (ex. Teodoro de Mopsuestia e Efrém)
sobre o Gênesis. Eles disseram sobre a cabeça e o calcanhar:
(...) esta
é uma figura do julgamento sobre Satanás, pois Deus o colocou muito abaixo
de nós. Quanto a nós, se desejamos o bem, somos
capazes de feri-lo através de ações poderosas. Contudo, ele também é capaz
de nos ferir, uma vez que ele vigia nossos calcanhares, ou seja, nosso caminho, que são nossos atos. (Abraham
Levene, The Early Syrian Fathers on Genesis: From a Syrian MS [London: Taylor’s
Foreign Press, 1951], 24, 77-78.
Trata-se de uma interpretação
coletiva na qual a semente da mulher é entendida como sendo os cristãos. Uma
implicação dessa interpretação coletiva é que a mulher não poderia
ser Maria. Eva seria uma candidata mais forte, uma vez que ela deu origem a
raça humana. Em conclusão, vimos que a interpretação de que Maria esmagou a
cabeça da serpente não encontra eco no pensamento patrístico. Mesmo a
interpretação de que Maria seria a mulher que geraria a semente também não
parece ter tido muitos apoiadores. Eu procurei em blogs católicos a fim de
encontrar alguma citação patrística que afirmasse ser Maria aquela que
esmagaria a serpente e não encontrei nada. Eles geralmente citam o paralelo
entre Eva e maria feito por Irineu e Justino, mas já vimos que extrair daí a
exegese de Gênesis 3:15 não faz jus aos escritos desses autores. O estudo mais detalhado sobre Gênesis 3:15 pode ser visto aqui.
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