A ausência de evidência
positiva para a invocação dos santos é muito relevante uma vez que o tema da
oração é exaustivamente discutido pelos pais da igreja (mesmo os mais antigos).
Some-se a isso o fato de que a Escritura também trata exaustivamente da oração
sem apoiar a doutrina romana. Dessa forma, temos um bom motivo para acreditar
que se trata de mais uma inovação que deve ser rejeitada pela Igreja de Cristo.
Eu já escrevi no meu blog um
artigo sobre os pais da igreja pré-nicenos e a doutrina da intercessão dos
santos. O ponto defendido é que não há nos três primeiros séculos da Igreja
evidência de qualquer pai da igreja a favor da oração aos santos ou anjos.
Recomendo a todos que leiam o artigo que já responde a maioria das citações e
argumentos trazidos pelos apologistas católicos (aqui).
Um apologista católico se propôs a refutar meu artigo (aqui). A
tentativa de refutação já desmorona logo no início quando usa o seguinte título
“Padres da Igreja Pré-Nicênica e a invocação dos santos”. Ou seja, o autor
supostamente iria mostrar citações de Pais da Igreja anteriores a Niceia
defendendo a invocação (oração) dos santos. Quem se der ao trabalho de ler o
artigo perceberá que ele apresentou exatamente ZERO citações.
Quem leu meu artigo anterior
percebeu o “truque” católico. Eles pegam citações onde alguns pais da Igreja
(séc. III especificamente) dizem que os crentes que estão no céu oram pela
Igreja na terra. O problema óbvio é que esses mesmos pais não defenderam que
devêssemos orar aos santos e ensinaram que a oração deveria ser oferecida
somente a Deus. Outros (especialmente séc. II) não defenderam sequer que os
crentes no céu oram pela igreja e em muitos casos se manifestaram de forma
incompatível com a doutrina romana. O fato é que eu fiz questão de distinguir
claramente isso no meu artigo anterior e o apologista católico finge me refutar
usando citações que eu mesmo usei para fazer tal distinção. Se os católicos
desejam mesmo provar que sua doutrina sempre foi a crença da Igreja, eles
precisam mostrar que a Igreja desde o início ensinou a oração aos santos. Além
disso, precisam demonstrar que isso era um artigo de fé da Igreja, não apenas
uma prática realizada por um grupo ou outro, mas uma doutrina da Igreja. Os
comentários do artigo católico estarão em vermelho. Um erro que desqualifica a
refutação é o espantalho criado em cima da doutrina protestante:
“DOUTRINA
PROTESTANTE: Os santos não podem interceder
pelos vivos pois estão dormindo em estado de inconsciência. Invocar
os santos é o mesmo que praticar a evocação dos mortos.”
O autor em questão apenas
expressa ignorância sobre o protestantismo, pois o imortalismo é a doutrina
predominante entre os protestantes. Sobretudo nas Igrejas tradicionais, é a
posição padrão. Todas as confissões de fé protestantes mais antigas
(Westminster, Belga, Batista) eram imortalistas. Mesmo atualmente, a Confissão
de Fé da Assembleia de Deus (a maioria Igreja evangélica do Brasil) é
imortalista. Eu tenho respeito pela posição mortalista (apesar de não ser um),
mas é de conhecimento notório que a maioria das Igrejas Protestantes (mesmo as
mais recentes) são imortalistas. O católico cria essa dicotomia entre
mortalismo e imortalismo porque deseja provar sua doutrina através de falsas
implicações. Se um pai da igreja era imortalista, logo ele abraçaria a posição
romanista, o que é apenas um non-sequitur. A discussão mortalismo vs
imortalismo é distinta da que travamos aqui. O mortalismo é incompatível com a
invocação dos santos, todavia o imortalismo não implica necessariamente nesta
doutrina.
Pais
Apostólicos (90 - 140)
Não
há nos pais apostólicos qualquer evidência da doutrina romana. Quem procurar na
Didaquê, em Policarpo, Inácio ou Clemente não achará nada. Todavia, através de
um malabarismo argumentativo, alguns católicos tomam Inácio:
Meu
espírito se sacrifica por vós, não somente agora, mas também quando eu chegar a
Deus. Eu ainda estou exposto ao perigo, mas o Pai é
fiel, em Jesus Cristo, para atender minha oração e a vossa. Que sejais
encontrados nele sem reprovação. (Epístola aos Tralianos 13:3)
O
sacrifício de Inácio quando chegasse a Deus seria necessariamente a oração.
Ocorre que não há nada nem no contexto imediato ou nas outras cartas que sugira
isso. Inácio poderia estar especulando sobre a vida pós-morte, poderia apenas
estar sendo enfático sobre sua iniciativa de se sacrificar pela Igreja. Isso
tanto é óbvio que o sacrifício de Inácio naquele momento não era orar por sua
Igreja, mas ser entregue ao martírio. Mas, suponhamos que o sacrifício em
questão fosse orar pela Igreja. Como isso prova a doutrina católica da
intercessão? Inácio não diz que os membros de sua Igreja deveriam orar a ele.
Mas a conclusão do autor católico é: “E uma dessas é esta que estamos citando, que comprova sim a
crença na intercessão dos santos ainda entre os Padres Apostólicos.” Definitivamente
não.
Justino Mártir (100 – 165)
Vede o fim que tiveram os
imperadores que vos precederam: todos morreram de morte comum. Se a morte
terminasse na inconsciência, seria uma boa sorte para todos os malvados.
Admitindo, porém, que a consciência permanece em todos os nascidos, não sejais
negligentes em convencer-vos e crer que essas coisas são verdade. De fato, a
necromancia, o exame das entranhas de crianças inocentes, as evocações das almas humanas e os que são chamados entre os magos
de espíritos dos sonhos e espíritos assistentes, os fenômenos que acontecem sob
a ação dos que sabem essas coisas devem persuadir-vos de que, mesmo depois da
morte, as almas conservam a consciência. (I Apologia 18)
O
autor católico diz:
Em primeiro lugar, é
interessante notar que o protestante cita um texto que prova a
imortalidade da alma e a consciência dos mortos (diferente do que
ensina a doutrina protestante que diz que os santos estão “dormindo
inconscientemente” e que nossas almas “morrem” com a morte de nosso corpo).
Alguém que se propõe a refutar
o outro lado, deveria ao menos pesquisar sobre quem se pretende refutar. Mais
adiante, ele faz um dos argumentos católicos mais populares:
Em segundo lugar, é
visto que o protestante não conhece a doutrina católica e não entende a
diferença entre “invocação” e “evocação”. Uma coisa é invocar um
santo, isto é, suplicar-lhe por ajuda, outra coisa é evocar um
morto, isto é, trazê-lo de volta à Terra para consulta-lo sobre coisas futuras
(“servir de oráculo”). Uma prática simplesmente, não tem nada haver com
a outra, só o nome que é parecido. Todos os cristãos desde o princípio da
Igreja até os dias de hoje condenam essa prática abominável que é a evocação
dos mortos.
Esse é um bom exemplo de algo
muito comum na teologia romana – criar palavras diferentes para diferenciar
práticas que são iguais em sua essência. Assim surge a diferença entre evocar e
invocar, adorar e venerar e outras tantas. Antes de tudo, invocar é pedir o
auxílio de alguém e evocar é chamar a presença de alguém. Note que “consultar
sobre coisas futuras” pode ser o objetivo da evocação, mas não é em si parte do
conceito da palavra. O fato é que tanto evocação como invocação são formas de
se comunicar com os mortos. O objetivo de evocar alguém pode ser pedir sua
ajuda ou proteção da mesma forma que os católicos fazem quando invocam Maria ou
os santos. Diferente do que o autor disse, não são coisas totalmente
diferentes. Pelo contrário, são formas distintas de obter a ajuda de alguém já
falecido. Lembre-se que o catolicismo é cheio de histórias de aparições de
santos falecidos. Percebam quão arbitrária é a distinção. Se é natural que um
santo apareça a um fiel, porque então o católico não poderia orar pedindo que
fosse alvo de uma aparição? Isso não seria exatamente a evocação? A Bíblia
condena a comunicação com os mortos (vide caso de Saul) e como a invocação é um
tipo de comunicação com os mortos, é também uma prática condenável.
Agora, se o católico deseja
desqualificar o testemunho de Justino, ele precisa demonstrar que o autor fazia
esse tipo de distinção (invocação x evocação). Percebam como o católico assume
a priori que o pai da igreja fazia a mesma distinção que ele faz, como se Justino
fosse um bom católico romano. Ele apenas pressupõe que os pais da igreja
pensavam como eles e a partir daí tiram as conclusões – trata-se da falácia da
petição de princípio. Justino obviamente não fez tal distinção em suas obras.
Assim como outros, ele falou bastante coisa sobre oração e ainda assim nada
mencionou sobre orar aos falecidos. Pelo contrário, orar aos falecidos era uma
prática dos pagãos de seu tempo e não do ensino da Igreja.
Atenágoras
de Atenas (133 – 190)
Por causa da multidão, que não
pode distinguir entre a matéria e Deus, ou ver o quão grande é o intervalo que
se encontra entre eles, oram a ídolos feitos de matéria, estamos,
portanto, aquele não está distinguindo e
separando o incriado e o criado, o que aquilo é que não é, aquilo que é
apreendido pela compreensão e aquilo que é percebido pelos sentidos, e que dão
o nome apropriado para cada um deles - devemos cultuar imagens? ... Porque, se
eles não diferem em nenhum aspecto dos animais (uma vez que é evidente
que a Divindade deve diferir das coisas da terra e aqueles que são derivados de
matéria), que não são deuses. Como, então, eu pergunto, podemos
abordá-los como suplicantes, quando sua origem se assemelha ao do gado, e
eles próprios têm a forma de animais, e são feios de se ver? (Um apelo
pelos cristãos 15, 20)
O católico então apresenta seu
argumento:
Eu
nem preciso expor aqui a diferença entre ícone e ídolo ou entre um santo servo
de Deus e um deus pagão. Atenágoras simplesmente não aborda a súplica aos santos nesta
obra, mas critica a devoção irracional dos pagãos a seus
ídolos.
O autor católico simplesmente
não consegue perceber a natureza do argumento. É óbvio que Atenágoras está se
referindo a práticas pagãs, mas a natureza do argumento que usa torna muito
improvável que tal prática fosse aceita quando realizada num contexto cristão.
O argumento é que os pagãos oravam para criaturas, logo sua prática era
errônea. A questão é como ele poderia utilizar esse argumento se a Igreja também
ensinasse que se deveria orar para criaturas (santos ou anjos)? Se eu dissesse
que é pecado usar imagens no culto, eu obviamente não poderia usar imagens na
minha Igreja, sejam elas quais forem. Agora se eu desejasse usar imagens no
culto da minha Igreja, eu simplesmente diria que há um jeito correto de usar
tais imagens ou há imagens que podem ser utilizadas e que outras igrejas apenas
estão fazendo da forma errada. Não é o ponto de Atenágoras. Ele condena os
pagãos usando um argumento que poderia ser usado contra qualquer um que ora
para criaturas. Como dito em meu artigo anterior, uma prática errada não se
torna correta somente porque é feita num contexto cristão.
Taciano
(120-180)
Gregos,
a nossa alma não é imortal por si mesma,
mas mortal; ela, porém, é também capaz de não morrer. Com efeito, ela morre e se dissolve com o corpo se não
conhece a verdade; ressuscita, porém, novamente com o corpo na consumação
do tempo, para receber, como castigo, a morte na imortalidade. Por outro lado, não morre, por mais que se
dissolva com o corpo, se adquiriu conhecimento de Deus.
(Discurso contra os Gregos, c. 13)
Taciano defende uma posição
mortalista, o que é incompatível com a oração aos mortos. Já antevendo algumas
objeções, importa dizer que Taciano escreveu esta obra quando ainda fazia parte
da Igreja, portanto, apontar sua apostasia futura é irrelevante para a questão.
Irineu
de Lyon (130 – 202)
Nem ela [a Igreja]
realiza qualquer coisa por meio de invocações angelicais, ou
por encantamentos, ou por qualquer outra arte curiosa perversa, mas,
dirige suas orações ao Senhor, que fez todas as coisas, em um puro,
sincero e íntegro espírito, e invocando o nome de nosso Senhor Jesus Cristo,
ela está acostumada a fazer obras milagrosas para o benefício do gênero humano,
e não para levá-los ao erro (...) o altar, então, é no céu (para esse
lugar são as nossas orações e ofertas dirigidas). (Contra as Heresias
2:32:5 e 4:18:6)
É interessante que o protestante não se dá o trabalho de pesquisar
um pouco sobre o contexto dessa
passagem. Em primeiro lugar, a obra “Contra as Heresias” é uma refutação
à heresia gnóstica. Em
segundo lugar: Qualquer um que conheça a obra de Irineu sabe que nesta passagem
ele se refere aos “aeões”, criaturas
que os gnósticos chamavam de “anjos” e a quem Irineu considera espíritos
imundos, demônios. Como explica bem o patrologista René Massuet, Irineu
não está abordando a intercessão ou a devoção aos anjos em geral, mas se
referindo a invocação desses aeões específicos.
O católico usa o mesmo
argumento já demonstrado em Atenágoras. O argumento é que Irineu estava se
referindo aos “aeões”, logo não poderia ser usado contra as invocações
angelicais. A primeira afirmação é bem disputável, pois não há nada no contexto
desta citação que sugira isso. Irineu parece usar o termo anjos de forma
genérica. Se o autor católico deseja sustentar isso, ele deveria trazer alguma
citação do contexto que aponta nesta direção. Ele apenas diz que é algo óbvio e
cita um autor sem sequer trazer qualquer referência.
Mas supondo que ele estivesse
certo sobre esse ponto, mais uma vez a natureza do argumento de Irineu é muito
clara. Ao condenar os gnósticos pelas invocações angelicais, Irineu cria um
antagonismo ente eles e a prática da Igreja. E qual era a prática da Igreja?
Orar a Deus. A questão não era “eles oram para o anjo errado, e nós oramos para
o anjo certo”, mas sim “enquanto eles oram para anjos, nós oramos para Deus”.
Se orar para anjos fosse parte do ensino da Igreja, seria muito improvável que
o bispo usasse tal argumento. Irineu também não foi silente sobre oração e nada
disse sobre orar a qualquer outro a não ser Deus. Agora, compare isso com os
romanistas que não passam um único dia sem orar para alguém que não Deus.
Tertuliano
(160 – 220)
Tertuliano viveu no final do
final século II ao início do século III. É uma fonte importante não apenas por
sua antiguidade, mas também por ter falado sobre a oração diversas vezes,
inclusive escrevendo um tratado sobre o tema. Apesar disso, não ensina a oração
aos mortos ou intercessão dos santos. Se essa era uma prática estabelecida na
Igreja dos seus dias, era de se esperar a presença de clara evidência num autor
que se dedicou a escrever tanto sobre a oração. Ele explica que a oração é um
sacrifício a Deus, o que excluiria orar a outros além dele:
Nós somos os verdadeiros
adoradores e os verdadeiros sacerdotes, que, orando no espírito, sacrifício,
em espírito, oração - a vítima adequada e aceitável a Deus, que
seguramente Ele tem exigido, o qual Ele tem olhado disposto para si mesmo! Esta
vítima, dedicada de todo o coração, alimentada pela fé, tendeu pela verdade,
inteira na inocência, puras de castidade, coroada com amor, devemos acompanhar
com o esplendor de boas obras, entre salmos e hinos, dentro do altar de Deus,
para obtermos todas as coisas de Deus. (Sobre a oração 28)
Tertuliano também escreveu:
Paraíso, o lugar da
bem-aventurança celestial designado para receber os espíritos dos santos, cortados
do conhecimento deste mundo. (Apologia 47)
A implicação é de que os
crentes falecidos não seriam capazes de receber nossas orações. O apologista
católico ignorou a primeira citação e sobre a segunda ele comentou:
Mais um texto fora
de contexto. Essa linguagem de que “os mortos estão cortados do conhecimento
deste mundo” está também presente, por exemplo, nos escritos de outros padres
ocidentais mais tardios como São Tomás de Aquino (cf. Summa Theologicae,
II-II, 83, 11). Isso, entretanto, não significa que eles não acreditem
na intercessão e invocação dos santos. Tomás é um exemplo claro disso, já
que em sua obra, professa ambas as doutrinas e inclusive as concilia (cf. ibid).
O sentido claro e padrão de “cortados do conhecimento deste mundo” é
obviamente que o falecido deixa de saber sobre as coisas que se passam aqui. Ele
me acusa de distorcer o contexto da passagem, mas ele próprio não traz o
contexto por uma simples razão – o contexto apenas aponta para o sentido óbvio
do texto. Ele então resolve nos mostrar como se faz, e ao invés de usar alguma
citação de Tertuliano para nos mostrar que estamos interpretando o homem
errado, ele usa Tomás de Aquino. Chega a ser cômico. Tertuliano é um norte-africano
do séc. II enquanto Aquino é um teólogo medieval do séc. XII. Sabe qual é a
relevância de Aquino para entender Tertuliano? Nenhuma. Aquino viveu num
período em que não só essa, mas muitas outras doutrinas heréticas eram
amplamente aceitas pela Igreja Ocidental. Essa é a razão por qual Tertuliano
não defendia a oração aos santos e Aquino sim. O africano viveu num período em
que tal heresia não fazia parte da igreja do Ocidente. Ele ainda parece sugerir
que Aquino era um Pai da Igreja, o que é totalmente falso. Se você deseja
entender um autor, você deve estudar suas obras ou no máximo outros autores
próximos geograficamente ou temporalmente, mas usar um teólogo medieval que
viveu 10 séculos depois é uma amostra de que os católicos não estão
interessados em deixar os pais da igreja ser quem eles eram. Eles desejam a
qualquer custo transformá-los anacronicamente em católicos romanos. O católico
prossegue:
Em primeiro lugar,
deve-se distinguir as realidades materiais (isto é, as coisas
que se referem unicamente à vida material e terrena) das realidades
espirituais (isto é, aquelas que envolvem a alma humana, que estão
ligadas principalmente ao serviço à Deus e o amor aos irmãos através da unidade
dos membros do corpo místico de Jesus). Quando os autores sagrados utilizam
tais termos, não querem dizer que a morte destrói a vinculação espiritual dos
membros do corpo de Cristo (o que chamamos de “comunhão dos santos”), mas sim
que eles estão desligados das realidades materiais deste mundo.
Nesse sentido sim, os santos estão realmente “cortados do conhecimento deste
mundo”, já que o conhecimento a que Tertuliano se refere é inútil à
contemplação daqueles que já atingiram a perfeição.
Ele cria uma série de distinções arbitrárias, mas não faz o essencial –
mostrar que Tertuliano realizava tais distinções. Onde estão os textos em que o
africano afirma haver esse antagonismo entre realidades materiais e
espirituais? Porque deveríamos abandonar
o sentido óbvio de um texto e adotar uma interpretação mirabolante se ele não
oferece qualquer evidência textual de Tertuliano a favor disso? Percebam como é
a “lógica” da coisa. Eu crio uma série de qualificações e simplesmente digo que
tal autor as realizava para assim satisfazer minha necessidade de torna-lo um
católico romano. O apologista não oferece um texto sequer de Tertuliano ou
qualquer outro pai da Igreja em que tais distinções sejam feitas.
Mesmo na Igreja terrena, um crente não tem o poder mágico de ouvir
orações dirigidas a ele. Se eu orar para que um cristão não China ore por mim,
ele simplesmente não vai me ouvir. Se a comunhão terrena não traz esse
benefício, porque os que estão não céu o teriam. Os católicos acabam tornando a
morte uma barreira irreal. Não por acaso, nenhum autor bíblico ensinou tal
absurdo. Não há absolutamente nenhum dado da revelação que sugira que os mortos
têm conhecimento do que se passa aqui na terra. No máximo, poderíamos especular
se eles mantêm suas memórias terrenas.
Clemente
de Alexandria (150 – 210)
Clemente define a
oração como a comunicação com Deus. Ele descreve a oração como um ato de
adoração e sacrifício a Deus, o que implica na exclusão dos mortos ou anjos
como destinatários da oração:
Mas se, por
natureza, não necessita de nada, Ele [Deus] tem prazer em ser adorado, não
é sem razão que adoramos a Deus em oração, e assim o melhor e mais santo
sacrifício com justiça nós oferecemos, apresentando-a [a oração] como uma
oferta [...] o sacrifício da Igreja é a palavra de desejo como incenso
de almas santas, o sacrifício e toda a mente sendo ao mesmo tempo revelada a
Deus [...] A oração é, então, falar com mais ousadia, conversar com Deus.
Embora sussurrando, consequentemente, e não abrindo os lábios, falamos em
silêncio, ainda assim gritamos interiormente. Porque Deus ouve continuamente a
nossa conversa interior. (The Stromata, 7:6-7)
Em primeiro lugar, ele afirma que para Clemente, a
oração é um “encontro com Deus”.
Eu não disse que a oração é um encontro com Deus. O que eu afirmei e
Clemente claramente diz é que a oração é uma oferta de adoração a Deus. Sendo
assim, oferecer oração a outro seria idolatria.
Ora, qualquer criança entende que Clemente não está
aí refletindo sobre a intercessão dos anjos e santos, mas apenas afirmando que
a oração é um encontro com Deus. E sim, o é. Há de se distinguir as orações à
Deus das petições que fazemos aos homens santos (a quem Orígenes, por exemplo,
chama de “súplica”). Uma coisa não muda a outra, mas apenas a complementa.
Ninguém afirmou que ele se referia a intercessão dos anjos e santos. O
apologista católico parece acreditar que apenas se Clemente disse “não orem aos
santos” seria uma evidência. É óbvio que ele não disse isso, pois esta não era uma
prática comum em seu tempo. Ao conhecermos os pensamentos de um Pai da Igreja,
podemos afirmar se ele pensava de forma compatível ou não com determinada
doutrina. Os próprios apologistas católicos abusam disso para provar suas
doutrinas ao fazerem uso de implicações. Se o Pai da Igreja disse “X”, logo ele
acreditava em “Y”. Da mesma forma o inverso. Por exemplo, se um Pai da Igreja
era mortalista (o já citado Taciano), ele não poderia acreditar na oração aos
santos. Para esta conclusão não é preciso que ele diga “não se deve orar aos
santos”. Para não perder o costume, ele continua criando suas próprias
distinções. Agora temos as orações a Deus e as feitas aos demais. Ele então
cita Orígenes, mas não cita sobre quem está argumentando – Clemente. Mais uma
vez, ele falha ao não mostrar em Clemente a distinção que ele pretende
empregar.
Depois, ele próprio reconhece que São Clemente
acreditava na intercessão dos santos, e, já sem argumentos, supõe que ele
criticava que orássemos a eles (...) Em primeiro lugar, devemos deixar claro o que
são fatos extraídos das obras de Clemente e o que são especulações. Dizer que
Clemente criticava a invocação dos santos, sem citar nenhum texto que o
fundamente, é a mais pura especulação.
Deste
modo está ele [o verdadeiro cristão] sempre puro para oração. Ele também reza
na sociedade dos anjos, como sendo já da classe dos anjos, e ele nunca está
fora da sagrada proteção deles; e pensou que rezava sozinho, [mas] ele tem o
coro dos santos permanecendo com ele [em oração]. (Miscellanies 7:12)
Eu deixei bem claro o cerne da minha argumentação. Primeiro eu citei um
texto em que Clemente trata a oração de forma incompatível com a doutrina
romana. Ele simplesmente não lidou com o argumento: (1) Clemente via a oração
como uma oferta de adoração; (2) Ele acreditava que a adoração era algo devido
somente a deus; (3) Logo ele não iria ensinar a oração a outro que não seja
Deus, sob pena de Idolatria. E no meu texto eu fui plenamente honesto apontando
os pais da Igreja que acreditavam que os crentes no céu oravam pela Igreja na
terra, mas a doutrina romana não se limita a isso, também afirma que se pode
orar aos santos. O apologista católico se propôs a provar a INVOCAÇÃO dos
santos nos Pais em questão. Foi ele quem não suportou o ônus da prova que impôs
a si mesmo. Cadê as citações em que Clemente ensina que devemos invocar os
santos? O texto de Clemente apenas aponta para o que disse em meu artigo – um
pai da Igreja poderia acreditar que os que estão no céu oram por nós sem com
isso dizer que devemos orar para eles. Portanto, sempre que um católico usar
esses textos para provar sua doutrina, está tentando ler muito mais do que foi
escrito.
Cipriano de Cartago (? -
258)
Sobre Cipriano, é mais do
mesmo. O apologista católico usa uma citação em que o bispo afirma que mesmo
após a morte continuaremos orando uns pelos outros. A questão é que ele em
todos os muitos textos que falam sobre oração não menciona nada sobre orar ao
falecido pedindo sua intercessão. Sendo Cipriano um “bom católico romano”, como
ele poderia esquecer esse detalhe tão importante? Onde estão as citações em que
Cipriano ensina a invocação dos santos? Além disso, ele cria um espantalho
sobre meu argumento em Cipriano:
Segundo ele, de acordo com Cipriano, a “oração
é descrita como algo feito aos Olhos de Deus, dirigida a Deus e não a pessoas”.
Vemos novamente o autor utilizar-se como subterfúgio da especulação, afirmando
claramente algo que o texto que citou não diz. Cipriano nesta passagem apenas
diz que a oração à Deus é um encontro com Deus, nada mais. O resto são
suposições de um defensor de heresias desesperado.
Antes de tudo, a citação
analisada é de Clemente e não Cipriano. Ele repete o mesmo argumento usado por
ele em Clemente e atribui a Cipriano. Os argumentos usados por mim se baseiam
nas seguintes citações de Cipriano:
Além disso, quando estamos orando, amados
irmãos, devemos ser vigilantes e sérios com todo o nosso coração, com a intenção
de nossas orações. Que todos os pensamentos carnais e mundanos passem
longe, nem deixe a alma naquele momento pensar em nada, mas no objeto
único de sua oração. Por esta razão, também o sacerdote, a título de
prefácio antes de sua oração, prepara as mentes dos irmãos, dizendo:
"Levantai os vossos corações," que assim sobre a resposta do povo, 'Nós
o levantamos até o Senhor ', ele pode ser lembrado que ele mesmo
não deveria pensar em nada, mas no Senhor. Vemos o coração ser fechado
contra o adversário, e estar aberto a Deus. (Sobre a Oração do Senhor,
31)
O católico afirma que usei o seguinte argumento “como
Cipriano diz que devemos orar a Deus, logo não podemos orar aos santos”. É
apenas um espantalho. Como já disse, nós podemos apreender o pensamento de um
Pai da Igreja a partir de suas declarações compatíveis ou incompatíveis com
determinada ideia. Historiadores patrísticos fazem isso o tempo inteiro e a
maior parte dos argumentos católicos sobre os Pais da Igreja se baseiam em
implicações. Dê uma olhada em qualquer artigo que tente provar o purgatório na
Igreja Primitiva e verá várias citações que não falam de purgatório, mas de
orar pelos mortos (não confundir com orar ao morto). Os católicos simplesmente
pressupõe que se oravam ao morto, logo acreditavam em purgatório. Esse é um
exemplo de argumento que usa uma implicação para inferir uma doutrina (será que
o apologista católico também chamaria isso de especulação?). Se for o caso,
todos os artigos do blog dele se baseiam apenas em especulações.
Meu argumento é que, ao ensinar sobre a oração,
Cipriano diz que devemos pensar somente em Deus como objeto de nossa oração.
Como alguém que supostamente orava a Maria e um monte de Santos poderia dizer
isso? Quando um católico está orando o Ave Maria obviamente está pensando em
Maria. Toda a oração é direcionada a ela. Alguém pode objetar dizendo que isso
não elimina totalmente a possibilidade de Cipriano também orar a outro que não
Deus. Eu digo que concordo, mas pergunto qual é a posição mais provável?
Obviamente de que ele via a oração como algo direcionado somente a Deus. Além disso,
eu fiz vários outros argumentos que foram ignorados pela “refutação”, como o
abaixo:
Ao longo do tratado,
Cipriano instrui o leitor como orar a Deus. Ele diz repetidamente que está abordando todas as nossas orações nesse
tratado, mas não diz nada sobre orar a Maria, José ou qualquer outro que não
seja Deus. Em vez disso, descreve a oração como um ato de adoração e
reverência, algo dirigido a Deus somente. Um anjo pode levar nossas orações a
Deus, como vemos no livro do Apocalipse, por exemplo, mas a oração deve ser
dirigida somente a Deus. Essa é a visão protestante da oração, é o ponto de
vista bíblico e é o ponto de vista dos pais da Igreja dos primeiros séculos.
Se um autor escreve um tratado se propondo a abordar
todos os tipos de orações e não menciona nada sobre orar a Maria ou Santos, a
conclusão lógica é que ele não concebia a oração como algo direcionado a outro
que não Deus. A obra completa pode ser vista aqui. Pense num católico romano que objetiva fazer
um tratado sobre oração e “esquece” de mencionar um elemento central da
espiritualidade católica – orar aos santos e Maria. Obviamente é algo muito
improvável – o que nos permite inferir que Cipriano não adotava a prática
romanista.
Lactâncio
(240 – 320)
É
evidente que aqueles que fazem orações aos mortos,
ou veneram a terra, ou oferecem suas almas aos espíritos imundos, não agem como
se tornando homens, eles vão sofrer punição por sua impiedade e culpa,
que, rebelando-se contra Deus, o Pai da raça humana, se comprometeram com
ritos inexpiáveis, e violaram toda a lei sagrada. (As
Institutas Divinas 2:18)
O apologista
católico comenta:
Em primeiro lugar, se pode se citar um
contemporâneo de Constantino, porque os protestantes rejeitam os testemunhos
dos Padres Nicenos, também contemporâneos de Constantino?
O que tem a ver Constantino com o meu texto? Eu
abordei uma divisão histórica muito usada pelos historiadores da Igreja:
período pré-niceno, sendo Lactâncio pertencente a tal período. Além disso, eu
não rejeitei o pais nicenos, eu apenas delimitei um período histórico que é
suficiente para refutar o argumento católico “a invocação dos santos é o ensino
da Igreja desde o início”. Um debatedor deve oferecer provas a altura de suas
alegações. Nenhum protestante afirma que nenhum Pai da Igreja ensinou a oração aos
santos. Isso obviamente aconteceu e começou a se popularizar a partir do séc.
IV, ainda que tenha havido oposição (ex. Vigilâncio). O ponto é que se a
invocação dos mortos é uma doutrina apostólica e não uma inovação, seria
esperado encontrar provas no ensino oficial da Igreja desde o período
apostólico. Todavia, mesmo a oração sendo um tema central da vida cristã e
tendo sido exaustivamente abordada nas Escrituras e pelos pais da Igreja, não
há qualquer citação que corrobore a doutrina católica nos primeiros três
séculos. Ou a invocação dos santos é uma dessas tradições orais “fantasmas” que
ficam séculos escondidas (posição inaceitável) ou trata-se de mais uma inovação
que não pode ser rastreada até o período apostólico. E longe de mostrar o
contrário, o artigo católico só corroborou esse fato.
Em segundo
lugar: Mais uma vez, nosso amigo não leu a obra do autor na íntegra e desprezou
o contexto deste texto. A passagem está se referindo a homens que, com o passar
do tempo, passaram a
ser considerados deidades por várias pessoas, e então
foram adorados (deuses
pagãos), tanto o é, que o título deste capítulo é “A Paciência e a vingança de Deus, a
adoração de demônios e religiões falsas”. Vê-se, portanto, que
prática pagã que Lactâncio fala de “orar aos mortos” é totalmente diferente da
prática cristã, não
podendo ser equiparadas.
Mais uma vez, o católico tenta escapar da
condenação óbvia de sua doutrina apelando a distinções que Lactâncio não fez. O
autor não condenou os pagãos por orarem ao “morto errado”, ele simplesmente
condena a oração aos mortos sem estabelecer qualquer exceção. O apologista
ainda diz que a prática é “totalmente diferente” da prática católica. Como isso
pode ser verdade se ambas as práticas são orar aos mortos? Pense por um
instante, que tipo de católico romano diria que é errado orar aos mortos?
Nenhum. O meu argumento é que Lactâncio pressupõe que não é prática da Igreja
orar aos mortos. Ele diz claramente sem estabelecer qualquer qualificador que
orar aos mortos viola a Lei Sagrada. No entanto, o apologista católico sem
apresentar qualquer evidência disso nos quer fazer pensar que só é violação da
Lei sagrada orar pelo morto errado. Se você orar pelo morto certo (o panteão de
santos do romanismo) está ok. Isso me leva a mais um questionamento. Já que não
havia nos primeiros séculos qualquer processo formal de canonização dos santos,
como os fiéis poderiam saber qual o morto certo? Como eles poderiam saber se
suas orações estavam indo para alguém que de fato teria poder intercessório?
Metódio e Hipólito de Roma (Séc. III)
No meu artigo
anterior, eu abordei esses dois pais da igreja que são usados como testemunho
positivo pelos apologistas católicos. Existe uma oração a Maria atribuída a
Metódio que é espúria, no entanto é amplamente citada em páginas católicas.
Neste caso, o apologista católico reconhece esse fato, uma vez que até os
autores católicos apontam o mesmo. Sobre Hipólito, o estudioso católico Ludwig Ott foi responsável
por popularizar a ideia de que Hipólito defendeu a invocação aos santos.
Todavia, é bem claro a partir dos textos que Hipólito estava usando um
mecanismo retórico e não fazendo uma oração (aqui).
A citação da Oração 24 de Gregório Nazianzeno
Após não conseguir trazer uma única citação de pai
da igreja pré-niceno a favor da invocação dos santos, o apologista traz uma
citação de Gregório. Esse autor não é considerado pré-niceno e escreveu essa
obra por volta do ano 380, ou seja, foge totalmente do escopo de nosso artigo e
do ônus que ele prometeu provar. A oração 24 foi escrita em louvor aos mártires
Cipriano e Justina. Gregório erroneamente acreditava que este mártir seria
Cipriano de Cartago, quando na verdade se trata de outro Cipriano que teria
sido o bruxo que inspirou o livro ocultista de São Cipriano. Além desse
equívoco, todo o relato não passa de uma lenda acreditada por Gregório. Esses
personagens nunca existiram. Infelizmente, este é o caso de muitos santos da
Igreja Romana. Quando não são histórias inteiramente lendárias, há diversos
relatos falsos. É comum “enfeitar a pavão”. Sem contar aqueles “santos” que
tiveram uma vida nada santa. Ainda que a
invocação dos santos fosse uma doutrina correta, muitos católicos estão orando
por santos que sequer existiram ou que sequer estão no céu. Após trazer o
esboço da história de Cipriano e Justina, a Enciclopédia Católica afirma:
Este é o
esboço da lenda ou alegoria que é
encontrada, adornada com descrições e diálogos no não confiável "Symeon Metaphrastes" e foi objeto de um
poema da imperatriz Eudocia II. A
história, no entanto, deve ter surgido já no quarto século, pois é mencionada
tanto por São Gregório Nazianzeno quanto por Prudencio. Ambos, no entanto, confundiram esse
Cipriano com São Cipriano de Cártago, um erro repetido muitas vezes. É certo que nenhum bispo de Antioquia tinha
o nome de Cipriano. A tentativa foi feita para encontrar em Cipriano um protótipo
místico da lenda de Fausto. (Fonte)
As catacumbas e as inscrições funerárias
Diante da incapacidade dos apologistas católicos de
apontarem evidências patrísticas antigas em favor da invocação dos santos e
anjos, eles passam a apelar a outra linha de evidência: inscrições funerárias e
as catacumbas. Num artigo anterior, eu já apontei em linhas gerais o problema
com esse tipo de evidência:
Como
alguém pode afirmar que uma crença que só passou a ganhar força mais de 300
anos após a fundação da Igreja pode ser uma tradição generalizada e tão antiga
quanto a própria Igreja? Nesse ponto, os romanistas passam a fazer uso de uma
linha de evidências que mostra quão distorcida é sua abordagem da história da
Igreja. É comum ouvirmos falar de inscrições em catacumbas que eram locais de
culto cristão nas quais havia pedidos a algum apóstolo já morto. O problema é
que não sabemos quem eram os autores destas inscrições. Sabemos que tais
crenças não eram generalizadas, pois os Pais da Igreja mais antigos não as
adotaram. E o mais importante, não sabemos se eram fontes ortodoxas. O que
apologistas católicos não costumam falar é que nas catacumbas também foram
encontradas inscrições de pedidos feitos a deuses pagãos. Devemos então
concluir que esta era a crença generalizada da Igreja? Boa parte das cartas do
Novo Testamento foi escrita para repreender Igrejas que estavam aderindo a
doutrinas heréticas. Se tais cristãos, sob supervisão direta dos apóstolos,
poderiam claudicar, como então as práticas de “cristãos” que sequer sabemos
quem eram pode se tornar o critério da ortodoxia da Igreja? Lembremos que as
heresias sempre surgiram dentro da Igreja e contaram com o apoio de muitos
cristãos. O gnosticismo por exemplo teve seu epicentro na Igreja de Roma.
No item
14 sob o título “Sub Tuum Praesidium” o
apologista faz menção a mais antiga oração a Maria conhecida. Eu também já havia
tratado disso:
Ainda é
citado a devoção à Maria. A abordagem que os Pais da Igreja mais antigos tinham
sobre Maria era muito mais parecida àquela dos reformadores do que atuais
católicos Romanos. Maria é pouquíssimo citada pelos pais do séc. II (em
oposição aos católicos atuais que a citam até em uma simples carta). Não há um
registro patrístico sequer de Oração a Maria anterior ao século IV. Essa seria
mais uma dessas tradições secretas que passam séculos e séculos escondidas? A
oração à Maria era uma prática tão “generalizada” na Igreja Antiga que a
evidência mais antiga desta prática (de uma fonte que sequer conhecemos) é o
papiro 470. O problema é que a data mais antiga atribuída ao papiro é o ano
250. Agora pense nos católicos romanos atuais. Um fiel praticante deve rezar
para Maria quase todos os dias. Como uma prática tão generalizada poderia ter
evidência tão escassa e tardia? A datação do papiro também é objeto de
controvérsia:
Este fragmento de papiro é uma oração para
Theotokos escrito em torno de 250 d.c, por papirorólogos que examinaram o
estilo de caligrafia. Alguns inicialmente colocaram o papiro no quarto
ou quinto século (a descrição da Biblioteca de John Rylands abaixo o enumera
como 3º - 4º século), talvez porque
não pensassem que os cristãos estariam orando pelos Theotokos tão cedo. (Fonte)
O apologista católico afirma que a oração é do séc.
III, mas não menciona a controvérsia sobre a datação. O ponto é muito simples –
como uma prática tão central na vida de qualquer católico romano apresenta
evidências tão escassas e problemáticas? Se a Igreja antiga desde o início
orasse aos santos, não haveria discussão. A quantidade de evidências, escritos
e tratados sobre isso seria enorme. O católico também cita inscrições nas
Catacumbas de São Sebastião que apresentam o mesmo problema – não sabemos nada
sobre a ortodoxia dos autores, não sabemos se eles estavam expressando uma
crença oficial da Igreja (na verdade a evidência aqui exposta sugere o
contrário), e não sabemos quão generalizadas tais práticas eram (a julgar pela
escassez e pontualidade das inscrições, não eram generalizadas). Além disso,
tais inscrições são na melhor das hipóteses do séc. III. Como isso permite a
conclusão “a Igreja Católica sempre acreditou na intercessão dos santos”? Romanistas
são especialmente seletivistas quando tratam a história da Igreja. Quando um
pai da igreja contraria o que mais tarde Roma proclama como dogma, esse pai
estava apenas expressando uma opinião privada. No entanto, quando se encontra
uma inscrição de uma fonte anônima e contrários ao ensino dos mestres da
Igreja, magicamente isso se torna em prova do que a Igreja sempre ensinou.
O autor ainda traz uma inscrição da Basílica da
Anunciação. Basicamente foi encontrada uma inscrição que segundo Michael
O’Caroll (autor católico romano) seria datado entre 90 d.c e século III que faz
referência a uma mulher cujo nome começa com M. Um peregrino que séculos depois
a encontrou supôs que se tratasse de Maria. Além da datação tardia e do
encadeamento de suposições que precisam ser feitas para concluir que se tratava
de Maria, não há nada na inscrição que sugira ser uma oração. Nem o próprio
O’Carrol afirma se tratar de uma oração. Nada no pequeno texto sugere que
alguém estava orando a Maria. Ele ainda traz uma última inscrição bem mutilada
que também não trata de oração e muito menos de veneração a Maria como ele
sugere.
Em relação aos comentários dirigidos a pessoas e
anjos falecidos em inscrições de catacumbas, em poesia e em lápides modernas, é
preciso dizer que tais mensagens não são equivalentes à oração. Quando os
salmistas falam às montanhas, por exemplo (Salmo 68:16, 114: 6), ou alguém
escreve uma mensagem para uma pessoa falecida em sua lápide, isso não é
equivalente à oração. O salmista não está rezando para as montanhas, e a
mensagem na lápide não é para ser uma oração. Equacionar tais dispositivos
retóricos com a oração é um erro. Ninguém que vai a um cemitério protestante e
vê "descanse em paz" dirigido a uma pessoa morta, ou que vê os anjos
serem abordados em um hino protestante, concluiria que os protestantes devem,
portanto, acreditar em orar aos mortos e aos anjos. Esses dados não seriam
conclusivos na melhor das hipóteses.
Conclusão
A conclusão do artigo católico é o perfeito exemplo
da falácia do não-segue: “independente do Período, a
Igreja sempre invocou os santos e acreditou que eles possuíam o poder de
interceder por nós nos Céus”. O apologista não apresentou uma evidência
patrística sequer de que os falecidos oram pela igreja no segundo século. A
evidência mais adiantada para tal é Orígenes (séc. III). No entanto, o pior é
que ele não apresentou uma evidência sequer de invocação dos santos no período
pré-niceno. Ele esboçou uma tentativa somente em Orígenes – equivocada por
sinal. Para os demais pais da Igreja, ele sequer tentou apresentar qualquer
citação referendar a invocação dos santos e anjos. Para encerrar, ele cita de
forma descontextualizada J.N.D Kelly. Até hoje, não vi um apologista católico
citá-lo sem distorcer o que ele dizia. Em minha série sobre Agostinho eu tratei
do caso mais esdrúxulo, em que o apologista citava Kelly como confirmação de
que Agostinho cria no papado, quando poucas linhas depois da citação, o
historiador protestante nega justamente que Agostinho cresse no papado. Isto se
dá porque os católicos não leram a obra patrística de Kelly (facilmente
disponível em português). Geralmente eles copiam a citação de blogs católicos
em inglês, no qual há pouco ou nenhum cuidado em contextualizar as citações.
Segue a citação retirada da obra em português:
Um fenômeno de grande significação no período
patrístico foi o surgimento e gradual desenvolvimento da veneração aos santos,
mais particularmente à bem-aventurada virgem Maria. Seu pleno florescimento e
as definições formais que a sancionaram pertencem a períodos posteriores não
cobertos por este livro, mas as etapas iniciais requerem um breve exame. (Kelly,
p. 374)
Vejam que Kelly está
tratando de todo o período patrístico que vai até o séc. VII. Meu artigo
abordou a evidência patrística até o início do séc. IV (período pré-niceno). No
meu artigo anterior, eu deixei bem claro que as primeiras evidências
patrísticas em favor da invocação dos falecidos situam-se no século IV. Será
que Kelly contradiz minhas conclusões? Segue a continuação:
No início de tudo, havia a devoção aos mártires, os
heróis da fé que os cristãos consideravam já estarem na presença de Deus,
gozando de glória aos olhos divinos. Em primeira instância, isso assumiu a
forma de uma preservação reverente de suas relíquias e da celebração anual de
seus aniversários. Uma vez que eles já estavam com Cristo na glória, daí até a
busca da ajuda e das orações dos mártires era um pequeno passo, e no terceiro século acumulam-se provas da
crença no poder intercessório deles [Orígenes (Sobre a
oração 31:5); Cipriano (Ep. 60:5)]. (Kelly, p. 374)
O que Kelly chama de
poder intercessório nada mais é do que o que afirmamos em nosso artigo –
Orígenes e Cipriano criam que os cristãos no céu oravam pela Igreja na terra.
Kelly não está afirmando que eles ensinavam a oração aos santos. As referências
a obra de Orígenes e Cipriano são do próprio livro de Kelly e foram tratadas
por nós aqui – elas falam apenas que os cristãos no céu oram por nós. A
continuação da citação deixa claro o que seria esse poder intercessório:
Ao defender este ponto de vista, Orígenes apelava
para a comunhão dos santos, propondo a
ideia de que a Igreja no céu auxilia, com suas orações, a igreja na terra.
(Kelly, p. 374)
Esse era o poder
intercessório aludido no séc. III. Não há nada de orar a santos e anjos. Além
disso, Kelly corretamente situa a evidência mais antiga do poder intercessório
no séc. III. Como então o apologista pode usar Kelly para referendar a opinião
de que a Igreja sempre acreditou nisso? Mais interessante é o que Kelly afirma
sobre as orações a Maria:
Nos primeiros três séculos, pelo menos, a devoção à
virgem bendita desenvolveu-se com maior lentidão, sendo obscurecida pelo culto
entusiástico dos mártires. Tal devoção assumiu formas bem diferentes. Desse
modo, provas confiáveis de orações
dirigidas a ela ou da busca de sua proteção e ajuda são quase inexistentes
(embora não totalmente) nos primeiros quatros séculos da Igreja.
(Kelly, p. 375)
Quatro séculos e tudo o
que se tem é o quase silêncio total sobre orar a Maria (a oração mais antiga a
Maria é na melhor das hipóteses do séc. III, como abordado acima). No entanto,
os romanistas concluem a partir disso que orar a Maria foi a prática da Igreja
desde sempre. Dessa forma, prevalecem as afirmações de meu artigo anterior – não
há qualquer evidência patrística pré-nicena (três primeiros séculos) favorável
a oração aos santos e anjos.
**Atualização em 19/10/17
Tertuliano (160 – 220)
Pois
oferecemos oração pela segurança de nossos príncipes ao eterno, ao verdadeiro e
vivo Deus, cujo favor, além de todos os outros, eles
devem desejar (...) Sem cessar, para todos os nossos imperadores oferecemos
oração. Oramos por vida prolongada, por segurança para o império, para proteção
à casa imperial, para os exércitos valentes, por um senado fiel, um povo
virtuoso, o mundo em paz, seja o que for, como homem ou César, um imperador
desejaria. Estas coisas que eu não posso
pedir a ninguém, exceto ao Deus de quem eu sei, eu devo obter dele, tanto
porque somente Ele os concede e porque eu reivindico a Ele por sua dádiva,
como sendo seu servo, rendendo homenagem
a Ele somente, perseguido por sua doutrina, oferecendo a Ele, segundo Sua
própria exigência, aquele sacrifício caro e nobre de oração enviado de um corpo
casto, uma alma sem mancha, um espírito santificado. (Apologia, cap. 30)
Tertuliano nitidamente desconhece a oração a outro que não Deus. Ele
menciona uma série de súplicas que poderia (para alguns deveria) ser feito a
santos e anjos, mas segundo Ele, deveria ser feito somente a Deus pois somente
ele poderia atender.
Novaciano (200-258)
Novaciano é considerado antipapa pela Igreja Romana. Em todo o caso, ele
é um autor cristão do séc. III. Ele escreveu um tratado sobre a trindade e com o objetivo de
refutar os que negavam a divindade de Cristo, elaborou o clássico argumento
contra a invocação dos santos:
Se Cristo é apenas homem, como Ele está
presente onde quer que seja chamado, quando não é a natureza do homem, mas de
Deus pode estar presente em todos os lugares? Se Cristo é apenas um homem, por que um homem é invocado em orações como
mediador, quando a invocação de um homem para conceder salvação é condenada
como ineficaz? (Tratado
sobre a Trindade, Cap. 14)
O argumento pressupõe que um homem não pode ser
invocado como mediador. Os católicos argumentam que a mediação de Cristo não
exclui a possibilidade de os santos exercerem mediação. Todavia, Novaciano
entende que apenas algo divino pode exercer a mediação entre o homem e Deus.