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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A Oração aos Santos no Período Pós-Niceno - Parte 1


Nas últimas semanas voltei a discutir a oração aos santos nos três primeiros séculos da Igreja. Veja (aqui e aqui). Como demonstrado, a doutrina romana não encontra nenhum apoio patrístico nesse período. Além disso, diversos pais da Igreja desse período se manifestaram de forma incompatível a oração aos falecidos. Alguns católicos comentaram no blog, mas ao invés de desafiaram minhas conclusões, eles apelaram ao argumento que vários Pais da Igreja após Niceia (sec. IV em diante) apoiam a oração aos falecidos. Sendo assim, como esses homens poderiam apoiar uma prática que teria sido rejeitado pela Igreja no princípio? Deixo abaixo os comentários de um católico que utiliza tal argumento:

Convenhamos que para vcs protestantes pouco importa se é possível provar por meio de escritos algo que tenha sido praticado desde o início. Mesmo assim vcs não aceitam. Se fosse assim já teriam acreditado na Eucaristia por exemplo que é nitidamente ensinado desde os séculos I e II, entre outras coisas claras também. 

Primeiramente, os Protestantes acreditam na Eucaristia. O que rejeitamos é a ideia absurda da transubstanciação. A visão espiritual (visão de Calvino) da Eucaristia foi compartilhada por muitos pais da igreja e mesmo a visão simbólica, embora com menor apoio, contou com alguns defensores. É totalmente falsa a alegação de que a Igreja desde o início ensinou a transubstanciação (aqui). O problema é que as doutrinas romanas não podem ser rastreadas até o início. Se pudessem, os católicos não precisariam apelar a Pais da Igreja que viveram séculos depois dos fatos. Eles poderiam apontar para o testemunho apostólico e dizer “aqui está”. Como argumentei exaustivamente, o tema da oração foi muitíssimo abordado na Escritura e na patrística. Se orar aos santos é uma prática herdada dos apóstolos, porque não se encontra evidência favorável mais antiga? Porque algo tão importante na espiritualidade católica seria ignorado por séculos e séculos?

Quanto a crença na intercessão dos santos, ela não era algo incomum, praticado apenas por um grupo ou outro como vc afirma. Santo Agostinho por exemplo expõe muitíssimas vezes testemunhos de pessoas que alcançaram graças de Deus por meio da intercessão dos santos, principalmente de Santo Estevão. Lendo os sermões de Agostinho vc percebe que era algo muito comum praticado pela igreja:
São muitos os que sabem quantos milagres são realizados nesta cidade pelo bem-aventurado mártir Estevão. (Santo Agostinho, Sermão 323)

Eu trouxe várias citações dos três primeiros séculos. Se o católico deseja desafiar minhas conclusões, é nesse período que ele deveria provar o contrário. Mas o que ele traz? O suposto testemunho de Agostinho que escreveu no início do século quinto.  Embora Agostinho narre que pessoas oraram para os mártires, é controverso que ele pessoalmente apoiasse a oração aos santos (aqui). Além disso, não há nada em Agostinho que sugira que tal prática era um artigo de fé. Os católicos geralmente não fazem esse tipo de distinção. Uma prática poderia ser tolerada na Igreja, mas isso não implicaria que se tratava de um artigo de fé.

Se a prática da intercessão dos santos não fosse um artigo de fé, certamente muitos teriam se levantado contra ela, ainda mais tendo se tornado tão comum, seria conveniente que a igreja combatesse isso, no entanto, vemos os grandes doutores da igreja como Agostinho, Gregório de Nissa, Gregório de Nanzianzo, Jerônimo entre outros, ensinando essa prática. Então porque nenhum dos pais da igreja ensinaram contra? Porque não houve nenhum concílio que se opôs contra essa prática? Muito pelo contrário, pois no primeiro grande concílio de Niceia em 325 onde foi formado o CREDO DA IGREJA CATÓLICA que é repetido até hoje, diz o seguinte: CREMOS NA COMUNHÃO DOS SANTOS.

Esse argumento tem os seguintes problemas:

1. Mesmo no período pós-niceno houve sim oposição a oração aos mortos. Vigilâncio se opôs a essa prática. Ademais, ele era um presbítero da Igreja e como o próprio Jerônimo reconhece, tinha o suporte de bispos da Igreja e cristãos leigos (Contra Vigilâncio cap. 2-3). Na Epístola 109, Jerônimo ainda diz: “Surpreende-me que o santo bispo em cuja paróquia, pelo que dizem, [Vigilâncio] é presbítero, concorde com esta loucura (...).

2. Os Concílios foram medidas excepcionais na história da Igreja. Não houve nenhum Concílio a se opor diretamente ao gnosticismo. Alguém então negaria a repreensão dessa heresia? Obviamente não. Os Pais da Igreja do séc. II se opuseram ferozmente ao gnosticismo e isso é mais do que suficiente elucidar qual era a doutrina da Igreja. Porque em relação a oração aos mortos deveria ser diferente? Além disso, nos três primeiros séculos da Igreja não houve qualquer concílio ecumênico. Alguém então diria que a Igreja não combatia as heresias que surgiram porque não houve concílio ecumênico nesse período? Obviamente não. Se o critério para definir o que é ou não heresia for uma decisão conciliar, o gnosticsimo, o montanismo e diversas outras correntes não poderiam ser consideradas heréticas. Dessa forma, em regra as heresias não eram objeto de decisão conciliar. 

3. A utilização do Concílio de Niceia é totalmente abusiva. Não há qualquer documentação referente a Niceia ou aos bispos que dele participaram que sugiram o que o católico alega. Se ele deseja defender que os pais nicenos tinham em mente a oração aos mortos quando falavam em Comunhão dos Santos, o católico precisar mostrar evidências disso e não apenas pressupor. O que a Igreja Romana hoje entende por Comunhão dos Santos é irrelevante para determinar o que os cristãos dos primeiros séculos entendiam por tal (vimos que a evidência sugere uma leitura não favorável a oração aos mortos).

4. O católico tem uma visão irreal da história da Igreja. A história está cheia de rupturas. Poderíamos aqui citar uma longa lista de ideias que não estavam presentes no início e foram aceitas mais tarde. Os Pais pré-nicenos foram severamente contrários ao uso de imagens no culto cristão (aqui  e aqui). No entanto, esta prática seria aceita séculos depois. Os Pais da Igreja mais antigos eram milenaristas, todavia a posição amilenista prevaleceria na Igreja posterior. Os Pais mais antigos eram contrários ao envolvimento da Igreja com o Estado e ao uso da força em prol da religião. Todavia, a Igreja posterior se aliaria ao Estado e passou a defender o uso da força contra os hereges (Agostinho foi o principal defensor dessa ideia).
  
Isso significa que desde já, estamos misticamente unidos, desfrutando do convívio com todos estes. Os fiéis do céu e da terra encontram-se unidos em comunhão na pessoa de Cristo. Este é o significado da Comunhão dos Santos. É Jesus, cabeça do corpo quem possibilita todas as coisas. É tão óbvio que a igreja no céu possa interceder pela igreja na terra, que negar isso fere o conceito de unidade do cristianismo. Afinal, de que adiantaria eu buscar viver a santidade e ser salvo, e quando for para o céu, eu não vou poder ajudar meus irmãos na terra de algum modo? Somos todos um só corpo 1COR12, todos uma só família, os do céu e da terra Ef 3,15.

Como os católicos não podem apresentar provas bíblicas em favor de sua doutrina, eles precisam apelar às falsas implicações. É verdade que uma doutrina não precisa estar explicitamente contida no texto bíblico para ser verdadeira. Não há um texto afirmando que Deus Pai, Jesus e Espírito Santo formam uma trindade. Todavia, a Escritura contém afirmações que implicam na Trindade. O problema é que a doutrina da comunhão dos Santos não implica em oração aos santos. Vejam a falha do argumento: os cristãos na terra estão em comunhão, mas se eu orar a um cristão na China, ele simplesmente não irá me ouvir. Se eu orar a meus irmãos de Igreja pedindo que eles intercedam por mim a Deus, eles simplesmente não me ouvirão. Se isso é um fato, mesmo eu estando em comunhão com eles, porque então a comunhão com os cristãos que já faleceram implica que eles ouvem minhas orações? Como um santo poderia ouvir milhões de orações feitas pelo mundo inteiro, decidir quais delas merecem sua intercessão e leva-las a Deus? Os cristãos não têm essa capacidade aqui na terra, porque teriam no céu?

Há uma segunda posição que diz que os crentes no céu oram pela Igreja na terra, sem afirmar que devemos orar a eles (acredito que Calvino a apoiava). Essa ideia é menos problemática, mas seria temerário torná-la um artigo de fé. Nenhum de nós pode ter informações sobre o pós-morte pela experiência. Dessa forma, para fazermos afirmações convictas sobre o pós-morte carecemos de dados da revelação divina. Ocorre que a revelação nada nos diz sobre os cristãos no céu orando por nós. É cabível até perguntar se eles mantem suas memórias da vida que aqui levaram. Não há resposta para isso na revelação. Assim, acreditar que os crentes no céu oram por nós é uma crença piedosa que não fere as verdades do Evangelho, mas devido ao caráter especulativo, jamais poderia ser alçada a artigo de fé. 

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