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sexta-feira, 15 de abril de 2016

Os Pais da Igreja e o Papado - Parte 2 (Epifânio, Ambrósio, Cirilo de Alexandria)



Epifânio de Salamina (320-403)

A epístola geral escrita a todos os católicos [por Teófilo] diz respeito particularmente a você [Jerônimo]; pois você, tendo um zelo pela fé contra todas as heresias, especialmente se opôs aos discípulos de Orígenes e Apolinário cujas raízes envenenadas e impiedosas profundamente plantaram a impiedade que o poderoso Deus tem tirado de nosso meio, que tendo sida desenterrada em Alexandria, elas possam murchar em todo o mundo (...) Porque, assim como quando as mãos de Moisés estava sobre Israel, da mesma forma o Senhor tem reforçado seu servo Teófilo para plantar sua bandeira contra Orígenes sobre o altar da igreja de Alexandria, para que nele se cumprisse as palavras: "Escrevo isto para memorial, que eu totalmente coloquei para fora a heresia de Orígenes debaixo do céu juntamente com o próprio Amaleque". Para não parecer que estou repetindo as mesmas coisas várias vezes e assim tornar minha carta entediante, eu lhe envio a missiva real escrita a mim para que saiba o que Teófilo me disse, e que o Senhor concedeu uma grande bênção aos meus últimos dias na aprovação dos princípios que sempre proclamei pelo testemunho de tão grande prelado. (Epístola 91)

Era comum que um bispo de uma igreja menor se dirigisse a bispos de igrejas mais proeminentes para pedir ajuda na luta contra as heresias. Epifânio e Jerônimo se notabilizaram por combater as ideias de Orígenes no séc. IV, contando com grande ajuda do patriarca Teófilo de Alexandria. Quando esse pedido era dirigido a Roma nos mesmos termos, os apologistas católicos o apresentam como evidência do papado. Porque o mesmo raciocínio não é aplicado a outros bispos? Epifânio louva Teófilo por ter sido o precursor da condenação ao origenismo. Ele ainda o compara a Moisés em sua narrativa. Será que ele acreditava que Teófilo era o líder supremo da igreja universal? Obviamente não. A mesma conclusão deve ser tirada a respeito do bispo de Roma. Ele era o chefe de uma igreja importante, mas não era uma autoridade suprema e final. Epifânio também testemunha sobre a sucessão dos bispos de Roma. O historiador Robert Williams escreve:

No início do século XX foram compiladas evidências de que Epifânio tinha preservado algumas informações de Hegésipo que não foram incluídas por Eusébio, mas se encaixam com o material que Hegésipo usou (...) Além disso, a lista de bispos romanos estende-se precisamente até Aniceto em Epifânio (Pan 27,6), como Hegésipo afirmou de acordo com Eusébio (hist. eccl. 4.22.3) (...) B.H. Streeter tem dado provas substanciais de que tanto Irineu como Epifânio independentemente derivaram de Hegésipo seus comentários sobre Marcellina e os carpocracianos e suas listas de bispos romanos. Irineu diz de Marcellina que ela "veio a Roma no tempo de Aniceto" (Haer. 1.25.6). Registros de Epifânio dão o mesmo de que ela veio para "nós" (Pan. 27,6), mas ele estava no Chipre, não em Roma. Uma fonte comum parece provável. Uma fonte comum é sugerida novamente quando tanto a lista de bispos de Irineu como a de Epifânio refere-se a epístolas paulinas (Haer 3.3.3; Pan 27,6). Hegésipo era o único escritor conhecido que poderia ser essa fonte (...) Em Roma, os apóstolos Pedro e Paulo foram os primeiros bispos (Epifânio, Pan. 27,6) (...) Hegésipo foi, provavelmente, a fonte para lista de bispos romanos de Irineu. A comparação dos comentários sobre a informação episcopal romana sugere que Hegésipo fez sua própria investigação e Irineu se utilizou de algo já disponível. (Bishop Lists [Piscataway, New Jersey: Gorgias Press, 2005], pp 96-97, 112, 129)

Eusébio apresenta uma lista de bispos Romano de Irineu que coloca Pedro e Paulo igualmente como os organizadores da igreja romana e transmissores do epsicopado a Lino. Provavelmente, Irineu obteve essa informação de Hegésipo. Epifânio também teria derivado sua lista de Hegésipo. O detalhe importante é que Epifânio também como Pedro e Paulo como fundadores, sem afirmar um bispado apenas de Pedro. O problema para os católicos é que essa informação contraria a narrativa papal. Já argumentamos nesse blog que nem Pedro ou Paulo foram bispos de Roma, eles estiveram nessa cidade pregando o evangelho e lá foram martirizados, mas não poderiam ser considerados bispos dessa igreja. Porém, mesmo que fôssemos interpretar que Epifânio, Irineu e Hegésipo estão atribuindo bispado aos apóstolos, teríamos que admitir que Roma teve dois bispos ao mesmo tempo (Pedro e Paulo) – algo que a igreja romana não aceita. A interpretação de Epifânio sobre Mateus 16:18 lança ainda mais luz sobre a questão:

[Pedro] é o primeiro dos Apóstolos, aquela sólida rocha sobre a qual a igreja de Deus é construída, de modo que as portas do inferno (...) não prevalecerão contra ela. Pois em todos os sentidos era a fé confirmada naquele que recebeu as chaves do reino dos céus ele (...)" (Ancoratus 9:6)

Os demais que se afastaram por causa da perseguição, se mostratem completo arrependimento, se sentarão no saco e cinza e chorarão diante do Senhor - o Benfeitor tem o poder de mostrar misericórdia mesmo para eles. Nenhum mal pode vir do arrependimento. Assim, o Senhor e sua igreja aceitam o penitente, como Manassés o filho de Ezequias voltou e foi aceito pelo Senhor e o chefe dos Apóstolos, São Pedro, que negou por um tempo e ainda se tornou a nossa rocha verdadeiramente sólida que suporta a fé do Senhor, e sobre a qual a igreja é em todos os sentidos fundada. Isto é foi acima de tudo porque ele confessou que "Cristo" é "o Filho do Deus vivo", e foi dito, "Sobre esta pedra da certeza da fé eu vou construir a minha igreja" porque claramente confessou que Cristo é verdadeiro Filho (...) E Pedro também se tornou a rocha sólida do edifício e fundação da casa de Deus, porque, depois de negar, voltando-se novamente, e sendo encontrado pelo Senhor, teve o privilégio de ouvir: "Apascenta os meus cordeiros e apascenta as minhas ovelhas". Pois com estas palavras, Cristo nos levou ao arrependimento, de modo que a nossa fé bem fundamentada pode ser reconstruído nele - a fé que não proíbe a salvação de qualquer vivo que verdadeiramente se arrepende, e repara suas falhas neste mundo. (Panarion, Livros II-III)

As duas citações parecem contraditórias. Na primeira ele afirma que a rocha era a pessoa de Pedro, na segunda a fé de Pedro. Todavia, Epifânio nunca disse que o bispo de Roma era a rocha da igreja. Um pai da igreja poderia considerar Pedro como a rocha sem ter um conceito papista em vista. A segunda citação pode explicar a primeira. Assim como outros pais orientais, era entendido que Pedro se tornou o fundamento da igreja, mas não o único, por causa da sua fé. Orígenes interpretava que todos os que possuíssem a fé de Pedro, seriam igualmente a rocha. Mesmo na primeira citação, Epifânio alude à fé.

Ambrósio de Milão (340-397)

Ambrósio era bispo Milão, uma cidade da parte ocidental do império. É considerado doutor da igreja e um dos maiores teólogos da igreja ocidental. Assim como outros pais ocidentais como Jerônimo e Agostinho, ele tinha grande respeito pela igreja romana, mas não considerava seu bispo uma autoridade suprema e infalível. O historiador católico Robert Eno escreve:

Em resumo, enquanto Ambrósio sentia grande respeito e admiração sede romana, ele também por vezes fez seu caminho para estabelecer uma postura claramente identificável e separada para si e sua própria sede (...) Ambrósio fez de Milão uma das principais sedes do Ocidente. Era frequentemente consultado junto com Roma como uma das sedes transmarinas e solicitado pelos africanos ou prelados orientais que buscavam apoio ocidental (...) Não há dúvida que Ambrósio honrava a sé romana, mas existem outros textos que parece estabelecer uma certa distância e independência também. Ele comentou, por exemplo, que o primado de Pedro foi um primado de confissão, não de honra, um primado de fé, e não de classe (De encarnações Domini sacramento 32). A igreja de Milão tinha uma predileção especial pela cerimônia do lava-pés: "Nós não estamos sem saber do fato de que a igreja de Roma não tem esse costume, cujo caráter e forma seguimos em todas as coisas. No entanto, ela não tem o costume de lavar os pés (...) Em todas as coisas que eu desejo seguir a igreja em Roma, mas nós também temos inteligência humana (de sacramentis III, 1, 5). (The Rise of the Papacy [Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1990], p. 80, 83)

Católicos costumam citar a seguinte frase de Ambrósio: “Onde está Pedro, ai está a Igreja”. O historiador católico comenta:

Finalmente, um texto ainda deve ser mencionado em relação a Ambrósio, uma vez que é um texto que Roma tem utilizado como um slogan. Trata-se da breve frase de seu comentário sobre o Salmo 40: "Ubi Petrus, ibi ecclesia" [Onde está Pedro, está a igreja] (...) Mas, como Roger Gryson mostrou em seu estudo sobre Ambrósio e o sacerdócio, o contexto dessa declaração não tem nada a ver com qualquer tratado eclesiológico. É apenas uma declaração de uma longa cadeia de exegese alegórica começada com a linha de Salmos 41:9: "Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava ... levantou contra mim o seu calcanhar." (Ibid., p. 83)

É basicamente assim que funcionam as provas do papado nos pais da igreja – frases tiradas de seu contexto que nada tem a ver com a doutrina papista. Se o papado realmente fosse crido pelos pais da igreja, isso não seria necessário. Seria uma doutrina tão fundamental, que teríamos verdadeiros tratados sobre a autoridade infalível do bispo de Roma. Ninguém precisaria recorrer a frases tiradas do contexto, seria algo tão claro, que se esperaria ter livros devotados ao assunto. Essa nem de longe é a realidade. Além dos próprios escritores ortodoxos não escrevem tratados teológicos sobre a autoridade papal, nenhum grupo herético negou essa doutrina. Esse detalhe é geralmente ignorado. Qualquer grupo herético, para estabelecer sua doutrina, deveria antes de tudo negar o pilar da autoridade da igreja. Se o juiz supremo da verdade era o papa, qualquer grupo que desafiasse a verdade deveria antes negar a autoridade desse juiz. Nenhum dos muitos grupos heréticos que surgiram ao longo dos primeiros séculos fez isso. A razão é bem simples, eles não precisavam negar algo que ainda não existia. Mas, será que Ambrósio defendia que a pessoa de Pedro era o fundamento da igreja? Tratemos disso adiante:

Ele que antes estava em silêncio, para nos ensinar que não devemos repetir as palavras dos ímpios, quando ele ouviu: "Mas vós, quem dizeis que eu sou", imediatamente, não esquecendo de sua posição, exerceu o seu primado, isto é, a primazia de confissão, não de honra; a primazia da fé, não de classificação. Este é Pedro, que respondeu ao resto dos Apóstolos e antes que os outros homens. E então é chamado de fundamento, porque ele sabe como preservar não somente sua própria, mas o fundamento comum (...) Portanto, a fé é o fundamento da Igreja, pois não dito a respeito do corpo de Pedro, mas de sua fé, que "as portas do inferno não prevalecerão contra ela". Mas sua confissão de fé conquistou o inferno. (O sacramento da encarnação de nosso Senhor 4:32 e 5:34)

A fé, pois, é o fundamento da Igreja, pois não foi dito da carne de Pedro [da sua pessoa], mas da sua fé, que “as portas do Hades contra ela” (...) Faz um esforço, portanto, para ser uma pedra! Não procures a pedra fora de ti, mas dentro de ti! A tua pedra é a tua obra, a tua pedra é a tua mente. Sobre esta pedra é edificada a tua casa. A tua pedra é a tua fé, e a fé é o fundamento da Igreja. Se fores uma pedra, estarás na Igreja, porque a Igreja está sobre uma pedra. Se estiveres na Igreja as portas do inferno não prevalecerão contra ti. (Comentário sobre Lucas 6,98)

É muito claro que o fundamento da igreja não é a pessoa de Pedro, mas a sua fé. Pedro tinha uma primazia porque foi o primeiro a confessar essa fé. Não era uma primazia jurídica, o que fica claro quando diz: “não de classificação”, ou seja, o pescador não era um chefe sobre os demais apóstolos. Da segunda citação, vemos que a interpretação de Ambrósio era semelhante a Orígenes. Pedro se tornou uma pedra por causa da fé, assim quem confessa a mesma fé também se transforma numa pedra e fundamento da igreja. É nesse contexto que as palavras “Onde está Pedro, ai está a igreja” devem ser lidas, ou seja, onde estiver a fé que Pedro confessou, ai está a igreja. Não se trata de Pedro pessoalmente, mas da sua fé que é compartilhada por todos os verdadeiros crentes. Ambrósio faz uma distinção entre a fé de Pedro e a pessoa do apóstolo. Karlfried Froehlich escreve:

A maior parte dos exegetas orientais, especialmente após as controvérsias doutrinais do século IV, liam o v. 18 como o ponto alto dos vs. 16-17: "Sobre essa pedra" significa "sobre a fé ortodoxa que acabou de ser confessada''. Introduzida no Ocidente por Ambrósio e pela tradução dos exegetas antioquenos, esta equação Pedra=Fé manteve um lugar importante ao lado da alternativa cristológica, ou como a sua explicação mais precisa: a rocha da igreja era Cristo, que era o conteúdo da confissão de Pedro. (Saint Peter, Papal Primacy, and Exegetical Tradition, 1150-1300, p. 12. Taken from The Religious Roles of the Papacy: Ideals and Realities, 1150-1300, ed. Christopher Ryan, Papers in Medieval Studies 8 (Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1989).

Isso explica porque Ambrósio se referiu também a pessoa de Cristo como a rocha da igreja. A fé de Pedro apontava para Cristo, que por sua vez, era o fundamento “final” da igreja:

"Eles sugaram o mel da rocha firme" [Deut 32:13]: o corpo de Cristo é a rocha, que redimiu o céu e todo o mundo [1 Cor. 10:4]. (Epístola 43:9)

Quando o galo cantou, a autêntica rocha da Igreja [Jesus] acabou com a sua culpa. (Hymn. Aeterne rerum conditor. Cited by J. Waterworth S.J., A Commentary (London: Thomas Richardson, 1871), p. 76)

Ainda sobre Ambrósio é importante verificar a “síndrome de Pedro” que é comum na apologética católica. Tudo que é dito sobre Pedro é automaticamente transferido ao bispo de Roma. A questão é quando foi que Ambrósio disse que todas as prerrogativas de Pedro foram dadas a uma sucessão de bispos em Roma? Para esse pai da igreja, Pedro não era um papa, mas ainda que fosse, os católicos teriam que provar que o bispo de Roma é um papa.

Anastácio (340-401)

É sentido corretamente que um pastor deve ter grande cuidado e vigilância sobre o seu rebanho. De igual maneira de sua elevada torre você vigia cuidadosamente dia e noite em favor da cidade. Assim também na hora da tempestade quando o mar é perigoso, o comandante do barco sofre aguda aflição para que o vento forte e a violência não levem seu barco para as rochas. É com sentimentos semelhantes que o venerável e respeitável Teófilo, nosso irmão e bispo companheiro, não deixa de velar pelas coisas que trazem a salvação, que o povo de Deus nas diferentes igrejas possam não lendo Orígenes não cair em blasfêmias horríveis. (Epístola 95 de Jerônimo)

Anastácio era bispo de Roma e se refere a Teófilo como alguém que vela por todas as igrejas, como um comandante. Obviamente, Teófilo não era um papa infalível. Isso demonstra que o fato de um patriarca ser elogiado e ter sua ajuda solicitada não implica que ele era um papa, mas apenas um bispo de maior prestígio, cuja opinião e ação tinha peso. O mesmo raciocínio deveria ser aplicado ao bispo de Roma.

Arquelau (Séc. IV)

Ele deu prova de Sua presença conosco imediatamente, e foi mais abundantemente transmitida a Paulo, em cujo testemunho também cre,mos quando ele diz: "A mim apenas foi dada esta graça". Esse é aquele que anteriormente era um perseguidor da Igreja de Deus, mas que mais tarde apareceu publicamente diante de todos os homens como um fiel ministro do Paráclito; por tal instrumento [Paulo] Sua singular clemência foi conhecida por todos os homens, de modo que veio até mesmo para nós que estávamos sem a esperança e generosidade dos seus dons. Qual de nós poderia ter esperado que Paulo, o perseguidor e inimigo da Igreja, se tornaria seu defensor e guardião? Sim, e não só isso, mas que ele se tornaria também o seu governante, o fundador e arquiteto das igrejas? (...) a partir do desejo amoroso pelo Salvador, nós somos chamados de cristãos, como o mundo inteiro atesta e como os apóstolos também claramente declaram. Sim, o melhor mestre-construtor dela [a igreja], o próprio Paulo, lançou a nossa fundação, ou seja, a fundação da Igreja e nos colocou na confiança da lei, ordenando ministros, presbíteros e bispos. (Atos da disputa com o heresiarca Manes, 34, 51)

Arquelau atribui primazia a Paulo, o que exclui a possibilidade de que Pedro fosse um papa. Arquelau provavelmente não acreditava num papado de Paulo, mas imaginemos que essas mesmas palavras fosse dirigidas a Pedro, o que os católicos fariam? Com certeza a apresentariam como evidência do papado de Pedro. Porém, o mesmo não é feito quando palavras parecidas são dirigidas aos outros apóstolos.

Constituições Apostólicas (380)

Portanto, tanto os presbíteros com os diáconos são autoridades na Igreja ao lado de Deus Todo-Poderoso e Seu Filho amado (...) Os bispos de todos os países devem saber quem é o chefe entre eles, e o considerar como sua cabeça [Deus], e não fazer qualquer grande coisa sem o seu consentimento; mas cada um deve gerir apenas os assuntos que pertencem a sua própria paróquia e os locais sujeitos a ele, que eles não façam nada sem o consentimento de todos, pois isso significa que haverá unanimidade, e Deus será glorificado por Cristo, no Espírito Santo. (08:44, 08:47:35)

As constituições apostólicas são documentos do século IV que tratam de questões litúrgicas e administração eclesiástica. Não é trazido nenhum conceito de papado. Pelo contrário, é explícita a ausência desse conceito. Cada bispo tinha autoridade sobre sua paroquia sob a autoridade do líder supremo. Esse líder não era um papa em Roma, mas o próprio Deus. As decisões deveriam ser tomadas com base no consentimento de todos e não segundo a vontade do bispo de Roma. Também é dito:

Se algum bispo ou mesmo um presbítero e diácono obtém essa dignidade por dinheiro, o deixem e a pessoa que o ordenou seja privada [da comunhão], e o cortem inteiramente da comunhão (...) Se algum bispo faz uso dos governantes deste mundo, e por meio deles obtém o bispado de uma igreja, ele e todos os outros que se comunicam com ele devem ser disciplinados e suspensos. (8: 47: 30-31)

O renomado historiador católico Eamon Duffy escreve:

Dos vinte e cinco papas entre 955 e 1057, treze foram nomeados pela aristocracia local, enquanto os outros doze foram nomeados (e nada menos do que cinco demitidos) pelos imperadores alemães. O antigo axioma de que ninguém pode julgar o papa ainda estava nos livros canônicos, mas na prática há muito tempo foram anulados. Os próprios papas estavam profundamente envolvidos na guerra dinástica da nobreza romana, e eleição à cátedra de Pedro, como já vimos, era frequentemente uma mercadoria para venda ou troca. (Santos e Pecadores: A História dos Papas [New Haven e Londres: Yale University Press, 1997]. p 87)

A disciplina na igreja dos primeiros séculos era bem mais rígida do que seria na igreja romana de séculos posteriores. Por esse critério, vários papas deveriam ter sido depostos.

Phileas (séc. IV)

Há a lei de nossos pais e antepassados, da qual você não é ignorante, estabelecida de acordo com a ordem divina e eclesiástica. Por isso, para que todas as coisas sejam feitas para a glória de Deus, tem sido estabelecido e resolvido que não é lícito a qualquer bispo celebrar ordenações em outras paróquias além da sua própria - uma lei que é extremamente importante e sabiamente criada. (Epístola de Phileas para Melécio de Lycopolis)

Já o catecismo diz:

Em nossos dias, a ordenação válida de um bispo requer uma intervenção especial do Bispo de Roma, porque ele é o vínculo visível e supremo da comunhão das Igrejas particulares na única Igreja e garantidor da sua liberdade. (Catecismo da Igreja Católica 1559)


Neste período, o bispo de Roma não tinha qualquer prerrogativa especial de ordenação fora da sua sede. Pelo contrário, é sabido que até o séc. VIII, a eleição do bispo romano precisava ser ratificada pelo imperador.

Cirilo de Alexandria (378-444)

Mas por que dizemos que eles são “fundamentos da terra”? Pois Cristo é o fundamento e a base inabalável de todas as coisas (...) Mas os seguintes fundamentos, aqueles mais próximos de nós, pode entender-se que são os apóstolos e evangelistas, aquelas testemunhas oculares e ministros da Palavra que foram levantados para o fortalecimento da fé. Pois quando reconhecemos que as suas próprias tradições devem ser seguidas, servimos a uma fé que é verdadeira e não se desvia de Cristo. Pois quando [Pedro] sábia e irrepreensivelmente confessou a sua fé a Jesus dizendo “Tu és Cristo, Filho do Deus vivo”, Jesus disse ao divino Pedro “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. Ora, pela palavra “pedra” Jesus indicou, penso eu, a inamovível fé do discípulo. Da mesma forma, o salmista diz: "seus fundamentos são as montanhas sagradas". Muito verdadeiramente devem os santos apóstolos e evangelistas ser comparados às montanhas sagradas, pois seus discernimentos foram estabelecidos como um alicerce para a posteridade, para os que foram apanhados em suas redes não caírem numa falsa fé. (Comentário sobre Isaías IV, 2)

“E eu digo-te, tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. O apodo, creio, chama a nada mais senão à inabalável e mui firme fé do discípulo “uma pedra”, sobre a qual a Igreja foi fundada e feita firme e permanece continuamente inexpugnável mesmo em relação às próprias portas do inferno. (Diálogo sobre a Trindade IV)

É interessante observar que o fundamento de fato era Cristo. Sobre ele estava o fundamento dos apóstolos e evangelistas. Ele não concede nenhuma primazia a Pedro sobre eles. Os apóstolos eram fundamentos por causa da fé que pregaram.  A pedra de Mateus 16:18 não era a pessoa de Pedro, mas a fé expressa em sua confissão. Se o fundamento é a fé, a igreja se mantém pela continuidade dessa fé e não por uma sucessão de pessoas a partir de Pedro. O católico romano Michael Winter admite:

Embora ele [Cirilo] aluda com frequência ao texto, é a aplicação cristológica que interessa a ele e a imagem resultante de St. Pedro é inconclusiva. Por exemplo, quando comentando sobre a passagem, ele escreve: "Então ele também cita outra honra: 'Sobre esta pedra edificarei a minha igreja; e te darei as chaves do reino dos céus'. Observe como ele sumariamente manifesta a si mesmo, o Senhor do céu e da terra (...) Ele promete a fundar a igreja, atribuindo indefectibilidade a ela, como Ele é o Senhor de força, e por isso, Ele define Pedro como pastor”. Ele diz: "E eu te darei as chaves do reino dos céus." Nem um anjo, nem qualquer outro ser espiritual é capaz de falar assim. A aplicação a Pedro do título "pastor" é enganosa, já que ele o aplica em outros lugares a todos os Apóstolos e , portanto, não pode indicar uma autoridade peculiar a Pedro. Parece ter sido a sua opinião consistente que a "pedra-fundação" da igreja era a fé inamovível de Pedro. Embora pareça uma questão pequena distinguir fé de Pedro da sua pessoa na função de ser o fundamento da igreja, parece que Cirilo de fato isolou St. Pedro desse papel e, com relação a isso, ele está em harmonia com os antioquenos mais tardios. A escola de Antioquia (e aqueles que foram influenciados por ela) apresentam um conjunto conflito de opiniões. São Crisóstomo e alguns seguidores defenderam o primado de São Pedro, enquanto que São Cirilo de Alexandria e outros o negaram. (St. Peter and the Popes (Baltimore: Helikon, 1960), pp. 74-76)

Cirilo não acreditava num primado jurídico de Pedro, portanto, não poderia acreditar no papado. O acadêmico católico de antemão responde ao argumento de que a fé de Pedro e a pessoa de Pedro seriam a mesma coisa. Cirilo isola as duas coisas, sendo a fé o fundamento. Ele ainda disse:

Pedro e João foram iguais em dignidade e honra. Cristo é o fundamento de todos - a rocha inabalável sobre o qual estamos todos construídos como edifício espiritual. (Carta a Nestório)

Ele refuta em poucas palavras qualquer pretensão papista.

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