O
Pastor de Hermas (início do séc. II)
Em
sua obra, Hermas relatava visões em que havia uma senhora que prefigurava a
Igreja e um mensageiro que era chamado de Pastor. Ele era um membro da Igreja
romana, portanto, importante testemunha de sua estrutura eclesial nessa época.
O principal objetivo da obra era chamar à Igreja ao arrependimento.
Dize, portanto, aos chefes da Igreja que endireitem
seus caminhos na justiça, a fim de receberem plenamente, com grande glória, o
que lhes foi prometido. (Visão 2, cap. 6)
Sullivan
afirma:
A palavra grega traduzida por
"oficiais" é prohegoumenois, que também aparece em I Clemente 21:6.
Literalmente significa "aqueles que vão antes e liderar o caminho";
tanto aqui como em I Clemente refere-se aos líderes da Igreja local. Em ambos
os textos a palavra está no plural; não havia nenhum bispo de Corinto
quando Clemente escreveu, nem há qualquer indicação de um único bispo na
Igreja para a qual Hermas estava escrevendo. (Op.
Cit., pp. 134)
Depois disso, tive uma visão
em minha casa. A mulher idosa apareceu e me perguntou se eu já havia entregado o livrinho aos presbíteros. Eu
respondi que não. Ela continuou: Fizeste bem, porque tenho algumas palavras
para acrescentar. Quando eu tiver terminado tudo o que tenho a dizer, tu o
darás a conhecer a todos os eleitos. Farás duas cópias do
livrinho e as mandarás, uma a Clemente e outra a Grapta. Clemente, por sua vez,
mandará a cópia às outras cidades, porque essa missão é dele. Grapta exortará
as viúvas e os órfãos. Tu o lerás para esta cidade, na presença dos presbíteros que dirigem a Igreja. (Visão 2, cap. 8)
Eu me dirijo agora aos chefes da Igreja e àqueles que ocupam os
primeiros lugares. Não vos torneis semelhantes aos envenenadores. Eles
levam seus venenos em frascos. Vós
tendes vossa poção e veneno no coração. Estais endurecidos, recusais
purificar vossos corações para temperar, com o coração puro, vosso pensamento
na unidade, a fim de obter a misericórdia do grande Rei. Atenção,
portanto, meus filhos, para que essas
divisões não tirem a vossa vida. Como
pretendeis instruir os eleitos do Senhor, se vós mesmos não tendes instrução?
Instruí-vos, portanto, uns aos outros, e
conservai a paz mútua, a fim de que também eu, apresentando-me alegre
diante do Pai, possa falar favoravelmente a respeito de todos ao vosso Senhor.
(Visão 3 cap. 17)
Hermas
atesta a liderança colegiada na Igreja de Roma, sempre se referindo aos líderes
no plural. Além disso, exorta os líderes que provavelmente estavam disputando
entre si a preeminência sobre os demais. Vemos que além da ausência de um bispo
(que dirá um papa), a liderança dessa Igreja não era muito qualificada para
instruir os fiéis.
Sullivan
reflete a opinião majoritária dos estudiosos a respeito:
Da
ausência de qualquer referência a um bispo e as várias referências no plural
para os líderes e presbíteros, a
maioria dos estudiosos agora conclui
que, durante o período em que esta obra foi escrita, a Igreja de Roma ainda
tinha liderança colegial. Embora o cânon muratoriano indique que ela foi
escrita enquanto o irmão de Hermas Pio foi bispo de Roma, o Pastor de Hermas
não inclui nada que possa confirmar essa afirmação, cuja confiabilidade em
qualquer caso, tem sido questionada por vários estudiosos. (Op. Cit., pp. 138)
Justino
Mártir (100-165)
Justino
foi um apologista, sendo uma importante testemunha da fé cristã no início do
segundo século. Em sua defesa do cristianismo contra os críticos pagãos e
judeus, fala bastante sobre autoridade da Escritura e dos apóstolos. Ele
recorre a fontes extra bíblicas como registros do governo, tradições orais ou
escritas sobre Jesus, mas nada diz sobre sucessão apostólica ou a existência de
uma Igreja infalível. Os oponentes gentios e judeus também não levantam
objeções que assumiam a existência de tais doutrinas no cristianismo.
A
infalibilidade de uma Igreja e uma sucessão autoritária teria enorme valor
apologético, por isso, a ausência dessas nos escritos de Justino é relevante. O
argumento da sucessão era comum no mundo antigo, os cristãos com certeza
ouviram pagãos e judeus o utilizarem, portanto, se a doutrina da sucessão apostólica
remete ao tempos dos apóstolos, seria de se esperar que um apologista cristão
apelasse a autoridade da Igreja dessa forma. Isso se torna ainda mais
problemático tendo em vista que Justino viveu em Roma, onde segundo os
católicos, estava o bispo dos bispos.
Listas de sucessão de reis,
magistrados nomeados periodicamente, e chefes de escolas filosóficas foram
mantidas no mundo helênico. Os judeus tinham listas de profetas e rabis, mas a
mais importante era de sumos sacerdotes. (Fergunson, Op. Cit.,
pp. 95)
O
mesmo ocorre com Celso. Ele escreveu no final do segundo século uma longa obra
contra o cristianismo, mas não mencionou a sucessão apostólica.
Assim
como Justino, outras fontes cristãs primitivas nada dizem sobre sucessão
apostólica, mesmo tratando de temas que estariam conectados a ideia de sucessão
como a autoridade dos apóstolos e autoridade da Igreja. Mesmo que
encontrássemos a ideia de sucessão nos escritos de um Pai da Igreja, não
poderíamos concluir que essa era aceita por toda a Igreja, ainda mais quando
diversas outras fontes não citam a mesma doutrina em contextos onde se esperava
que fosse citada.
Hegésipo
(110? – 180)
Hegésipo
foi um escritor cristão preocupado com as heresias surgidas no séc. II.
Católicos costumam citá-lo como testemunha da sucessão apostólica. Isso se dá
porque ele compilou uma lista dos bispos de Roma e Corinto:
Assim é, pois, que Hegesipo
deixou-nos um monumento completíssimo de seu próprio pensamento nos cinco
livros de Memórias que chegaram
a nós. Neles mostra como, realizando uma viagem a Roma, esteve em contato com muitos bispos e como de todos eles recebeu uma
mesma doutrina. Será bom escutá-lo, depois que disse algumas coisas sobre a
Carta de Clemente aos Coríntios, acrescentar o
seguinte: "E a igreja dos Coríntios permaneceu na reta doutrina até que
Primo foi bispo de Corinto. Quando eu navegava para Roma, convivi com os
Coríntios e com eles passei muitos dias, durante os quais me reconfortei com
sua reta doutrina. E chegado a Roma, fiz-me
uma sucessão até Aniceto, cujo diácono era Eleutério. A Aniceto sucedeu
Sotero, e a este, Eleutério. Em cada sucessão e em cada cidade as coisas estão
tal como pregam a lei, os profetas e o Senhor." (História Eclesiástica
4:22:1-3)
Ele
produziu uma lista de sucessão histórica dos bispos de Roma. Concluir a partir
disso a doutrina da sucessão apostólica é ler além do que está escrito. Nenhum
protestante negaria que listas de sucessão de Igrejas como Corinto e Roma
teriam grande valor apologético naquele período. Hegésipo não repousa seu
argumento somente na sucessão em si, mas na unicidade da doutrina apresentada.
Isso teria grande valor para refutar os gnósticos que alegavam ter uma doutrina
secreta que apenas alguns escolhidos receberam dos apóstolos. Porém, não dispomos
de nenhuma afirmação de Hegésipo no sentido de que uma sucessão histórica de
bispos garantiria a pureza doutrinária para todo o sempre. O que ele afirma
pode ser aplicado apenas à Igreja do período em que viveu – o século II. Ele
não diz que uma Igreja, para ser considerava verdadeira, deveria está dentro de
uma sucessora histórica de bispos, nem diz que os bispos herdaram seu ofício
dos apóstolos.
Nós
temos outras informações não registradas por Eusébio de uma fonte mais tardia –
Epifânio. O já citado estudioso Williams explica:
No início do século XX foram
compiladas evidências de que Epifânio
tinha preservado algumas informações de Hegésipo que não foram incluídas por
Eusébio, mas se encaixam com o material que Hegésipo usou (...) Além disso,
a lista de bispos romanos estende-se precisamente até Aniceto em Epifânio (Pan
27,6), como Hegésipo afirmou de acordo com Eusébio (hist. eccl. 4.22.3) (...) B.H. Streeter tem dado provas substanciais
de que tanto Irineu como Epifânio independentemente derivaram de Hegésipo seus
comentários sobre Marcellina e os carpocracianos e suas listas de bispos
romanos. Irineu diz de Marcellina que ela "veio a Roma no tempo de
Aniceto" (Haer. 1.25.6). Registros de Epifânio dão o mesmo de que ela veio
para "nós" (Pan. 27,6), mas ele estava no Chipre, não em Roma. Uma
fonte comum parece provável. Uma fonte comum é sugerida novamente quando tanto
a lista de bispos de Irineu como a de Epifânio refere-se a epístolas paulinas
(Haer 3.3.3; Pan 27,6). Hegésipo era o único escritor conhecido que poderia ser
essa fonte (...) Em Roma, os apóstolos
Pedro e Paulo foram os primeiros bispos (Epifânio, Pan. 27,6) (...) Hegésipo foi, provavelmente, a fonte para
lista de bispos romanos de Irineu. A comparação dos comentários sobre a informação
episcopal romana sugere que Hegésipo fez
sua própria investigação e Irineu se utilizou de algo já disponível. (Op.
Cit., pp 96-97, 112, 129)
Temos
três listas de bispos de Roma em questão: Hegésipo, Irineu e Epifânio. A fonte
de Irineu para é Hegésipo, que também seria a mesma fonte de Epifânio. Na
História Eclesiástica de Eusébio, não temos os primeiros bispos da lista de
Hegésipo, mas tanto Irineu como Epifânio colocam Pedro e Paulo igualmente como
aqueles que transmitiram o episcopado ao primeiro bispo de Roma. Portanto, é de
supor que a lista de Hegésipo tinha a mesma informação. Ou seja, além de não
haver evidências de que ele endossava a doutrina da sucessão apostólica, temos
razões para acreditar que ele não colocava Pedro como primeiro bispo de Roma.
Pelo contrário, colocaria os apóstolos Pedro e Paulo como organizadores da
Igreja em Roma, sem estabelecer grau de hierarquia entre eles. Por isso,
qualquer recurso da apologética católica à Hegésipo é problemático, na medida
em que seu testemunho é incompatível com a doutrina do papado.
E
a questão do bispo monárquico? Hegésipo forneceu uma lista de bispos e não de
presbíteros. Foi mostrado que a evidência a partir de documentos mais antigos
(1 Clemente, Pastor de Hermas e Inácio aos Romanos) aponta para uma liderança
presbiteral em Roma. Será que Hegésipo falsificou a lista ou suas testemunhas
contaram lendas? É bem provável que não. A esse respeito, Sullivan responde:
Argumentando a partir do
fato de que o clero de Roma poderia fornecer a Hegésipo os nomes dos homens que
naquela época se pensava como tendo sucedido um ao outro como
"bispos" de sua Igreja desde o início, a maioria dos estudiosos agora conclui que esses homens devem ter
sido os principais líderes e professores da Igreja romana. Quando os
presbíteros se reuniram para uma celebração comunitária da Eucaristia, um deles deveria presidi-la, e muito
provavelmente esse teria sido o presbítero reconhecido como o mais competente
líder e professor. Em que momento o "presbítero que preside"
começou a ser chamado de "bispo" e ser reconhecido como o pastor
chefe da Igreja de Roma, nós não sabemos. É certo, porém, que pelo tempo de
Aniceto, isto é, não muito tempo depois da metade do século II, esse
desenvolvimento teve lugar em Roma, como teve em Corinto e em todas as outras
igrejas que Hegésipo visitou no caminho do Oriente a Roma. (Op. Cit., pp. 143)
Quasten,
um estudioso patrístico católico conservador, reconhece que o texto recebido de
Eusébio não está tentando definir uma sucessão de bispos, mas uma sucessão de
doutrina:
As palavras de Eusébio
'Γενομενος δε εν Ρωμη, διαδοχην εποιησαμην μεχρις Ανικητου' não indicam que Hegésipo compilou uma lista
dos bispos de Roma, na ordem da sua sucessão, mas que em sua cruzada contra
as heresias de seu tempo, visitou Corinto, Roma e outras cidades, a fim de
averiguar a διαδοχην, ou seja, a
tradição ou a preservação da verdadeira doutrina. (Johannes
Quasten, Patrology Volume I (Ave Maria Press: Notre Dame,
1976), 286)
Peter
Lampe, autor da obra mais reconhecida na academia sobre o cristianismo em Roma
nos primeiros séculos, afirma sobre Hegésipo:
Não
está em causa de nenhuma maneira provar uma sucessão de bispos monárquicos dos
apóstolos até o presente. O
que ele retrata em sua mente eram
cadeias de portadores de crenças corretas, ele tinha a opinião de que
poderia reconhecer tal afirmação também em Roma. Mais do que isso não está no texto. (Christians
at Rome in the First Two Centuries: From Paul to Valentinus. A&C Black, 2006, pp. 404)
A
intenção não era criar uma lista de ordenações até os apóstolos, mas provar que
a tradição dessas Igrejas era a verdadeira. Cabe mencionar que Hegésipo manifestou uma
visão semelhante ao protestantismo quanto à proliferação de falsos ensinos após
a morte dos apóstolos:
Depois disto o mesmo autor,
explicando o referente aos tempos indicados, acrescenta que efetivamente, até aquelas datas a Igreja permanecia
virgem, pura e incorrupta, como se até esse momento os que se propunham
corromper a sã regra da pregação do Salvador, se é que existiam, ocultavam-se
em escuras trevas. Mas quando o coro
sagrado dos apóstolos alcançou de diferentes maneiras o final da vida e
desapareceu aquela geração dos que foram dignos de escutar com seus próprios
ouvidos a divina Sabedoria, então teve início a confabulação do erro ímpio por
meio do engano de mestres de falsa doutrina, os quais, não restando nenhum
apóstolo, daí em diante já a descoberto, tentaram opor à pregação da verdade a
pregação da falsamente chamada gnosis.
(História Eclesiástica 3:32:7-8)
Gnósticos – os primeiros a reivindicarem sucessão
apostólica
Obviamente os gnósticos não eram Pais da Igreja,
mas cabe mencionar que se alguém de fato trouxe o conceito de sucessão
apostólica para o debate cristão, foram eles. A documentação disponível aponta
Ptolomeu gnóstico como a primeira testemunha dessa ideia no meio cristão.
Ninguém menos do que Joseph Ratzinger, confirmando os estudos do erudito
patrístico protestante Hans von Campenhausen, confirma que a doutrina da
sucessão apostólica surgiu depois do período apostólico, na segunda metade do
século II:
O
conceito de sucessão [apostólica] foi claramente formulado, como von
Campenhausen tem demonstrado de forma impressionante, na polêmica anti-gnóstica do século II; o seu objetivo era contrastar a verdadeira tradição apostólica da
Igreja contra a pseudo-apostólica tradição da gnosis. (God’s Word:
Scripture-Tradition-Office (San Francisco: Ignatius Press ©2008; Libreria
Editrice Vaticana edition ©2005; pp. 22-23)
Ratzinger cita diretamente Campenhausen:
O
passo decisivo no desenvolvimento do conceito de tradição foi tomado (...) em
meados do século II. É nessa época que as ideias de "transmitir" e
"receber" a tradição adquiriram uma nova importância teológica e
significado marcadamente técnico. As
origens desse fenômeno não devem ser procuradas nos círculos que elaboraram a
eclesiologia da Grande Igreja; em
vez disso, nos levam ao mundo da gnose e seu culto do professor individual
livre. De qualquer forma, no mundo cristão foi Ptolomeu gnóstico que forneceu a mais antiga evidência conhecida
por nós desse novo teologicamente orientado uso. Na carta à Flora ele fala
explicitamente da secreta e apostólica tradição (παράδοσεις) que complementa a coleção
canônica das palavras de Jesus, e que ao
ser transmitida através de uma sucessão (διαδοχἡ) de professores e
instrutores chegou agora a "nós", isto é, para ele ou sua comunidade.
Aqui o conceito de "tradição" é claramente usado em um sentido
técnico, como é mostrado particularmente pela colocação junto ao conceito
correspondente da "sucessão".
(Ibid., 158)
Citar as testemunhas originais e até mesmo os
intermediários, por quem essas tradições secretas foram divulgadas não
representava nenhum problema. Basilides apelou à Glaucias, intérprete de Pedro,
e através dele ao próprio Pedro; Valentino é suposto ter sido instruído por
Theodas, um discípulo de Paulo. Os carpocracianos apelaram a Mariamne, Salomé
ou Martha, os atenienses a Mariamne, a quem Tiago o irmão do Senhor
"entregou" o ensino. Todas essas invenções apresentam o mesmo método,
e têm o mesmo objetivo em vista: elas justificam as características
desconhecidas e excepcionais as quais pode fazer um particular ensino suspeito
de "inovação", ao derivá-los de uma tradição definitiva, e eles
validam a própria tradição através da identificação de testemunhas e cadeias -
a princípio relativamente curtas - de testemunhas pelo nome. (Ibid., pp. 159)
Em Inácio, Policarpo, Clemente, Pastor de Hermas,
Justino, Didaquê, não há apelo à sucessão apostólica nos termos da Igreja
romana. Essa ideia somente surge na Igreja cristã como meio de refutar os
gnósticos – os primeiros a sustentarem uma tradição extra-bíblica mantida por
supostos sucessores dos apóstolos.
Irineu de Lyon (130-202)
Irineu é uma das fontes mais utilizadas pelos
católicos. Vamos analisar a seguir se ele sustentava a concepção de sucessão
apostólica da Igreja romana. Seu testemunho é importante porque foi um grande
defensor da ortodoxia contra a heresia gnóstica, fornecendo importantes informações
sobre a autoridade, doutrina e práticas da Igreja de seu tempo. Antes de tratar
do tema da sucessão, vamos dar uma olhada numa citação usada à exaustão como
prova do papado:
Mas
visto que seria coisa bastante longa elencar, numa obra como esta, as sucessões
de todas as igrejas, limitar-nos-emos à maior e mais antiga e conhecida por
todos, à igreja fundada e constituída em Roma, pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e Paulo, e, indicando a
sua tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada aos homens, que chegou até
nós pelas sucessões dos bispos, refutaremos todos os que de alguma forma, quer
por enfatuação ou por vanglória, quer por cegueira ou por doutrina errada, se
reúnem prescindindo de qualquer legitimidade. Com efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da
sua origem mais excelente, toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares,
porque nela sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva
dos apóstolos. (Contra as
Heresias 3:3:2)
Irineu diz muito sobre a autoridade dos apóstolos,
da Escritura, da tradição, mas não diz absolutamente nada sobre a autoridade de
um suposto papa. Os católicos dizem que o papado é o fundamento da Igreja, que
é o centro de unidade e seria a solução para muitos dos problemas do
protestantismo. A questão é porque esse bispo que se envolveu numa grande
batalha contra hereges não cita o papado em nenhum momento? A resposta parece
óbvia, ele desconhecia essa doutrina. A passagem acima, longe de endossar as
pretensões de Roma, as contradiz. Esse era o momento perfeito para mencionar a
autoridade papal, qualquer católico romano no lugar de Irineu apelaria ao
legítimo e exclusivo sucessor de Pedro.
O bispo de Lyon está usando a Igreja de Roma como
exemplo e não como uma autoridade sobre as demais Igrejas. Ele começa dizendo
que seria longo elencar as sucessões de todas as outras Igrejas, ou seja, Roma
não era a única a ter a sucessão, poderia citar outras que ensinavam uma mesma
doutrina em contraponto a doutrina gnóstica, o que ele fez mais adiante ao
citar a Igreja de Esmirna, as Igrejas da Ásia e de Éfeso:
Podemos
ainda lembrar Policarpo, que não somente
foi discípulo dos apóstolos e viveu familiarmente com muitos dos que tinham
visto o Senhor, mas que, pelos próprios apóstolos, foi estabelecido bispo na
Ásia, na Igreja de Esmirna (...) E é disso que dão testemunho todas as Igrejas da Ásia e os que até hoje sucederam a Policarpo,
que foi testemunha da verdade bem mais segura e digna de confiança do que
Valentim e Marcião e os outros perversos doutores (...) Também a igreja de Éfeso, que foi fundada por Paulo e onde João morou
até os tempos de Trajano, é testemunha verídica da tradição dos apóstolos. (Ibid. 3:3:4)
Roma era o exemplo notável de sua classe e não o único exemplo, como
diz o estudioso católico Robert Eno:
O
contexto do argumento de Irineu não afirma que a Igreja Romana é literalmente única, a única de sua classe; em vez
disso, ele argumenta que a Igreja Romana
é o exemplo notável de sua classe, a classe em questão sendo as sedes
apostólicas. Enquanto escolheu falar principalmente de Roma por razões de
brevidade, de fato, antes de terminar, também se refere a Éfeso e Esmirna. (The Rise of the Papacy (Eugene: W
& S, 1990), 39)
Mas o que tornava a Igreja romana um exemplo notável? A resposta de
Irineu mostra a ausência da doutrina papista em seu pensamento. Roma era
notável porque tinha dupla fundação apostólica (Pedro e Paulo). Aqui é preciso
fazer um destaque: Irineu cometeu um erro histórico ao dizer que esses apóstolos
fundaram a Igreja de Roma, assim como quando disse que Jesus foi crucificado já
velho. Paulo escreveu à Igreja Romana sem conhecê-la e Pedro só chegou lá no
fim da vida. O historiador católico Eamon Duffy escreve:
Estas
histórias foram aceitas como história real por algumas das maiores mentes da
Igreja primitiva – Orígenes, Ambrósio, Agostinho. Mas elas são o romance
piedoso, não história, e o fato é que não temos relatos confiáveis nem do final
da vida de Pedro nem a forma ou local de sua morte. Nem Pedro nem Paulo fundaram a Igreja de Roma, pois havia cristãos na
cidade antes de qualquer um dos Apóstolos por os pés lá. (Saints &
Sinners: A History of the Popes, 2nd ed. Yale University Press, London, 2001,
pp. 2).
Ele passa a listar sucessão dos bispos de Roma (3:3:3). Diz que “Os
bem-aventurados apóstolos que fundaram e edificaram a Igreja transmitiram o governo episcopal a Lino,
o Lino que Paulo lembra na carta a Timóteo”. Além de colocar Paulo e Pedro
em pé de igualdade, afirma que Lino foi o primeiro bispo de Roma e não Pedro.
Ele sempre coloca os bispos de Roma como sucessores dos apóstolos no plural e
nunca como sucessores de Pedro exclusivamente. Sullivan comenta:
De
acordo com Irineu, Pedro e Paulo, não somente Pedro nomeou Lino como o primeiro
na sucessão dos bispos de Roma. Isso
sugere que Irineu não pensava em Pedro e Paulo como bispos ou de Lino e aqueles
que o seguiram como sucessores de Pedro mais do que de Paulo. Irineu viu uma distinção clara entre
apóstolos e bispos, embora ele entendesse bispos como os
"sucessores" a quem os apóstolos entregaram o seu ofício de ensino. (Op. Cit., pp. 149)
Irineu provavelmente derivou sua lista de bispos de
Hegésipo. Sullivan diz:
O
que eu disse sobre a lista de Hegésipo também se aplica à de Irineu, a saber, dado o fato desses homens como os
principais líderes e professores entre os presbíteros romanos. Em que
momento os principais presbíteros em Roma começaram a ser chamado de
"bispos" permanece desconhecido. (Op. Cit., pp. 150)
O bispo de Lyon diz que todas as Igrejas devem
concordar com Roma. Será que ele pensava em Roma como a Igreja chefe, que por
carisma divino tinha autoridade sobre as demais? Não. Era porque até aquele
ponto Roma tinha conservado a tradição apostólica. Nesse momento, apologistas
católicos tendem a ler em Irineu o que não foi dito. Esse pai da Igreja nunca
afirmou a infalibilidade da Igreja de Roma, nem disse que pelos séculos dos
séculos, a Igreja romana seria a guardiã infalível da tradição apostólica. O
que ele disse aplica-se somente à Igreja de seu tempo. Atribuir à Igreja romana
de hoje o que Irineu disse sobre ela no séc. II é anacronismo. A história
mostra que essa Igreja mudou bastante com o passar dos séculos e passou a
pregar doutrinas que Irineu rejeitaria prontamente, algumas delas semelhantes
às doutrinas gnósticas. Outro motivo para citar Roma deve-se ao fato da heresia
gnóstica ter epicentro naquela cidade, portanto, nada mais natural do que se
referir à Igreja onde a heresia era mais forte. Hoje, os historiadores
católicos concordam que ler em Irineu as modernas doutrinas do papado é um
equívoco:
Na
verdade, é compreensível que esta passagem tenha confundido os estudiosos por
séculos! Aqueles que estavam acostumados a encontrar nela uma verificação do
primado romano foram capazes de interpretá-la dessa maneira. (...) a interpretação de Karl Baus [que Irineu
não estava se referindo a um papado] parece ser a única que é mais fiel ao
texto, não se presumindo ler nele um significado que pode não estar lá, pois
não se exagera ou subestima a posição de Irineu. Para ele [Irineu], são as Igrejas da fundação apostólica que
tem o maior crédito de ensino autêntico e doutrina. Entre essas estava
Roma, com seus dois fundadores apostólicos, certamente ocupando um lugar
importante. No entanto, todas as Igrejas
apostólicas desfrutam da "autoridade preeminente" em questões
doutrinárias. (William La Due, The Chair Of Saint Peter
[Maryknoll, New York: Orbis Books, 1999], p. 28)
Comparemos,
em contraposição ao que levamos exposto, o silêncio da antiga Igreja. Só Irineu
é quem, durante os três primeiros séculos, procura harmonizar a preeminência da
Igreja romana com a doutrina eclesiástica; mas
fique bem entendido que, para ele, essa preeminência não consiste senão na sua
antiguidade, na sua dupla origem apostólica, e no fato de que ali mantêm e
contrasteiam a doutrina pura os fiéis que afluem de todas as regiões. (Johann Joseph Ignaz von
Döllinger, The Pope and the Council, Second Edition, [Rivingtons, 1869],
p. 76)
Um fato que reforça ainda mais a incompatibilidade
de Irineu com a doutrina do papado foi sua postura diante de Vítor – o bispo de
Roma. Vítor tentou impor o costume da páscoa vigente em Roma às Igrejas da Ásia
que seguiam um costume diferente supostamente herdado do apóstolo João. Eusébio
testemunha:
Ante
isto, Vítor, que presidia a igreja de Roma, tentou separar em massa da união
comum todas as comunidades da Ásia e as igrejas limítrofes, alegando que eram
heterodoxas, e publicou uma condenação por meio de cartas proclamando que todos
os irmãos daquela região, sem exceção, estavam excomungados. Mas esta medida não agradou a todos os
bispos, que por sua parte exortavam-no a ter em conta a paz e a união e a
caridade para com o próximo. Conservam-se inclusive as palavras destes, que
repreendem Victor com bastante energia. Entre eles está Irineu, na carta
escrita em nome dos irmãos da Gália, dos quais era o chefe. Irineu concorda que
é necessário celebrar unicamente no domingo o mistério da ressurreição do
Senhor; no entanto, com muito bom senso, exorta Victor a não amputar igrejas de
Deus inteiras que haviam observado a tradição de um antigo costume, e a muitas
outras coisas. (História
Eclesiástica 5:24:9-11)
Irineu tinha a mesma posição de Vítor na
controvérsia. Apenas as Igrejas da Ásia sustentavam uma posição contrária, mas
quando Vítor decide agir como um tirano é repreendido “com bastante energia”
por outros bispos, inclusive, Irineu. Polícrates realizou sínodos entre as
Igrejas da Ásia e manteve a decisão mesmo com a repreensão de Vítor, citando em
sua carta Atos 5:29: "É preciso obedecer antes a Deus do que aos
homens!”. Tantos os bispos da Ásia como os bispos que repreenderam Vítor
com muita energia desconheciam o primado jurisdicional do bispo de Roma. O
bispo de Lyon não o via como uma autoridade infalível. As outras Igrejas deveriam
concordar com Roma quanto a sua tradição apostólica também encontrada em outras
Igrejas, mas quando ela agia fora do espírito do evangelho, poderia ser
repreendida e resistida pelas demais.
Os católicos tentam tomar o exemplo de Vítor como
exercício de primazia jurisdicional. Alegam que ele só agiu assim por se auto considerar um papa e que em nenhum momento sua autoridade foi questionada.
Primeiro, é uma pressuposição não apoiada pelas evidências dizer que Vítor agiu
como uma papa. Eusébio escreve:
Para
tratar deste ponto houve sínodos e
reuniões de bispos, e todos unânimes, por meio de cartas, formularam para os
fiéis de todas as partes um decreto eclesiástico: que nunca se celebre o mistério
da ressurreição do Senhor de entre os mortos em outro dia que não no domingo,
e que somente nesse dia guardemos o fim dos jejuns pascais. Ainda se conserva
até hoje um escrito dos que se reuniram naquela ocasião na Palestina;
presidiram-nos Teófilo, bispo da igreja de Cesareia, e Narciso, da de
Jerusalém. Também sobre o mesmo assunto conserva-se outro escrito dos reunidos
em Roma, que mostra Victor como bispo; e também outro dos bispos do Ponto
presididos por Palmas, que era o mais antigo, e outro das igrejas da Gálía, das
quais era bispo Irineu. Assim como também das de Osroene e demais cidades da
região, e em particular de Baquilo, bispo da igreja de Corinto, e de muitos outros, todos os quais,
emitindo um único e idêntico juízo, estabelecem a mesma decisão. Estes
pois, tinham como regra única de conduta a já exposta. (Ibid., 5:23:2-4)
A decisão de celebrar a páscoa no domingo não foi
uma decisão unilateral de Vítor. Pelo contrário, a questão foi tratada por
sínodos em várias Igrejas que emitiram uma decisão consensual. Vítor poderia
estar agindo em nome do consenso de toda a Igreja. Mas por que a reação mais
enérgica e desproporcional do bispo de Roma nessa questão? A hipótese mais
provável é que Roma sofria os ataques de hereges judaizantes que tinham o
costume de celebrar a páscoa como os Judeus. Ele pode ter visto na posição dos
asiáticos a imagem da heresia judaizante e como era apoiado por toda a Igreja,
tomou a decisão de excomungar a Igreja da Ásia.
Porém, a iniciativa de Vitor foi rechaçada veementemente.
Além disso, se ele estivesse agindo ancorado somente na sua própria autoridade
papal, essa teria sido negada. A evidência sugere que Vítor não tinha uma
autoconsciência papal e que agiu movido pelo consenso da Igreja. É importante
notar que Eusébio, narrado dessa controvérsia, não menciona o papado. Ele
sempre coloca Vítor e os demais bispos de Roma como chefes de suas próprias
Igrejas e nunca como chefes da Igreja universal (5:23-24). Se houvesse algo
como o papado na Igreja primitiva, sua ausência na história eclesiástica de
Eusébio é inexplicável. Para mais informações sobre esta controvérsia há um
excelente artigo em português aqui.
Teólogos e historiadores católicos como Schatz e
Küng escrevem:
Pode-se
dizer algo assim: para Inácio, Irineu e
até mesmo Agostinho foi completamente desconhecida a ideia de uma supremacia
jurisdicional de uma Igreja sobre outra ou a ideia do primado jurisdicional do
papa; não conhecem um bispo sobre
outros bispos e etc. Quando mostram os testemunhos em favor de uma certa
valorização da comunidade romana, expressados na maioria das vezes em
categorias não jurídicas, uma vez que são medidos com o conceito de
"primazia" de tempos posteriores ou de Vaticano I; conclui-se que não
é possível estabelecer a primazia sobre tais testemunho. (Schatz,
Op. Cit., pp. 25)
Vimos na disputa sobre a Páscoa e batismo herético
como a palavra de autoridade de Roma não é suficiente para resolver
definitivamente a questão. (Schatz, Op. Cit., pp. 39)
Vitor
tentou impor de forma autoritária uma uniforme e romana data para a Páscoa, sem
respeito pelo caráter e independência das outras igrejas, e foi colocado em seu lugar pelos bispos do Oriente e do Ocidente,
especialmente pelo muito respeitado bispo e teólogo Irineu de Lyon. Naquela
época, a regra de uma Igreja sobre as outras Igrejas foi rejeitada, mesmo no
ocidente. (Hans Küng, The Catholic Church: A Short History, pp. 42-43)
O
erudito patrístico Eric Osborn disse:
A sujeição de todas as
igrejas a Roma seria impensável para
Irineu. (Irineu de Lyon [New York: Cambridge
University Press, 2005]., P 130)
Passemos
a visão de Irineu sobre a sucessão apostólica. Ele defendia sim um conceito de
sucessão apostólica, mas esse era diferente do pregado por Roma. Segue as
palavras do especialista em Igreja primitiva Everett Fergunson:
Irineu de Lyon usou a ideia
da sucessão de bispos para formular uma resposta ortodoxa à alegação gnóstica
de uma tradição secreta originada nos apóstolos. Irineu argumentou que, se os apóstolos tinham algum segredo para
ensinar, eles teriam entregado aos homens a quem eles deram a liderança das
igrejas. Uma pessoa poderia ir para as igrejas fundadas pelos apóstolos,
Irineu afirma, e determinaria o que foi ensinado nessas igrejas pela sucessão
de professores desde os dias dos apóstolos. A constância desse ensino foi garantida pela sua natureza pública;
qualquer alteração poderia ter sido detectada, uma vez que o ensinamento foi
aberto. A exatidão do ensino em cada
igreja foi confirmada por seu acordo com o que foi ensinado em outras igrejas.
Uma única e mesma fé tinha sido ensinada
em todas as igrejas desde o tempo dos apóstolos. A sucessão de Irineu foi coletiva e não individual. Ele falou sobre
a sucessão dos presbíteros (Haer. 3.2.2), ou dos presbíteros e bispos (4.26.2),
bem como dos bispos (3.3.1). Estar na
sucessão não era por si só suficiente para garantir a doutrina correta. A
sucessão funcionou negativamente para marcar os hereges, que se retiraram da Igreja.
A vida santa e de ensino correto também foram exigidos dos líderes verdadeiros
(4.26.5). A sucessão pertencia à fé
e à vida e não à transmissão de dons especiais. O "dom da verdade"
(veritatis carisma) recebido com o ofício de ensino (4.26.2) não era um dom
garantidor de que o que foi ensinado seria verdade, mas era a verdade em si
como um presente. Cada titular da cadeira de ensino na igreja recebia a
doutrina apostólica como um depósito a ser transmitido fielmente à igreja. A
sucessão apostólica, tal como formulada por Irineu era de um titular da cadeira
de ensino em uma igreja para o próximo e não de ordenador para ordenado, como
se tornou. (Op. Cit., pp. 94-95, 366-367)
Irineu
não acreditava na sucessão apostólica como uma garantia de pureza doutrinária.
Ela serviria para denunciar os hereges gnósticos, mas não seria suficiente para
determinar a verdadeira Igreja. A ideia de que uma Igreja nos dias de hoje
precisa pertencer a uma linha histórica de sucessores é uma utilização
anacrônica de suas ideias. Ele tomou Roma como exemplo de Igreja que manteve a
doutrina apostólica, mas também citou Esmirna e Éfeso e outras Igrejas cujos
sucessores não estão em comunhão com Roma hoje. Ocorre que essas Igrejas
citadas por Irineu como puras no séc. II, hoje ensinam doutrinas bem diferentes
e sequer fazem parte da mesma comunhão.
O
bispo de Lyon utilizou de argumentos que apologistas hoje utilizam como: a
qualificação das testemunhas, a proximidade das testemunhas aos eventos, a
uniformidade do testemunho bem como sua constância. Os pais da Igreja atacavam
os gnósticos usando as Escrituras, esses, quando refutados, apelavam a uma
tradição oral extra bíblica e secreta (bem parecido com os católicos de hoje).
Para refutar esse ensino, Irineu apelou à tradição da Igreja (aqui entendida
como o ensino da Igreja em consonância com as Escrituras e não como doutrinas
extra bíblicas) que era pública e ensinada por aqueles que sucederam os
apóstolos na liderança das Igrejas. Por isso, ele dava maior peso às Igrejas
com fundação apostólica, essas estariam mais próximas das fontes a quem os
hereges recorriam para sustentar seus erros.
Irineu
aplicou no séc. II o que Vicente de Léris formulou no séc. VI. A tradição da
Igreja era pregada por todos e em todos os lugares no séc. II. Se os apóstolos
tivessem ensinado doutrinas não presentes nos seus escritos, os primeiros a
saberem disso seriam os homens escolhidos para cuidarem do rebanho, e não
hereges sem nenhuma conexão com os apóstolos. Enquanto a tradição secreta dos
gnósticos era variável e não conseguia estabelecer sua antiguidade, a tradição
da Igreja era pública, constante e remetia aos apóstolos. Por esse motivo,
Irineu cita Policarpo, pois este teria convivido com os apóstolos.
O
argumento de Irineu era muito bom para o séc. II, mas à medida que o tempo
passou, perderia força. Ele estava muito próximo da geração apostólica e teve
contato com pessoas que conheceram os apóstolos, já um papa no séc. XXI não
pode recorrer a nada disso. À medida que o tempo passou, o ensino da Igreja foi
se dividindo. A Igreja do séc. IV tinha divergências que a do séc. II não
tinha. Os argumentos de Irineu que apelavam à proximidade aos apóstolos, à
constância e uniformidade do ensino não funcionariam nos séculos seguintes,
pois apelariam a uma realidade que não existiria mais.
Um
protestante concordaria com Irineu que os apóstolos pretenderam que homens
liderassem o rebanho e mantivessem o depósito da fé. De acordo com Irineu e em
desacordo com a Igreja romana, não concordamos que esses homens pudessem
infalivelmente manter o depósito da fé, o risco de apostasia e corrupção com o
passar do tempo era real e de fato aconteceu. Um ponto que os católicos
esquecem é que pelos critérios de Irineu, muitos bispos da sucessão papal foram
ilegítimos, pois não deram testemunho cristão:
Os que são tidos por
presbíteros aos olhos de muitos, mas são
escravos das suas paixões, que não põem antes de tudo o temor de Deus em
seus corações, insultam os outros, incham-se de arrogância por ocuparem os
primeiros lugares, fazem o mal às escondidas e dizem: "Ninguém nos
verá", serão repreendidos pelo
Verbo (...) É preciso, portanto,
afastar-se de todos os homens desta espécie e aderir aos que, como dissemos,
guardam a doutrina dos apóstolos e
com a ordem sacerdotal oferecem palavra sã e conduta irrepreensível para
exemplo e emendamento dos outros. (Contra as Heresias 4:26:3-4)
A
autoridade para ensinar dependia da vida santa. Se Irineu testemunhasse a vida
de muitos papas da idade média, não endossaria a autoridade desses homens como
legítimos sucessores dos apóstolos. Diferente da Igreja romana que coloca a
sucessão apenas dos bispos, o bispo de Lyon incluiu os presbíteros. A distinção
primordial, conforme Fergunson apontou, é que a sucessão de Irineu não era de
ordenador para ordenado como na Igreja romana, mas era da própria doutrina que
deveria passar adiante. A questão não era quem passava, mas o que passava.
Robert
Lee Williams chegou a conclusões semelhantes às de Ferguson. Ele observa apelos
de Irineu à antiguidade das fontes como em Clemente de Roma (Bishop Lists
[Piscataway, New Jersey: Gorgias Press, 2005], p. 129). A lista de bispos
romanos de Irineu serviu como "um quadro cronológico de referência" e
é parte de "uma discussão sociológica das origens relativamente recentes
de grupos gnósticos"(p. 134). Eric Osborn observa o apelo de Irineu a
esses padrões de evidências em muitos lugares (Irineu de Lyon [New York:
Cambridge University Press, 2005], pp. 6, 23, 127-128, 199, 203.). O estudioso
patrístico ortodoxo John McGuckin refere-se precisamente a esses critérios
apresentados por Irineu como "regras de bom senso" (The Westminster
Handbook To Patristic Theology [Louisville, Kentucky: Westminster John Knox
Press, 2004], p. 185).
Defensores
modernos da sucessão apostólica tiram conclusões da sucessão de Irineu que eram
dependentes do contexto de sua época, e as aplicam a contextos modernos que são
significativamente diferentes. Antes de passarmos para Tertuliano, falemos
brevemente dessa tradição a que Irineu tanto apela. Será que ele cria na
tradição como uma regra infalível de fé? Para ele, a tradição continha doutrinas
não encontradas na Escritura? Felizmente ele disse o conteúdo da tradição
apostólica, com a qual todas as Igrejas concordavam em seu tempo:
Muitos povos bárbaros que
creem em Cristo, se atêm a esta maneira de proceder; sem papel nem tinta. Levam
a salvação escrita em seus corações pelo Espírito e preservam
cuidadosamente a antiga tradição, acreditando em um único Deus, o Criador
do céu e da terra, e todas as coisas nele, por meio de Cristo Jesus, o Filho de
Deus, que por causa de Seu amor pela sua criação condescendeu em ser nascido da
virgem, unindo o homem através de Si mesmo a Deus, e, depois de ter sofrido sob
Pôncio Pilatos, subiu novamente aos céus, sendo recebido em esplendor, e virá
em sua glória como o Salvador daqueles que são salvos, e como juiz daqueles que
serão julgados, enviando para o fogo eterno aqueles que transformaram a verdade
e desprezaram o Seu Pai e seu advento. Aqueles que na ausência de
documentos escritos acreditam nessa fé, sendo bárbaros até no que diz
respeito à nossa língua, mas no que dizem respeito à doutrina, moral e teor de
vida são, por causa da fé, muito sábios, pelo favor de Deus, conversando em
toda a justiça, castidade e sabedoria. Se alguém fosse pregar a esses homens as
invenções dos hereges, falando com eles em sua própria língua, eles iriam
tampar de uma só vez os ouvidos e fugiriam ao mais longe possível, não
suportando até mesmo escutar tais blasfêmias. Assim, por meio da antiga
tradição dos apóstolos eles não têm sua mente aberta para conceber qualquer doutrina
sugerida por esses mestres. (Contra as Heresias,
Livro III, 3:3)
A
tradição de Irineu era composta por doutrinas básicas do Cristianismo
claramente ensinadas na Escritura. Não há infalibilidade papal, assunção e
imaculada conceição de Maria e as outras doutrinas peculiares ao romanismo. O
bispo também cita as cartas de Policarpo e Clemente (documentos falíveis) como
portadores dessa tradição. Esses documentos não apresentam nenhuma das
doutrinas peculiares de Roma. Para um tratamento mais extenso da tradição
apostólica de Irineu aqui.
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