Esta
será uma série de 4 artigos:
Antes
de nossa análise sobre os pais da Igreja, cabe apontar alguns pressupostos que
sustentam a doutrina da sucessão apostólica defendida pelos
apologistas católicos:
1
– Os apóstolos foram bispos das Igrejas que fundaram. Roma reivindica que Pedro
foi seu bispo e iniciou uma cadeia ininterrupta de bispos até os dias de hoje.
Portanto, se Pedro não foi bispo dessa Igreja, sua reivindicação é ilegítima. A
esse respeito, o proeminente teólogo e sacerdote jesuíta Francis Sullivan, cuja
obra irá balizar nosso estudo, afirmou:
O primeiro problema [com a
noção de sucessão apostólica] tem a ver com a noção de que Cristo ordenou os
apóstolos como bispos (...) Um bispo é um pastor residencial que preside de
forma estável sobre a igreja de uma determinada cidade e seus arredores. Os apóstolos eram missionários e fundadores
de igrejas; não há evidência, e nem é de todo provável, que quaisquer deles
tenham tido residência permanente em alguma igreja em particular como bispo.
(Sullivan F.A. From
Apostles to Bishops: the development of the episcopacy in the early church. Newman
Press, Mahwah (NJ), 2001, pp. 14)
2
– Os apóstolos ordenaram bispos para liderar cada
Igreja que fundaram. Sullivan escreve:
O Novo Testamento contém
boas evidências de que as igrejas fundadas por São Paulo possuíam líderes
locais, a quem os apóstolos instavam a comunidade a ser submissa (...) No entanto, não fica claro se esses
“bispos” de quem Paulo fala foram realmente escolhidos ou ordenados por ele. (Ibid.,
pp. 15)
3
– Os apóstolos instituíram um bispo para individualmente liderar cada Igreja:
Em segundo lugar, não há
evidência de que São Paulo, ou qualquer outro dos apóstolos, tenha apontado um desses líderes locais como
pastor chefe de toda a igreja de uma cidade em particular. Ao invés disso,
a evidência sugere que próximo ao fim do período do Novo Testamento a liderança
e outros ministérios eram providos em
cada igreja por um grupo de “presbíteros” ou “supervisores”, sem que houvesse
uma só pessoa no cargo, exceto quando o apóstolo ou um de seus cooperadores
estivesse presente. O Novo Testamento
não oferece apoio para a teoria da sucessão apostólica que supõe que os
apóstolos designaram ou ordenaram um bispo para cada uma das igrejas que eles
fundaram. (Ibid., pp. 15)
Em
outras palavras, não havia ainda o episcopado monárquico. A estrutura tríplice
de um bispo governando uma Igreja local assistido por presbíteros e diáconos é
fruto de um desenvolvimento posterior. A evidência neotestamentária e de fontes
posteriores é de que as Igrejas eram governadas por um colégio de presbíteros.
Didaquê
(100?)
A
didaquê é um antigo catecismo considerado por muitos o mais antigo documento
cristão preservado fora do Novo Testamento. A sua data é disputada, alguns
estudiosos apontam o ano 60, outros o início do século II. O fato é que se
trata de um documento antigo que fornece valiosas informações sobre questões de
organização e liturgia da Igreja. Esse documento contraria explicitamente a noção
de sucessão apostólica ensinada pela Igreja romana:
Escolha
bispos e diáconos dignos do Senhor.
Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro, verazes e provados,
pois também exercem para vocês o ministério dos profetas e dos mestres. (Didaquê
15:1)
A
própria comunidade é ensinada a escolher seus bispos. Ora, se esse bispo é
ordenado pela própria Igreja, ele não pertence a nenhuma linha de sucessão que
remeta aos apóstolos. A Igreja Católica ensina que um bispo válido
necessariamente deve ser ordenado por outro bispo válido e assim
sucessivamente. Nesse caso, o catecismo cristão contraria essa ideia ao não
exigir que os bispos sejam devidamente ordenados por outros bispos que teriam
sido ordenados por algum apóstolo. A Didaquê também ensina uma estrutura de
dois níveis: bispos no plural (liderança colegiada) e diáconos, diferente da
estrutura tríplice que surgiria décadas mais tarde, em que um bispo governa
sozinho a Igreja local.
Ao
longo dos caps. XI a XV fica evidente que a Igreja em questão recebia muitos
profetas e pregadores itinerantes (esses chamados de apóstolos no cap. XI). O
catecismo então ensina como a Igreja pode reconhecer os falsos profetas, dando
a toda comunidade e não apenas aos bispos autoridade de julgamento. A Igreja
deve receber apenas aqueles que pregam a verdadeira doutrina já exposta nos
capítulos anteriores, sendo dito:
Todo profeta que ensina a
verdade, mas não pratica o que ensina é
um falso profeta. (Ibid., 11:10)
Além
de dar à comunidade uma autoridade de julgamento que hoje não existe na Igreja
Católica, a didaquê ensina que a autoridade de falar da parte de Deus era
comprometida por seu testemunho cristão. Isso vai de encontro à alegação de que
os muitos papas pecaminosos que ocuparam os elos da sucessão apostólica romana
não perderam sua autoridade e não quebraram a sucessão. Afirmando essas
conclusões, Sullivan diz:
De acordo com a Didaquê, uma comunidade que estivesse
carente da liderança de um profeta deveria
escolher homens dignos e designá-los como bispos e diáconos. Não há sugestão de que eles derivassem
sua autoridade, de alguma maneira, de um apóstolo fundador. (Op. Cit., pp. 15)
A Didaquê também parece colocar o ofício de profeta
como de autoridade superior ao de bispo. É sugerido no cap. X (da Eucaristia)
que os profetas celebravam a ceia do senhor e não apenas presbíteros/bispos. A
ICR ensina que apenas bispos ou presbíteros validamente ordenados podem
celebrar a eucaristia.
Clemente
de Roma (35-100)
Clemente
de Roma escreveu uma importante carta à Igreja de Corinto. Essa Igreja passava
por problemas de divisão e havia destituído presbíteros injustamente. Clemente
era presbítero em Roma, sendo considerado pelos católicos o 4º papa. Longe de
provar o primado papal, é uma importante testemunha para a ausência do papado e
de elementos importantes da sucessão apostólica. A carta nunca cita o nome de
Clemente, sendo redigida em nome da Igreja de Roma. Não há menção de autoridade
de uma Igreja sobre a outra. Trata-se apenas de Igrejas se auxiliando mutuamente.
Da mesma forma que Clemente, Inácio e Policarpo escreveram cartas admoestando
outras Igrejas, sem pressupor igualmente qualquer tipo de relação de
subordinação. Sullivan escreve:
No passado, escritores
católicos haviam interpretado esta intervenção como um exercício inicial do
primado romano, mas agora é geralmente
reconhecido como o tipo de exortação que uma igreja poderia dirigir a outra,
sem qualquer pretensão de autoridade sobre ela. (Op.
Cit., pp. 92)
Klaus
Schatz, reconhecido teólogo e também sacerdote jesuíta, afirma sobre a carta de
Clemente:
No entanto, ele [Clemente de
Roma] não é apontado como o autor da carta; em vez disso, o verdadeiro
remetente é a comunidade romana. Nós
provavelmente não podemos dizer com certeza que havia um bispo de Roma na
época. Parece provável que a Igreja romana era governada por um grupo de
presbíteros, de quem muito rapidamente surgiu um oficiante ou
"primeiro entre iguais", cujo nome foi lembrado e que posteriormente
foi descrito como "bispo", após meados do século II (...) Mas seria ir longe demais deduzir que a
Igreja romana tinha autoridade formal ou precedência sobre outras Igrejas,
como foi feito com muita pressa por católicos romanos no passado. Em primeiro
lugar, mesmo se essa admoestação reivindicasse a autoridade de Deus e a
assistência do Espírito Santo, permaneceria
dentro do contexto da universal e fraterna solidariedade das Igrejas cristãs,
embora seja falado a uma igreja irmã que havia se desviado. (El primado del papa: su historia desde los orígenes hasta
nuestros días. Ed. Sal Terrae, Maliaño 1996, pp. 4, 5)
Além
de dizer que não há primado papal nessa carta, Schatz também afirma o consenso
dos historiadores a respeito da inexistência do bispo monárquico na Igreja de
Roma nessa data. Clemente provavelmente era um bispo distinto por lidar com a
comunicação com outras Igrejas, o que fez com que fosse lembrado mais tarde
como o bispo de Roma nas listas de sucessão.
A
ausência de um bispo monárquico nota-se também na Igreja de Corinto. Ao se
referir à liderança de Corinto, Clemente sempre usa termos no plural:
Com efeito, em tudo vós
agíeis sem fazer acepção de pessoas, andando segundo as prescrições de Deus, submissos a vossos chefes, e prestando aos
presbíteros que estavam convosco a honra que lhes cabia.
(1:3)
Vós que lançastes os
fundamentos da revolta, submetei-vos aos
presbíteros e deixai-vos corrigir com arrependimento, dobrando os joelhos
de vosso coração. (57:1)
Irei para onde quiserdes, e
farei o que a multidão ordenar, para que o rebanho de Cristo viva em paz com os presbíteros constituídos.
(54:2)
Caríssimos, é vergonhoso,
muito vergonhoso e indigno de conduta cristã ouvir-se dizer que a firme e
antiga Igreja de Corinto, por causa de uma ou duas pessoas, está em revolta contra os seus presbíteros.
(47:6)
Os apóstolos receberam do
Senhor Jesus Cristo o Evangelho que nos pregaram. Jesus Cristo foi enviado por
Deus. Cristo, portanto, vem de Deus, e os apóstolos vêm de Cristo. As duas
coisas, em ordem, provêm, da vontade de Deus. Eles receberam instruções e,
repletos de certeza, por causa da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo,
fortificados pela palavra de Deus e com a plena certeza dada pelo Espírito
Santo, saíram anunciando que o Reino de Deus estava para chegar. Pregavam
pelos campos e cidades, e aí produziam suas primícias, provando-as pelo
Espírito, a fim de instituir com elas bispos
e diáconos dos futuros fiéis. Isso não era algo novo: desde há muito
tempo, a Escritura falava dos bispos e
dos diáconos. Com efeito, em algum lugar está escrito: “Estabelecerei seus
bispos na justiça e seus diáconos na fé”. (42:1-5)
A
passagem acima é utilizada por apologistas católicos como prova da sucessão
apostólica em Clemente. Já vimos que não havia episcopado monárquico em Roma ou
Corinto, o que por si só já refuta a doutrina católica. Ele reconhece dois
ofícios apenas e não três: bispos, como sempre no plural, e diáconos. Assim
como no Novo Testamento, os termos “bispos” e “presbíteros” são
intercambiáveis, referindo-se aos líderes ou anciãos das Igrejas.
Não
é dito que a verdadeira Igreja deveria manter uma sucessão de “ordenador para
ordenado” para sempre ou que essa sucessão seria uma garantia de pureza
doutrinária. Apenas é demonstrada a crença que os protestantes também sustentam
de que os apóstolos nomearam líderes para as Igrejas. Esses líderes deveriam
preservar a mensagem do evangelho e expandir o reino de Deus. Clemente enfatiza
a mensagem, defendendo uma sucessão doutrinal e que a Igreja deveria ter novos
líderes à medida que os atuais morressem, preservando uma sucessão no
ministério dos presbíteros.
Sucessão
histórica não implica em sucessão doutrinal. De nada adianta uma cadeia histórica
de ordenações, se a mensagem for corrompida pelo caminho. Não há evidência de
que Paulo tenha nomeado todos os líderes das Igrejas que fundou. É bem provável
que em algumas delas, os líderes tenham sido nomeados pelos próprios crentes.
Não é dito nem na Escritura ou alguma fonte mais antiga que a legitimidade de
um bispo depende de o seu antecessor ter sido nomeado diretamente por um
apóstolo. Sullivan escreve:
A carta dos romanos aos
coríntios, conhecida como I
Clemente, que data de cerca do ano 96, provê boa evidência de que cerca
de trinta anos após a morte de Paulo, a
igreja de Corinto era conduzida por um grupo de presbíteros, sem indicação da
presença de um bispo com autoridade sobre toda a igreja. Contudo, I Clemente afirma que os
apóstolos fundadores tinha designado a primeira geração de líderes da igreja
local e estabeleceram a regra de que quando esses homens morressem, outros
deveriam ser designados para sucedê-los. Essa
carta, então, atesta o princípio da sucessão apostólica no ministério, mas não
dá suporte a ideia de que os apóstolos designaram um bispo para cada igreja que
eles fundaram. Para I
Clemente, o princípio da sucessão apostólica era concretizado no colégio
dos presbíteros devidamente escolhidos. Muitos
acadêmicos são de opinião de que a igreja de Roma também era, nessa época,
conduzida por um grupo de presbíteros. Um documento romano do século II
conhecido como O Pastor de Hermas apoia
essa opinião. (Op. Cit., pp. 16)
Clemente prossegue:
Nossos apóstolos conheciam,
da parte do Senhor Jesus Cristo, que haveria disputas por causa da função
episcopal. Por esse motivo, prevendo exatamente o futuro, instituíram
aqueles de quem falávamos antes, e ordenaram que, por ocasião da morte desses,
outros homens provados lhes sucedessem no ministério. Os que foram estabelecidos por eles ou por outros homens eminentes, com
a aprovação de toda a Igreja, e que serviram irrepreensivelmente ao rebanho de
Cristo, com humildade, calma e dignidade, e que durante muito tempo receberam o
testemunho de todos, achamos que não é justo demiti-los de suas funções. Para
nós, não seria culpa leve se exonerássemos do episcopado aqueles que
apresentaram os dons de maneira irrepreensível e santa. Felizes os
presbíteros que percorreram seu caminho e cuja vida terminou de modo fecundo e
perfeito. Eles não precisam temer que
alguém os afaste do lugar que lhes foi designado. E nós vemos que,
apesar da ótima conduta deles, removestes alguns das funções que exerciam de
modo irrepreensível e honrado. (44:1-6)
Ele
afirma que alguns desses líderes não foram instituídos pelos apóstolos, mas por
“outros homens eminentes”. Não é mencionado que esses homens foram por sua vez
nomeados por apóstolos. O ponto é que a Igreja de Corinto afastou presbíteros
que eram exemplares. Eram homens irrepreensíveis e não mereciam isso. Fica
claro também que a legitimidade de um bispo dependia da aprovação pela
comunidade e de um testemunho cristão consistente. Clemente não nega que a
comunidade de Corinto tinha poder para destituir um presbítero infiel (prática
comum na Igreja primitiva defendida por pais da Igreja como Cipriano), ele apenas
não concordava com essa destituição em específico, pois era injusta. A
descrição acima é incompatível com o atual ensino papista. Nesse, a
legitimidade de um bispo não depende da eleição pela comunidade. Os leigos não
podem recusar um bispo imoral ou incapacitado e a autoridade do bispo não é
comprometida pelo mau testemunho. O proeminente estudioso Everett Ferguson, especialista em história
da Igreja primitiva, afirma:
1 Clemente 42-44 ensinou a
instituição apostólica dos ofícios de bispo e diácono na Igreja. Após a
nomeação dos primeiros bispos e diáconos, os apóstolos haviam previsto a
continuação desses ofícios da Igreja. Isso
não era o mesmo que a doutrina posterior da sucessão apostólica. Nota-se
que Clemente incluiu diáconos assim como bispos em sua declaração. (Encyclopedia Of Early Christianity [New York: Garland
Publishing, Inc., 1999], pp. 94)
Inácio
de Antioquia (35-107)
Inácio,
bispo de Antioquia, é uma testemunha primordial para o nosso estudo. Ele estava
a caminho do martírio em Roma quando escreveu sete cartas consideradas
autênticas pela maioria dos estudiosos. Nelas, a questão da autoridade e do
governo da Igreja é tratada insistentemente. Inácio enxergava na obediência ao
bispo, presbíteros e diáconos o instrumento para manter a unidade da Igreja
local. Estudiosos concordam que sua insistência no tema da unidade da Igreja se
devia a experiências de desunião e cisma na Igreja de Antioquia:
No entanto, Percy N.
Harrison alegou que a Igreja de
Antioquia deve ter sido perturbada por um cisma no momento que Inácio partiu
para Roma. Schoedel concorda com essa conjectura, vendo nela uma explicação para as expressões de autocomiseração que
ocorrem nas cartas. Essas refletiriam a perda de autoestima que Inácio
teria sofrido se ele via a desunião de sua Igreja como um sinal de seu fracasso
como bispo. Inácio foi certamente consciente do perigo de cisma nas Igrejas que
visitou, e o tema principal de suas cartas lida com a manutenção da unidade com
o bispo local. Portanto, não é
improvável que essas exortações refletissem sua própria experiência de cisma.
(Sullivan F.A. Op. Cit., pp. 106)
Os
temas principais das cartas são: unidade, governo da Igreja, rejeição às
heresias e autoridade do bispo. Assim, se doutrinas como papado e sucessão
apostólica foram ensinados na Igreja pós-apostólica, a ausência nas epístolas
de Inácio e inexplicável. Católicos romanos dizem que o papa é o centro de
unidade da Igreja e que a sucessão apostólica é sua fonte de autoridade e que
os bispos derivam sua autoridade dessa sucessão. Tratemos inicialmente do
papado. Apologistas católicos costumam apontar a carta de Inácio aos romanos
como evidência da primazia papal devido à forma como se dirige a essa Igreja:
Inácio, também chamado
Teóforo, à Igreja que recebeu a misericórdia, por meio da magnificência do Pai
Altíssimo e de Jesus Cristo, seu Filho único; à Igreja amada e iluminada pela
bondade daquele que quis todas as coisas que existe, segundo fé e amor dela por
Jesus Cristo, nosso Deus; à Igreja que
preside na região dos romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de ser
chamada feliz, digna de louvor, digna de sucesso, digna de pureza, que preside em amor, que porta a lei de
Cristo, que porta o nome do Pai; eu a saúdo em nome de Jesus Cristo, o Filho do
Pai.
(Aos Romanos 1:1)
Deixemos
que o estudioso católico responda aos apologistas católicos:
O debate centrou-se na
utilização por Inácio da palavra prokathemai (presidir), que ocorre duas vezes:
a Igreja de Roma "preside em amor" e "preside na região dos
romanos". Estudiosos católicos mais antigos viram aqui um reconhecimento
do primado da Igreja de Roma sobre a Igreja em todo o mundo romano; no entanto, a palavra traduzida como
"distrito" (chorion) significa uma área limitada como uma cidade ou
vila. O amor (ágape) foi algumas vezes usado como sinônimo de
"comunhão", que por sua vez poderia significar a comunidade cristã;
portanto, alguns escritores católicos tomaram "preside em amor" como
significando "presidir toda a Igreja". No entanto, atualmente os estudiosos em geral concordam que Inácio
atribuiu à Igreja de Roma a preeminência na atividade caridosa ao invés de um
primado jurídico. (Sullivan F.A. Op.
Cit., pp. 113)
Klaus Schatz confirma:
No
entanto, este tipo de interpretação
jurídico-constitucional dificilmente corresponde às ideias dos contemporâneos
de Inácio. (Schatz, Op. Cit., pp. 6)
Outra questão que aponta o testemunho de Inácio
como inconsistente ao papado é o fato de não citar o bispo de Roma em sua
carta. Em todas as outras cartas, Inácio cita o bispo da Igreja a quem se
dirige, instando a comunidade a obedecê-lo e não fazer nada sem ele, mas
misteriosamente, não faz nenhuma menção ao bispo na carta aos romanos. Isso
seria inexplicável se o bispo de Roma fosse considerado o líder de toda a
Igreja. Que argumento melhor não haveria em favor da unidade do que apontar
aquele que é o exclusivo sucessor de Pedro, detentor das chaves do reino e
rocha sobre a qual a Igreja está fundada? A melhor explicação para essa
ausência já foi dada nesse estudo – nesta época, não havia em Roma um bispo
monárquico. Tratava-se de uma Igreja fracionada em várias Igrejas domésticas
governadas por presbíteros.
Em
vossa oração, lembrai-vos da Igreja da Síria que, em meu lugar, tem Deus por
pastor.
Somente Jesus Cristo e o vosso amor serão nela o bispo.
(Aos Romanos 9:1)
Temos
ai outra evidência da ausência de primazia da Igreja Romana. A Igreja de
Antioquia, localizada na Síria, estava sem bispo. Em nenhum momento há o pedido
de intervenção daquela que supostamente seria a Igreja chefe. Ele se limita a
pedir que orem por sua Igreja e nada mais.
Observa-se
também nessas cartas que Inácio coloca o bispo assistido pelos presbíteros e
diáconos como a autoridade máxima da Igreja local. Não há para ele a figura do
bispo dos bispos como é o papa para os católicos. Como alguém que insiste tanto
na unidade da Igreja poderia esquecer esse “detalhe”?
Não
vos dou ordens como Pedro e Paulo; eles eram apóstolos, eu sou um condenado. Eles eram livres, e eu até agora sou
um escravo. Contudo, se eu sofro, serei um liberto de Jesus Cristo, e
ressurgirei nele como pessoa livre. Acorrentado, aprendo agora a não desejar
nada. (Aos Romanos 4:3)
Inácio
parece não pressupor nenhuma hierarquia entre Pedro e Paulo. É provável que
assim como Irineu, acreditasse que ambos estiveram pregando e organizando a
Igreja de Roma. Como apologistas protestantes alegam, o fato de Paulo ter
pregado em Roma e ter enviado uma carta aos romanos edificando-os no evangelho
é incompatível com a ideia de que Pedro fosse o bispo nessa região no período
dessa carta. Paulo diz aos romanos que não iria “edificar sobre fundamento
alheio” (Romanos 15:17-21). Em sua despedida na mesma epístola, cita vários
membros da Igreja de Roma, mas não cita Pedro. Pelo menos até o tempo dessa carta,
Pedro não estaria em Roma. O fato de tanto Irineu como Inácio citar Pedro e
Paulo sem graus de hierarquia sugere que desconheciam o papado de Pedro.
Essa
passagem também contraria a sucessão apostólica. É dito que ele não poderia dar
ordens como os apóstolos, ou seja, esse bispo não via sua autoridade como
derivada dos apóstolos. Afirmação análoga é feita em outra carta:
Por
amor vos poupo, embora pudesse escrever com mais veemência sobre o assunto. Não
me atrevi a dar-vos ordens, como se fora Apóstolo, pois me encontro na
condição de condenado. (Aos Tralianos 3:3)
Ele diz que Deus Pai é o bispo dos bispos:
Não
deveis tratar vosso bispo com tanta familiaridade em razão de sua juventude,
mas deveis tratá-lo com toda a reverência, respeitando ao poder de Deus Pai,
assim como fazem os santos presbíteros
- como fiquei sabendo - que não o julgaram imprudentemente, a partir de sua
aparência jovem claramente manifesta, mas, sendo prudentes em Deus,
submeteram-se a ele, ou melhor, não a ele, mas
ao Pai de Jesus Cristo, que é o Bispo de todos nós. Assim, é adequado a
vós, sem qualquer hipocrisia, obedecerdes [ao vosso bispo], em honra dAquele
que nos amou tanto, já que [pela falsa conduta] não se tenta enganar ao bispo
visível, mas Àquele que é invisível.
E, com tal conduta, não se faz referência ao homem, mas a Deus, que conhece
todos os segredos. (Aos magnésios 3)
Inácio
se preocupou com a possibilidade do bispo não ser tratado com a devida
reverência pelo fato de ser muito jovem. Se a legitimidade do bispo dependesse
de uma sucessão histórica, esperar-se-ia que homens mais velhos fossem
ordenados. Sullivan comenta:
Um fato intrigante é que um jovem poderia ser o bispo a quem
se esperava que os anciãos fossem. Talvez
dons carismáticos de uma pessoa foram um importante testemunho do
desenvolvimento inicial do episcopado, ele não oferece suporte para a tese de
que os bispos recebem sua autoridade de Cristo como sucessores dos apóstolos.
Ele não a exclui, mas não a invoca como
um argumento para o que ele tão apaixonadamente promove: a unidade da
igreja local sob a autoridade de seu bispo. (Op Cit., pp. 126)
O bispo de Antioquia faz analogias incompatíveis
com a doutrina da sucessão apostólica:
Da mesma forma, todos
respeitem os diáconos como a Jesus
Cristo, e também ao bispo, que é a
imagem do Pai, e os presbíteros como
à assembleia dos apóstolos. Sem eles, não se pode falar de
Igreja. Tenho certeza que pensais do mesmo modo a respeito disso. (Aos
Tralianos 3:1)
Ele
relaciona Jesus Cristo aos diáconos, Deus ao bispo e o colégio apostólico aos
presbíteros. Assim, se fôssemos extrair sucessão apostólica destas epístolas,
teríamos que concluir que os presbíteros e não os bispos são os sucessores dos
apóstolos. Obviamente, ele não tem em mente uma sucessão autoritativa, pois os
diáconos estariam acima dos presbíteros assim como Cristo está acima dos
apóstolos. A comparação dos apóstolos com os presbíteros provavelmente se deve
à estrutural colegial de ambos, já dos diáconos a Jesus foi porque Cristo
enfatizou o espírito de serviço e ele mesmo se descreveu como alguém que veio
para servir. O fato de recorrer constantemente a essas analogias demonstra a
ausência do conceito de herança da autoridade apostólica em Inácio.
Quando vos submeteis ao bispo como a Jesus Cristo,
demonstrais a mim que não viveis segundo os homens, mas segundo Jesus Cristo,
que morreu por nós, a fim de que, crendo em sua morte, possais escapar da
morte. É necessário, portanto, como já o fazeis, nada realizar sem o
bispo, mas também submeter-vos ao
presbítero, como aos apóstolos de Jesus Cristo, nossa esperança, no qual
nos encontraremos em toda a nossa conduta. (Aos Tralianos 2)
Sei que o bispo, para servir
à comunidade, não obteve o ministério,
por si mesmo, nem pelos homens, nem por vanglória, mas pelo amor de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo. (Aos
Filadelfienses 1:1)
A
mesma analogia dos presbíteros com os apóstolos em outras cartas:
Segui todos ao bispo, como
Jesus Cristo segue ao Pai, e ao
presbitério como aos apóstolos; respeitai os diáconos como à lei de Deus. (Aos Esmirniotas 8:1)
Nas pessoas acima designadas
eu vi e amei na fé toda a vossa comunidade. Por isto vos peço que estejais
dispostos a fazer todas as coisas na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros, que representam o colégio
dos apóstolos, e dos diáconos, que
são muito caros para mim, aos quais foi confiado o serviço de Jesus Cristo,
que antes dos séculos estava junto do Pai e por fim se manifestou. (Aos de
Magnésia 6-7)
Everett
Ferguson escreve:
Inácio, a primeira
testemunha da liderança de apenas um bispo sobre uma igreja, não baseou a sua compreensão do ministério
na sucessão. O bispo era um representante de Deus Pai, e os presbíteros tomam seu modelo do colégio dos apóstolos. (Op.
Cit., pp. 95)
Robert
Williams, que fez sua tese de doutorado sobre o tema da sucessão apostólica e
mais tarde a publicou no livro Bishop Lists, afirma:
Inácio nada diz sobre sucessão apostólica. (Bishop Lists, Piscataway, New
Jersey: Górgias Press, 2005, p. 68)
Inácio
fala muito sobre o governo da igreja, e às vezes diz a seu público para
obedecer aos líderes da Igreja como se obedecessem aos apóstolos. Mas ele
também compara os líderes da Igreja com o Pai e Cristo, por exemplo. Essa
linguagem é comumente usada sem qualquer tipo de sucessão ou infalibilidade em
vista como Paulo também a utilizava (Efésios 6:5, Filemon 17).
Allen
Brent, um estudioso que se especializou no estudo de Inácio, da mesma forma
conclui que não há nenhum conceito relevante de sucessão apostólica em Inácio
(Inácio de Antioquia [New York, New York: T & T Clark International, 2009],
pp. 86-87, 122-129). Como observa Brent, Inácio faz analogia principalmente
entre os presbíteros e os apóstolos, e não com os bispos. Ele nunca se refere a
si mesmo como um sucessor dos apóstolos ou como tendo a autoridade de Pedro ou
de outros apóstolos. Essa ausência é relevante tendo em vista que a Igreja de
Inácio (Antioquia) tinha origem apostólica.
Inácio
é o primeiro a testemunhar o episcopado monárquico. Com exceção de Roma, todas
as outras Igrejas para quem escreveu tinham o bispo individualmente governando.
Apesar disso, ele continuava atribuindo autoridade aos presbíteros e diáconos.
As Igrejas da Ásia devem ter sido as primeiras a apresentarem o bispo
monárquico, sendo que outras Igrejas do mesmo período ainda não apresentavam a
mesma estrutura:
Schoedel e outros estudiosos
que defendem a autenticidade das cartas admitem que essas últimas declarações de Inácio provavelmente não correspondem à
realidade da Igreja em todo o mundo nos seus dias. Além disso, eles veem na
urgência com que ele exortou as comunidades cristãs a respeito da unidade com o
bispo uma indicação de que a estrutura episcopal ainda não era tão firmemente
estabelecida como Inácio queria. (...) a
noção de sucessão apostólica parece não ter desempenhado nenhum papel no
pensamento de Inácio de Antioquia. Pelo contrário, como ele entendia, o bispo
recebia sua autoridade diretamente de Deus. Ele nos deixa no escuro a
respeito de como um determinado membro de uma Igreja viria a ser seu bispo. (Sullivan F.A. Op. Cit., pp. 127)
Assim
como Clemente, Inácio afirmou ter assistência do Espírito Santo. Apologistas
católicos dizem ser essa uma evidência de que Clemente era um papa infalível.
Para que esse argumento seja consistente, eles teriam que conceder a mesma
infalibilidade a Inácio:
Vós nos dareis alegria e
contentamento, se obedecerdes ao que
escrevemos por meio do Espírito Santo, se acabardes com a cólera injusta da
vossa inveja, segundo o pedido, que vos dirigimos nesta carta, tendo em vista a
paz e a concórdia. (Clemente 63:2)
Clemente
pode ter afirmado estar escrevendo pelo Espírito Santo por vários motivos: ele
acreditava que estava escrevendo em consonância com a Escritura que era
inspirada pelo Espírito Santo (45:1) ou poderia ter algum dom espiritual. Nada
disso implica numa suposta infalibilidade. Vários Pais da Igreja e até mesmo
leigos cristãos afirmaram ao longo da história terem recebido revelações de
Deus, nem por isso lhe concedemos infalibilidade. Inácio é um exemplo disso, e
ninguém o considera um papa infalível:
Alguns quiseram me enganar
segundo a carne, mas não se engana o
espírito que vem de Deus. De fato, ele sabe de onde vem e para onde vai, e
revela os segredos. Estando no meio de vós, gritei, disse em alta voz, uma voz
de Deus: ‘Permanecei unidos ao bispo, ao presbitério e aos diáconos!’ Aqueles
suspeitaram que eu disse isso porque previa a divisão de alguns, mas aquele pelo qual estou acorrentado é
minha testemunha de que eu não o sabia através da carne. Foi o Espírito
que me anunciou, dizendo: “Não façais nada sem o bispo, guardai vosso corpo
como templo de Deus, amai a união, fugi das divisões, sede imitadores de Jesus
Cristo, como ele também o é do seu Pai. (Inácio aos
filadelfienses 7)
Policarpo
de Esmirna (80-155)
Policarpo
foi bispo da Igreja de Esmirna. A narrativa do seu martírio é uma das obras
mais conhecidas da literatura pós-apostólica. Já vimo que Inácio lhe enviou uma
carta antes de ser martirizado.
Irmãos, não é por mim mesmo
que vos escrevo essas coisas sobre a justiça, mas porque vós mesmos o pedistes a mim. De fato, nem eu, nem qualquer outro como eu pode se
aproximar da sabedoria do bem-aventurado e glorioso Paulo. Ele, estando
entre vós, falando pessoalmente aos homens de então, ensinou com exatidão e força a palavra da verdade e depois de partir,
vos escreveu cartas. Se as lerdes atentamente, podereis edificar-vos na fé
que vos foi dada. (Aos Filipenses 3)
Assim
como outros pais, Policarpo considerava o colégio apostólico único. Com exceção
do bispo de Roma mais tarde, eles nunca arrogaram a mesma autoridade dos
apóstolos para ensinar e exortar. O biso de Esmirna testemunha, ao mencionar
apenas os ofícios de presbíteros e diáconos, que na Igreja de Filipos ainda não
havia bispo monárquico:
Por isso, é preciso que eles
se abstenham de todas essas coisas, e
estejam submissos aos presbíteros e aos diáconos, como a Deus e a Cristo.
(Aos Filipenses 5:3)
Sullivan
comenta:
Dificilmente se pode evitar
chegar à conclusão de que a Igreja de Filipos, no momento em que Policarpo
escreveu esta carta, estava sendo
conduzida por um grupo de presbíteros assistidos por diáconos, sem qualquer bispo sobre toda a comunidade.
Se a ausência de um bispo era meramente temporária, como era na mesma época em
Antioquia, seria certamente esperado que Policarpo fizesse alguma referência a
esta situação. Assim, parece razoável concluir que na segunda década, o
desenvolvimento do episcopado ocorreu mais cedo nas Igrejas da Síria e Ásia
Menor do que nas Igrejas da Europa. Não sabemos quando as Igrejas de Corinto e
Roma começaram a ser liderada por um bispo, mas temos boas razões para acreditar que isso não aconteceu mais cedo
do que em Filipos. (Op. Cit., pp.
132)
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