Agostinho
é uma importante testemunha contra a doutrina romana, não pela sua antiguidade,
pois viveu no final do século quarto e início do século quinto, mas pela
importância que desfruta na Igreja Romana.
Já
houve um excelente debate entre blogs católicos e protestantes sobre Agostinho
e a eucaristia. A argumentação protestante pode ser vista no Blog Heresias Católicas que respondeu ao artigo do site Veritatis. Após, o site Apologistas Católicos respondeu ao blog protestante.
Acredito
que o blog protestante fez um bom trabalho e o site “apologistas católicos” não
refutou absolutamente nada, mas vou fazer algum pontos adicionais aos argumentos de sua resposta.
Não vou repetir todas as citações de Agostinho em que fica patente a
incompatibilidade entre ele e a ideia da presença física, no link postado,
todas já estão disponíveis.
O
primeiro argumento dos papistas é que “a
Igreja nunca iria ter como doutor ou santo alguém que contradissesse seus
dogmas”. Essa é uma argumentação falaciosa, pois parte do pressuposto que a
Igreja Romana sempre interpreta corretamente e honestamente os escritos dos
Pais. Qualquer pessoa que tenha um conhecimento mínimo da Bíblia e da História pode
atestar que diversas vezes a Igreja Romana distorceu escritos bíblicos ou
patrísticos para favorecer suas posições. Diversos santos negaram a imaculada
concepção de Maria, por exemplo: João Crisóstomo e Tomás de Aquino. Nem por
isso, a Igreja católica romana não os tem como doutores.
Depois,
é mostrada a seguinte citação:
E a Escritura diz-me, a terra é o meu escabelo. Hesitando, eu
me viro a Cristo, uma vez que eu estou aqui procurando Ele próprio: e descubro como a Terra pode ser adorada
sem impiedade, e como o escabelo de seus pés pode ser adorado sem
impiedade. Pois Ele tomou sobre Si terra da terra; porque a carne é da terra, e
Ele recebeu a carne da carne de Maria. E porque Ele andou aqui na própria
carne, e que deu a própria carne, para nos comermos para nossa salvação, e ninguém come essa carne, a menos que
tenha adorado primeiro: descobrimos em que sentido tal um escabelo de nosso
senhor pode ser adorado, e não só isso,
não pecamos em adorar, mas que pecamos em não adorar. (Sobre o Salmo 98:8)
Mas
vejamos a continuação desta mesma citação:
Mas será que a carne dá
vida? Nosso Senhor, quando estava falando em louvor a essa mesma terra, disse:
É o Espírito que vivifica, a carne para nada aproveita .... Mas quando o nosso
Senhor a elogiou, estava falando de sua própria carne, e tinha dito: A não ser
que o homem coma a minha carne, não terá vida nele. [João 6:54] Alguns de seus
discípulos, cerca de setenta, ficaram ofendidos, e disseram: Esse é um discurso
duro, quem pode ouvi-lo? E eles desistiram e já não andavam com Ele.
Parecia-lhes difícil o que Ele disse, se não comerdes a carne do Filho do
Homem, não tereis a vida em vós: eles o receberam tolamente, pensado nisso
carnalmente, e imaginaram que o Senhor iria cortar partes de seu corpo e
dar-lhes, e eles disseram: Esta é uma palavra dura. Eles que foram duros, não o
dito; se ao menos tivessem sido duros, e não mansos, eles teriam dito para si
mesmos, Ele não diz isso sem razão, mas deve haver algum mistério latente aqui.
Eles teriam permanecido com Ele, mansos, e não duros, e teriam aprendido dEle o
que os que permaneceram aprenderam, quando os outros partiram. Pois quando doze
discípulos ficaram com ele, em sua partida, esses seguidores restantes
sugeriram a ele, como se em luto pela morte dos primeiros, que eles se sentiram
ofendidos por suas palavras e desistiram. Mas Ele os instruiu e lhes disse: É o
Espírito que vivifica, mas a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos
tenho dito são espírito e vida. [João 6:63]. Entenda espiritualmente o que eu disse; não é para você comer este
corpo que você vê; nem beber o sangue que aqueles que vão me crucificar devem
derramar. Tenho recomendado a vocês certo mistério; entendido
espiritualmente, ele vai despertar. Embora
seja necessário que seja visivelmente celebrado, no entanto, deve ser entendido
espiritualmente.
Ao
lermos a continuação da citação, é visto que não endossa a posição de que o bispo
de Hipona acreditava na transubstanciação. Pelo contrário, conforme muitas
outras citações trazidas pelo Blog Heresias Católicas, ele entendia as palavras
de Jesus de forma simbólica e espiritual, os romanistas por outro lado,
entendem de forma literal e física. Imagine que alguém hoje acusasse um católico
romano de cometer canibalismo no momento da comunhão – ele com certeza
argumentaria que não é canibalismo, mas jamais utilizaria a argumentação de que
as palavras de Jesus devem ser interpretadas apenas espiritualmente,
inevitavelmente defenderia a presença física de Cristo na eucaristia e tentaria
demonstrar como isso ainda assim é diferente de canibalismo. Porém, Agostinho não
fez nada disso, ou ele desconhecia a doutrina romanista ou era um professor
omisso, não é preciso dizer qual hipótese é mais provável.
O
argumento “seria muito estranho alguém que diz que devemos adorar a Eucaristia
negar a transubstanciação” é falacioso por três motivos:
(1)
Quando Agostinho se referiu à adoração dos
elementos, estava falando como um mero sinal de respeito, conforme assevera
Philip Schaffer:
Em todas estas passagens,
devemos, sem dúvida, levar a termo proskunei'n e adorare no sentido mais amplo, e distinguir do arqueamento dos joelhos, que
era tão frequente, especialmente no Oriente, como um mero sinal de respeito, de adequada adoração. As antigas liturgias não contém direção
para qualquer ato de adoração como se tornou predominante na Igreja Latina,
como a elevação da hóstia, após o triunfo da doutrina da transubstanciação, no
século XII. (Fonte)
(2)
Ainda que partamos da premissa que Agostinho
defendia a adoração no sentido clássico do termo, isso em nada favorece a
doutrina romana. A própria citação esclarece isso, ele diz “e descubro como a Terra pode ser adorada sem impiedade”, ou seja,
a terra poderia ser adorada por que a Escritura afirma que é o escabelo de
Deus. Escabelo seria aquele banquinho para os pés, e acho que ninguém defendia
que Agostinho acreditasse de fato que a terra é o banquinho para Deus descansar
os pés. Então se temos claramente uma metáfora sendo suficiente para justificar
a adoração à terra, porque em relação à eucaristia deveria ser diferente?
(3)
Como já dito neste artigo, as pessoas podem
ter com o símbolo a mesma atitude que teriam como o que está sendo simbolizado.
E ninguém mais do que os católicos romanos podem atestar isso. Eles cultuam
imagens, nem por isso acreditam na presença física de Jesus, Maria ou Santos
nas imagens. Da mesma forma, como já ficou óbvio pelo contexto, Agostinho
poderia não acreditar numa presença física, e ainda assim ter uma atitude de
elevada reverência aos elementos, até porque ele concebia uma presença
espiritual de Cristo na eucaristia e não um mero simbolismo.
Após
essa primeira citação, o site apologistas católicos traz outra como prova da
transubstanciação:
O Senhor Jesus queria que
aqueles cujos olhos foram mantidos para reconhecê-lo, reconhecê-lo no partir do
pão [Lucas 24:16,30-35]. Os fiéis sabem o que eu estou dizendo que eles
conhecem a Cristo na fração do pão. Pois nem todo pão, mas apenas aquele que recebe a bênção de Cristo, torna-se corpo de
cristo. (Sermões 234:2)
É
importante perceber que nesse sermão, Agostinho comenta sobre a passagem de
Lucas 24:16-35 em que os discípulos no Caminho de Emaús não reconheceram Jesus.
Os discípulos o tiveram como um estranho, mas pararam para ouvir suas palavras
e o convidaram para partir o pão com eles, ou seja, não era a celebração da
Eucaristia em questão, mas uma refeição comum. O detalhe especial descrito nos
vs. 31 e 32 é que ao partirem o pão dado por Jesus, os olhos deles foram
abertos e puderam reconhecê-lo. Então, pelo contexto, percebemos que Agostinho
está falando de um pão comum usado para simples alimentação, que após ser
abençoado por Cristo, abriu os olhos daqueles homens. Trata-se obviamente de um
momento que não poderia envolver a transubstanciação. Seria improvável que o
Bispo de Hipona usasse uma passagem que não remetia a transubstanciação para
ensinar essa doutrina. Além do mais, a citação em si é irrelevante para a causa
católica, pois todos concordam que o pão consagrado é diferente do pão comum, e
que após a consagração, este pão passa a ser o corpo do Cristo. A questão é de
que forma isto deveria ser entendido. Se Agostinho ou outros Pais da Igreja
aqui analisados quisessem ensinar a doutrina romanista, poderiam utilizar
termos simples que não deixariam margem para dúvidas como, por exemplo: dizer
que Cristo está fisicamente presente; dizer que não há mais a substância pão,
mas apenas o corpo físico; ou que toda a matéria do pão foi convertida no corpo
físico de Jesus juntamente com sua alma e divindade. Porém, eles não utilizaram
tais termos simples que estariam a sua disposição.
A
visão agostiniana era da presença espiritual de Cristo na ceia, e as palavras
proferidas neste sermão adequam-se perfeitamente a essa interpretação.
Portanto, se alguém deseja provar que ele defendia a doutrina da conversão dos
elementos, precisa mostrar bem mais. O apologista católico segue mostrando uma
citação “adulterada” de Agostinho em que se troca a palavra significante por
simbólica. Teria sido proveitoso apontar onde esta citação adulterada estava,
pelo menos na internet em português, não achei nenhum site protestante a
utilizando.
Sob a servidão do sinal vive
quem faz ou venera uma coisa SIMBÓLICA
[SIGNIFICANTE] sem saber o que ela significa. Mas quem faz ou venera a um
signo útil instituído por Deus, cuja virtude e significado entende, não veneram visível e transitório, mas
Aquele a quem todos esses signos se referem [...] Tais são: o sacramento do batismo e a celebração do
corpo e sangue do Senhor. Quando alguém os recebe, bem instruído, sabe a que se referem e, por
conseguinte, venera-os com liberdade espiritual e não com servidão carnal. Ora,
seguir a letra e confundir os sinais com
aquilo que os sinais significam indica fraqueza e servidão. Interpretar os
sinais erradamente é o resultado de estar sendo conduzido pelo erro. (Doutrina
cristã Livro III, 9)
É
bem verdade que a tradução mais adequada é “coisa significante” ou “objeto
significante”. Porém, todo o contexto aponta que ele não via o pão como sendo
literalmente o corpo do Cristo. Percebam as palavras do Bispo: “não veneram o
VISÍVEL E TRANSITÓRIO, mas AQUELE a que todos esses signos se REFEREM”. Que
católico romano utilizaria palavras como essas para se referir a eucaristia?
Agostinho diz que o pão em si não era venerado, pois não se venera o visível e
transitório, mas sim aquilo a que o pão SE REFERE. É totalmente incompatível
que ele cresse que o pão fosse literalmente e substancialmente o corpo de
Cristo e utilizasse palavras como essas. Se o pão é o corpo de Cristo, então
ele diria que o pão em si deveria ser adorado, pois ali não haveria mais pão,
apenas o corpo. Como ele diria para alguém venerar aquilo que o pão representa,
se o pão é em si o próprio Cristo? O fato de colocar o batismo e a eucaristia
na mesma categoria de sinais também é revelador, pois assim como o batismo
aponta uma realidade externa (a morte para o pecado e o renascimento para Deus)
a eucaristia também aponta para uma realidade externa (o sacrifício
propiciatório de Jesus). Porém, na doutrina romana, a eucaristia não é um mero
sinal de uma realidade externa já ocorrida, neste momento Cristo é de fato
literalmente sacrificado.
Portanto
a argumentação “Por ultimo, só o fato de
ser provado que a tradução adulterada não condiz com as palavras de Santo
Agostinho já refuta toda a interpretação que se baseia na tradução errada” é
falaciosa. Pois, mesmo traduzindo como “coisa significante”, o contexto permite
a mesma conclusão – esse pai sustentava uma visão simbólica, no sentido de que
os elementos não se transformavam no corpo físico. Bastaria o autor ler outros
trechos da mesma obra para descobrir a verdadeira posição de Agostinho:
Se a sentença é um dos
comandos, proibindo um crime ou vício, ou ordenando um ato de prudência ou
benevolência, não é figurativa. Se, no entanto, parece que impõem um crime ou
vício, ou proibe um ato de prudência ou benevolência, é figurativa. Se não comerdes a carne do Filho do homem, diz
Cristo, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. [João 6:53]. Essa parece intimar um crime ou um vício;
portanto, é uma figura, que ordena que devemos compartilhar [communicandem]
nos sofrimentos de nosso Senhor, e que
devemos manter uma memória doce e proveitosa [in memoria] do fato de que sua
carne foi ferida e crucificada por nós. (Ibid 16)
Ele
interpreta figuradamente ou simbolicamente as palavras de Cristo. O significado
do texto é que devemos compartilhar dos sofrimentos de Cristo e lembrar do seu
sacrifício por nós, não que devemos de fato comer o corpo literal dele, junto
com seus ossos, medulas, alma e divindade. Agostinho segue nesse trecho explicando
outras passagens da Escritura que parecem comandar um delito, portanto,
deveriam ser compreendidas simbolicamente. O apologista católico também traz
esta citação usada pelos protestantes:
Eles disseram, pois, para
ele: o que devemos fazer para que possamos fazer as obras de Deus? E ele lhes
disse: trabalhem, não para a carne que perece, mas para o que permanece para a
vida eterna. O que devemos fazer? Eles perguntam; observando se seriam capazes
de cumprirem este preceito. Jesus respondeu e lhes disse: isto é a obra de
Deus, para que vocês acreditem naquele que me enviou. E, em seguida, para comer
a carne, não a que perece, mas a que permanece para a vida eterna. Para qual finalidade você prepara o dente e
o estômago? Creia, e você já terá comido. (Tratados sobre João, XXV, 12)
A
questão aqui é como Agostinho interpretava as palavras de João 6 tão utilizadas
pelos católicos como provada da transubstanciação. E, definitivamente, ele não
interpretava como eles. Vejamos os capítulos seguintes do mesmo tratado:
O meu Pai vos dá o
verdadeiro pão. Porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo.
Disseram-lhe: Senhor, dá-nos sempre desse pão. Como aquela mulher samaritana, a quem foi dito: Todo aquele que beber
desta água jamais terá sede. Ela, imediatamente compreendeu como referência a matéria, e que desejava saciar-se,
dizendo: Dá-me, Senhor, desta água; da mesma forma, também estes disseram:
Senhor, dá-nos este pão; que podem nos revigorar, e ainda não falhar. E Jesus
disse-lhes: Eu sou o pão da vida: aquele
que vem a mim não terá fome; e aquele que crê em mim nunca terá sede.
Aquele que vem a mim; esta é a mesma coisa que aquele que crê nele; não terá fome deve ser entendida no mesmo
sentido de nunca mais terá sede. Pois ambos significam suficiência eterna em
que nada falta. (Ibid 13-14)
É
bem verdade que essas passagens por si só não mostram que Agostinho não cria na
transubstanciação, isso sabemos por outras. Mas, mostram que não interpretava
as palavras de João 6 como se referindo à eucaristia, mas sim como a promessa
de salvação de Cristo a todo aquele que crê. Observa-se que ele traçou um
paralelo entre o diálogo de Jesus com os judeus a respeito do pão que desceu do
céu e o diálogo com a mulher samaritana. Em ambos, os ouvintes interpretaram as
palavras do mestre como literais e materiais, mas na verdade se tratavam da
promessa da vida eterna em Cristo. Assim como a água oferecida à samaritana era
metáfora para a vida em Cristo, o pão também era.
O
apologista traz citações em que Agostinho condena uma compreensão literal dos
ouvintes de Cristo em que eles imaginavam ter que comer a pessoa de Cristo. É
verdade que ele está condenando este tipo de compreensão, mas de forma
diferente dos católicos, não faz nenhuma conexão entre João 6 e comer o corpo
literal de Cristo no pão transubstanciado. Em todos os casos, o efeito é o mesmo
– Esse bispo não interpretava a bíblia como um católico interpreta e tinha uma
compreensão diferente do texto mais usado para justificar a crença romana. Que
Agostinho desconhecia essa doutrina, podemos inferir também de várias outras
citações. Ainda comentando João 6, ele diz:
Então, a cada um serão vida
o corpo e sangue de Cristo, se o que se
recebe visivelmente no sacramento se come na própria realidade espiritualmente,
se bebe espiritualmente. Pois temos ouvido o próprio Senhor, dizendo: ‘O
espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos
digo são espírito e vida [Jo.6.63]. (Sermão 131:1)
A
última citação analisada pelo apologista católico:
Você sabe que, na linguagem
comum, quando a Páscoa está se aproximando, nós dizemos: ‘Amanhã’ ou ‘Depois de
amanhã é a paixão do Senhor’, ainda que seja verdade que Ele sofreu há muitos
anos e Sua paixão aconteceu de uma vez por todas. De maneira parecida, no
Domingo de Páscoa, nós dizemos: ‘Neste dia o Senhor ressuscitou dos mortos’,
ainda que muitos anos tenham se passado desde Sua ressurreição. Mas, ninguém é
tolo o suficiente para nos acusar de mentir quando usamos estas frases. O
motivo que chamamos estes dias assim é porque há semelhança entre estes dias e
os dias em que os eventos aos quais nos referimos realmente aconteceram. Nos
referimos a estes dias como se fossem os mesmos dias em que os eventos
aconteceram, ainda que não sejam realmente os mesmos, porque correspondem a
mesma época do ano. E, quando é dito que o evento ocorre naquele dia, é porque,
ainda que tenha acontecido muito antes, é neste dia que o evento é celebrado
sacramentalmente. Cristo não foi, em Sua
própria Pessoa, oferecido como sacrifício de uma vez por todas? Mas, ainda assim, Ele também não é
oferecido no sacramento como um sacrifício, não somente nas solenidades
especiais da Páscoa, mas também diariamente em nossas congregações? Sendo
assim, se um homem é interrogado e responde que Cristo é oferecido nesta
ordenança, ele não está dizendo a verdade? Se os sacramentos não tivessem
qualquer semelhança verdadeira com as coisas das quais são sacramentos, não
seriam de fato sacramentos. Na maioria dos casos, em virtude desta semelhança, os sacramentos são chamados pelo nome da
realidade com a qual se assemelham. Portanto, em certo sentido, o sacramento do corpo de Cristo é o corpo de Cristo,
o sacramento do sangue de Cristo é o
sangue de Cristo [...] Com base nisso, o Apóstolo disse, em relação ao
sacramento do batismo: ‘De sorte que fomos sepultados com Ele pelo batismo na
morte’. [Rom 6.4] Ele não diz: ‘Nós temos significado que nós fomos sepultados
com Ele’, mas diz que ‘fomos sepultados com Ele’. Portanto, Ele deu ao sacramento referente a uma
operação tão grandiosa o nome que descreve a própria operação.
Essa
citação é tão clara que nem merecia maiores explicações. Vejam as analogias que
usa para explicar o sacramento da eucaristia. Ele compara aos dias que a páscoa
era comemorada, argumentando que ninguém era tolo de acreditar que aquele dia
não era uma mera recordação. Depois descreve a analogia do apóstolo Paulo da
morte e ressurreição do crente no batismo. Obviamente, todos, até os católicos
romanos entendem essas metáforas que apontam para realidades externas. Mas
Agostinho colocou o sacramento da eucaristia nesse mesmo grupo, e explica por
que ele chamava o pão e o vinho de corpo e sangue de Cristo. Não era por que acreditasse
que esses elementos se transformam literalmente em corpo e sangue, mas por que apontavam
para o corpo e o sangue real de Cristo. Por isso, ele usou o termo “em certo
sentido”.
A
explicação do apologista católico não convence, ele não lidou com todos esses
termos usados por Agostinho. Ele tenta mostrar que Tomás de Aquino pensava
exatamente como Agostinho e ainda assim acreditava na transubstanciação. Isso é
falso, basta abrir o link para perceber que Tomás fala de coisas diferentes.
Agostinho, assim como os outros Pais, nunca usou a distinção entre substância e
acidente de Tomás com relação à eucaristia. E a aqui não se trata de uma mera
mudança de nomes. O bispo de Hipona deixou claro por que chamava o sacramento
pelos nomes “corpo e sangue de Cristo”, e sua explicação exclui a possibilidade
da crença numa transubstanciação. Um ótimo argumento trazido pelo blog heresias
católicas a crença de Agostinho que o corpo de Cristo estava no céu e não aqui
na terra sempre que a eucaristia é celebrada:
Quando dizia Cristo: ‘A mim nem sempre me tereis convosco’,
estava falando da presença do corpo. Ora, segundo sua majestade, segundo
sua providência, segundo sua inefável e invisível graça, cumpre-se o que foi
por ele dito: ‘Eis que estou convosco até a consumação do mundo’ [Mt 28.20]; segundo a carne, porém, que o Verbo
assumiu, segundo seu nascimento da Virgem, segundo que foi agarrado pelos
judeus, que foi pregado no madeiro, que foi retirado da cruz, que foi envolvido
em panos de linho, que foi encerrado no sepulcro, que foi manifestado na
ressurreição, isto se cumpre: ‘Não me
havereis de ter sempre convosco.’ Por
que razão? Porque, por quarenta dias que conviveu com seus discípulos foi
segundo a presença do corpo; e, acompanhando-o, vendo-o, não o seguindo, subiu
ao céu [At 1.3, 9]. ‘Não está aqui’ [Mc 16.9], pois está ali assentado à destra
do Pai [Mc 16.19]. E, todavia, está aqui, porquanto não se retirou para a
presença da majestade. Doutra maneira, sempre
temos a Cristo segundo a presença de sua majestade, segundo a presença da carne, corretamente se disse: ‘Mas a mim nem
sempre me tereis. Teve-o, pois, a
Igreja segundo a presença da carne, por uns poucos dias; o teme agora pela
fé, não o vê com os olhos. (Tratado Sobre João, L, 13)
Ora, uma só pessoa é Deus e
homem, e ambos um só Cristo, enquanto é
Deus, está em todo lugar; enquanto é homem, está no céu. (Letters, III, 10)
Seria
inexplicável alguém sustentar tal posição e ainda crer em algo como o sacrifício
da missa. Se de fato sustentasse a doutrina romanista, teria dado boas
explicações sobre como Cristo pode estar fisicamente presente na missa, mas não
o fez.
Embora
consideremos que já não há o dever de oferecer sacrifícios, reconhecemos sacrifícios como parte
dos mistérios da Revelação, através da qual as coisas profetizadas foram
prenunciadas. Pois eles eram os nossos exemplos, e em muitos e diversos modos
apontaram para o único sacrifício que
agora comemoramos. Agora que este sacrifício foi revelado, e foi oferecido
em tempo oportuno, o sacrifício não é mais obrigatório como um ato de adoração,
ao mesmo tempo em que mantém a sua
autoridade simbólica (...) Antes da vinda de Cristo, a carne e o sangue
desse sacrifício estavam como sombras nos animais mortos; na paixão de Cristo,
os tipos foram cumpridas pelo verdadeiro sacrifício; depois da ascensão de Cristo, esse sacrifício é comemorado no
sacramento. (Philip Schaff, Padres Niceno e Pós-Nicenos, vol. IV, St.
Agostinho: Os escritos contra os maniqueístas e contra os donatistas, resposta a
Fausto o maniqueísta 6.5, 20.21 (New York: Longmans, Verde, 1909)., Pp 169,
262.)
O
único e definitivo sacrifício de Cristo era comemorado no sacramento e não
reapresentado várias e várias vezes.
Pois, como temos muitos
membros em um corpo, e nem todos os membros têm a mesma função, assim nós,
embora muitos, somos um só corpo em Cristo. Este é o sacrifício dos cristãos: sendo muitos, somos um só corpo em
Cristo. E este é também o sacrifício
que a Igreja celebra continuamente no sacramento do altar, conhecido dos fiéis,
no qual ela ensina que ela mesma é oferecida na oferta que ela faz para Deus
(...) Pois nós, que somos sua própria cidade, é o seu sacrifício mais nobre e digna, e é este mistério que celebramos
em nossos sacrifícios, que são bem conhecidas dos fiéis (...) Por meio dos
profetas os oráculos de Deus declararam que os sacrifícios que os judeus
oferecidos eram uma sombra daquilo que deveria cessar, e que as nações, desde o
nascer ao pôr-do-sol, iriam oferecer um sacrifício. (Philip Schaff, Padres
Nicenos e Pós-Nicenos, vol. II, p. 230-31. St. Agostinho: A Cidade de Deus na
Doutrina Cristã, A Cidade de Deus Livro 10, cap. 6; Livro 19, cap. 184:
(Eerdmans, 1956 Grand Rapids), pp, 418 23)
A
Ceia era uma recordação do único e definitivo sacrifício de Cristo. Neste
momento, a Igreja oferecia-se a si mesma como uma oferta de louvor a Deus. A
oferta não era Cristo, era a Igreja. Assim como os outros padres, ele viu niso
o cumprimento da profecia de Malaquias. Em outras passagens, o bispo também se
refere à Igreja metaforicamente presente na eucaristia:
Veja, isso é recebido, isso
é comido, isso é consumido. É o corpo de
Cristo consumido, é a Igreja de Cristo consumida, são os membros de Cristo
consumidos? Nem pensar! (Sermão 227)
Conforme Schaff, muitos outros autores cristãos, inclusive seu pupilo Facundus,
seguindo o mestre Agostinho, defenderam uma visão espiritual e não literal da
eucaristia:
O discípulo de Agostinho,
Facundus, ensinou que o pão sacramental "não é propriamente o corpo de
Cristo, mas contém o mistério do corpo." Fulgêncio de Ruspe tinha a mesma
visão simbólica; e até mesmo em um período bem mais tarde, podemos segui-la [a
visão de Agostinho] por meio da poderosa influência dos escritos de Agostinho
em Isidoro de Sevilha e Beda o Venerável. Entre os teólogos da época
carolíngia, em Ratramo, e Berengário de Tours, até que irrompeu em uma forma
modificada com maior força do que nunca, no século XVI, e tomou posição
permanente nas igrejas reformadas. (Fonte)
Tu foi maravilhoso mano! Genial!
ResponderExcluirResponde esse: http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/controversias/565-santo-agostinho-era-protestante
Deus abençoe!
Obrigado por trazer esse artigo. Vou postar uma resposta nas próximas semanas. Eu li o artigo que ele tentou refutar, mas não refutou nada aqui: http://conhecereis-a-verdade.blogspot.com.br/2011/04/seria-agostinho-de-hipona-catolico.html.
ExcluirEle realmente distorceu as citações de Agostinho para faze-lo um católico romano, coisa que ele nunca foi. Estou escrevendo artigos sobre a regeneração batismal e os Pais da Igreja. Após isso, escrevo esse.
Abraço!
Já publiquei a primeira parte da resposta:
Excluirhttp://respostascristas.blogspot.com.br/2016/02/agostinho-e-o-catolicismo-romano-parte.html