Irineu
de Lyon (130 – 202)
A
única obra completa sobrevivente de Irineu é Contra as Heresias. Nela, se
dedica principalmente a refutar o gnosticismo. Os gnósticos acreditavam que os
seres humanos eram almas divinas presas num mundo material criado por entidades
malignas. Esses hereges negavam a natureza humana de Jesus, para eles não fazia
sentido a salvação eterna do corpo ou a ressurreição. Esse é o contexto para
entender as citações eucarísticas de Irineu, em que enfatiza que Cristo usou
elementos materiais e criados como o vinho e o pão para representarem seu
sangue e corpo, sustentando que Deus criou tudo o que há no mundo, e sua
criação era boa:
Como ainda podem afirmar que
a carne se corrompe e não pode participar da vida, quando ela se alimenta do
corpo e do sangue do Senhor? Então, ou mudam sua maneira de pensar ou se
abstenham de oferecer as ofertas de que falamos acima. Quanto a nós, nossa
maneira de pensar está de acordo com a eucaristia e a eucaristia confirma nossa
doutrina. Pois lhe oferecemos o que já é seu, proclamando, como é justo, a
comunhão e a unidade da carne e do Espírito. Assim como o pão que vem da terra, ao receber a invocação de Deus, já
não é pão comum, mas a eucaristia, feita de dois elementos, o terreno e o
celeste, do mesmo modo os nossos corpos, por receberem a Eucaristia, já não
são corruptíveis por terem a esperança da ressurreição. (Contra as Heresias
4:18:5)
O
gnóstico afirmava que a carne não ira ressuscitar. Irineu diz que se sustentam
essa crença, não é coerente que eles (os gnósticos) ofereçam o sacrifício da eucaristia.
A parte negritada é esclarecedora, após a invocação, o pão já não é mais pão
comum, porém de não deixa de ser pão, o que implica numa negação da
transubstanciação. Se Irineu sustentasse esta doutrina, diria que o pão deixa
de ser pão e passaria a ser literalmente o corpo de Cristo. Também afirma que a
eucaristia é feita de dois elementos: terreno e celeste, ou seja, o elemento
terrestre (pão e vinho) continua lá, não foi transmutado, nem deixou de
existir. Há agora a presença de um elemento celeste (Jesus Cristo). Mas qual
seria a natureza da presença deste elemento celeste? física ou apenas
espiritual? Não há como afirmar certamente. Tanto a consubstanciação luterana
que afirma a presença física juntamente com a continuidade dos elementos, como
a visão reformada da presença espiritual se encaixariam nas palavras de Irineu.
Mas, definitivamente, a transubstanciação não poderia ser.
Ele
também ilustra na seguinte citação que a Igreja Universal reconhecia que o
altar no qual nós oferecemos nossos dons para Deus está no céu. E o céu é o
lugar para onde a nossa adoração é dirigida, não para os elementos
eucarísticos.
Ele não precisa destas
coisas, contudo quer que as façamos para o nosso bem, a fim de não sermos
infrutuosos; e o próprio Verbo prescreveu ao povo que faça as oblações, embora
não precisasse delas, para que aprendessem a servir a Deus, como quer que nós também ofereçamos
continuamente e sem interrupção nossos dons no altar. Há, portanto, altar nos céus, aonde sobem as nossas preces e oferendas;
e há templo, como diz João no Apocalipse: "Abriu-se o templo de
Deus"; e tabernáculo: "Eis - diz - o tabernáculo de Deus, no qual
habitará com os homens". (Ibid 4:18:6)
Há
também um fragmento existente de Irineu, que lança um pouco mais de luz sobre a
questão do pão eucarístico. Aparentemente, durante as perseguições em Lyon, uma
das acusações impostas aos cristãos era de canibalismo. Essa acusação foi feita
porque os pagãos ouviram que os cristãos comiam o corpo e o sangue de Cristo.
Esse fragmento mostra que os cristãos realmente não consideravam a eucaristia como
o corpo literal de Cristo:
Porque, quando os gregos,
depois de ter prendido os escravos de catecúmenos cristãos, em seguida, usaram
da força contra eles, a fim de saber deles algum segredo coisa [praticada]
entre os cristãos, estes escravos, não tendo nada a dizer que iria satisfazer
os desejos de seus algozes, exceto o que eles [os escravos] tinham ouvido falar
de seus senhores que a divina comunhão a era o corpo e o sangue de Cristo, e imaginando que realmente era carne e
sangue, deram aos seus inquisidores este tipo de resposta. Então, estes
últimos, presumindo tal ser o caso no que diz respeito às práticas dos
cristãos, deram estas informações para outros gregos, e obrigaram os mártires Sanctus e Blandina a confessarem, sob a
influência da tortura [que a alegação era correta]. Para estes homens,
Blandina respondeu muito admiravelmente com estas palavras: 'Como devem as pessoas suportarem estas [acusações], que, por causa
da prática [de piedade], não aproveitaram até mesmo da carne que era permitido
[para comer]?' (Fragmentos 13)
Os
escravos tinham ouvido falar de seus senhores que a eucaristia é o corpo e o sangue
de Cristo e assim confessaram. Mas Irineu esclarece para nós que os escravos
confessaram na ignorância, dizendo que eles imaginavam ser, na verdade, de
carne e osso. A visão de Irineu se torna ainda mais clara na tentativa dos
gregos de fazer ele e Sanctus confessar o mesmo. Eles nem mesmo comeram a carne
que era permitida comer, muito menos a carne literal de Cristo.
Irineu
acreditava que a Eucaristia é um sacrifício espiritual, no sentido de Hebreus
13:15, não um sacrifício no sentido de que o catolicismo romano ensina:
Aqueles que se
familiarizaram com a secundária (ou seja, inferior a Cristo) constituição dos
apóstolos, estão cientes de que o Senhor instituiu uma nova oferta na nova
aliança, de acordo com a declaração de Malaquias, o profeta. "Pois, do
nascente ao poente, meu nome é grande entre as nações e em todo lugar se
oferecem ao meu nome o incenso, sacrifícios e oblações puras. Sim, grande é o
meu nome entre as nações - diz o Senhor dos exércitos;" como também João
no Apocalipse declara: "O incenso é as orações dos santos". Então,
novamente, Paulo nos exorta “para
apresentar nossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é
o vosso culto racional". E, novamente, "Vamos oferecer o sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos
lábios". Agora, essas oblações não estão de acordo com a lei, a
escrita de que o Senhor cancelou, mas elas estão de acordo com o Espírito, pois devemos adorar a Deus em espírito e em
verdade. E, portanto, a oblação da Eucaristia não é carnal, mas espiritual; e, neste aspecto, é pura. Nós fazemos
uma oblação a Deus com o pão e o cálice da bênção, dando-lhe graças porque Ele ordenou a terra para produzir esses frutos
para a nossa alimentação. E então, quando temos aperfeiçoado a oblação,
invocamos o Espírito Santo, para que Ele possa apresentar esse sacrifício,
tanto o pão do corpo de Cristo, e do cálice do sangue de Cristo, em ordenar que
os receptores desses antitipos podem obter a remissão dos pecados e a vida
eterna. As pessoas, então, que realizam
estas oblações em memória do Senhor, não caem numa visão judia, mas, realizando
o serviço de uma maneira espiritual, eles serão chamados filhos de
sabedoria. (Ibid 37)
O
bispo de Lyon não concebia a eucaristia como o sacrifício literal de Cristo. O
sacrifício era espiritual, era uma oferta de louvor e gratidão a Deus. Ainda
cita passagens neotestamentárias que corroboram a natureza espiritual desse,
ligando-as à profecia de Malaquias. Assim como outros Pais da Igreja do século
II, o bispo de Lyon desconhecia o sacrifício propiciatório da Missa.
Tertuliano
de Cartago (160 – 220)
Em
sua obra “Sobre a Ressurreição da Carne”, Tertuliano comenta sobre João 6,
texto exaustivamente usado pelos romanistas como evidência da
transubstanciação:
Eles consideraram que seu
discurso foi severo e intolerável, supondo
que ele tinha realmente e literalmente os intimado a comer sua carne. Ele,
com a visão de ordenar o estado de salvação como algo espiritual, estabeleceu
como princípio, Ele é o espírito que
vivifica; e depois acrescentou: A carne para nada aproveita - ou seja, é claro,
para vivificar. Ele também passa a explicar o que queria nos fazer
compreender por espírito: As palavras
que eu vos disse são espírito e vida. Em certo sentido, como Ele havia dito
anteriormente: Aquele que ouve as minhas palavras, e crê naquele que me enviou,
tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passará da morte para a
vida. Constituindo, assim, a sua palavra como o princípio que vivifica, porque
esta palavra é espírito e vida. Ele
igualmente chamou sua carne pelo menos nome; porque, também, a palavra se fez
carne. Deveríamos, portanto, desejá-lo, a fim de que possamos ter vida, e devorá-lo com o ouvido, e refletir
sobre ele com entendimento, e digeri-lo
pela fé. (Sobre a Ressurreição da Carne 37)
A
citação é bem clara, Tertuliano interpretava as palavras de João 6 como os
evangélicos interpretam. Ele deixa claro que a interpretação literalista dos
judeus e dos romanistas estava errada. “A carne nada aproveita para vivificar”,
não há como conciliar esta afirmação com a crença de que alguém precisa comer a
carne de Cristo para ser vivificado. O que iria vivificar o Cristão era ouvir e
crer nas palavras do Senhor. O fim da citação é ainda mais esclarecedor.
Tertuliano compreendeu que Jesus chamou sua carne de palavra por que a palavra
se fez carne, claramente um simbolismo. E ainda diz que devemos “devora-lo com
o ouvido”, ou seja, ouvir atentamente suas palavras, e “digeri-lo pela fé”, ou
seja, crer nas suas palavras. Percebe-se o uso metafórico do verbo “devorar” e
“digerir”.
Então, depois de ter tomado
o pão, o deu aos Seus discípulos. Ele fe-lo seu próprio corpo, dizendo: 'Este é o meu corpo', isto é, a figura de
meu corpo. Uma figura, no entanto, não
poderia ter sido, a menos que houvesse primeiro um corpo verdadeiro. Uma coisa vazia, ou fantasma, é incapaz de
ser uma figura (...) No fim, porém, você
pode descobrir como antigamente o vinho foi usado como uma figura do sangue,
vire a Isaías, que pergunta: "Quem é este que vem de Edom, de Bosor com
vestes tingidas de vermelho, tão glorioso no seu traje, na grandeza do seu
poder? Por que são as suas vestes vermelhas (...) Ele [Marcião] não entendia como antiga era esta figura do corpo de
Cristo, que disse sobre si mesmo através
de Jeremias: Eu era como um cordeiro ou um boi que levam ao matadouro, eu não
sabia que eles tramavam contra mim, dizendo: lancemos a árvore em cima de seu
pão, o que significa, é claro, a cruz em
cima de seu corpo (...) O Espírito
profético contempla o Senhor como se Ele já estivesse a caminho de sua paixão,
vestido em sua natureza carnal, e como sofreria nela. Ele representa a
condição de sangramento de sua carne sob
a metáfora de roupas tingidas de vermelho, como se avermelha no processo de
pisar e esmagar o vinho, pelo qual os trabalhadores descem avermelhados com o
suco do vinho, como os homens manchados de sangue. Muito mais claramente ainda
o livro de Gênesis prevê isso, quando (na bênção de Judá, de cuja tribo Cristo
estava para vir segundo a carne) que, mesmo assim delineou Cristo na pessoa
sobre a qual o patriarca disse: "Ele lavou suas roupas em vinho e suas
vestes em sangue de uvas '- em suas vestes, a profecia apontou sua carne e seu
sangue apontou no vinho. Assim, Ele agora consagra o seu sangue no vinho, que (pelo
patriarca) foi usado como figura do
vinho para descrever seu sangue. (Contra Marcião 04:40)
A
citação é clara, o pão e vinho são figura do corpo e sangue de Cristo. Alguns
apologistas romanistas fazem malabarismos para fugir da óbvia conclusão. Uma alegação
comum é que ao chamar de “figura”, Tertuliano se refere ao corpo real que foi
tipificado no pão e vinho em profecias do Antigo Testamento. Realmente
Tertuliano enxerga tipologias em algumas passagens do A.T, mas quando afirma
“figura do meu corpo”, está se referindo
às palavras de Jesus na instituição da Eucaristia, e não às profecias.
Somente depois ele passará a falar da tipificação nas profecias. Esse pai da
Igreja compreendeu que Jesus ao falar “isto é meu corpo” não falava de forma
literal, mas metafórica, portanto, é falacioso cita-lo como uma testemunha da
transubstanciação.
A
intenção neste trecho é refutar a heresia de Marcião que dizia que o corpo de
Cristo era apenas aparente. Para isso, ele usa um argumento eficaz – se Cristo
não tinha carne ou sangue, como pode ter instituído algo simbolizado
(figurando) sua carne e sangue? O mesmo tipo de argumento tratamos em Inácio,
se Cristo não tivesse um corpo real, Ele não poderia instituir algo
representando o que não existia. A forma como Tertuliano interpreta as
profecias também depõe contra a doutrina romanista – ele interpreta as palavras
de Jeremias “lancemos a árvore em cima de
seu pão” como “a cruz em cima de seu corpo” – a profecia é utilizada para
prefigurar um evento claramente simbólico, pois nem mesmo o romanista diria que
o pão se transubstanciou no corpo de Cristo no momento da crucificação. Ou
seja, a profecia é vista como tipificando um evento simbólico, assim como o pão
eucarístico também é simbólico. Caso ele acreditasse na conversão dos
elementos, usaria esta tipologia para apontar um evento literal, e não
manifestamente metafórico como esse. A mesma coisa faz com a profecia de Isaías
para a metáfora vinho-sangue.
De fato, até o presente momento,
ele não desprezava a água que o Criador fez para as pessoas se lavarem, nem o
óleo com o qual ele os unge, nem a união de mel e leite, que ele dá para a
nutrição das crianças; nem o pão com o
qual ele representa o seu próprio corpo, exigindo, portanto, em seus
próprios sacramentos os "elementos desprezíveis" do Criador. (Ibid.,
01:14)
O
pai da Igreja, para refutar a ideia marcionita de que o mundo material é mau e
inferior, argumenta que Cristo usou e valorizou os próprios elementos materiais
da criação, que Marcião considerava “elementos desprezíveis”. Então, ele cita o
pão que representa o corpo de Cristo.
Depois
de tamanha evidência, o romanista pode querer usar ainda mais dois argumentos.
O primeiro é de que Tertuliano chamou a Eucaristia de sacramento – isso por si
só não prova nada, afinal outras visões eucarísticas como consubstanciação ou
presença espiritual também a chamam de sacramento, que nada mais é do que uma
palavra de origem latina para mistério. Sem contar que a visão tertulianista dos
sacramentos difere da romanista.
O
segundo argumento é trazer a seguinte citação:
Nós sentimos pesar quando algum pão ou vinho, mesmo sendo nosso
próprio, cai sobre o chão. (Sobre a Coroa 3)
O
argumento é que o cuidado especial com o pão e o vinho prova a transubstanciação
dos elementos. O contexto desse capítulo não aponta que ele se refere aos
elementos da eucaristia. Ele está descrevendo costumes não escritos que a
Igreja do período praticava como fazer o sinal da cruz em qualquer etapa do
dia, negar o diabo no batismo e outros. Uma evidência para se acreditar que
Tertuliano não se referia ao pão e o vinho da eucaristia é que ele continua a
chama-los de pão e vinho, quando em outras obras, ele os chama de corpo e
sangue de Cristo. Então há duas
hipóteses: (1) ele falava de pão e vinho comum ou (2) falava do pão e vinho
eucarísticos, mas, mesmo após a consagração, continuava a apresentar os elementos
como pão e vinho. Dessa forma, em ambas as hipóteses, a posição romanista é
contrariada, pois ele deveria passar a considerar os elementos literalmente o
corpo e o sangue, caso sustentasse a conversão dos elementos.
Como
já arguido neste artigo, o cuidado especial com os elementos não prova sequer
uma presença física, quanto mais a conversão deles. Mesmo alguém que toma os
elementos como símbolos, apresenta um respeito especial pelos elementos, pois
eles simbolizam algo de inestimável valor (corpo e sangue de Jesus). Nós
tendemos a respeitar os símbolos como respeitamos o que é simbolizado.
Muitos
católicos romanos ficam temorosos sobre o que fazer com imagens quebradas ou
outros objetos de devoção danificados:
As capelas da roça, as
cruzes à beira das estradas e os cruzeiros dos cemitérios do nosso imenso
Brasil são lugares onde muitas pessoas costumam colocar as imagens quebradas,
terços arrebentados e outros objetos de devoção que se estragaram. Muitas
pessoas colocam esses objetos em tais lugares porque imaginam que é falta de respeito jogar no lixo aquele objeto que
lhe ajudou a rezar, a conseguir graças ou a confiar mais em Deus. (Fonte)
Nem
por isso, eles creem que estes objetos contem uma presença física do que
representam. Desta forma, esse argumento é apenas uma falácia.
Clemente
de Alexandria (150 – 215)
Assim
como os evangélicos, Clemente interpretava João 6 de forma metafórica:
Pois a mesma Palavra é
fluida e suave como leite, ou sólida e compacta como carne. E detendo-nos neste
ponto de vista, podemos considerar a proclamação do Evangelho, que está
universalmente difundido, como leite; e como carne a fé, pela qual a instrução
é compactada num fundamento, que, sendo mais substancial que o ouvir, é
semelhante à carne, e a própria alma assimila nutrição deste tipo. Noutro lado o Senhor, no Evangelho segundo
João, menciona isto mediante símbolos, quando disse: "Comei a minha carne
e bebei o meu sangue" [João 6:34]; descrevendo claramente por metáfora as propriedades bebíveis da fé e da
promessa, por meio da qual a Igreja, como um ser humano composto de muitos
membros, é refrescada e cresce, é ligada e compactada por ambas – pela fé, que
é o corpo, e pela esperança que é a alma; como também o Senhor de carne e
sangue (O Pedagogo 1:6)
Na
mesma citação, Clemente prossegue explicando a natureza figurativa das palavras
de Cristo:
"Comei
a minha carne", diz, "e bebei o meu sangue." [João 6:53-54]. Tal
é o adequado alimento que o Senhor ministra, e Ele oferece a sua carne e
entrega o seu sangue, e nada falta para o crescimento das crianças. Oh surpreendente mistério! Somos
intimados a abandonar a velha e carnal corrupção, como também a velha alimentação,
recebendo em troca outro novo regime, aquele de Cristo, recebendo-o se
pudermos, para guardá-lo em nosso interior; e que, ao guardar o Salvador em
nossas almas como num santuário, possamos corrigir as afecções da nossa carne. Mas não estais inclinados a entendê-lo deste
modo, mas talvez mais geralmente. Ouvi-o também da seguinte maneira. A carne figurativamente representa para nós
o Espírito Santo; pois a carne foi criada por Ele. O sangue nos aponta a
Palavra, pois como rico sangue a Palavra foi infundida na vida; e a união de
ambas é o Senhor, o alimento dos bebés – o Senhor que é Espírito e Verbo. O
alimento – isto é, o Senhor Jesus – isto é, o Verbo de Deus, o Espírito feito
carne, a carne celestial santificada. (Ibid)
Além disso, o Verbo declara
ser Ele próprio o pão do céu. "Pois Moisés", diz, "não vos deu o
pão do céu, mas meu Pai vos deu o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é
Aquele que desceu do céu, e dá vida ao mundo. E o pão que eu darei é a minha
carne, a qual darei pela vida do mundo." [João 6: 32-33,51] (...) Mas uma
vez que Ele disse "E o pão que darei é a minha carne" e uma vez que a
carne é humedecida com sangue, e o
sangue é denominado figurativamente vinho (...) Assim, de muitas maneiras o Verbo é figurativamente descrito, como
alimento, carne, comida, pão, sangue e leite. O Senhor é tudo isto, para dar-nos
desfrute a nós que cremos nele. Que ninguém pense que é estranho, quando
dizemos que o sangue do Senhor é figurativamente representado como leite. Pois, não é figurativamente representado
como vinho? "Quem lava", diz-se, "a sua vestimenta em vinho,
a sua túnica no sangue da videira" [Génesis 49: 11]. No seu próprio
Espírito diz que revestirá o corpo do Verbo; como certamente pelo seu próprio
Espírito nutrirá os que tenham fome do Verbo. (Ibid)
É
bem claro, não necessitando muitas explicações. Ele explica as várias metáforas
usadas para representar a carne e o sangue de Jesus, utilizando passagens que
os católicos romanos interpretam literalmente. Ainda diz que não se deve
estranhar representar o sangue de Jesus como leite, afinal já era costume
representar figuradamente o sangue dele como vinho. Clemente de Alexandria se
refere a Jesus bebendo vinho [real] na última ceia, citando Mateus 26:29, e
refere-se à última ceia como exemplo de como os cristãos devem se conduzir
quando bebem vinho:
De que maneira você acha que
o Senhor bebeu quando se fez homem por amor a nós? Descaradamente como nós? Foi
sem decoro e decência? Foi deliberadamente? Por certo, Ele próprio também
participou de vinho, pois Ele, também
era homem e abençoou o vinho, dizendo: "Tomai, bebei: este é o meu
sangue" - o sangue da videira. Ele
figurativamente chama a Palavra "derramado por muitos, para remissão dos
pecados" - o santo fluxo de alegria. E quem bebe deve ter moderação.
Ele mostrou claramente por que ensinou em festas. Por que não ensinou afetado
pelo vinho. E esse foi o vinho abençoado, mostrou novamente, quando disse aos
seus discípulos: "não mais tomarei deste fruto da videira até aquele dia
em que beberei o novo vinho, convosco, no Reino de meu Pai". Mas este era
o vinho bebido pelo Senhor. Diz-nos outra vez, quando falou a respeito de si
mesmo, repreendendo os judeus por sua dureza de coração: "Porque o Filho
do homem", Ele diz, "veio, e eles dizem, Eis aí um glutão e bebedor
de vinho, amigo de publicanos". (Ibid., 2:2).
O
fato de usar a ultima ceia como exemplo para instruir os cristãos quanto ao
consumo de vinho prova que não acreditava na conversão deste elemento em sangue
literal. Sua linha de raciocínio
perderia qualquer sentido, caso acreditasse que ali não tinha mais vinho, mas o
sangue de Cristo.
Se, então, o
"leite" é dito pelo apóstolo a pertencer aos pequeninos, e
"alimento sólido" para ser o alimento do adulto, o leite será
entendido como a instrução catequética - o primeiro alimento, como se fosse ,
da alma. O alimento sólido é a contemplação mística; para isso é a carne e o sangue da Palavra [Cristo], ou seja, a
compreensão do poder divino e essência. "Prove e veja que o Senhor é
Cristo", diz-se. Por isso Ele dá de
Si mesmo para aqueles que participam desses alimentos de forma mais espiritual.
(Stromata 5:10)
Ele
está interpretando 1 Coríntios 3:2, no qual Paulo diz que havia dado apenas
leite e não alimento sólido à Igreja de Corinto. Em meio às analogias, mais uma
vez, a carne e sangue de Jesus são envolvidos em metáforas “compreensão do
poder divino e essência”. Também afirma que Cristo dá a si mesmo como alimento
espiritual – palavras incompatíveis com a doutrina literalista.
Orígenes
(185 – 254)
Orígenes
foi aluno de Clemente, sua compreensão da eucaristia é semelhante à dele:
Ora, se "tudo o que
entra pela boca vai para o estômago e é lançado na latrina" até a comida
que foi santificada através da palavra de Deus e da oração, em conformidade com
o fato de que é material, vai para o estômago e é lançada na latrina, mas por
causa da oração que vem sobre ela, conforme a medida da fé, torna-se um
benefício e é um meio de ver claramente para a mente que procura o que é
benéfico, e não é a matéria do pão mas a
palavra que é dita sobre ele o que aproveita ao que come não indignamente do
Senhor. E estas coisas certamente
são ditas do corpo típico e simbólico. Mas muitas coisas poderiam dizer-se
acerca do próprio Verbo que se fez carne, e verdadeira comida da qual o que
come viverá seguramente para sempre, não sendo capaz de comer dela nenhuma
pessoa indigna; pois se fosse possível para alguém que continua indigno comer
d`Aquele que se fez carne, que era o Verbo e o pão vivo, não se teria escrito
que "todo o que come deste pão viverá para sempre. (Comentário sobre
Mateus 11:14)
Estamos muito mais
preocupados por não ser desagradecidos para com Deus, que nos encheu com os
seus benefícios, de cuja obra somos, que nos cuida em qualquer condição que nos
achemos, e que nos deu esperança de coisas além da vida presente. E temos um símbolo de gratidão a Deus no
pão que chamamos a Eucaristia. (Contra Celso 8:57)
Orígenes
diz que o corpo é simbólico. Note-se que para ele, o elemento pão em si não era
de nada muito proveitoso, mas sim as palavras ditas sobre ele. Seria uma
afirmação estranha caso viesse de alguém que acredita na conversão do elemento
pão no corpo de Cristo. Todo o contexto da citação traz esta ênfase – certo
desprezo pela matéria em si, e uma maior importância da mensagem transmitida no
ato. Essa posição se amolda perfeitamente ao ponto de vista simbólico da
Eucaristia, e traz sérias dificuldades para aqueles que defendem uma presença
física. Ele também se refere à Eucaristia como símbolo de gratidão, posição
estranha se cresse na Eucaristia como sacrifício propiciatório pelos pecados.
Quando
católicos romanos usam os pais da Igreja em apoio a sua doutrina, costumam
trazer citações em que afirmam que o pão e o vinho são o corpo e sangue de
Cristo. Esse é um argumento simplista e falacioso, é natural que eles usassem
esta terminologia, pois foram os termos que Jesus usou. Da mesma forma como Jesus
usava a mesma terminologia para dizer que era a porta, a videira, a luz, sem
obviamente estar falando literalmente. A questão é extrair dos escritos
patrísticos como as palavras do Filho de Deus foram compreendidas, e vimos até
aqui que eles não compreendiam como o catolicismo romano. Observa-se que muitas
vezes os pais da Igreja se referiam aos elementos já consagrados como pão e
vinho, demonstrando que não acreditam numa conversão desses. Foi o caso de
Orígenes que se referiu a eucaristia como pão e não como o corpo/carne. Isso
mostra que ele ter dito em outras passagens que o pão é o corpo de Cristo não
prova em nada que sua crença era literal. Se ainda resta alguma dúvida,
analisemos a citação abaixo:
Este
pão, que o Verbo de Deus diz ser o seu corpo, é a Palavra que alimenta as
almas, o Verbo que procede do Verbo Deus;
é pão celestial, que está colocado encima da mesa, do qual está escrito:
"Tu pões perante mim uma mesa, em frente dos meus inimigos" [Salmo
22:5]. E essa bebida que o Verbo Deus
diz ser o seu sangue, é a Palavra que sacia e inebria os corações dos que bebem;
da bebida deste cálice está escrito: Que bom é o teu embriagador cálice! (...) O Verbo Deus não chamou seu corpo àquele
pão visível que tinha nas suas mãos, mas à Palavra, em cujo mistério devia
partir-se o pão. Não chamou seu sangue
àquela bebida visível, mas à Palavra, em cujo mistério se serviria esta
bebida. Porque que outra coisa pode ser
o corpo ou o sangue do Verbo Deus senão a palavra que alimenta e alegra os
corações? (Comentário sobre Mateus série 85)
Não
há como conciliar essa opinião como uma crença literal. O pão e o vinho, que
Jesus disse ser seu corpo e sangue é a palavra que alimenta e sacia. Ele usou
uma metáfora utilizando as próprias palavras de Jesus que alguns creem ser
literais, demonstrando que não as tomava literalmente.
Alguns
utilizam a seguinte citação para provar o contrário:
Conheceis a vós que assistis
aos divinos mistérios, como quando recebeis o corpo do Senhor o guardais com
toda cautela e veneração, para que não
caia nem um pouco dele, nem desapareça algo do dom consagrado. Porque -
corretamente - crês que sereis réus se perderdes algo dele por negligência. E
se empregais - corretamente - tanta cautela para conservar o seu corpo, como
julgais ser coisa menos ímpia se descuidar de sua palavra que ao seu corpo? (Sobre
o Êxodo - Homilia 13:3)
Desonestidade é o dorte das seitas protestantes,eu como estudioso das patrístiscas,me torno é mais Católico,diante de todas essas distorções feitas por fundadores de seitas protestantes,que são totalmente refutadas tanto pelo oriente quanto pelo ocidente!! Deus julgará todas as calúnias protestants!!
ResponderExcluirInteressante.... comigo tem sido o contrário, quanto mais estudo a história (aí incluso a patristica) mais convencido estou de que o romanismo é sério desvio doutrinário.
ExcluirNo mais, caso volte a comentar aqui, gostaria que você apresentasse algumas dessas "refutações".
No mais, Oriente e Ocidente não tem a mesma explicação da Eucaristia. Os orientais não lançam mão da transubstanciacao (uma deturpação da filosofia aristotélica) em sua doutrina da Eucaristia.
Historiadores protestantes como Harnack e Darwell há muito já demonstraram que os conceitos de "simbolo" e "figura" em Tertuliano, Origenes e Clemente em nada se assemelham ao conceito ocidental moderno. Parece que não é a apologética "Romanista" que está defasada. Vergonha.
ResponderExcluirEstou ciente dessa posição defendida por alguns historiadores. Todavia, esses mesmos historiadores demostram que o conceito que eles tinham de símbolo passa muito longe do conceito de transubstanciação. Você também segue esses historiadores quando eles tem opiniões diversas da sua igreja? Além disso, além deles há vários outros pais da igreja que não defendiam a transubstanciação. E acredite, esta não é uma opinião pessoal minha. Um bom número de historiadores católicos romanos atestam essa diversidade de opiniões na igreja primitiva a respeito da Eucaristia.
ExcluirAgora, experimente ler os artigos apologéticos romanistas sobre o tema. Eles vão afirmar que a transubstanciação foi crida e defendida pela Igreja desde sempre - uma afirmação que não possui qualquer suporte da evidência. Neste aspecto, a apologética católica é sim defasada. Você mesmo cita tais historiadores de forma irrelevante, pois todos sabemos que esses historiadores desacreditam a narrativa católica romana da história da igreja, e no fim do dia sabemos, que você é obrigado a seguir o que sua igreja diz e não o que os historiadores afirmam.
Sobre ser vergonhoso, eu lhe digo o que é vergonhoso - milhões de pessoas no mundo mastigando um pedaço de pão acreditando que estão mastigando o próprio Deus!