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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Os Pais Ante-Nicenos e a Oração a Santos e Anjos

A oração aos santos pedindo intercessão é uma das doutrinas que distinguem evangélicos e católicos romanos. A Igreja Romana ensina que os santos no céu podem ouvir as orações a eles dirigidas e intercedem junto a Deus em favor daqueles que oram. O catecismo diz:

§2683 As testemunhas que nos precederam no Reino, especialmente as que a Igreja reconhece como "santos", participam da tradição viva da oração pelo exemplo modelar de sua vida, pela transmissão de seus escritos e por sua oração hoje. Contemplam a Deus, louvam-no e não deixam de velar por aqueles que deixaram na terra. Entrando "na alegria" do Mestre, eles foram "postos sobre o muito". Sua intercessão é o mais alto serviço que prestam ao plano de Deus. Podemos e devemos pedir-lhes que intercedam por nós e pelo mundo inteiro. (Fonte)

O presente artigo objetiva mostrar que tal prática não é ausente na escritura, mas também nos escritos dos pais ante-nicenos. Esses são autores cristãos que viveram do período pós-apostólico (final do século I) até o Concílio de Nicéia (325 d.c). A Bíblia fala sobre oração em diversas ocasiões, circunstâncias e épocas, trata-se de um registro de mais de mil anos da trajetória do povo de Deus, no entanto, não há sequer uma referência ao pedido de intercessão dos mortos.

Diante da falta de fundamentação bíblica, os apologistas católicos apelam a uma suposta tradição oral originada nos apóstolos como prova de que a Igreja, desde os tempos apostólicos, ensinou o pedido de intercessão aos falecidos como uma crença ortodoxa. Neste caso, os apologistas católicos têm o ônus de provar:

·Que o pedido de intercessão aos falecidos foi ensinado pelos apóstolos;
·Que a Igreja, desde o tempo dos apóstolos, ensinou essa doutrina.

Pais Apostólicos (90 - 140)

Alguns usam a seguinte citação de Inácio de Antioquia como evidência da intercessão dos santos na Igreja Primitiva:

Meu espírito se sacrifica por vós, não somente agora, mas também quando eu chegar a Deus. Eu ainda estou exposto ao perigo, mas o Pai é fiel, em Jesus Cristo, para atender minha oração e a vossa. Que sejais encontrados nele sem reprovação. (Epístola aos Tralianos 13:3)

A questão é o que Inácio queria dizer com " não somente agora, mas também quando eu chegar a Deus"? Será que ele acreditava que continuaria orando pela Igreja na terra quando estivesse na presença de Deus? Não há como saber ao certo, nada no contexto permite essa conclusão específica. Porém, é muito provável que Inácio não acreditasse que a oração poderia ser oferecida a qualquer outro que não Deus. Em todas as suas 7 cartas fala bastante sobre oração e pede para todas as Igrejas orem por ele e por outros. No entanto, em nenhum momento faz referência a orar a qualquer coisa criada, mas apenas a Deus. Se a oração aos santos fosse ensinada na Igreja primitiva, seria de se esperar que, em meio a tantos pedidos de oração, Inácio mencionasse orar a algum apóstolo ou mártir cristão.

Clemente de Roma e Policarpo de Esmirna seguem a mesma tônica. Clemente de Roma, em sua epístola a Igreja de Corinto, escreve um modelo de oração, mas nada menciona sobre orar a outro que não Deus. Policarpo também menciona a oração como sendo dirigida a Deus.

Justino Mártir (100 – 165)

Vede o fim que tiveram os imperadores que vos precederam: todos morreram de morte comum. Se a morte terminasse na inconsciência, seria uma boa sorte para todos os malvados. Admitindo, porém, que a consciência permanece em todos os nascidos, não sejais negligentes em convencer-vos e crer que essas coisas são verdade. De fato, a necromancia, o exame das entranhas de crianças inocentes, as evocações das almas humanas e os que são chamados entre os magos de espíritos dos sonhos e espíritos assistentes, os fenômenos que acontecem sob a ação dos que sabem essas coisas devem persuadir-vos de que, mesmo depois da morte, as almas conservam a consciência. (I Apologia 18)

Justino cita a prática pagã de evocar almas humanas como evidência da consciência da alma após a morte. Ele parece pressupor que esta prática não era comum aos cristãos. Já que essa prática é semelhante a orar aos falecidos, é improvável que Justino cresse na oração aos mortos. Ele também fala sobre a oração em diversos outros contextos em suas obras, mas nunca menciona sobre orar a pessoas falecidas ou mesmo que os que já partiram oram pelos que aqui ainda estão.

Pastor de Hermas (150)

Eu lhe pedi insistentemente que me explicasse o sentido simbólico do campo, do senhor, da vinha, do escravo que estaqueara a vinha, do filho e dos amigos conselheiros, pois compreendera que tudo isso era uma parábola. Ele me respondeu: “És muito ousado em tuas perguntas! De modo algum deves perguntar, pois, se alguma coisa se deve explicar a ti, será explicada.” Eu lhe disse: “Senhor, tudo o que me mostrares sem explicar, será inútil que eu veja, pois não compreenderei o que significa. Da mesma forma, se me contas parábolas sem explicá-las, terei ouvido em vão alguma coisa de ti.” De novo, ele me respondeu, dizendo: “Todo servo de Deus que tem o Senhor em seu coração, pode lhe pedir a compreensão e obtê-la. Ele poderá, então, explicar qualquer parábola e, graças ao Senhor, tudo o que for dito em parábolas será compreensível para ele. Os indolentes e preguiçosos para a oração, porém, vacilam em pedir ao Senhor. O Senhor é misericordioso e atende todos os que lhe pedem sem hesitação. Tu, porém, que foste fortificado pelo anjo glorioso e dele recebeste essa oração, e não és preguiçoso, por que não pedes a compreensão? Tu a receberás.” Eu repliquei: “Senhor, tendo a ti comigo, tenho necessidade de te pedir e perguntar. Com efeito, tu me mostras tudo e falas comigo. Se eu visse ou ouvisse essas coisas sem ti, pediria ao Senhor que as explicasse a mim. (Pastor de Hermas 57)

Por incrível que pareça, alguns usam essa citação como evidência de oração aos anjos. Hermas está conversando com um anjo, que lhe disse uma parábola. Sem entendê-la, Hermas pede a explicação da parábola ao anjo. Ninguém duvida que seres humanos podem conversar com anjos caso eles apareçam. A Escritura menciona diálogos deste tipo como o ocorrido entre Maria e o Anjo que anunciara o advento de Cristo.  Portanto, não há oração a anjos neste contexto, pelo contrário, o anjo diz que Hermas deveria orar a Deus pedindo compreensão e Ele o responderia. Para não deixar dúvidas, Hermas diz que apenas perguntava ao anjo por que ele estava ali presente, dialogando com ele, caso contrário, ele oraria a Deus. Ou seja, esta passagem só vem a reforçar a crença vigente neste período – oração é algo que se dirige apenas a Deus.

Atenágoras de Atenas (133 – 190)

Por causa da multidão, que não pode distinguir entre a matéria e Deus, ou ver o quão grande é o intervalo que se encontra entre eles, oram a ídolos feitos de matéria, estamos, portanto, aquele não está distinguindo e separando o incriado e o criado, o que aquilo é que não é, aquilo que é apreendido pela compreensão e aquilo que é percebido pelos sentidos, e que dão o nome apropriado para cada um deles - devemos cultuar imagens? ... Porque, se eles não diferem em nenhum aspecto  dos animais (uma vez que é evidente que a Divindade deve diferir das coisas da terra e aqueles que são derivados de matéria), que não são deuses. Como, então, eu pergunto, podemos abordá-los como suplicantes, quando sua origem se assemelha ao do gado, e eles próprios têm a forma de animais, e são feios de se ver?  (Um apelo pelos cristãos 15, 20)

Atenágoras foi um apologista cristão do Século II. Ele condena a prática de orar aos ídolos como irracional, pois essas pessoas não diferenciam o criado do incriado e prestam culto a criatura em lugar do criador. Toda a argumentação de Atenágoras parte diferenciação entre criatura e criador, e implica que a oração não deve ser feita a coisas criadas, como os pagãos faziam. Seria inconcebível utilizar esse tipo de argumentação caso os cristãos também orassem a criaturas como anjos ou aqueles que já morreram.

Irineu de Lyon (130 – 202)

Nem ela [a Igreja] realiza qualquer coisa por meio de invocações angelicais, ou por encantamentos, ou por qualquer outra arte curiosa perversa, mas, dirige suas orações ao Senhor, que fez todas as coisas, em um puro, sincero e íntegro espírito, e invocando o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, ela está acostumada a fazer obras milagrosas para o benefício do gênero humano, e não para levá-los ao erro (...) o altar, então, é no céu (para esse lugar são as nossas orações e ofertas dirigidas). (Contra as Heresias 2:32:5 e 4:18:6)

Irineu deixa claro que a prática da Igreja Romana de invocar os anjos não era comum à Igreja Primitiva. Em oposição a isso, ele afirma que a Igreja dirige suas orações a Deus por intermédio de Jesus Cristo. A natureza da argumentação deixa implícito que a Igreja orava apenas a Deus. 

Tertuliano (160 – 220)

Tertuliano viveu no final do final século II ao início do século III. É uma fonte importante não apenas por sua antiguidade, mas também por ter falado sobre a oração diversas vezes, inclusive escrevendo um tratado sobre o tema. Apesar disso, não ensina a oração aos mortos ou intercessão dos santos. Se essa era uma prática estabelecida na Igreja dos seus dias, era de se esperar a presença de clara evidência num autor que se dedicou a escrever tanto sobre a oração.

Ele explica que a oração é um sacrifício a Deus, o que excluiria orar a outros além dele:

Nós somos os verdadeiros adoradores e os verdadeiros sacerdotes, que, orando no espírito, sacrifício, em espírito, oração - a vítima adequada e aceitável a Deus, que seguramente Ele tem exigido, o qual Ele tem olhado disposto para si mesmo! Esta vítima, dedicada de todo o coração, alimentada pela fé, tendeu pela verdade, inteira na inocência, puras de castidade, coroada com amor, devemos acompanhar com o esplendor de boas obras, entre salmos e hinos, dentro do altar de Deus, para obtermos todas as coisas de Deus. (Sobre a oração 28)

Tertuliano também escreveu:

Paraíso, o lugar da bem-aventurança celestial designado para receber os espíritos dos santos, cortados do conhecimento deste mundo. (Apologia 47)

A implicação é de que os crentes falecidos não seriam capazes de receber nossas orações.

Orígenes (185 - 253)

Orígenes foi um dos maiores teólogos da Igreja Primitiva, sendo uma importante fonte para questão discutida. Ele escreveu todo um tratado sobre a oração, no entanto, não diz para invocar santos ou anjos.

Em seu tratado contra Celso, fica implícito que seu oponente critica os cristãos por não cultuarem outras criaturas que não sejam o Deus cristão. Em sua resposta, Orígenes acaba escrevendo sobre a oração, podemos então pressupor que essa também fazia parte da crítica de Celso. A resposta do teólogo cristão é que devemos orar somente a Deus.

No mesmo tratado, ele comenta que os anjos transportam nossas orações a Deus e trazem bênçãos de Deus a nós:

Nós, na verdade reconhecemos que os anjos são espíritos ministradores, e dizemos que eles são enviados para servir a favor daqueles que hão de herdar a salvação; e que eles sobem, transportando as súplicas dos homens, para o mais puro dos lugares celestiais no universo, ou até mesmo para supercelestiais regiões mais puras ainda; e que eles descem a partir destas, transmitindo a cada um (...) algo ordenado por Deus para ser conferidas por eles sobre aqueles que são os destinatários de suas bênçãos. (Contra Celso 5:4)

Porém também diz que não devemos invocar os anjos:

Invocar os anjos sem ter obtido um conhecimento de sua natureza superior que não é possuída por homens, seria contrário à razão. Mas, conforme nossa hipótese, que este conhecimento deles, que é algo maravilhoso e misterioso, pode ser obtido. Então esse conhecimento, dando-nos saber sua natureza, e os cargos para os quais são solidariamente designados, não irá nos permitir orar com confiança para qualquer outro que não seja o Deus Supremo, que é suficiente para todas as coisas, e que através de nosso Salvador o Filho de Deus, que é a Palavra, a sabedoria e a Verdade, e tudo o mais que os escritos dos profetas de Deus e os apóstolos intitulam Jesus. (Contra Celso 5:5)

Abaixo ele fala da alegação de Celso que os cristãos deveriam procurar o favor de outros além do Deus altíssimo. Orígenes responde que devemos buscar o favor de Deus, não sendo necessário buscar ajuda de outros, pois com o favor de Deus, os anjos e espíritos amigos de Deus se tornam favoráveis a nós:

Há, portanto, Aquele cujo favor nós devemos procurar, e para quem devemos orar para que Ele tenha misericórdia de nós - o Altíssimo Deus, cujo favor é adquirido por piedade e prática de todas as virtudes. E se ele (Celso) nos diz que deveríamos buscar o favor de outros além do Deus Altíssimo, que ele próprio considere que, como o movimento da sombra segue o corpo que a lança, por isso da mesma maneira, conclui-se que, quando temos a favor de Deus, também temos a boa vontade de todos os anjos e espíritos que são amigos de Deus. (Contra Celso 8:64)

Todo o contexto desta citação seria muito propício para afirmar a invocação dos anjos ou santos, porém, apesar de reconhecer que estes seres se tornam favoráveis aos que oram, ele diz que devemos orar a Deus e não a eles. Orígenes também diz que devemos direcionar nossas orações somente a Deus:

Porque todo aquele que de sua alma serve ao Ser Divino de nenhuma outra maneira, que não leve sempre em conta o Criador de tudo, para direcionar suas orações a Ele somente, e fazer todas as coisas como se aos olhos de Deus, que nos vê completamente, até mesmo os nossos pensamentos. (Contra Celso 7:51)

Em seu tratado sobre a oração, Orígenes é enfático:

Mas se aceitarmos a oração em seu sentido pleno, não podemos nunca orar a qualquer ser criado, nem mesmo ao próprio Cristo, mas apenas ao Deus e Pai de todos a quem o nosso Salvador tanto orou, como já temos demonstrado, e ensina-nos a orar. (Sobre a Oração 10)

Ele afirma que não devemos orar sequer a Jesus, imagine então orar a anjos ou falecidos. A oração deve ser direcionada somente à Deus Pai tendo Deus Filho como sumo sacerdote:

Esta oração ao Filho e não ao Pai é fora de propósito e só é sugerido em desafio à verdade manifesta, todos devem admitir (...) Resta, portanto, orar a Deus somente, o Pai de Todos, no entanto, não sem o sumo sacerdote que foi nomeado pelo Pai com prestação de juramento, de acordo com as palavras que Ele jurou e não se arrependerá: "Você será sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque " (...) Então não estamos a oferecer qualquer oração ao Pai à parte Dele (Jesus). (Sobre a Oração 10)

Também diz que apenas Deus pode ouvir nossas orações e respondê-las:

E quem ascender também das coisas belas do mundo para o Criador de tudo, e confiar-se a Ele, o único que é capaz de cumprir todas as coisas existentes, e de olhar os pensamentos de todos, e de ouvir as orações de todos que enviam as suas orações a Ele, e fazendo todas as coisas como na presença daquele que contempla tudo, e ter o cuidado, como na presença do Ouvinte de todas as coisas, para não dizer nada que não pode com propriedade ser relatado a Deus. (Contra Celso 4:26)

Diante da farta evidência de que Orígenes entendia a oração com algo que deveria ser dirigido apenas a Deus, apologistas católicos apontam algumas citações como prova para a doutrina católica de invocação dos santos:

Mas estes oram junto com aqueles que genuinamente oram, não só o sumo sacerdote, mas também os anjos que "alegram-se no céu por um pecador que se arrepende mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento", e também as almas dos santos já descançam. (Sobre a Oração 6)

Muitos sites católicos apresentam esta citação com "o pontíficie (o papa)" ao invés de "sumo sacerdote (Cristo)". Trata-se de uma adulteração na obra de Orígenes, pois ele usa a palavra sumo sacerdote (Cristo) e não há referência alguma a um suposto papa.  De forma anacrônica e descontextualizada, os romanistas atribuem conceitos tardios aos pais de épocas mais primitivas. Nesta citação, Orígenes apenas afirma que os anjos e os que já estão no céu oram pelos que estão aqui na terra. Porém, em nenhum momento, ele diz que devemos orar a eles pedindo sua ajuda, ou que eles ouvem nossas orações – algo que como já exposto, só Deus poderia fazer. São categorias diferentes, e como vimos, a Igreja Romana ensina que devemos pedir aos santos, prática que Orígenes condenaria.

A crença de que os santos no céu oram pela Igreja na terra é especulativa. As Escrituras não dão base a isso. Importa observar que Orígenes era um teólogo bem especulativo, dedicou muito tempo a criar teorias sobre a vida pós-morte e em nenhum momento diz estar reproduzindo uma tradição apostólica ou algo do tipo. Portanto, tomado no seu todo, o ensino de Orígenes é substancialmente contrário ao da Igreja Romana.

Agora pedir intercessão e agradecimento, não está fora de propósito oferecer aos homens os dois últimos, intercessão e agradecimento, não só para homens santos, mas também para os outros. Mas solicitar a santos somente, deveríamos se alguém como Paulo ou Pedro aparecer, para nos beneficiar (...). (Sobre a Oração 10)

Aqui Orígenes está se referindo às relações na Terra, se alguém como Paulo ou Pedro "aparecer". Ele não limita seus comentários aos santos, mas está se dirigindo a todos os homens. Não seria razoável tirar a conclusão de que Orígenes está defendendo tentativas de entrar em contato com pessoas falecidas, como Paulo e Pedro após a sua morte, pois fala de uma hipótese improvável – a aparição terrena desses apóstolos. Não há aqui um contexto em que os apóstolos no céu são destinatários das orações da Igreja, mas uma situação peculiar em que voltassem a terra e se comunicassem com os crentes.

O estudioso patrístico Ortodoxo John McGuckin escreveu:

Orígenes é claro neste trabalho [Sobre a Oração] que a oração deve ser dirigida a Deus Pai somente. (The Handbook Westminster Para Orígenes [Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 2004]., P 38)

Outro estudioso que contribuiu para a mesma obra, Julia Konstantinovsky, escreveu:

Ele também está muito preocupado com a pergunta: "A quem se deve orar? 'Nos Euches Peri [Sobre a Oração] Orígenes afirma categoricamente que "nunca devemos orar a qualquer coisa gerada, nem mesmo a Cristo" (Peuch 15.1) e que é um 'pecado de ignorância’ orar a Cristo (hamartian idiotiken) (Peuch . 16.1) Em suas obras posteriores, no entanto, Orígenes parece ter mudado essa visão e, certamente, permite que a oração deve ser dirigida diretamente a Cristo (CCels 8,26;. Homex 13,3). (Ibid., pp. 176)

Julia Konstantinovsky também diz:

Orígenes "muitas vezes" preconiza explicitamente a oração a Cristo. Ele não defendia oração aos mortos. Seu subsídio declarado de oração a Cristo não pode ser usado para justificar um subsídio não declarado de oração para os mortos. Mesmo depois de Orígenes ter mudado sua visão de oração a Cristo, ele continuou a condenar oração a anjos e outros seres criados. (Ibid., pp. 176)

Clemente de Alexandria (150 – 210)

Clemente define a oração como a comunicação com Deus. Ele descreve a oração como um ato de adoração e sacrifício a Deus, o que implica na exclusão dos mortos ou anjos como destinatários da oração:

Mas se, por natureza, não necessita de nada, Ele [Deus] tem prazer em ser adorado, não é sem razão que adoramos a Deus em oração, e assim o melhor e mais santo sacrifício com justiça nós oferecemos, apresentando-a [a oração] como uma oferta [...] o sacrifício da Igreja é a palavra de desejo como incenso de almas santas, o sacrifício e toda a mente sendo ao mesmo tempo revelada a Deus [...] A oração é, então, falar com mais ousadia, conversar com Deus. Embora sussurrando, consequentemente, e não abrindo os lábios, falamos em silêncio, ainda assim gritamos interiormente. Porque Deus ouve continuamente a nossa conversa interior. (The Stromata, 7:6-7)

Na citação abaixo, assim como Orígenes, Clemente parece acreditar que os que já estão no céu oram pela Igreja na terra. Os Pais da Igreja poderiam acreditar nisso, sem, no entanto, acreditarem que devemos orar a eles. Por isso, para o romanista provar sua doutrina na patrística, não é suficiente mostrar que algum pai cria que os que já estão no céu oram na presença de Deus, é preciso principalmente provar que eles criam que a Igreja deve orar aos que já partiram.

Deste modo está ele [o verdadeiro cristão] sempre puro para oração. Ele também reza na sociedade dos anjos, como sendo já da classe dos anjos, e ele nunca está fora da sagrada proteção deles; e pensou que rezava sozinho, [mas] ele tem o coro dos santos permanecendo com ele [em oração]. (Miscellanies 7:12)

Hipólito de Roma (170 - 236)

O teólogo católico romano Ludwig Ott escreveu:

A invocação dos santos é atestada primeiramente por Santo Hipólito de Roma, que se volta para os três companheiros de Daniel com a oração: 'Pense em mim, peço-vos, para que eu possa conseguir com você o mesmo destino do martírio. ' (Em Dan. II, 30). (Fundamentals of Catholic Dogma [Rockford, Illinois: Tan Livros e Publishers, Inc., 1974], 319)

Nota-se que a fonte mais antiga segundo Ott é do século III. Até mesmo ele reconhece que não há fontes do século II atestando essa doutrina, mesmo a oração tendo sido um tema recorrente. Mas será que Hipólito acreditava na oração aos santos? Veremos.

É importante diferenciar se Hipólito estava orando aos companheiros de Daniel ou utilizando-se de um dispositivo retórico. Alguém diria que o Salmo 114:6 ensina a oração às montanhas? Ott está correto ao dizer que Hipólito escreve como se estivesse falando com os companheiros de Daniel. Mas consideremos quem mais Hipólito trata de forma semelhante (todas as referências que se seguem são da tradução de Tom Schmidt dos comentários de Hipólito sobre o livro de Daniel):

Para eles que acreditam ter levado toda autoridade e glória a Deus, porque ele é capaz de nos livrar, mas se não temos, preferimos morrer do que de bom grado fazer o que é prescrito por você, Nabucodonosor! (2.24.8 na p. 66)

Diga-me, Nabucodonosor, por que causa você ordenou amarrarem estes rapazes e os lançarem no fogo? (2.27.2 na p. 68)

Percebam que Hipólito aborda Nabucodonosor como se estive vivo, participando de um processo presente. Como ele não está orando a Nabucodosor compreende-se que está se utilizando de um dispositivo retórico. Por que então deveríamos pensar que quando utilizou a mesma abordagem com os amigos de Daniel, estaria orando?

Em outros lugares, Hipólito, de forma concordante, refere-se aos crentes que falam a "toda a criação" (2.29.3-9 nas pp. 71-72.). Devemos concluir, então, que ele acreditava em oração as árvores, planetas, etc?

Outro problema com o uso que Ott faz de Hipólito é que ele ignora o contexto imediato da passagem que cita. Aqui está a passagem como Ott cita, seguido pela passagem completa na tradução de Schmidt:

Pense em mim, peço-vos, para que eu possa conseguir com você o mesmo destino do martírio. Digam-me, você três garotos, lembrem-me, peço-lhes, que eu também possa obter o mesmo tipo de martírio que vocês, quem era a quarta pessoa com quem vocês estavam andando no meio da fornalha e que cantava hinos a Deus com vocês? Descrevam-nos a sua forma e beleza para que também nós, vendo-o na carne, possamos reconhecê-lo. Quem era ele que desta maneira ordenada descrevia toda a criação através de sua boca, por que vocês omitem nada do que é e tem sido? (2.30.1-2 na p. 73)

Observe que Ott deixa de fora porções de comentários de Hipólito, no qual ele pede aos companheiros de Daniel para responder a perguntas e fornecer-lhe (Hipólito) alguma informação. Quando os católicos rezam aos mortos, eles esperam que os mortos lhes respondam perguntas como essas que Hipólito está fazendo? Obviamente não.

Em outro trabalho, Hipólito define a oração como "súplica oferecida a Deus" (sobre os Salmos 1:8). É bastante improvável que ele acreditasse em oração aos mortos.

Cipriano de Cartago (? - 258)

Cipriano escreveu um tratado sobre a oração de Jesus (O Pai Nosso) registrada nos evangelhos. Mesmo que ele se concentre nesta oração, ele aborda a oração em geral, ensinando vários princípios a serem seguidos. A oração é descrita como algo feito aos Olhos de Deus, dirigida a Deus e não a pessoas:

Vamos considerar que estamos em pé diante de Deus. Devemos agradar aos olhos divinos, tanto com o uso do corpo e como o grau da voz. Porque, como é característico de um homem sem pudor ser barulhento com seus gritos, por isso, por outro lado, cabe ao homem modesto orar com petições moderadas. (Sobre a Oração do Senhor 4)

Mais a frente, Cipriano explica que a Oração de Jesus é um modelo para todas as nossas orações. A implicação é que se Jesus orou a Deus somente, assim devem ser as orações dos cristãos:

Que maravilha é, amados irmãos, se essa é a oração que Deus ensinou, vendo que Ele condensando em seu ensinamento todas as nossas orações numa frase salvadora? Isso já tinha sido antes predito por Isaías, o profeta, quando, inspirado pelo Espírito Santo, falou da majestade e bondade de Deus, consumando e encurtando a sua palavra, ele diz: "em justiça, porque uma palavra encurtada o Senhor fará em toda a terra”. (Sobre Oração do Senhor 28)

Cipriano também diz que no momento da oração, não devemos pensar em mais nada, somente em Deus:

Além disso, quando estamos orando, amados irmãos, devemos ser vigilantes e sérios com todo o nosso coração, com a intenção de nossas orações. Que todos os pensamentos carnais e mundanos passem longe, nem deixe a alma naquele momento pensar em nada, mas no objeto único de sua oração. Por esta razão, também o sacerdote, a título de prefácio antes de sua oração, prepara as mentes dos irmãos, dizendo: "Levantai os vossos corações," que assim sobre a resposta do povo, 'Nós o levantamos até o Senhor ', ele pode ser lembrado que ele mesmo não deveria pensar em nada, mas no Senhor. Vemos o coração ser fechado contra o adversário, e estar aberto a Deus. (Sobre a Oração do Senhor, 31)

Ao longo do tratado, Cipriano instrui o leitor como orar a Deus. Ele diz repetidamente que está abordando todas as nossas orações nesse tratado, mas não diz nada sobre orar a Maria, José ou qualquer outro que não seja Deus. Em vez disso, descreve a oração como um ato de adoração e reverência, algo dirigido a Deus somente. Um anjo pode levar nossas orações a Deus, como vemos no livro do Apocalipse, por exemplo, mas a oração deve ser dirigida somente a Deus. Essa é a visão protestante da oração, é o ponto de vista bíblico e é o ponto de vista dos pais da Igreja dos primeiros séculos.

Como não poderia ser diferente, os apologistas católicos usam a citação abaixo como prova de sua doutrina:

Lembremo-nos uns aos outros em concórdia e unanimidade. Que em ambos os lados [da morte] sempre oremos uns pelos outros. Vamos aliviar o fardo e as aflições por amor recíproco, que se um de nós, com a rapidez da condescendência divina, for primeiro, o nosso amor possa continuar na presença do Senhor, e as nossas orações por nossos irmãos e irmãs não cessam com a presença da misericórdia do Pai. (Epístola 56:5)

Nesta ocasião Cipriano está vivo, portanto, não está falando, muito menos orando a falecidos. Ele ensina que mesmo depois de partirem, quando estiverem junto de Deus, os crentes devem continuar orando por seus irmãos. Porém, não endossa a oração a outros que não seja Deus.

Lactâncio (240 – 320)

É evidente que aqueles que fazem orações aos mortos, ou veneram a terra, ou oferecem suas almas aos espíritos imundos, não agem como se tornando homens, eles vão sofrer punição por sua impiedade e culpa, que, rebelando-se contra Deus, o Pai da raça humana, se comprometeram com ritos inexpiáveis, e violaram toda a lei sagrada. (As Institutas Divinas 2:18)

A citação é clara, Lactâncio está condenando a prática pagã de orar aos que já morreram e pressupõe que essa não é uma prática cristã. Alguns poderiam objetar: "mas ele estava condenando esta prática apenas no contexto do paganismo". Respondemos que Lactâncio não faz essa restrição, uma vez que não menciona que essa prática era tolerada quando feita aos cristãos falecidos. E, principalmente, uma prática que viola a Lei de Deus, como mencionado por Lactâncio, não se torna tolerável quando praticada num contexto cristão. A homossexualidade, por exemplo, é condenada na Escritura. Se ela viesse a ser praticada por cristãos, não deixaria de ser condenável, pelo contrário, tornar-se-ia mais condenável.

Metódio de Olimpo (250 – 311)

Há uma obra chamada "Oração sobre Simeão e Ana" usada pelos romanistas que supostamente seria a prova da oração aos santos num Pai Ante-Niceno. Trata-se de uma obra que exalta Maria e contém a citação abaixo:
Por isso, oramos a ti, o mais excelente entre as mulheres, que se gloria na confiança dos suas honras maternais, que tu incessantemente nos mantem na lembrança. Ó Santa Mãe de Deus, lembre-se de nós, eu digo, que faça a nossa gloria em você, e que em agosto, hinos celebraremos a memória, que sempre vai viver, e nunca desaparecer. (A oração sobre Simeão e Ana 14).

O problema é que essa obra é espúria, não foi escrita por Metódio. Quem a escreveu se passou por ele muito tempo depois de seu falecimento. Embora, aparentemente, a primeira impressão desse trabalho na lista "Pais Ante-Nicenos" [de Philip Schaffer] não incluía o material entre parênteses. A seguinte nota de rodapé foi incluída, pelo menos desde a década de 1890, como uma nota de rodapé ao título da obra:

A oração igualmente trata dos Santos Theotokos. [Publicado por Pantinus, 1598, e obviamente espúrios. Dupin afirma que "não é mencionada pelos antigos, nem mesmo por Photius." O estilo se assemelha ao de Metódio em muitos lugares].

Abaixo seguem as opiniões de alguns eruditos a respeito dessa obra:

A homilia sob o nome de Metódio do Olimpo data provavelmente a partir do quinto ou sexto século. Ela contém longos discursos de Simeão e Maria, e coloca ênfase no louvor à Virgem. (A Preservative Against Popery, in Several Select Discourses Upon the Principal Heads of Controversy Between Protestants and Papists: Being Written and Published by the Most Eminent Divines of the Church of England, Chiefly in the Reign of King James II. Collected by the Right Rev. Edmund Gibson (Volume XIII), (1848), p.56)

Temos dois testemunhos oferecidos apenas a nós para a prática de 300 anos: uma passagem de Orígenes já rejeitada como espúria; e outra para fora do intervalo de tempo de Metódio, se não certamente espúrias, mas justamente suspeitas por seus próprios críticos, não sendo nem citado por nenhum dos antigos, nem mencionada por Photius; e de um estilo mais exuberante do que outros escritos de Metódio; e que fala tão claramente do mistério da Trindade, da Encarnação e da divindade do Verbo, a quem ele chama, numa frase não bem conhecida em seu tempo - consubstancial ao Pai; expressão que foi conhecida apenas 100 anos após sua morte; da Virgindade de Maria depois de sua concepção; e do pecado original; que o seu falecido crítico, Monsieur du Pin, tinha certamente razão para colocá-lo entre suas obras espúrias, no entanto, é agora citada com tanta segurança por você. (Dr. Wiseman's Popish Literary Blunders Exposed, By Charles Hastings Collette, p. 25)

E agora nos voltamos para suas "Observações sobre a Carta do Sr. Palmer." Aqui você cita vários escritos espúrios para provar que a Virgem Maria era objeto de invocação para os primeiros cristãos. Você cita Metódio em seu favor, o muito erudito bispo de Olimpo, ou Patara, na Lícia, e depois de Tiro, na Palestina, que sofreu o martírio AD 303. Você cita (30 p.) De uma homilia em que não há a menor dúvida quanto ao fato de ser espúria. Pois, em primeiro lugar, o editor beneditino, em uma nota aos trabalhos de Jerônimo, diz, uma vez por todas, que o "Simpósio" é a única obra inteira de Metódio existente; e Baronius diz expressamente: "Eu não hesito em dizer que nenhum escritor grego ou latino deixou um sermão proferido na festa da Purificação (chamado às vezes" Hypapantes, "às vezes" Simeão e Ana ') antes do décimo quinto ano de Justiniano ( AD 542), e que o Papa Gelásio estruturou o caminho para a instituição desse banquete, pondo fim às festividades do Lupercalia, que também foram observados em fevereiro."[fn1] E o monge beneditino, Lumper, em sua "História Teológica Crítica, "& c., sem dúvida, mostra que a homilia que você cita é de uma data muito mais tardia do que você dá a ela, atribuindo a Metódio. (A dictionary of Christian biography, literature, sects and doctrines, By William Smith, Henry Wace (1882), volume 3, p. 911 (author of entry is Rev. George Salmon, D.D., D.C.L., LL. D., F.R.S., Chancellor of St Patrick's Cathedral and Regius Professor of Divinity Trinity College Dublin))

Fica claro que está obra é considerada por muitos como espúria ou no mínimo bastante suspeita. Portanto, não pode ser considerada uma evidência confiável a favor da oração à Maria no período pré-niceno.

Conclusões

Depois de uma análise minuciosa de escritos que cobrem mais de 2 séculos da Igreja Cristã, podemos seguramente tirar as seguintes conclusões:
  • A doutrina romanista de orar aos santos e aos anjos não fazia parte do ensino cristão desse período;
  • Muitos pais da Igreja evidenciaram que essa prática era pagã e não compartilhada pela Igreja;
  • Muitos Pais também falaram em termos que contrariavam a ideia de que as almas no céu podem ouvir nossas petições ou possam ter conhecimento do que se passa na terra;
  • Alguns Pais da Igreja do terceiro século como Cipriano e Orígenes criam que os que estão na presença de Deus oram pela Igreja na terra, mas, ainda assim, defendiam que a oração deveria ser destinada somente a Deus;
  • Além da ausência de evidência bíblica, também há ausência de evidência histórica para a prática romanista.
Diante do exposto, resta provado que a evidência história é sólida e consistentemente contrária a prática de orar pedindo intercessão dos santos ou anjos. 

3 comentários:

  1. Interessante. No caso, como começou e se desenvolveu a doutrina da intercessão ? Em que o concílio de Nicéia contribuiu para isso ?

    [ ]s

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    Respostas
    1. Um primeiro passo já havia sido dado - a crença de que os santos no céu intercedem pela igreja na terra. Isso obviamente não implicaria que os santos ouvem as orações, mas foi o primeiro passo.

      A prática de orar aos santos não fazia parte do ensino oficial da Igreja, mas com certeza fazia parte da piedade popular. Tal prática começou a ganhar popularidade no séc. IV e por consequência o apoio de alguns pais da Igreja. Neste século, o interesse pelos "santos" (mártires cristãos) aumentou rapidamente (some-se a isso o grande número de pagãos convertidos ao cristianismo). Uma prática cada vez mais popular + influências pagãs + interesse crescente sobre a vida dos mártires + relatos lendários sobre curas e aparições = doutrina da intercessão dos santos que viria a ser aceita pela Igreja nos séculos posteriores.

      O Concílio de Niceia não teve nenhum influência sobre esta questão. Não fazia parte das questões debatidas pelo Concílio.

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