Sola Scriptura e Tradição então ente os temas mais debatidos entre católicos e protestantes. Quando afirmamos que muitos dos pais da igreja sustentavam o princípio da Sola Scriptura, os romanistas costumam apontar citações em que eles escrevera sobre autoridade da Igreja e da Tradição, logo eles não poderiam adotar a Sola Scriptura. Neste artigo vou discorrer sobre a relação ente e Escritura e Tradição nos pais da Igreja. Utilizarei Irineu de Lyon como exemplo pela sua importância teológica e porque os argumentos que valem para esse teólogo também são válidos para os outros. Irineu é um bom exemplo de como a Igreja Antiga entendia a questão. Vou utilizar como pano de fundo os comentários de um apologista católico. Tais argumentos são muito populares na apologética católica, por isso os utilizo para fins didáticos. Por último, pretendo demonstrar como estes argumentos já foram abandonados há muito tempo por boa parte dos teólogos de Roma. Os comentários do católico estão em vermelho com meus grifo:
O historiador da Igreja, protestante, John Norman Davidson Kelly, na
sua obra Patrística: Origem e desenvolvimento das doutrinas centrai da fé
cristã, dá uma definição para o termo Tradição, não muito peculiar nos círculos
protestantes, onde geralmente é usado em referência à tudo aquilo que pretende
alcançar força de verdade estando fora da Escritura e sendo colocado, por
vezes, em relação antitética às Escrituras:
"No sentido atual da palavra, "tradição" denota o
corpo de doutrinas não-escritas transmitidas pela igreja ou a transmissão de
tais doutrinas e, desse modo, costuma estar em contraste com as Escrituras. Na
linguagem dos pais, como aliás também ocorre no Novo Testamento, obviamente o
termo continha essa ideia de transmissão e, por fim, o sentido moderno
tornou-se comum. Mas seu significado básico (cf. paradidonai, tradere), a
saber, o pronunciamento feito com autoridade, estava, em sua origem, em
primeiro plano e sempre permaneceu em destaque. Por isso, para os pais,
"tradição" significa a doutrina que o Senhor ou Seus apóstolos
entregaram à igreja, não importando se foi transmitida oralmente ou em
documentos [...] O significado antigo do termo é bem ilustrado na referência de
Atanásio "à tradição, ao ensino, e à fé verdadeiras e originais da Igreja
Católica, que o Senhor outorgou, os apóstolos proclamaram e os pais
preservaram"." (pag. 22. São Paulo. Edições Vida Nova. 2015).
É
comum que romanistas usem J.N.D Kelly de forma descontextualizada. Será que
este estudioso está afirmando que os pais da igreja entendiam a tradição da mesma
forma que o interlocutor católico entende? Como veremos adiante,
definitivamente não. Mais adiante em seu
texto, o interlocutor católico nos dá sua definição de tradição:
Para debatermos sobre a relação entre a Sagrada Tradição e a Sagrada
Escritura, precisamos compreender ambos os conceitos. Em continuidade com os
primeiros séculos de cristianismo, todas
as igrejas apostólicas (católicos romanos, ortodoxos, pré-calcedonianos)
entendem por Tradição — com T maiúsculo — TODO o corpo de doutrina que nos foi
legado pelos apóstolos e transmitido pela Igreja. Como visto no
anteriormente citado, Paradidonai, Tradere, Tradição, era algo que a Igreja
antiga recebia como que imbuído de autoridade e essa autoridade advinha da sua
origem apostólica. Aqui é importante fazer distinção entre a Tradição
supracitada e tradições: igrejas particulares, regionais, podem ter costumes
que lhes são peculiares, que não ofendem a genuína Tradição. Diante deste
quadro, de forma alguma, Tradição e Escritura podem ser tomadas como realidades
opostas. A Sagrada Escritura é Sagrada
Tradição, está incluída nela, como nos diz o santo apóstolo: "Então,
irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por
palavra, seja por epístola nossa" (Almeida RC), "Portanto, irmãos,
sede firmes e conservai as tradições que vos foram ensinadas por nós, oralmente
ou por carta" (Bíblia de Jerusalém) (2 Tessalonicenses 2.15).
Preliminarmente, o texto bíblico citado não
apoia tal conclusão. É óbvio que os apóstolos pregavam oralmente e por escrito.
A questão é como nós podemos saber hoje o que os apóstolos pregaram no séc. I?
A não ser que ele nos diga o conteúdo desta pregação oral, o argumento é
inócuo. O católico precisaria definir que esta pregação oral tinha o conteúdo
doutrinário X, que por sua vez não poderia ser encontrado em nenhum dos outros
textos apostólicos. Nada no texto sugere isso. O conteúdo oral da pregação de
Paulo poderia ser o mesmo da carta (é o que o contexto sugere) ou então ainda
que não fosse, este conteúdo poderia ser acessado nas outras cartas que o
apóstolo escreveu (Paulo escreveu 2 Tessalonicenses 51-52 D.C quando a maior
parte de suas cartas e outros escritos apostólicos ainda não havia sido
produzido). Segundo o autor católico, a Tradição é toda a doutrina de origem
apostólica que foi transmitida pela Igreja. Dessa forma, a doutrina apostólica
que está na Escritura seria apenas parte deste corpo maior de doutrinas. A Tradição
seria então um suplemento. Isso fica mais claro em outro trecho:
E aqui é importante discernir se a igreja antiga, no momento em que
reconhecia as obras apostólicas como escriturísticas, tinha a intenção de fazer
delas único fundamento da doutrina. Como supracitado, a igreja antiga possuía doutrinas e práticas que não poderiam se
fundamentar apenas nas Escrituras e atribuía à elas origem apostólica, o
que também pode ser demonstrado como acima fora dito, logo, não pretendia
apoiar-se só na Sagrada Escritura, mas também na Sagrada Tradição.
Segundo
ele, a Igreja Antiga sustentava doutrinas que não poderiam ser fundamentadas na
Escritura. Estas doutrinas precisariam do “plus” da Tradição. Uma das
dificuldades de debater este tema com romanistas é que dificilmente eles fazem uso
da correta definição de Sola Scritptura. A definição concisa é que a Escritura é a única regra infalível de Fé. A fé
reformada nunca negou que a Igreja tenha autoridade magisterial, nem negou o
valor ou autoridade da tradição. O que afirmamos é que a Escritura é a única
autoridade imune ao erro, o que a torna suprema.
A
Igreja pode errar. Embora tenha autoridade para dirimir controvérsias
doutrinárias, seu parecer nunca é infalível, podendo ser corrigido pela
autoridade superior – as Escrituras. Subjacente a isso, os protestantes afirmam
que a Escritura é suficiente materialmente e formalmente. Materialmente – todas
as doutrinas que o cristão precisa crer e seguir estão de forma explícita ou
implícita contidas na Escritura. Formalmente – tais doutrinas podem ser
acessadas pelo cristão sem a necessidade de um magistério infalível. Desta
forma, o fato de os pais da igreja apelarem a tradição, não é por si só prova
de que eles não eram Sola Scripturistas. Eu sigo a tradição reformada e
subscrevo documentos como a Confissão de Fé de Westminster. Eu entendo que esta
tradição está fundamentada na Escritura (a autoridade suprema) e que embora tal
documento pudesse ter erros doutrinários, eles não os cometeram (esta é a
diferença entre inerrância e infalibilidade). Uma autoridade falível como a
igreja pode fazer afirmações sem erros (inerrantes), mas isto não quer dizer
que todas as suas afirmações serão necessariamente sem erros.
Católicos
tem dificuldade de lidar com a ideia de que autoridade não implica em
infalibilidade. Todavia, é óbvio que os católicos possuem autoridades falíveis.
Por exemplo, o bispo não é infalível, mas tem autoridade sobre seu rebanho. Se
um católico acredita que o bispo está indo contra aquilo que ele entender ser a
“tradição da Igreja”, ele pode resisti-lo. A própria Escritura estabelece instâncias
de autoridade que são falíveis. Devemos obedecer nossos pais, mas se eles nos
pedissem por exemplo para abandonar a fé cristã, nós deveríamos resisti-los. Da
mesma forma, Paulo estabelece em Romanos 8 a autoridade do Estado. No entanto,
o próprio Apóstolo resistiu a esse quando foi perseguido por sua fé. Se os
romanistas desejam de fato refutar a Sola Scriptura, precisam demonstrar que
existe outra autoridade infalível além da Escritura.
Devo dizer também que por Sagrada Tradição não entendo os escritos
dos santos padres. Estes, não são
infalíveis como as Escrituras. Mas a tradição neles contida pode ser
analisada e podemos concluir o que, neles, tem procedência apostólica e é,
portanto, tão autoritativo quanto as escrituras, segundo os critérios acima
citados.
Nesse ponto, o próprio apologista demonstra
porque a tradição não pode ser uma regra infalível de fé. Os escritores
bíblicos eram inspirados, logo o que eles escreviam necessariamente era infalível.
Já os pais da igreja não são inspirados. Eles estão sujeitos aos erros que
qualquer homem está. Embora ele diga que os escritos dos pais não são a
tradição em si, eles são o único registro para o qual apologista pode apelar de
forma a demonstrar a existência da tradição. Suponhamos que o Pai da Igreja A
ouviu um apóstolo pregar. Ele por sua vez repassou o conteúdo desta pregação ao
Pai da Igreja B que repassou ao C e assim por diante. Temos aí um perfeito
exemplo de tradição oral sendo transmitida adiante. A questão é que A pode ter
interpretado erradamente as palavras do Apóstolo ou simplesmente não ter
memorizado ou não ter ouvido corretamente. Da mesma forma, B está sujeito aos
mesmos erros de A, assim como C. Todos estes personagens estão sujeitos ás
fraquezas que qualquer ser humano possui, portanto, a tradição subjacente não
pode ser considerada uma regra infalível uma vez que todo o processo depende de
homens falíveis. É isto que torna a Escritura uma autoridade única e acima da
tradição. O registro escrito da pregação dos apóstolos foi inspirado, logo não
estava sujeito a todas estas fraquezas inerentes aos homens. Neste sentido,
Papias serve como bom exemplo da falibilidade da tradição. Eusébio escreveu sobre
ele:
O próprio Papias acrescenta outras coisas que
teriam chegado a ele por meio da tradição oral, além
de certas parábolas estranhas do Salvador, bem como o ensinamento dele e outras
coisas que parecem ainda mais fabulosas. Entre essas coisas, diz que haverá
mil anos após a ressurreição dos mortos e que então o reino de Cristo se
estabelecerá fisicamente nesta nossa terra. Suponho que tenha essa opinião por ter interpretado mal as explicações dos
apóstolos e que ele não compreendeu as coisas que eles diziam de maneira
figurada e simbólica. O fato é que, segundo o que se pode deduzir de seus
próprios discursos, Papias parece homem de inteligência curta. Todavia, ele é culpado pelo fato de muitos
escritores eclesiásticos que lhe sucederam adotarem a opinião dele, pois
confiavam na antiguidade desse homem. Foi
o que aconteceu com Irineu e outros que pensaram as mesmas coisas que ele.
(Eusébio de Cesaréia, HE, III, 39, 11-14a)
Papias escreveu cinco obras intituladas
“Explicações das Sentenças do Senhor”. Delas, sobreviveram apenas fragmentos.
Irineu cria que Papias foi discípulo do apóstolo João. Estamos falando de um
homem numa ótima posição para receber uma genuína tradição apostólica. Ele
conheceu pessoas que andaram com os apóstolos e nos conta que era ávido em
entrevista-los. Em virtude de sua antiguidade, disseminou uma doutrina que a
Igreja Romana rejeita – o milenarismo, e fez com que outros Pais seguissem o
mesmo ensino. Eusébio rejeitou essa doutrina alegando que Papias interpretou
errado as explicações dos apóstolos e passou adiante uma falsa tradição. O que
aconteceu com Papias é passível de acontecer com qualquer testemunha
patrística. Sobre este e outros problemas do conceito romanista de tradição,
veja aqui. Sobre o caso de Papias, veja aqui. Percebam que apenas um homem deu
origem a um erro doutrinário seguido por vários outros autores que confiavam na
sua antiguidade. Se os Escritos dos pais não necessariamente contêm a tradição
apostólica, como poderíamos a partir deles definir o que é ou não tradição
apostólica? O católico responde:
Devemos submeter a Tradição a
um exame crítico, que vise estabelecer ou
não, a sua autenticidade, ou seja, sua apostolicidade. Devemos testa-la afim de saber se foi possível e se de fato ocorreu que
a Igreja ao longo dos séculos a tenha preservado desde os apóstolos. E esse
exame é devido a toda Tradição, quer Escrita (o Novo Testamento), quer Oral. Aqui devemos inserir um segundo elemento:
aqueles que reconhecem qual a legitima tradição, mais que isso, aqueles que a
preservaram: a igreja.
Ou seja, precisamos exercer nosso exame
crítico para filtrar nos escritos dos pais o que era a verdadeira tradição
apostólica. O problema é que ele como católico romano não pode fazer isso. Ele
está se utilizando de um paradigma protestante rejeitado pela Igreja romana – o
livre exame. O católico romano não pode por seu próprio juízo determinar qual a
verdadeira tradição, ele precisa necessariamente seguir a opinião da Igreja. É
simplesmente inútil para um romanista fazer isso, pois se a sua consciência lhe
disser que determinada doutrina sustentada por Roma não faz parte da fé
apostólica, o que ele como bom católico deve fazer? Seguir a consciência ou a
Igreja? Necessariamente a Igreja. Inácio de Loyola cristalizou este fato na
seguinte frase:
Para em
tudo acertar, devemos estar sempre
dispostos a que o branco, que eu vejo, acreditar que é negro, se a Igreja
hierárquica assim o determina. (Fonte)
O católico deseja operar sob um paradigma
protestante. O texto é um pouco confuso, mas me parece que ele diz que
precisamos reconhecer de antemão que cabe à Igreja determinar qual a legítima
tradição. Qual a utilidade então de julgar criticamente os escritos dos Pais da
Igreja, se no fim das contas seu juízo necessariamente precisa seguir o juízo
de uma igreja em particular? Antes de tudo, seria necessário determinar que
cabe a um magistério determinar infalivelmente qual a verdadeira tradição e
também qual igreja exerce este magistério. Percebam que ele repetidamente se
refere à Igreja, mas na verdade está se referindo unicamente à Igreja Romana.
Está implícito a falsa pressuposição de que Roma é o superior hierárquico que
define o que é ou não tradição. Em outro trecho, ele afirmou:
(...) todas as igrejas apostólicas (católicos romanos, ortodoxos,
pré-calcedonianos) entendem por Tradição — com T maiúsculo — TODO o corpo de
doutrina que nos foi legado pelos apóstolos e transmitido pela Igreja.
O
problema é que todas estas igrejas têm opiniões radicalmente diferentes sobre
qual é o conteúdo da tradição e sua relação com a Escritura. Ortodoxos e os
demais não acreditam em dogmas como: infalibilidade papal, purgatório,
indulgências, imaculada conceição e etc. Essas igrejas não aceitam aquela que é
a doutrina sobre a qual a igreja romana está alicerçada – o papado. Cada uma
alega ter guardado incorruptamente a verdadeira tradição. O recurso a sucessão
apostólica não resolve o problema. Todas elas alegam ter uma suposta sucessão
apostólica, inclusive, a igreja romana reconhece a sucessão dos ortodoxos.
Todavia, tais igrejas estão ensinando doutrinas radicalmente diferentes. Isso
apenas demonstra que uma suposta sucessão apostólica é insuficiente para manter
a igreja na verdadeira fé apostólica.
Um
problema grave para os católicos romanos é que sua igreja nunca definiu os
limites da tradição. Afinal quais são todas estas doutrinas legadas pela
tradição oral que não poderiam ser fundamentadas na Escritura? Onde está o
cânon da tradição? Ele simplesmente não existe. Mesmo depois de séculos, não há
qualquer declaração da igreja romana definindo exatamente tudo aquilo que é ou
não é tradição apostólica – o que se esperaria de um magistério supostamente
infalível. Como bem observamos, a tradição virou um saco onde Roma coloca o que
bem entender. Sempre que uma inovação romanista não pode ser comprovada pelo
apelo à Escritura (e são muitas), remete-se a tradição. Por isso, é bastante
conveniente não definir os limites, afinal não sabemos quais inovações Roma
produzirá no futuro.
Se meus amigos protestantes estão dispostos a crer na Sola
Scriptura, devem, primeiramente, estar dispostos a crer nas Escrituras, as
quais foram reconhecidas como autenticas, canônicas, normativas, pela Igreja e
por seu magistério. Deve-se então
reconhecer que o magistério não só tem autoridade, como capacidade para
fazê-lo.
É
óbvio que coube a Igreja reconhecer quais livros eram apostólicos. A questão é
como isso invalida a Sola Scriptura? Um protestante pode perfeitamente olhar
parra os testemunhos patrísticos e aliados a outras linhas de evidências (ex.
as evidências internas) chegar à conclusão de que eles estavam certos. O ponto
é que nada disso implica na existência de uma autoridade infalível fora da
Escritura. Além do mais, a Igreja Antiga
nunca tomou qualquer decisão sobre o cânon bíblico que pudéssemos chamar de
infalível mesmo sob o ponto de vista romanista. A Enciclopédia Católica afirma:
Segundo a doutrina católica, o critério do cânon bíblico é a decisão
infalível da Igreja. Esta decisão
não foi dada até muito tarde na história da Igreja no Concílio de Trento.
Antes deste havia algumas dúvidas sobre a canonicidade de certos livros
Bíblicos, i.e., sobre a sua pertença ao cânon. O Concílio de Trento definitivamente resolveu a questão do cânon do
Antigo Testamento. Que isto não
havia sido feito anteriormente é evidenciado pela incerteza que persistia até o
tempo de Trento. (New
Catholic Encyclopedia, Vol. I (Washington D.C.: Catholic University, 1967), p.
390 [colchete acrescentado)
Isso
só demonstra como a igreja católica antiga não era romana. Caso fosse, o cânon
(uma questão vital) teria sido objeto de algum concílio ecumênico ou algum
decreto papal considerado infalível. Não foi o que ocorreu. Gerações e gerações
de cristãos sustentavam o cânon bíblico sem apelarem a nenhuma suposta
autoridade infalível. Por isso, não vemos nenhum pai da igreja afirmando que seria
necessário um concílio ou decreto para definir algo que eles já tinham como
certo. Ou será que alguém acredita que a igreja ficou quinze séculos esperando
a questão ser decidida? Se não houve uma decisão definitiva do magistério da
igreja referente ao cânon, o argumento católico simplesmente é falso. Os
católicos costumam citar Hipona e Cartago, mas tratavam-se de concílios locais
que não vinculavam toda a igreja. Prova disso é que mesmo após tais concílios
que aceitavam os apócrifos, gerações e gerações de teólogos continuavam não
considerando os apócrifos como escritura inspirada. Tratamos disso aqui.
Além
do mais, os próprios pais da igreja cometeram erros em relação ao cânon. Embora
o núcleo formado pelos quatro evangelhos, atos e cartas paulinas fossem
reconhecidos desde o início, pais da igreja como Irineu não incluíam outras
cartas que constam do cânon. Isso só demonstra que embora o testemunho deles
seja importante, a tradição extraída era falível. No entanto, mesmo cometendo
tais erros, os romanistas acreditam que os pais da igreja poderiam facilmente
apelar a um magistério infalível. A questão é se eles de fato não criam nisto,
porque não o fizeram?
Como meus amigos protestantes estão muito mais familiarizados com
esse procedimento aplicado à Tradição Escrita, eu pergunto: quais foram os
critérios usados para o reconhecimento canônico das Escrituras
neotestamentárias como as temos hoje? São basicamente três: ortodoxia (o que já pressupõe a
independência da doutrina em relação à fundamentação escriturística),
antiguidade e amplitude de aceitação. Não é atoa que, ao contrário do que os
críticos liberais nos querem fazer pensar, o cerne do cânon, a saber, o
quadruplo evangelho, o livro de Atos e o Corpus Paulino, são desde sempre e
universalmente aceitos por praticamente todos os autores ortodoxos antigos,
quer por alusão explicita, quer por citação acompanhada de alguma formula que
explicite seu caráter escriturístico. Outras obras, como a segunda epístola de
Pedro, que não era amplamente reconhecida e cuja primeira citação (feita por
Orígenes), bem como a mais antiga cópia conhecida, datam do século III,
entraram com dificuldades no Cânon.
Tais
critérios foram aplicados – o que só demonstra que tal igreja não era romana.
Caso fosse, o critério para definir o cânon seria a decisão infalível da
igreja. Afinal, porque sujeitaríamos a critério consistentes, porém falíveis,
uma decisão dessa amplitude, sabendo-se que havia a disposição uma autoridade
que definiria infalivelmente a questão? Além do mais, a ortodoxia não pressupões
a independência da fundamentação da Escritura. Católicos parecem esquecer que
antes mesmo de Jesus vir em carne, já havia Escritura infalível e autoritativa.
Os apóstolos citaram abundantemente tais Escrituras como autoridade inspirada e
inclusive elogiaram os bereanos por submeterem a pregação apostólica ao crivo
destas Escrituras. Se até os próprios apóstolos tiveram sua doutrina testada
pela Escritura, como os pais da igreja não fariam o mesmo? J.N.D Kelly nos diz
que os pais da igreja entendiam que o evangelho já havia sido pregado pelos
profetas:
Deve-se notar outros três pontos.
Primeiro, conquanto as Escrituras (isto é, o Antigo Testamento) e o testemunho
apostólico fossem formalmente separados, esses
pais parecem ter tratado o conteúdo de um e de outro como se praticamente
coincidissem entre si. O que os
apóstolos viram e anunciaram como testemunhas oculares, os profetas
testificaram com antecedência nos mínimos detalhes; bastava procurar nas Escrituras para demonstrar que não havia um só
item na mensagem dos apóstolos que não havia sido predito pelos profetas. (Pag. 28. São Paulo. Edições Vida Nova.
2015)
Não
por acaso, Justino quando debateu com Trifo, citou abundantemente o Antigo
Testamento. Ou seja, eles já possuíam Escritura que servia como padrão de
ortodoxia. Dessa forma, os apócrifos (em boa parte escritos gnósticos) já
podiam ser rejeitados pela Igreja com base na revelação vetero-testamentária.
Não podemos rejeitar também a importância da evidência interna. A maior parte
dos apócrifos poderia ser rejeitado pelo seu próprio conteúdo. Um traço
constante era o fato de serem atribuídos a apóstolos que eram judeus, mas o
autor do livro demonstrava total ignorância a respeito da cultura e costumes
judaicos. O protoevangelho de Tiago incorre no mesmo erro. É um livro atribuído
a um judeu que é totalmente ignorante sobre os costumes judaicos. Além do mais,
o livro comete uma série de erros de natureza histórica e geográfica,
descrevendo festas judaicas que sequer existiam e narrando situações inimagináveis
para o povo judeu do século I. Quando lidamos com a questão do cânon, temos a
evidência interna (conteúdo do próprio livro) e evidência externa (testemunho
histórico). Não há dúvida de que os pais da igreja fornecem importante
testemunho histórico, mas atualmente as discussões sobre canonicidade giram em
torno da evidência interna. Tanto autores cristãos como céticos utilizam tal
linha de evidência para afirmar ou negar a origem dos escritos apostólicos. Para
mais detalhes sobre Sola Scriptura e Cânon, vejam aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
Outro
ponto frequentemente ignorado é que ao utilizarem tais critérios, está
implícito que os Pais da Igreja não receberam qualquer lista advinda de uma
tradição oral. Nenhum apóstolo deixou uma lista de livros canônicos. Coube aos
pais utilizando meios comuns de prova reconhecer quais escritos eram de fato
canônicos. Os evangelhos e as cartas paulinas foram aceitos desde cedo, logo os
novos candidatos já poderiam ser examinados a luz da doutrina contidas nestes
livros. Outro erro é acreditar que tais livros (Quatro evangelhos, Atos e
Cartas Paulinas) foram reconhecidos como apostólicos só depois de terem sua
ortodoxia analisada a luz de uma tradição oral. Como ele próprio disse, esses
livros foram reconhecidos desde o início. Assim que a carta à Igreja de Corinto
foi recebida, ela já era de autoridade inquestionável, pois foi de imediato
reconhecida como de autoria paulina. Dessa forma, desde o princípio a Igreja
possuía não somente o Antigo Testamento, mas também boa parte do Novo
Testamento para testar a ortodoxia de outros livros sobre os quais pairavam
dúvidas. Isso se dava porque o principal critério canônico era a
apostolocidade. Assim que um livro era recebido como sendo de um apóstolo ou
alguém ligado um apóstolo, automaticamente era considerado autoritário. A
ortodoxia e o costume da Igreja eram critérios secundários aplicados somente
àqueles livros sobre os quais havia dúvidas a respeito da autoria apostólica. Em relação ao cânon transcrevo as palavras de
Keith Thopson:
Na
Sola Scriptura não há nada de errado em seguir autoridades externas como a
igreja, desde que o que ela declare não contradiga a Bíblia e seja consistente
com a Escritura pelo menos implicitamente. Deste modo, não há nenhum
problema para a Sola Scriptura ao se afirmar o cânon através da Igreja, uma vez que os critérios utilizados pela
Igreja para conhecer o cânon no século IV podem ser validados biblicamente pelo
menos implicitamente.
Por exemplo, a Igreja usou os critérios
de apostolicidade para decidir se um livro do Novo Testamento era Escritura (ou
seja, se um livro foi escrito por um apóstolo ou companheiro de um apóstolo). Qualquer boa introdução conservadora ao
Novo Testamento dará argumentos internos para o fato de um livro ter sido
escrito por um apóstolo ou por alguém próximo de um apóstolo (por exemplo,
Donald Guthrie’s, D. A. Carson e Douglas J. Moo’s, dentre outros). No que
diz respeito aos critérios de antiguidade utilizados pela Igreja, podemos olhar para o conteúdo interno do
livro para descobrir se ele foi escrito no primeiro século ou se é uma obra do
segundo século.
Estudiosos do Novo Testamento fazem isso
regularmente. Qualquer boa introdução
teológica irá fornecer argumentos internos de que um livro foi escrito no
primeiro século. No que diz respeito aos critérios da ortodoxia utilizados pela
Igreja, podemos ver quais livros são internamente consistentemente e quais não
são. Então não há nada inconsistente em se afirmar a Sola Scriptura ao
mesmo tempo em que se reconhece a autoridade da Igreja em reconhecer o cânon,
uma vez que quando observamos os livros reconhecidos vemos que seu
reconhecimento é consistente com a Escritura, pelo menos implicitamente.
A Sola
Scriptura não nega a autoridade da igreja e da tradição, mas afirma que ambas
são subordinadas a uma autoridade maior e infalível. Os pais da igreja utilizaram
critérios consistentes com a Escritura no processo de reconhecimento do cânon.
Eles poderiam estar errados sobre o cânon? Poderiam. Eles erraram? Em alguns
casos sim, na medida em que alguns autores tinham um cânon incompleto. Todavia,
a luz das evidências de que dispomos, temos boas razões para acreditar que o
cânon do Novo Testamento reúne todos os livros de origem apostólica acessíveis
atualmente.
A
Tradição como suplemento doutrinário
Em debates com católicos, é comum ouvir o
argumento de que nem todas as doutrinas estão na Escritura. Portanto, parte da
doutrina apostólica está na Escritura e parte na Tradição. Por isso, quando
pedimos que o católico prove pela Escritura todas as suas doutrinas, ele
responderá que tais doutrinas foram preservadas apenas na Tradição. O ex-papa
Joseph Ratzinger disse:
(...)
ninguém é capaz de sustentar que existe
uma prova na Escritura para cada doutrina católica. (Joseph
Ratzinger, "The Transmission of Divine Revelation", commenting on
article 9 of Dei Verbum. Found in Vorgrimler, ed, Commentary on the Documents
of Vatican II, vol 3, p 195)
A Enciclopédia católica afirmou:
Os
católicos, por outro lado, sustentam que pode haver, que de fato há verdades reveladas independentemente daquelas contidas
na Bíblia. (Catholic
Encyclopedia, Vol. XV [New York: Encyclopedia Press, Inc, 1913], p. 6, 2nd
column)
O problema é que esta visão seria rejeitada
amplamente pelos pais da Igreja. Aqui você pode verificar as principais citações patrísticas que atestam a
suficiência material da Escritura e aqui o melhor artigo em português sobre a
Sola Scriptura na Igreja Antiga. Os pais da Igreja acreditavam que cada
doutrina carecia de prova bíblica. Nenhuma doutrina poderia ter seu fundamento
apenas numa fonte extra-escritural. J.N.D Kelly afirma novamente:
No
entanto, se por um lado o conceito de tradição se expandiu, tornando-se mais
concreto nestes aspectos, a apreciação
de sua posição frente às Escrituras como norma doutrinária permaneceu
basicamente inalterada. O sinal mais claro do prestígio desfrutado pelas
Escrituras é o fato de que quase todo o esforço teológico dos pais, fossem seus
objetivos polêmicos ou construtivos, era dispendido no que equivalia à
Exposição da Bíblia. Além disso, em toda a parte, tinha-se por assentado que, para alguma doutrina ganhar aceitação, ela
tinha primeiramente de demonstrar sua base escriturística.
(Kelly, p. 34)
Nossa análise se concentrará em Irineu. Este
pai da igreja deixou claro a posição suprema ocupada pela Escritura:
De
ninguém mais temos aprendido o plano de nossa salvação, senão daqueles através
de quem o evangelho nos chegou, o qual eles pregaram inicialmente em público,
e, em tempos mais recentes, pela vontade
de Deus, nos foi legado por eles nas Escrituras, para que sejam o fundamento e
pilar de nossa fé. (Contra
as Heresias, Livro III, 1:1)
Em sua disputa com os gnósticos, Irineu
afirma a autoridade dos apóstolos. É deles que a igreja retira sua doutrina. A questão
é onde estava esta doutrina? Ela fora preservada apenas oralmente? Obviamente
não. Os apóstolos transmitiram o evangelho à igreja. Este evangelho foi pregado
inicialmente de forma oral, mas, depois, não por simples capricho, mas por
providência divina, foi registrado na Escritura. Irineu deixa claro que o que
inicialmente foi pregado em público fora preservado nas Escrituras. Ele vai
adiante. Esta Escritura era o pilar e fundamento da fé. Ou seja, sua posição
era única e, portanto, suprema. Não era um pilar, mas O pilar. Uma objeção
levantada é que “pilar e fundamento” se referiria ao Evangelho. Alguns citam
que a tradução da Ed. Paulus contém “para que seja ....”, ou seja, no singular,
de forma a determinar que o referente é o Evangelho e não as Escrituras. Esta
até pode ser a posição de tradutor, mas é somente isso. Irineu escreveu “Contra
as Heresias” em grego, mas somente alguns trechos foram preservados nesta
língua. A obra completa é somente acessível em manuscritos em latim, logo a
regra de concordância verbal que poderíamos usar em português não se aplica.
Todavia, esta distinção é irrelevante, uma
vez que Irineu deixa claro que o conteúdo do Evangelho era idêntico ao da
Escritura. A pregação oral foi escriturada. Apelar ao Evangelho era
necessariamente apelar à Escritura. Ademais, a leitura natural do texto indica
a Escritura como “pilar e fundamento”. O trecho “para que sejam” indica a
finalidade de uma ação anterior. E a ação anterior descrita é “em tempos mais
recentes, nos foi legado por eles nas Escrituras...”. O contexto imediato
aponta para a Escritura. Que o conteúdo do evangelho estava totalmente contido
na Escritura fica claro na continuação da citação:
Nem é
lícito afirmar que eles pregaram sem antes possuir a gnose perfeita, como ousam
dizer alguns que se gloriam de corrigir os apóstolos, por que, depois da
ressurreição de nosso Senhor dos mortos, os
apóstolos foram revestidos da força do alto, pela vinda do Espírito Santo;
foram repletos de todos os dons e possuíram o conhecimento perfeito. Foi então
que foram até as extremidades da terra anunciando a boa nova dos bens que Deus
nos concede e a paz celeste para os homens: eles possuíam todos e cada um o Evangelho de Deus. Assim, Mateus publicou entre os judeus, na língua
deles, o escrito dos Evangelhos, quando Pedro e Paulo evangelizavam em Roma e
aí fundavam a Igreja. Depois da morte deles, também Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu por
escrito o que Pedro anunciava. Por sua parte, Lucas, o companheiro de Paulo, punha num livro o Evangelho pregado por
ele. E depois, João, o discípulo do Senhor, aquele que recostara a cabeça
ao peito dele, também publicou o seu
Evangelho, quando morava em Éfeso, na Ásia. (Contra
as Heresias, 3:1:1)
Cada Apóstolo possuía o Evangelho em sua
integralidade. O Evangelho de João era o mesmo que de Marcos, Lucas e Mateus.
Mais uma vez, o pai da igreja trata a mensagem do evangelho como de mesmo conteúdo
ao que foi registrado nos escritos. O que Pedro anunciava foi escrito por
Marcos. O que Paulo anunciava foi escrito por Lucas. Assim fizeram também João
e Mateus. Se todos eles possuíam cada um o Evangelho e puseram este Evangelho
por escrito, a implicação lógica é que o Evangelho oralmente pregado foi
totalmente escriturado. John Berh
(proeminente erudito patrístico ortodoxo) escreveu:
Foram
os apóstolos somente que trouxeram a revelação de Cristo para o mundo, embora o que eles pregaram já tivesse sido
anunciado pelas Escrituras - a Lei e os
Profetas [Antigo Testamento]. Os evangelhos compostos por aqueles que não
eram apóstolos, afirma Irineu, são explicações daqueles que eram apóstolos.
Irineu ainda enfatiza o papel fundamental dos apóstolos ao afirmar, na passagem
citada acima, que os apóstolos não começaram a pregar até que eles fossem
investidos da plenitude do conhecimento pelo Senhor ressuscitado. Que os apóstolos pregaram o Evangelho e,
posteriormente, o escreveram é importante para Irineu, já que isso irá mais tarde capacitá-lo a apelar a contínua pregação do
Evangelho na Igreja - a tradição dos apóstolos. Também é importante para
Irineu especificar que o que escreveram
foi transmitido ("tradicionalmente") nas Escrituras, como o fundamento
e o pilar da nossa fé. Enquanto Paulo falou da Igreja como sendo o pilar e
fundamento da verdade (1 Tim 3:15), na necessidade de definir de forma mais
clara a identidade da Igreja, Irineu
modifica as palavras de Paulo, de modo que é a Escritura que é o "
fundamento e pilar da fé", ou afirma mais tarde que é o Evangelho,
encontrado em quatro formas, e o Espírito da vida que é "o pilar e
fundamento da Igreja" (AH 3.11.8). É por sua pregação do Evangelho que
Pedro e Paulo lançam as bases para a Igreja, e a Igreja, constituída pelo
Evangelho, deve preservar este depósito intacto. (John
Behr, The Way to Nicaea (Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 2001),
pp. 37)
John Behr é representante da posição
predominante ente os eruditos patrísticos (incluindo Kelly) que identifica as
Escrituras como o “pilar e fundamento da fé” em Irineu. O também estudioso
ortodoxo Georges Florovsky salienta que na Igreja antiga a exegese era:
(...) o principal e, provavelmente, único
método teológico, e a autoridade das Escrituras
era soberana e suprema. (Bible, Church, Tradition: An Eastern Ortodox
View, (Bucherver-triebsanstalt, 1987), 75)
Irineu passa então a descrever a atitude dos
hereges gnósticos:
Quando são vencidos pelos argumentos tirados
da Escrituras retorcem a acusação contra as próprias Escrituras, dizendo que é
texto corrompido, que não tem autoridade, que se serve de expressões equívocas
e que não podem encontrar a verdade nele os que desconhecem a Tradição. Com efeito - dizem eles - a verdade não foi transmitida por escrito,
mas por viva voz, o que levou Paulo a dizer: "É a sabedoria que
pregamos entre os perfeitos, não, porém, uma sabedoria deste século". E
cada um deles diz que esta sabedoria é a que ele descobriu, ou melhor,
inventou, e assim se torna normal que a verdade se encontre ora em Valentim,
ora em Marcião, ora em Cerinto e depois em Basílides ou nalgum outro
contendente, sem nunca ter podido afirmar nada acerca da salvação. Cada um deles está tão pervertido que,
falsificando a regra da verdade, não cora de vergonha ao pregar a si mesmo.
E quando, por nossa vez, os levamos à
Tradição que vem dos apóstolos e que é conservada nas várias igrejas, pela
sucessão dos presbíteros, então se opõem à tradição, dizendo que, sendo
eles mais sábios do que os presbíteros, não somente, mas até dos apóstolos, foram os únicos capazes de encontrar a pura
verdade. Com efeito, os apóstolos teriam introduzido, junto com as palavras
do Salvador, as prescrições da Lei; e não somente os apóstolos, mas até o
próprio Senhor, teriam pronunciado palavras provindas ora do Demiurgo, ora do
Intermediário, ora da Potência suprema. Quanto a eles, conheceriam o mistério
escondido, sem a mínima dúvida, sem contaminação e confusão. Ora, esta é a
maneira mais desavergonhada de blasfemar contra o seu Criador! Acontece com isso que já não concordam
nem com as Escrituras nem com a tradição. (Contra as Heresias 3:2:1-3)
Essa é uma das citações mais usadas pelos
católicos para provar que Irineu não poderia sustentar a Sola Scriptura, uma
vez que ele também usa a tradição para refutar os hereges. Como já vimos, este
argumento ataca um espantalho e não a doutrina reformada. O simples uso da
tradição não é uma negação da Sola Scriptura. Irineu acreditava que havia
doutrina apostólica fora da Escritura? Ele cria que a tradição era uma regra
infalível de fé? Irineu acreditava que a Igreja possuía alguma instância
hierárquica infalível? A resposta para todas estas perguntas seria não.
Na citação acima, fica claro que o primeiro
recurso usado para refutar os hereges era a Escritura e não a tradição. Quando
vencidos pelo recurso às Escrituras, os hereges utilizavam argumentos que os
apologistas católicos de internet costumam usar: a Escritura seria obscura e
incompleta. A verdade não teria sido entregue apenas por Escrito, mas por viva
voz. E quem preservava esta verdade? O magistério exercido pelos próprios
hereges. Um magistério que preserva uma tradição oral que não consta da
Escritura é precisamente o argumento mais utilizado pelos católicos. Irineu
então apela à tradição da igreja para refutar os hereges. Esta tradição nada
mais era do que a pregação pública da Igreja. Ellen Flesseman-van Leer comenta:
Para
Tertuliano a Escritura é o único meio
para refutar ou validar uma doutrina quanto ao seu conteúdo (...) para Irineu, a doutrina da Igreja
certamente nunca é puramente tradicional; pelo contrário, o pensamento de que poderia haver alguma
verdade transmitida exclusivamente de viva voz (oralmente) é uma linha gnóstica
de pensamento (...) se Irineu quer provar a verdade de uma doutrina
materialmente, vira-se para a escritura,
porque é aí que o ensino dos apóstolos é objetivamente acessível. A prova da
tradição e da escritura serve a um e mesmo fim: identificar o ensino da Igreja
como o ensino apostólico original. A
primeira [tradição] estabelece que o ensino da Igreja é o ensino apostólico, e
a segunda [Escritura] qual é o ensino apostólico. (Tradition
and Scripture in the Early Church (Van Gorcum, 1953, pp. 184, 133, 144)
John Behr também comentou a citação de
Irineu:
De
acordo com Irineu, a resposta de seus oponentes à acusação de que seu ensino
não era encontrado nas Escrituras é simplesmente afirmar que essas Escrituras
não são autoritativas, que são
inadequadas para o pleno conhecimento, que são ambíguas e precisam ser
interpretadas à luz de uma tradição que não é transmitida por escrito, mas por
via oral. Ou seja, apelam para uma dicotomia entre a Escritura e a tradição, entendendo por esta última a comunicação
oral do ensino derivado dos apóstolos, contendo material que não se encontra
nas Escrituras e que ainda é necessário para entender as Escrituras
corretamente. Como vimos, os apóstolos certamente entregaram uma nova
maneira de ler as Escrituras, proclamando Cristo "de acordo com as
Escrituras", mas, de acordo com
Irineu, o que eles transmitiram, tanto na pregação pública quanto na escrita,
permaneceu vinculado à Escritura. (Behr, p. 38)
A Tradição era o que a igreja vinha pregando
de forma consistente desde o início. A Escritura era a fonte desta pregação. Se
alguém perguntasse a Irineu qual era o ensino dos apóstolos? Ele apontaria para
a Escritura. Se alguém perguntasse qual o ensino da Igreja? Ele apontaria para
a tradição. Se fôssemos comprar as duas coisas, elas seriam idênticas. Assim,
restaria provado que a Igreja preservou a doutrina dos apóstolos. O próprio
Irineu já estava convencido de que a própria Escritura havia refutado os
hereges, mas ele tinha argumentos adicionais. Se os Apóstolos tivessem deixado
um corpo de ensinos não encontrados na Escritura, quem seriam as testemunhas
mais confiáveis destas doutrinas? Os homens por eles deixados para cuidar da
Igreja. Todavia, a pregação destes homens (tradição) era coincidente com os
Escritos dos apóstolos e não continham nenhuma daquelas estranhas doutrinas
gnósticas. Além de estes homens estarem ligados aos apóstolos, a pregação deles
era pública enquanto a dos gnósticos era secreta. A tradição da Igreja também
era uniforme (as várias igrejas possuíam a mesma tradição), já no caso dos
hereges, cada grupo tinha uma tradição diferente (caso semelhante ao das
igrejas romana, ortodoxa, não macedonianas que apelam a tradições apostólicas
com conteúdos conflitantes). Já os hereges não podiam provar a apostolicidade
de sua doutrina (seja pelo apelo às Escrituras, seja pelo apelo a uma suposta
sucessão de mestres). Além disso, era uma tradição secreta (não verificável) e
inconsistente.
O grande erro dos católicos romanos é afirmar
que um protestante não poderia usar o mesmo sistema de argumentação. É comum
ouvir Testemunhas de Jeová afirmarem que a Trindade é uma invenção de
Constantino. O Protestante obviamente vai apelar a instância superior de
autoridade e demonstrar que a Trindade é uma doutrina bíblica. Todavia, assim
como os reformadores eu posso argumentar também que a Trindade foi crida pela
Igreja muito antes de Constantino. Eu poderia citar várias testemunhas de que
tal doutrina não só foi ensinada pelos apóstolos, mas foi mantida pela Igreja
desde o início. Tecnicamente, estou apelando a tradição da Igreja e isso de
forma alguma implica na negação da Sola Scriptura por uma razão simples – a
primeira instância de apelo foi à Escritura. Meu apelo à tradição foi para
demonstrar que a Igreja se manteve fiel ao texto bíblico.
Eu próprio apelo à tradição (o ensino
histórico da Igreja) em todos os meus artigos para demonstrar quão falsas são
as alegações de Roma. Quando um católico romano afirma que o papado é uma
doutrina ensinada pela Igreja desde os apóstolos? O que eu fiz? Primeiramente,
li as Escrituras e cheguei à conclusão de que os Apóstolos não ensinaram tal
coisa. Após, eu fui estudar a história da Igreja e cheguei à mesma conclusão.
Da mesma forma, em debates intramuros, os reformados apelam constantemente a
sua própria tradição. Calvinistas e arminianos frequentemente citam confissões
de fé e teólogos de renome em seus debates. Todavia, ambos concordam que o
árbitro final é a Escritura. É a tal hierarquia de autoridades que já
mencionamos.
O verdadeiro conhecimento é a doutrina dos
apóstolos, e a
antiga constituição da Igreja em todo o mundo, e a manifestação distinta do Corpo de Cristo conforme as sucessões dos
bispos, pelas quais eles
transmitiram aquela Igreja que existe em todos os lugares, e chegou até
nós, sendo guardada e preservada sem
nenhuma falsificação nas Escrituras, por um sistema muito completo
de doutrina, e sem receber
adição nem subtração; e a leitura [da Palavra] sem falsificação, e uma exposição lícita e diligente em harmonia com as Escrituras,
sem perigo nem blasfêmia, e o preeminente carisma do amor, o qual é mais
precioso do que o conhecimento, mais glorioso do que a profecia, e que excede
todos os outros dons. (Contra
as Heresias, Livro III, 1:1)
Novamente, Irineu torna coincidente a
doutrina apostólica e o conteúdo das Escrituras. Ele afirma que a doutrina
apostólica (o verdadeiro conhecimento) foi guardada e preservada sem nenhuma
falsificação nas Escrituras, por um sistema muito completo de doutrina. Quem se
deu ao luxo de ler toda a obra “Contra as Heresias” perceberá que não há uma
doutrina gnóstica que não tenha sido refutada por Irineu usando primariamente a
Escritura. Não por acaso o número de citações do texto bíblico é abundante. O
argumento da tradição era secundário e só era utilizado para refutar a falsa
tradição vindicada pelos gnósticos.
Romanistas também apontam a ideia de Irineu
segundo a qual a verdadeira tradição era mantida pela Igreja por uma sucessão
de bispos que remontavam aos apóstolos. Este argumento não é inconsistente com
a Sola Scriptura, uma vez que a doutrina reformada não exclui a autoridade da
Igreja e afirma que é na Igreja que a palavra de Deus deve ser interpretada e
difundida. É na Igreja que as controvérsias doutrinárias devem ser resolvidas. Behr
também atesta a posição suprema que a Escritura ocupava na fé cristã primitiva:
O
objetivo da filosofia (...) pelo menos desde Platão, tem sido descobrir o ultimato
- os primeiros princípios não hipotéticos. Mas mesmo aqui, como admite
Aristóteles, é impossível exigir demonstrações dos primeiros princípios. Os
primeiros princípios não podem ser provados, senão eles dependeriam de algo
antes deles, e assim o inquiridor seria levado a uma regressão infinita. Isto
significa, como Clemente de Alexandria aponta, que a busca dos primeiros
princípios da demonstração termina com a fé indemonstrável. Para a fé cristã, de acordo com Clemente,
são as Escrituras, e em particular, o Senhor que fala nelas, o primeiro
princípio de todo conhecimento. É a
voz do Senhor, falando ao longo da Escritura, que é o primeiro princípio, a
(não hipotética) hipótese de todas as manifestações da Escritura, pelas quais
os cristãos são levados ao conhecimento da verdade. (John
Behr, The Way to Nicaea (Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 2001),
pp. 38)
Além disso Irineu recorria às igrejas
apostólicas, em especial, à Igreja de Roma para refutar os hereges. De forma
consistente, ele dizia que se os apóstolos tivessem ensinado uma tradição
secreta, essa deveria ser encontrada nestas igrejas. Vejamos mais uma citação:
Mas visto que seria coisa
bastante longa elencar, numa obra como esta, as sucessões de todas as igrejas,
limitar-nos-emos à maior e mais antiga e conhecida por todos, à igreja fundada
e constituída em Roma, pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e
Paulo, e, indicando a sua tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada
aos homens, que chegou até nós pelas sucessões dos bispos, refutaremos todos os
que de alguma forma, quer por enfatuação ou por vanglória, quer por cegueira ou
por doutrina errada, se reúnem prescindindo de qualquer legitimidade. Com
efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua origem
mais excelente, toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque
nela sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos
apóstolos (...). Podemos ainda lembrar Policarpo, que
não somente foi discípulo dos apóstolos e viveu familiarmente com muitos dos
que tinham visto o Senhor, mas que, pelos próprios apóstolos, foi estabelecido
bispo na Ásia, na Igreja de Esmirna (...) E é disso que dão
testemunho todas as Igrejas da Ásia e os que até hoje
sucederam a Policarpo, que foi testemunha da verdade bem mais segura e
digna de confiança do que Valentim e Marcião e os outros perversos doutores
(...) Também a igreja de Éfeso, que foi fundada por Paulo e onde João
morou até os tempos de Trajano, é testemunha verídica da tradição dos
apóstolos. (Contra as Heresias 3:3:2-4)
Neste ponto, os católicos romanos passam a
usar uma série de argumentos totalmente anacrônicos. Primeiro, Irineu nunca
ensinou a infalibilidade da Igreja Romana, muito menos a infalibilidade do seu
bispo. Segundo, as qualificações de Irineu se aplicam à Igreja Romana de seu
tempo. Tendo em vista que os ensinos de Roma mudaram radicalmente com o passar
dos séculos, é simplesmente anacrônico argumentar que as igrejas precisariam
concordar com o que Roma ensina HOJE. Ademais, Irineu apelou a outras igrejas
apostólicas como Éfeso e Esmirna, no entanto, tais igrejas sequer estão em
comunhão com Roma atualmente e ensinam doutrinas substancialmente distintas.
Terceiro, a argumentação de Irineu cabia a seu tempo pois ele estava próximo às
fontes apostólicas. Com o passar dos tempos, tais argumentos que apelavam a uma
sucessão de bispos perdem sentido uma vez que se distancia da fonte histórica.
Irineu nunca ensinou que uma hierarquia manteria infalivelmente a Igreja na
reta doutrina. Existe uma enorme diferença entre dizer “A Igreja X mantém
fielmente a doutrina apostólica” e dizer “A Igreja X manterá para sempre a
doutrina apostólica”.
Irineu sem dúvidas sustentou contra os
hereges um conceito de sucessão apostólica consistente com a fé reformada.
Católicos apressadamente passam a contar Irineu como testemunha da doutrina da
sucessão apostólica ensinada por Roma. Todavia, duas afirmações podem ser
feitas: a sucessão apostólica romana não é uma doutrina deixada pelos apóstolos
e a doutrina de Irineu é radicalmente distinta do que Roma ensina atualmente
(não há qualquer conceito de Papado em Irineu por exemplo). Irineu acreditava
numa sucessão de doutrina e não numa sucessão de ofícios. Para ele, a validade
de uma igreja local como corpo de cristo dependia da pregação desta e não da
existência de uma sucessão ininterrupta de ordenações sacramentais. Ninguém
menos do que Joseph Ratzinger, confirmando os estudos do erudito patrístico
protestante Hans von Campenhausen, afirma que a doutrina da sucessão apostólica
surgiu depois do período apostólico, na segunda metade do século II:
O conceito de sucessão [apostólica] foi
claramente formulado, como
von Campenhausen tem demonstrado de forma impressionante, na polêmica anti-gnóstica do século II; o seu objetivo era contrastar a
verdadeira tradição apostólica da Igreja contra a pseudo-apostólica tradição da
gnosis. (God’s Word: Scripture-Tradition-Office (San Francisco:
Ignatius Press ©2008; Libreria Editrice Vaticana edition ©2005; pp. 22-23)
Ratzinger cita diretamente Campenhausen:
O passo
decisivo no desenvolvimento do conceito de tradição foi tomado (...) em meados
do século II. É nessa época que as ideias de "transmitir" e
"receber" a tradição adquiriram uma nova importância teológica e
significado marcadamente técnico. As
origens desse fenômeno não devem ser procuradas nos círculos que elaboraram a
eclesiologia da Grande Igreja; em vez disso, nos levam ao mundo da gnose e seu
culto do professor individual livre. De qualquer forma, no mundo cristão foi Ptolomeu gnóstico que
forneceu a mais antiga evidência conhecida por nós desse novo teologicamente
orientado uso. Na carta à Flora ele fala explicitamente da secreta e
apostólica tradição (παράδοσεις) que complementa a coleção canônica das
palavras de Jesus, e que ao ser
transmitida através de uma sucessão (διαδοχἡ) de professores e instrutores
chegou agora a "nós", isto é, para ele ou sua comunidade. Aqui o
conceito de "tradição" é claramente usado em um sentido técnico, como
é mostrado particularmente pela colocação junto ao conceito correspondente da
"sucessão". (Ibid., 158)
John Behr escreveu o seguinte sobre a citação
analisada:
A
tradição dos apóstolos é manifesta em todas as igrejas em todo o mundo,
preservadas por aqueles a quem os apóstolos confiaram o cuidado das igrejas
fundadas sobre o Evangelho. Para demonstrar isso, Irineu se volta para listar a
sucessão dos bispos em Roma, sendo o exemplo preeminente de uma igreja
apostólica. Ao considerar esta passagem,
é importante lembrar que o episcopado monárquico não foi estabelecido em Roma
até pelo menos no final do segundo século, e talvez mais tarde. A igreja em
Roma foi composta principalmente de igrejas domésticas, cada uma com seu
próprio líder. Essas comunidades apareceram como escolas filosóficas, grupos
reunidos em torno de seus professores, como Justino e Valentino, estudando suas
escrituras e realizando seus ritos. Assim, o propósito de enumerar
"aqueles que foram apontados pelos apóstolos como bispos nas igrejas"
não é estabelecer a "validade" de seus ofícios individuais e a
jurisdição que lhe pertence, mas, como diz Irineu, possibilitar a descoberta
"em toda igreja" da "tradição dos apóstolos" manifestada no
mundo inteiro, isto é, a verdade ensinada pelos apóstolos, na medida em que foi
preservada, em público e intacta. Da mesma forma, embora Irineu descreva os
apóstolos como deixando esses homens como seus sucessores, eles não são descritos como "apóstolos". Uma distinção firme
é feita entre os "apóstolos abençoados" e o primeiro
"bispo" de Roma (AH 3.3.3). Mais
importante do que o próprio ofício é a continuidade do ensino com o qual os
sucessores foram encarregados. Depois de listar os vários presbíteros/
bispos até seu próprio tempo, Irineu conclui enfatizando novamente o ponto de
se referir a tais sucessões: "Nesta ordem e por esta sucessão, a tradição
eclesiástica dos apóstolos e a pregação da verdade chegaram até nós"(AH
3.3.3). É a pregação da verdade, preservada pelos presbíteros / bispos ao longo
de suas sucessões, que é a tradição eclesiástica derivada dos apóstolos.
Finalmente, depois de estabelecer isso como sendo o caso em Roma, Irineu se volta brevemente para falar das igrejas
na Ásia, em Esmirna e Éfeso, ambas para ele são "verdadeiras testemunhas
da tradição dos apóstolos" (AH 3.3.4). (Behr, p. 38)
Eu tratei do testemunho de Irineu a respeito
do papado e sucessão apostólica aqui. A continuação da citação anterior
de Irineu segue:
Sendo as nossas provas tão fortes, não é necessário procurar
noutras pessoas aquela verdade que facilmente podemos encontrar na Igreja, porque os apóstolos trouxeram, como um
rico celeiro, tudo o que pertence à verdade, a fim de que cada um que o deseje,
encontre ai a bebida da vida. É ela definitivamente o caminho de acesso à
vida e todos os outros são assaltantes e ladrões que é mister evitar. Por outro
lado, deve-se amar com zelo extremo o que vem da Igreja e guardar a tradição da
verdade. Ora, se surgisse alguma
controvérsia sobre questões de mínima importância, não se deveria recorrer a
Igrejas mais antigas, onde viveram os apóstolos, para saber delas, sobre a
questão em causa, o que é líquido e certo? E se os apóstolos não nos tivessem deixado as Escrituras, não se deveria seguir
a ordem da tradição que transmitiram aqueles aos quais confiavam as Igrejas? (Contras as Heresias 3:3:4)
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