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segunda-feira, 13 de junho de 2016

O episcopado monárquico foi instituído pelos Apóstolos? - Parte 2


O estudioso patrístico Ortodoxo John McGuckin resume bem a questão histórica:

As mais antigas estruturas dos ofícios ministeriais cristãos estão envoltas em obscuridade, mas no segundo século, surgiu uma forma tríade de bispo, presbítero e diácono. Esta foi gradualmente substituindo uma gama de outros ofícios que tinha caracterizado a igreja primitiva (como missionários apostólicos, profetas andarilhos, exorcistas e mestres) e estabeleceu-se no final do segundo século como um padrão comum na maioria das comunidades cristãs (...) Embora Jerônimo ainda possa protestar no século IV que o bispo e o presbítero são realmente a mesma coisa (e há alguns motivos para pensar que originalmente os termos eram intercambiáveis no Novo Testamento: Atos 20:17 e 28; 1 Pedro 5:1-4; Tito 1:5-7; e Clemente de Roma usa o termo no plural [1 Clement 42:44] para se referir ao clero de Roma). No entanto, seu argumento já estava sendo ignorado em seus dias (...) A partir desse momento [fim do primeiro século] em diante, a eleição parece ter sido um elemento importante na escolha de todos os novos bispos. O direito de escolher já era apresentado no capítulo 15 da Didaquê. Tal poder da comunidade diminuiu nos tempos bizantinos a uma mera consulta às pessoas (frequentemente se esperavam que elas aclamassem o novo líder), mas mesmo assim houve muitos casos de um ser bispo incapaz de assumir o cargo por causa da hostilidade de uma igreja local que se sentia que seus desejos tinham sido negligenciados (como o caso de Proclos de Constantinopla) (...) Por toda insistência de Cipriano em seu direito de autoridade episcopal única, sua própria igreja hesitou muito sobre se ele, ou os presbíteros reunidos, ou os confessores tinham o maior direito. (The Westminster Handbook To Patristic Theology [Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 2004], pp. 120-122)

McGuckin relata como a estrutura hierárquica da igreja se desenvolveu. Mesmo sendo ortodoxo (uma igreja que adota a estrutura episcopal), ele admite que essa surgiu no segundo século, portanto, depois do período apostólico. O erudito patrístico também afirma a autonomia que caracterizava a igreja primitiva. A comunidade participava da eleição do bispo e poderia depor um bispo indesejado – algo contrário às práticas da igreja romana atual. Muitos pais da igreja como Cipriano (veja aqui) consideravam a participação da comunidade na eleição um requisito para uma ordenação ser válida. O bom testemunho era considerado também indispensável para a continuidade no cargo – um prelado pecaminoso poderia ser deposto pela comunidade. Obviamente, nesse período, a ordenação de um bispo não dependia da intervenção do bispo de Roma.

Além da evidência do N.T, estudiosos católicos e protestantes tem identificado nos escritos dos pais apostólicos fortes evidências da ausência do episcopado monárquico ao longo do segundo século. A igreja mais citada para ilustrar essa ausência é justamente a de Roma. Por isso, o episcopado monárquico em Roma é o centro de nossos estudos sobre o tema, pois uma vez que sua presença em Roma é refutada, por consequência, o papado é também refutado. Recomendo aos leitores minha série “Os pais da igreja sobre sucessão apostólica e papado”, onde trato em maiores detalhes as evidências que trarei, por isso, aqui vou apresentá-las resumidamente.

A Didaquê – um documento que muitos especialistas situam ainda no primeiro século – afirma:

Escolha bispos e diáconos dignos do Senhor. Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro, verazes e provados, pois também exercem para vocês o ministério dos profetas e dos mestres. (Didaquê 15:1)

A própria comunidade escolhia seus líderes. Percebam que não há uma estrutura tríplice: Bispo – presbíteros – diáconos. Há apenas dois níveis: bispos (no plural) e diáconos. A razão é muito simples – a liderança nesse período era colegiada – por isso a referência aos bispos está no plural. O católico Patrick Burke escreve:

A figura religiosa principal é o profeta, seja itinerante ou residente. O grupo de anciãos funciona como um substituto para os profetas, e não há concepção de um episcopado monárquico. (“The Monarchical Episcopate at the end of the First Century,” Journal of Ecumenical Studies 7 (1970), p. 501)

Na Didaquê bispos e diáconos são mencionados uma vez (15:1), enquanto os profetas são mencionados oito vezes (10:15; 11: 4; 11:19; 13:3; 13:7; 15:2; 15: 4; 16:6). O papel dos bispos e diáconos é "também realizar o serviço dos profetas e mestres" (15:2) e os bispos e diáconos são "homens honrados, juntamente com os profetas e mestres" (15:4). Contribuindo para essa noção está a literatura apócrifa que possuímos a partir do segundo século no Egito. Temos a Pregação de Pedro, o Apocalipse de Pedro e a epístola de Barnabé. Não há menção de um bispo, presbítero, diácono ou professor. Burke conclui:

Devemos dizer, portanto, que nós simplesmente não possuímos qualquer prova para a estrutura da igreja no Egito, exceto o argumento do silêncio: um bispo monárquico teria certamente feito sentir a sua presença, e a primeira evidência estrutural que temos vem de Demétrio, no final do segundo século. (Ibid., 512)

Tal ausência é ainda mais evidente na carta da igreja romana (atribuída a Clemente) à igreja de Corinto:

Com efeito, em tudo vós agíeis sem fazer acepção de pessoas, andando segundo as prescrições de Deus, submissos a vossos chefes, e prestando aos presbíteros que estavam convosco a honra que lhes cabia. (1:3)

Vós que lançastes os fundamentos da revolta, submetei-vos aos presbíteros e deixai-vos corrigir com arrependimento, dobrando os joelhos de vosso coração. (57:1)

Irei para onde quiserdes, e farei o que a multidão ordenar, para que o rebanho de Cristo viva em paz com os presbíteros constituídos. (54:2)

Caríssimos, é vergonhoso, muito vergonhoso e indigno de conduta cristã ouvir-se dizer que a firme e antiga Igreja de Corinto, por causa de uma ou duas pessoas, está em revolta contra os seus presbíteros(47:6)

Os apóstolos receberam do Senhor Jesus Cristo o Evangelho que nos pregaram. Jesus Cristo foi enviado por Deus. Cristo, portanto, vem de Deus, e os apóstolos vêm de Cristo. As duas coisas, em ordem, provêm, da vontade de Deus. Eles receberam instruções e, repletos de certeza, por causa da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, fortificados pela palavra de Deus e com a plena certeza dada pelo Espírito Santo, saíram anunciando que o Reino de Deus estava para chegar. Pregavam pelos campos e cidades, e aí produziam suas primícias, provando-as pelo Espírito, a fim de instituir com elas bispos e diáconos dos futuros fiéis. Isso não era algo novo: desde há muito tempo, a Escritura falava dos bispos e dos diáconos. Com efeito, em algum lugar está escrito: “Estabelecerei seus bispos na justiça e seus diáconos na fé”. (42:1-5)

Os apóstolos instituíram bispos (plural) e diáconos e não um bispo que liderava um colégio de presbíteros auxiliados por um grupo de diáconos. Nessa parte, Clemente não se refere apenas à igreja de Corinto, mas ao modelo que os apóstolos adotaram em relação a todas as igrejas. No início da carta, ele se refere a presbíteros e diáconos, e mais para o fim, se refere a bispos e diáconos. A questão mais importante para os nossos propósitos é a equivalência de επισκοπης "bispos" e os πρεσβυτεροι "presbíteros" em Clemente. Os dois são usados ​​indistintamente em toda a carta, mas ele próprio faz a equivalência clara em 1 Clemente 44:4 e 5:

Para nós, não seria culpa leve se exonerássemos do episcopado (bispado) aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensível e santa.  Felizes os presbíteros que percorreram seu caminho e cuja vida terminou de modo fecundo e perfeito. Eles não precisam temer que alguém os afaste do lugar que lhes foi designado.

O teólogo jesuíta Francis Sullivan escreve:

A carta dos romanos aos coríntios, conhecida como I Clemente, que data de cerca do ano 96, provê boa evidência de que cerca de trinta anos após a morte de Paulo, a igreja de Corinto era conduzida por um grupo de presbíteros, sem indicação da presença de um bispo com autoridade sobre toda a igreja. (From Apostles to Bishops: the development of the episcopacy in the early church. Newman Press, Mahwah (NJ), 2001, p. 16)

Os apologistas católicos costumam apresentar 1 Clemente como evidência do papado. Todavia, os estudiosos não concordam. William Lane, por exemplo, escreve:

O fato de que a igreja em Corinto foi fundada por Paulo e que ele foi identificado com o cristianismo romano através de indivíduos como Priscila e Áquila, pode ter encorajado um relacionamento contínuo entre as duas comunidades cristãs. Estas propostas parecem oferecer uma melhor explicação para a ocasião de 1 Clemente do que a sugestão de que representa a tentativa da igreja romana expandir sua esfera de influência. (“Social Perspectives on Roman Christianity during the Formative Years from Nero to Nerva: Romans, Hebrews, 1 Clement” in Judaism and Christianity in First-Century Rome, Ed. Karl P. Donfried & Peter Richardson Wipf & Stock: Eugene, 1998)

Cumpre mencionar que mesmo sendo uma carta da igreja de Roma, nenhum bispo é mencionado. O próprio Clemente não é mencionado. Essa ausência de identificação do líder da igreja romana (e de toda a igreja segundo os católicos) é vista pelos estudiosos como uma indicativo da ausência do bispo monárquico nessa igreja.

A principal objeção católica apela às cartas de Inácio. Claramente, a igreja de Inácio e as demais igrejas da Ásia já possuíam bispo monárquico. Os historiadores reconhecem que foi na Ásia que inicialmente o episcopado monárquico emergiu, porém essa não era a realidade de várias outras igrejas.  Em todas as outras cartas, Inácio cita o bispo da Igreja a quem se dirige, instando a comunidade a obedecê-lo e não fazer nada sem ele, mas misteriosamente, não faz nenhuma menção ao bispo na carta aos romanos. Isso seria inexplicável se o bispo de Roma fosse considerado o líder de toda a Igreja. Que argumento melhor não haveria em favor da unidade do que apontar aquele que é o exclusivo sucessor de Pedro, detentor das chaves do reino e rocha sobre a qual a Igreja está fundada? A melhor explicação para essa ausência já foi dada nesse estudo – nesta época, não havia em Roma um bispo monárquico. Tratava-se de uma Igreja fracionada em várias Igrejas domésticas governadas por presbíteros. Patrick Burke escreve:

O silêncio de Inácio relativo ao bispo monárquico em Roma, juntamente com a sua preocupação com ele em todas as outras cartas que escreveu, é mais do que um argumento de silêncio. É mais do que simplesmente uma ausência de evidência de um episcopado monárquico em Roma. Deve ser considerada evidência de que tal ofício não existia lá naquele momento. (Burke, op. cit., 508)

Os católicos argumentam que Inácio não parecia estar repassando uma inovação, mas algo já firmemente estabelecido há muito tempo. No entanto, Sullivan traz a posição dos historiadores:

Schoedel e outros estudiosos que defendem a autenticidade das cartas admitem que essas últimas declarações de Inácio provavelmente não correspondem à realidade [do episcopado monárquico] da Igreja em todo o mundo nos seus dias. Além disso, eles veem na urgência com que ele exortou as comunidades cristãs a respeito da unidade com o bispo uma indicação de que a estrutura episcopal ainda não era tão firmemente estabelecida como Inácio queria. (...) a noção de sucessão apostólica parece não ter desempenhado nenhum papel no pensamento de Inácio de Antioquia. Pelo contrário, como ele entendia, o bispo recebia sua autoridade diretamente de Deus. Ele nos deixa no escuro a respeito de como um determinado membro de uma Igreja viria a ser seu bispo. (Sullivan F.A. Op. Cit., pp. 127)

Na verdade, o episcopado monárquico ainda não era algo firmemente estabelecido na igreja de Inácio. Isso explica porque ele insiste tanto na autoridade do bispo como um remédio para o cisma. Tudo indica também que o próprio Inácio experimentou divisões em sua igreja, o que evidencia que a autoridade singular do bispo ainda não era plenamente aceita. Sullivan mais uma vez esclarece:

No entanto, Percy N. Harrison alegou que a Igreja de Antioquia deve ter sido perturbada por um cisma no momento que Inácio partiu para Roma. Schoedel concorda com essa conjectura, vendo nela uma explicação para as expressões de autocomiseração que ocorrem nas cartas. Essas refletiriam a perda de autoestima que Inácio teria sofrido se ele via a desunião de sua Igreja como um sinal de seu fracasso como bispo. Inácio foi certamente consciente do perigo de cisma nas Igrejas que visitou, e o tema principal de suas cartas lida com a manutenção da unidade com o bispo local. Portanto, não é improvável que essas exortações refletissem sua própria experiência de cisma. (Sullivan F.A. Op. Cit., pp. 106)

Policarpo de Esmirna – escrevendo à igreja de Filipos já na primeira metade do século II – afirma:

Por isso, é preciso que eles se abstenham de todas essas coisas, e estejam submissos aos presbíteros e aos diáconos, como a Deus e a Cristo. (Aos Filipenses 5:3)

A igreja era liderada por um colégio de presbíteros auxiliado por diáconos. Sullivan diz:

Dificilmente se pode evitar chegar à conclusão de que a Igreja de Filipos, no momento em que Policarpo escreveu esta carta, estava sendo conduzida por um grupo de presbíteros assistidos por diáconos, sem qualquer bispo sobre toda a comunidade. (Op. Cit., pp. 132)

Andrew Selby afirma:

Significativamente para os nossos propósitos, Policarpo não exorta ao επίσκοπος (bispo), que se existisse, seria de se esperar receber alguma forma de censura ou incentivo considerando a queda de Valente. (Selby, p. 85)

A evidência mais tardia e mais problemática para a doutrina romanista vem do Pastor de Hermas (uma obra da primeira metade do séc. II). Hermas relatava visões em que havia uma senhora que prefigurava a Igreja e um mensageiro que era chamado de Pastor. Ele era um membro da Igreja romana, portanto, importante testemunha de sua estrutura eclesial. O principal objetivo da obra era chamar à Igreja ao arrependimento.

Dize, portanto, aos chefes da Igreja que endireitem seus caminhos na justiça, a fim de receberem plenamente, com grande glória, o que lhes foi prometido. (Visão 2, cap. 6)

Sullivan afirma:

A palavra grega traduzida por "oficiais" é prohegoumenois, que também aparece em I Clemente 21:6. Literalmente significa "aqueles que vão antes e liderar o caminho"; tanto aqui como em I Clemente refere-se aos líderes da Igreja local. Em ambos os textos a palavra está no plural; não havia nenhum bispo de Corinto quando Clemente escreveu, nem há qualquer indicação de um único bispo na Igreja para a qual Hermas estava escrevendo. (Sullivan F.A, Op. Cit., pp. 134)

Ainda no Pastor de Hermas:

Depois disso, tive uma visão em minha casa. A mulher idosa apareceu e me perguntou se eu já havia entregado o livrinho aos presbíteros. Eu respondi que não. Ela continuou: Fizeste bem, porque tenho algumas palavras para acrescentar. Quando eu tiver terminado tudo o que tenho a dizer, tu o darás a conhecer a todos os eleitos. Farás duas cópias do livrinho e as mandarás, uma a Clemente e outra a Grapta. Clemente, por sua vez, mandará a cópia às outras cidades, porque essa missão é dele. Grapta exortará as viúvas e os órfãos. Tu o lerás para esta cidade, na presença dos presbíteros que dirigem a Igreja. (Visão 2, cap. 8)

Eu me dirijo agora aos chefes da Igreja e àqueles que ocupam os primeiros lugares. Não vos torneis semelhantes aos envenenadores. Eles levam seus venenos em frascos. Vós tendes vossa poção e veneno no coração. Estais endurecidos, recusais purificar vossos corações para temperar, com o coração puro, vosso pensamento na unidade, a fim de obter a misericórdia do grande Rei. Atenção, portanto, meus filhos, para que essas divisões não tirem a vossa vidaComo pretendeis instruir os eleitos do Senhor, se vós mesmos não tendes instrução? Instruí-vos, portanto, uns aos outros, e conservai a paz mútua, a fim de que também eu, apresentando-me alegre diante do Pai, possa falar favoravelmente a respeito de todos ao vosso Senhor. (Visão 3 cap. 17)

Hermas atesta a liderança colegiada na Igreja de Roma, sempre se referindo aos líderes no plural. Além disso, exorta os líderes que provavelmente estavam disputando entre si a preeminência sobre os demais. Vemos que além da ausência de um bispo (que dirá um papa?), a liderança dessa Igreja não era muito qualificada para instruir os fiéis. Sullivan reflete a opinião majoritária dos estudiosos a respeito:

Da ausência de qualquer referência a um bispo e as várias referências no plural para os líderes e presbíteros, a maioria dos estudiosos agora conclui que, durante o período em que esta obra foi escrita, a Igreja de Roma ainda tinha liderança colegial. (Op. Cit., pp. 138)

Nesse ponto, não podemos deixar de mencionar Justino Mártir. Ele escreveu também na primeira metade do século II, todavia o mais importante é que ele residia em Roma. Nele, não encontramos nenhuma menção ao bispo de Roma. É um silêncio inexplicável se lá estava o chefe de toda a igreja. Chegamos ao fim da primeira metade do séc. II. Em nossa jornada, vimos que a evidência aponta para inexistência do um bispo monárquico em várias igrejas cristãs, cujo exemplo notável e de maior interesse é Roma. Aqui precisamos lidar com a objeção católica mais forte a nossa tese – as listas de bispos das igrejas, principalmente, a lista de Roma. Se não havia nenhum bispo monárquico em Roma até a segunda metade do séc. II, como autores relativamente antigos como Hegésipo e Irineu poderiam ter produzido listas de bispos romanos que remontavam ao tempo dos apóstolos? A lista mais antiga é de Hegésipo que foi preservada por Eusébio:

Assim é, pois, que Hegésipo deixou-nos um monumento completíssimo de seu próprio pensamento nos cinco livros de Memórias que chegaram a nós. Neles mostra como, realizando uma viagem a Roma, esteve em contato com muitos bispos e como de todos eles recebeu uma mesma doutrina. Será bom escutá-lo, depois que disse algumas coisas sobre a Carta de Clemente aos Coríntios, acrescentar o seguinte: "E a igreja dos Coríntios permaneceu na reta doutrina até que Primo foi bispo de Corinto. Quando eu navegava para Roma, convivi com os Coríntios e com eles passei muitos dias, durante os quais me reconfortei com sua reta doutrina. E chegado a Roma, fiz-me uma sucessão até Aniceto, cujo diácono era Eleutério. A Aniceto sucedeu Sotero, e a este, Eleutério. Em cada sucessão e em cada cidade as coisas estão tal como pregam a lei, os profetas e o Senhor." (História Eclesiástica 4:22:1-3)

Trata-se de uma lista incompleta. Acredita-se que Irineu copiou sua lista de Hegésipo, portanto, os nomes que faltam em Hegésipo estariam em Irineu. Os estudiosos também chegaram a um virtual consenso a respeito dessas listas. O erudito patrístico católico Johannes Quasten escreve:

As palavras de Eusébio 'Γενομενος δε εν Ρωμη, διαδοχην εποιησαμην μεχρις Ανικητου' não indicam que Hegésipo compilou uma lista dos bispos de Roma, na ordem da sua sucessão, mas que em sua cruzada contra as heresias de seu tempo, visitou Corinto, Roma e outras cidades, a fim de averiguar a διαδοχην, ou seja, a tradição ou a preservação da verdadeira doutrina. (Johannes Quasten, Patrology Volume I (Ave Maria Press: Notre Dame, 1976), 286)

Quasten está dizendo que a lista de Hegésipo não é uma lista de bispos monárquicos. Sabemos que Hegésipo lutou contra a heresia gnóstica. Os gnósticos produziam listas de mestres através dos quais a doutrina gnóstica teria sido passada dos apóstolos até eles. Em resposta a esse argumento, tanto Hegésipo como Irineu vão produzir listas de bispos não para afirmar uma sucessão oficial de autoridade, mas para evidenciar que a doutrina apostólica foi mantida na igreja. Eles poderiam citar os homens que portaram essa doutrina e a passaram adiante. Sullivan esclarece ainda mais:

Argumentando a partir do fato de que o clero de Roma poderia fornecer a Hegésipo os nomes dos homens que naquela época se pensava como tendo sucedido um ao outro como "bispos" de sua Igreja desde o início, a maioria dos estudiosos agora conclui que esses homens devem ter sido os principais líderes e professores da Igreja romana. Quando os presbíteros se reuniram para uma celebração comunitária da Eucaristia, um deles deveria presidi-la, e muito provavelmente esse teria sido o presbítero reconhecido como o mais competente líder e professor. Em que momento o "presbítero que preside" começou a ser chamado de "bispo" e ser reconhecido como o pastor chefe da Igreja de Roma, nós não sabemos. É certo, porém, que pelo tempo de Aniceto, isto é, não muito tempo depois da metade do século II, esse desenvolvimento teve lugar em Roma, como teve em Corinto e em todas as outras igrejas que Hegésipo visitou no caminho do Oriente a Roma. (Op Cit, p. 143)

Hegésipo não poderia citar todos os presbíteros que lideravam a igreja romana em sua lista. Isso não serviria ao seu objetivo apologético anti-gnóstico. Ele então escolheu alguns nomes. Sullivan nos diz o critério que foi utilizado. Entre os presbíteros, um deles se destacou seja por ser um professor de maior renome ou por presidir a Eucaristia, por isso tal bispo foi mais tarde lembrado e figurou nas listas de sucessão.  Peter Lampe, autor da obra mais reconhecida na academia sobre o cristianismo em Roma nos primeiros séculos, afirma sobre Hegésipo:

Não está em causa de nenhuma maneira provar uma sucessão de bispos monárquicos dos apóstolos até o presente. O que ele retrata em sua mente eram cadeias de portadores de crenças corretas, ele tinha a opinião de que poderia reconhecer tal afirmação também em Roma. Mais do que isso não está no texto. (Christians at Rome in the First Two Centuries: From Paul to Valentinus. A&C Black, 2006, pp. 404)

Sobre o texto de Hegésipo, é importante observar que apesar de a palavra bispo estar presente na tradução portuguesa, ela não consta do texto grego da obra de Eusébio. Hegésipo está falando sobre a "sucessão", mas a palavra "ἐπίσκοπος", ou "bispos" não está no texto grego. Em vez disso, ele afirma que elaborou para si uma sucessão de διαδοχην, ou de “professores ou mestres”. Isso se encaixa com a explicação de que não se intentava produzir uma lista de bispos monárquicos, mas de portadores de doutrinas corretas. Muitos autores têm apontado que Hegésipo era um convertido do judaísmo. Josefo testemunha que os judeus mantinham listas de mestres ou professores para demonstrar a antiguidade e veracidade de uma determinada doutrina. É bem provável que Hegésipo tenha copiado esse exemplo e utilizado como ferramenta em sua luta contra o gnosticismo. Os mesmos argumentos são válidos para Irineu. Quasten escreve:

(...) Irineu pretende demonstrar que as fábulas e ficções dos gnósticos são estranhas à tradição apostólica. Assim, esta passagem que citamos não se refere à constituição eclesiástica, mas a fé que é comum a todas as igrejas individuais, que está em nítida oposição a Gnosis e suas especulações. (Op. Cit, 303)

Irineu estava igualmente preocupado em demonstrar uma sucessão de doutrina. Obviamente, os nomes que ele trouxe eram presbíteros reais, mas não eram bispos monárquicos. 

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