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segunda-feira, 23 de maio de 2016

A virgindade perpétua de Maria e a evidência histórica - Parte 2


Orígenes (?-254)

J. B. Carol nos dá um bom resumo da visão de Orígenes:

Há uma perspectiva bastante diferente entre Tertuliano e Orígenes sobre a virgindade perpétua de Maria. Depois de examinar de perto estas divergências e seus fundamentos, dificilmente se pode evitar a impressão de que a resposta pode ser encontrada em práticas ascéticas cristãs e na medida em que elas influenciaram esses dois autores. Tertuliano foi, sem dúvida, um asceta, mas como em todas as outras coisas, de acordo com suas próprias luzes e temperamento singular. (ibid)

Carol toca num ponto fundamental que nos explica o principal fundamento do aparecimento e desenvolvimento da virgindade perpétua na igreja. Esse ponto é o surgimento e ascensão do ascetismo. Os ascetas acreditavam que para servir a Cristo idealmente era necessário “sair do mundo”. Entre outras coisas, isso incluía viver uma vida isolada de oração e celibato. Entre eles, era vigente a ideia de que a vida celibatária era superior ao casamento. Uma pessoa atingiria maior santidade vivendo dessa forma. Dessa ideia errada é que surge a virgindade perpétua. Ou seja, a ideia não surge como uma tradição independente e objetiva em si, mas como uma implicação de outra ideia. Se o estado virginal era superior, como poderia então a própria mãe de Jesus não ter sido sempre virgem? Percebam a relação de causa e efeito. Não foi um suposto exemplo virginal de Maria sempre ensinado pela igreja que inspirou o ascetismo. Foi o ascetismo que projetou em Maria seus próprios ideias popularizando uma visão sem apoio bíblico e histórico.

O problema é que se trata de anacronismo. Maria não era uma cristã asceta do séc. I. Ela era uma mulher judia e casada. Não havia no judaísmo do século I um ideal asceta. Pelo contrário, os filhos eram vistos como uma bênção de Deus. Uma mulher casada não ter filhos era motivo de tristeza e sinal de maldição. A Escritura relata o caso de Ana que orou a Deus pedindo um filho que não podia ter por ser estéril. Deus a atendeu e ela se tornaria a mãe de Samuel (1 Sm. 1:10). Então, além de Maria não viver segundo um ideal asceta, ele ainda de fato se casou. Seria muito improvável que ela não mantivesse uma vida conjugal normal com seu marido. Paulo chega a dizer que é um direito do cônjuge ter relações sexuais com seu companheiro (1 Cor. 7:3). Não é de se estranhar que uma crença equivocada tenha gerado outra crença equivocada. Carol ainda nos dá outra informação valiosa. Ele afirma que Tertuliano também era um asceta. Isso coloca ainda mais peso em seu testemunho, pois mostra que não tinha alguma pré-disposição para negar a virgindade perpétua. Muito pelo contrário, a pré-disposição seria no sentido oposto. Carol prossegue:

Quando Orígenes tratou a questão da virgindade perpétua de Maria após o nascimento de Cristo, ao contrário de Tertuliano, ele não tinha considerações polêmicas, mas enfrentou o problema de frente, objetivamente, e para seu próprio bem. No entanto, em sua solução ele foi inspirado, em sua própria admissão, pelos pontos de vista de certos ascetas contemporâneos, dedicados a uma vida de virgindade consagrada; na sua opinião, era impossível e inconcebível que Maria tivesse se submetido a qualquer homem depois de ela ter sido ofuscada pelo poder do Altíssimo (...) Será que Orígenes e os ascetas de sua época consideravam que a virgindade perpétua de Maria excluía a perda dos sinais de integridade virginal em seu corpo no momento de dar à luz Cristo? Esta questão não pode ser respondida com certeza absoluta. Parece, no entanto, que o próprio Orígenes não reconheceu a conexão entre o que hoje chamamos de virgindade no parto e a virgindade pós-parto. A primeira não era desconhecida para ele. Ele enfrentou o problema em seu comentário sobre a Epístola a Tito e rejeitou o nascimento virginal (141). Além disso, não encontramos nenhuma indicação contrária em quaisquer textos de Orígenes que são certamente autênticos. Assim, ele se expressou em termos incompatíveis com a virgindade de Maria no parto em suas Homilias sobre São Lucas, (142) traduzidas por São Jerônimo. Do ponto de vista contrário expresso na tradução Rufino das homilias de Orígenes sobre Levítico podemos concluir que Orígenes vacilou sobre este assunto ou que ele mudou sua opinião definitivamente? G. Jouassard é da opinião que Rufino muito provavelmente reescreveu o texto original de Orígenes para torná-lo conforme a sua visão pessoal de que Maria permaneceu virgem no parto. (Ibid)

As duas referências onde Orígenes nega a virgindade no parto são as seguintes:

(141) Texto preservado na Apologia para Orígenes por Panfilo e Eusébio; PG, 17, 554, e reproduzido na PG, 12, 493 f.

(142) Homilia em Lucas, 14; PG, 13, 1834, 1836 f

Infelizmente, não encontrei nenhum recurso online com essas obras em inglês. Resumidamente, nós temos Clemente defendendo a virgindade no parto e Orígenes no pós-parto. Nenhum dos dois pode ser contado como testemunha para virgindade perpétua. A questão é se algum deles considerava essas ideias artigos de fé ou tradições apostólicas. Carol responde:

O contraste entre a posição inflexível de Clemente e a posição vacilante de Orígenes (e as próprias declarações de Clemente corroboram isso) mostram que os católicos no Egito consideravam que a questão da virgindade de Maria no parto foi aberta à discussão e de maneira nenhuma resolvida definitivamente. O mesmo era verdade para virgindade pós-parto de Maria? Sem dúvida, pois apesar de Orígenes adotar a opinião de Clemente aqui, ele nunca afirma ou mesmo implica que havia qualquer obrigação para um católico fazê-lo. Em vez disso expressa sua clara compreensão de que a virgindade de Maria após o parto era a visão particular daqueles ascetas dedicados à prática da virgindade e foi baseada em seu conceito de sua virgindade completa e perpétua. (Ibid)

Ao defender um ou outo elemento da doutrina romanista, Clemente e Orígenes definitivamente não estavam defendendo um artigo de fé. Eles basicamente estavam adotando uma opinião influenciados por ascetas cristãos ou narrativas de pouco valor histórico. Carol ainda escreve:

Assim, temos o seguinte quadro de uma parte considerável do mundo católico no final do segundo século e a primeira parte do terceiro, ou seja, a liberdade completa para representar a virgindade de Maria como se quisesse, com exceção de sua concepção virginal, que foi claramente considerada como um dogma além de toda disputa. (Ibid)

Um último apontamento – boa parte dos argumentos usados pelos católicos para dispensar Tertuliano também deveriam ser usados para Orígenes. Ele foi visto como um herege por alguns pais da igreja posteriores (Jerônimo por exemplo). Muitas de suas obras inclusive foram queimadas como uma condenação às suas ideias. Por esse motivo, diferente de outros autores do período, ele não foi canonizado pela igreja romana. Apesar de tudo isso, quando o testemunho de Orígenes favorece a igreja romana num certo ponto, eles não veem problema em usá-lo.

Vitorino de Pettau (250-304)

No famoso debate entre Jerônimo e Helvídio, o segundo apresentou Vitorino como testemunha contra a virgindade perpétua. Jerônimo então respondeu:

Você, se sentindo uma pessoa sem conhecimentos, usou Tertuliano como sua testemunha e citou as palavras de Vitorino, bispo de Perávio. De Tertuliano não direi senão que não pertenceu à Igreja. Mas com respeito a Vitorino, afirmo que já ficou provado pelo Evangelho - que ele falou dos irmãos de Nosso Senhor não como sendo filhos de Maria, mas irmãos no sentido que expliquei, ou seja, irmãos sob o ponto de vista de parentesco, não de natureza. Estamos, contudo, desperdiçando nosso percurso com ninharias e deixando a fonte da verdade, estamos seguindo insignificantes pontos de opinião. Não deveríamos arrolar contra você toda a série de escritores antigos? Inácio, Policarpo, Irineu, Justino Mártir e muitos outros homens apostólicos e eloquentes, que expuseram as mesmas explicações contra Ebião, Theodoro de Bizâncio e Valentino, escreveram volumes repletos de conhecimentos. Se você alguma vez lesse o que eles escreveram, você se tornaria um homem sábio. Mas eu penso que é melhor refutar brevemente cada ponto do que prolongar meu livro por uma extensão indevida. (Contra Helvídio cap. 19)

Jerônimo aceita o testemunho de Tertuliano, mas não aceita o de Vitorino. Uma boa parte das obras de Vitorino se perdeu, mas parece que ele fez declarações relevantes sobre o tema.  Quem estaria certo? Infelizmente não conhecemos nada da obra de Helvídio sobre o assunto, a não ser pelo que Jerônimo escreveu. Como ele era um oponente no debate, não é uma fonte muito confiável. Mas, será que podemos descobrir qual lado estava certo? Entendemos que o testemunho de Helvídio é mais credível pelos seguintes motivos:

(1)  Helvídio é mais cuidadoso. Ele cita apenas dois autores em favor de sua opinião (embora pudesse citar mais), enquanto Jerônimo cita vários pais da igreja e outros homens apostólicos;

(2)  Jerônimo cita quatros escritores antigos nos quais não há nenhuma afirmação da virgindade perpétua em obras preservadas. Estariam então em obras não preservadas? Muito improvável. Jerônimo não parece conhecer qualquer obra além das que conhecemos hoje. Na verdade, em outros lugares ele menciona apenas os oito documentos de Inácio e Policarpo que temos hoje, sugerindo que não tinha conhecimento de quaisquer outras disponíveis em sua geração (Vidas dos Homens Ilustres 16-7). Eusébio, escrevendo várias décadas mais cedo, confirma que esses oito documentos eram tudo o que tinha sido preservado de Inácio e Policarpo (História da Igreja 3:36 e 4:14). E como já vimos, em seus escritos que são existentes, Irineu parece contradizer a virgindade perpétua de Maria. Não há também em qualquer obra de Justino uma afirmação dessa doutrina. Pelo menos Policarpo e Inácio foram deturpados por Jerônimo. O que esses autores fizeram foi apenas afirmar a concepção virginal de Cristo;

(3)  Jerônimo não diz que Vitorino afirmou explicitamente a virgindade perpétua. Ele se limita a dizer que quando Vitorino se referiu aos irmãos de Jesus os entendia como primos. Ou seja, ele não nega as palavras de Vitorino trazidas por Helvídio, apenas dá a elas um significado diferente daquele aplicado pelo seu oponente. Ocorre que a tese de Jerônimo não foi defendida por nenhum pai da igreja anterior. Àqueles que afirmavam a virgindade perpétua defendiam que os irmãos de Jesus eram filhos de outro casamento de José. Além disso, a interpretação de Jerônimo estava errada, uma vez que os autores do Novo Testamento escreveram em grego e tinham à disposição palavras específicas para designar primos e irmãos. Como Jerônimo deturpou outros pais da igreja, não é improvável que tivesse feito o mesmo com Vitorino.

O erudito patrístico J.N.D Kelly sumariza os problemas da resposta de Jerônimo:

A evidência do Novo Testamento ainda está em discussão, mas a grande maioria dos estudiosos críticos concordam que a sua [Helvídio] interpretação e não a de Jerônimo é a correta. Os esforços de Jerônimo para contornar o significado óbvio dos textos são tidos por pessoas hoje como apelo especial, o subproduto de sua convicção prévia de que a relação sexual é impura. Sua lista dos pais ortodoxos que o apoiavam era uma desonesta cortina de fumaça típica de seu estilo de debate; é duvidoso que ele tivesse qualquer familiaridade com os escritores que listou, mais duvidoso ainda que eles mantivessem os pontos de vista que atribuiu a eles. (Jerome [Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2000], 106-7)

Kelly também faz o ponto de que a visão de Jerônimo mudou ao longo do tempo, ele teria inicialmente rejeitado a virgindade no parto, mas depois a aceitou (p. 106). Esse desenvolvimento nos dá ainda mais razão para confiar em Helvídio ao invés de Jerônimo. Além disso, essa mudança de opinião evidencia a improcedência de um elemento central da defesa católica: a ideia de que essa sempre foi a fé da igreja. Como temos demonstrado em nossos artigos, os católicos costumam se agarrar a qualquer testemunho em favor de sua doutrina e rapidamente concluir que ela sempre foi a fé da igreja e acreditada por todos os autores ortodoxos. Ao fazer isso, eles “varrem para debaixo do tapete” qualquer autor cristão contrário sob o argumento de que se trata apenas de uma opinião privada. O fato de mesmo autores favoráveis a uma determinada doutrina católica mudarem de posição ao longo da vida revela a falsidade desse argumento. Se a virgindade no parto era algo sempre crido pela igreja, seria esperado igualmente que Jerônimo sempre tivesse sempre crido nela. Mais a frente vamos discutir novamente a posição de Jerônimo sobre a virgindade no parto. Defendemos que na verdade ele nunca mudou de posição.

A virgindade perpétua no século IV

É no século IV que a ideia da virgindade perpétua começa a se sedimentar na igreja. No entanto, isso não se deu sem resistência. Vamos dar uma boa olhada nos testemunhos patrísticos desse período.

Eusébio de Cesareia (263-339)

Carol escreve:

Aqui [início do séc. IV] encontramos a doutrina do nascimento virginal vista com uma certa inquietação nos círculos católicos, por causa do medo do docetismo e maniqueísmo. Este fato não deveria ser surpreendente, pois por volta da mesma época, Eusébio de Cesareia manifesta os mesmos sentimentos, embora ele negue explicitamente que os "irmãos do Senhor" são filhos de Maria. (Ibid)

Eusébio não acreditava na virgindade no parto. Embora ele afirme que os irmãos de Jesus são filhos de Maria, não há nele afirmação da virgindade pós parto. Na nota de rodapé n. 157, Carol aponta as referências a respeito da resistência de Eusébio à virgindade no parto:

Cf. Texto de Orígenes citado com aprovação na Apologia reeditada em colaboração com Pânfilo, PG, 17, 554, e, especialmente, Demonstr. Evangel, 10; PG, 22, 773-776.

Lembremos que esse texto de Orígenes continha uma negação explícita da virgindade no parto.

Atanásio de Alexandria (296-373)

Atanásio é frequentemente citado como testemunha da virgindade perpétua, por outro lado, Carol escreve:

Santo Atanásio estava totalmente convencido dos pontos de vista de seu mestre e antecessor relativos à vida de virgindade, no entanto, na medida em que ele falou muito de Maria em seus escritos que chegaram até nós em grego, ele manifesta tal reserva em relação à Maria que é difícil determinar se ele acreditou no nascimento virginal. Por outro lado, em um trabalho que nos foi transmitido em copta, e muito provavelmente verdadeiro, ele é muito menos reservado. O manuscrito deste ensaio é incompleto e também textualmente imperfeito; no entanto, o suficiente pode ser lido para entender que Atanásio defende vigorosamente contra seus adversários que Nossa Senhora não tinha filhos, senão a Jesus (...) No Egito, encontramos Santo Atanásio ensinando claramente virgindade pós-parto de Maria. No entanto, ele está ciente de que sua visão não é universalmente aceita, mas é ainda atacada. Ele não revela surpresa com esta oposição, e de forma alguma propõe seus próprios pontos de vista como um artigo da fé católica. Nada mais forte pode ser encontrado em seu contemporâneo, São Cirilo de Jerusalém. Por uma questão de registro, nem uma palavra pode ser encontrada sobre a virgindade pós-parto de Nossa Senhora em suas famosas catequeses. Eusébio de Cesaréia foi igualmente reservado. Se a Acta Archelai é um produto deste meio palestino, eles confirmam a atitude de reserva em relação a virgindade pós-parto de Maria, e mostram hostilidade contra o nascimento virginal. (Ibid)

Atanásio era um asceta, logo é de se supor a base sobre a qual afirmava a virgindade pós-parto de Maria, Todavia, embora não haja uma declaração explícita, ele provavelmente não acreditava na virgindade no parto. Carol levantou um ponto fundamental que é vital para o nosso estudo. Mesmo no séc. IV, muitos defensores da ideia não a consideravam um artigo de fé.  Como esclarecido no início, a crença na virgindade perpétua em si não é um problema para a teologia protestante. No máximo, tratar-se-ia de um equívoco histórico. O verdadeiro problema é esse equívoco ser elevado a condição de dogma. Vemos que pais da igreja séculos depois dos apóstolos não consideravam a questão uma crença obrigatória.

Efrém o Sírio (306-373)

Carol prossegue:

Restringindo a nossa atenção para estes escritos apenas [escritos autênticos], não podemos evitar a conclusão de que ele também é bastante reservado, e que o que ele escreve sobre Maria está longe de sempre ser à sua honra. Nós encontramos testemunho positivo à virgindade pós-parto de Maria apenas em seu comentário sobre o Diatessaron, e isso por meio de uma tradução armênia. Mesmo aqui, não há questão de propor virgindade pós-parto de Maria como um objeto de crença dogmática; um fato que deveria nos tornar menos surpresos ao encontrar no Oriente, até mesmo no meio do quarto século, pessoas às vezes de considerável autoridade e prestígio, que atribuíram a Jesus um verdadeiro cortejo de irmãos e irmãs.

Apologistas católicos costumam argumentar que somente hereges afirmavam que Jesus tinha irmãos. Nada poderia estar mais longe da realidade.

Basílio de Cesareia (330-379)

Tal é o fato inegável [muitas pessoas de autoridade negavam a virgindade perpétua]; talvez não no caso de Apolinário, apesar do rumor bastante comum que ele negou a virgindade pós-parto de Nossa Senhora. Santo Epifânio, que estava ciente do rumor, achava difícil de acreditar. Qualquer que seja a verdade a respeito das opiniões de Apolinário, não pode haver absolutamente nenhuma dúvida sobre o famoso bispo Eunomio de Cyzicum, que não hesitou em arejar a sua negação da virgindade pós-parto de Maria, em uma catedral cristã, provavelmente em Constantinopla, e na presença do Patriarca Eudoxio. Estes homens eram arianos, é verdade, e esse fato provavelmente explica a sua autoconfiança em parte, mas apenas em parte, uma vez que os arianos, bem como os católicos chamavam Maria de "Virgem" ou mesmo "Santa Virgem".

Carol traz o testemunho do ariano Eunomio e um possível testemunho de uma fonte ortodoxa (Apolinário). Os católicos obviamente vão alegar que se trata de um ariano, mas o que é mais esclarecedor vem a seguir na resposta dada por Basílio:

A resposta provocada pelo discurso Eunomius é típica do temperamento e atitude dos tempos. A resposta veio de uma fonte católica, que temos fortes razões para acreditar que foi São Basílio, na forma de um discurso sobre a festa da Teofania. Neste sermão, após breves comentários sobre a geração eterna do Verbo, o autor retoma o seu ponto principal, que é comentar o relato do nascimento temporal do Cristo dada por São Mateus. O autor também concentra a sua atenção sobre a possibilidade de relações conjugais entre Maria e St. José depois do nascimento de Cristo. Ele rejeita essa possibilidade, mas não apelando à crença dogmática. Ele não tem consciência de qualquer obrigação sob este ângulo, e até mesmo generosamente admite que não existe tal obrigação. A fé, ele candidamente admite, exige apenas que se acredite na permanência da virgindade de Maria até (e incluindo) a Encarnação. Após a concepção virginal não há nenhuma obrigação imposta pela fé.

Essa é uma evidência claríssima de que a virgindade pós-parto não era um artigo de fé mesmo no sec. IV. O ônus da alegação romanista é não apenas mostrar a presença da ideia, mas sua elevação à artigo de fé. Vejamos a citação diretamente de Basílio:

[A opinião de que Maria deu à luz várias crianças depois de Cristo] (...) não é contrária à fé, pois a virgindade foi imposta à Maria como uma necessidade, apenas até o tempo em que ela serviu como um instrumento para a Encarnação, enquanto, por outro lado, a sua virgindade subsequente não tinha grande importância no que diz respeito ao mistério da Encarnação. (Homilia in sanctum Christi generationem; PG, 31, 1457-1476)

O erudito J.N.D Kelly também escreve:

O interesse na virgem bendita aumentou consideravelmente no século que se seguiu ao concílio de Nicéia, mas se o tratamento de alguns temas marianos experimentava avanço significativos, em certos locais a abordagem de outros permanecia estagnada. Tanto no Oriente como no Ocidente, houve uma poderosa influência exercida pelo prestígio imenso, e cada vez maior, alcançado pela virgindade nos círculos ascéticos (...) mas devemos observar que, conquanto Cirilo de Jerusalém tenha se calado a respeito, não apenas os antidicomarianos atacados por Epifânio e o ariano Eunômio ensinavam abertamente que os “irmãos do Senhor” eram filhos de Maria com José, mas também Basílio de Cesareia, ao criticar este último, deixou implícito que tal ideia era amplamente aceita e, embora ele próprio não a aceitasse, não era incompatível com a ortodoxia. (J.N.D Kelly, Patrística, Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã [Editora Vida Nova, 1994], p. 377-378)

Kelly adiciona que essa visão, além de não ser contra a fé da igreja, era amplamente aceita naquele tempo. Apesar disso, o que levava Basílio a defender a virgindade pós-parto? Carol diz:

Apesar deste aberto reconhecimento da liberdade de opinião, o autor passa a enfatizar que muitos excelentes cristãos - ele os chama de "Philochristoi" - recusariam admitir que Nossa Senhora teve relações conjugais com St. José. Ele aceita e defende seus pontos de vista e acrescenta como uma razão a narrativa de um certo Zacarias, que morreu em defesa da honra de Maria. Podemos passar sobre esta razão confirmatória, que não é certamente adequada para provar a virgindade pós-parto de Maria, mas não devemos encobrir a situação revelada por tal fábula sendo usada como prova. Pois, é evidente a partir deste discurso que em uma região do mundo grego, aparentemente, a Ásia Menor, um importante homem da igreja, sem dúvida, o Arcebispo de Cesaréia, St. Basílio nem suas Igrejas metropolitanas não detinham a virgindade perpétua de Maria como uma verdade dogmática.

Basílio acreditava no apócrifo de Zacarias. Tratava-se de uma lenda segundo o qual um judeu chamado Zacarias – testemunha ocular dos fatos – teria morrido por defender que Jesus não teve um pai terreno. Na nota de rodapé n. 173 se escreve:

A referência à fonte apócrifa concernente a um determinado Zacarias, mencionada por Orígenes em seu comentário em Mat., Serm. 25; PG, 13, 1631 f. A partir destas indicações em Orígenes e Basílio, parece claro que esta história foi pela primeira vez dada ao público para conciliar em favor para Zacarias, como uma testemunha autorizada e, além disso, um judeu, em apoio da virgindade pós-parto de Maria. Zacarias, então a história prossegue, foi condenado à morte por ter considerado que Jesus não nasceu de um pai terreno. Posteriormente, a história foi utilizada para insinuar algo mais, ou seja, que Maria nunca teve relações conjugais com o marido. O mesmo incidente e uso dela é encontrado num discurso que pode vir de Gregório de Nissa; cf. PG, 46, 1136 f.

Epifânio de Salamina (320-403)

Os pontos de vista de Santo Epifânio estavam destinados a ter uma influência cada vez maior no Oriente, e, finalmente, serem aceitos sem questionamento. A grande autoridade desfrutada por ele como Bispo de Constância é bem conhecida. Ele colocou no seu catálogo de heresias a visão que negou a virgindade pós-parto de Nossa Senhora, sem, no entanto, citar qualquer precedente eclesiástico; sua palavra era suficiente. Embora o termo "heresia" naquela época não era muito preciso e de maneira nenhuma tinha o significado técnico rigoroso dos nossos dias, é bastante claro que, embora não em todos os lugares, nem imediatamente, a doutrina atacada por Epifânio foi geralmente considerada como oposta à ortodoxia (...) Foi este conceito que parece ter sido o fundamento da sua [João Crisóstomo] segurança sobre a virgindade de Maria, pois ele estava absolutamente convencido de sua virgindade perpétua, e especificou o nascimento virginal - uma convicção não encontrada, como vimos, em Epifânio, nem em São Gregório Nazianzeno, e apenas vagamente proposta por Anfilóquio.

Epifânio foi o primeiro a afirmar a virgindade pós-parto como um artigo de fé. No entanto, como bem observou Carol, ele não citou nenhuma tradição eclesiástica precedente, nem poderia porque não havia. O próprio Epifânio, porém, negou a virgindade no parto. Kelly escreve:

Embora Epifânio ainda sustentasse que “o Unigênito abriu o ventre virginal” (Haer 78:19), não nos surpreendemos ao encontrar Crisóstomo proclamando em harmonia com Gregório de Nissa a virgindade de Maria no nascimento de Jesus e também depois. (Op Cit, p.378)

No Oriente, serão Crisóstomo e Gregório de Nissa os primeiros a defenderem a virgindade perpétua.  São teólogos que escreveram na segunda metade do século IV e início do século V. Carol prossegue:

Será que estamos justificados em afirmar que a virgindade perpétua de Nossa Senhora foi universalmente aceita neste momento no Oriente? Temos todas as razões para fazer a pergunta, porque no fim deste período, São Nilo escreveu contra determinadas pessoas que afirmavam o contrário. Sua posição é apresentada em três cartas endereçadas a um elevado homem da igreja chamado Cirilo, provavelmente Cirilo de Alexandria. Naturalmente, se levanta a questão de saber os próprios pontos de vista de Cirilo sobre o assunto, mas temos de nos contentar em dizer que não há nada nos escritos de Cirilo antes de 428 contra a virgindade perpétua de Maria, nem, é preciso confessar, a favor.

Apesar de não dispormos hoje das obras de Cirilo a respeito da virgindade de Maria, Carol admite que era ele a quem provavelmente Nilo respondia. De qualquer forma, é certo que se tratava de um homem da igreja de posição elevada e não de alguém considerado herege. Isso evidencia que mesmo no século V, a virgindade perpétua de Maria ainda não era considerada um artigo de fé obrigatório no Oriente. Traçada a evolução histórica no Oriente, passemos aos pais do ocidente.

Pais da igreja do Ocidente sobre a virgindade perpétua

Hilário (300-368) foi o primeiro defensor no ocidente da virgindade pós-parto. Porém, negou a virgindade no parto. Kelly escreve:

Hilário, por exemplo, atacou com violência as pessoas que afirmavam que Maria não havia permanecido virgem depois do nascimento de Jesus e foi enfático em dizer que os “irmãos de Jesus eram filhos que José teve num casamento anterior”. Mas, ainda assim, ele considerava que o nascimento teria acontecido naturalmente (De Trin 01.47). (Kelly, p. 379)

Sem dúvida, os principais responsáveis pela aceitação da virgindade perpétua no Ocidente foram Ambrósio, Jerônimo e mais tarde Agostinho. Kelly diz:

Mas foram Jerônimo, Ambrósio e Agostinho os que mais contribuíram para a mariologia no Ocidente. Deve-se notar que, durante muito tempo, Jerônimo rejeitou abertamente a virgindade no parto, ao passo que defendia vigorosamente a virgindade pós-parto. Ele foi responsável pela teoria, que mais tarde prevaleceria no Ocidente, de que os “irmãos” de Jesus tinham sido, na verdade, seus primos, e que tanto Maria como José foram virgens a vida inteira. Quanto a Ambrósio, apesar de hesitações iniciais quanto à sua virgindade no parto [Exposição em Lucas 2:57], ele se tornou um ferrenho defensor da virgindade perpétua de Maria (...) Agostinho reuniu e aprimorou os temas mariológicos então estabelecidos. Ele foi um eloquente defensor da virgindade perpétua de Maria, sustentando que, se o Cristo ressuscitado podia entrar num ambiente passando por portas fechadas, não havia razão que o impedisse de sair do ventre dela sem violá-lo. (Ibid)

Na sua reposta a Helvídio (um oponente da virgindade perpétua), Jerônimo diz:

Você pergunta: "São as virgens melhores do que Abraão, Isaac e Jacó, que foram casados? Não são as crianças diariamente moldadas pelas mãos de Deus no útero de suas mães? E se assim é, somos constrangidos a nos ruborizarmos pelo pensamento de Maria tendo um marido depois do parto? Se julgam que há alguma desgraça nisto, não deviam coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem por parto normal. Porque de acordo com esses, há mais desonra numa virgem dando à luz a Deus pelos órgãos geradores, do que numa virgem que se juntou a seu próprio esposo depois que deu à luz".

Acrescente, se quiser, Helvídio, as outras humilhações da natureza, o útero de nove meses se tornando cada vez maior, a doença, o parto, o sangue, os cueiros. Imagine você mesmo o menino envolto na placenta. Imagine a dura manjedoura, o choro do menino, a circuncisão no oitavo dia, o tempo de purificação, de modo que possa ficar comprovado que tudo era impuro. Não enrubescemos, você não nos impõe silêncio. Maior humilhação Ele sofreu por mim, a maior que o atingiu. E quando você tiver dado todos os detalhes, não estará apto a apontar nada mais vergonhoso do que a cruz que confessamos, na qual acreditamos e pela qual triunfamos sobre todos nossos inimigos. (Contra Helvídio 18)

Helvídio afirma que por coerência, os defensores da virgindade deveriam aceitar o parto normal. Em sua resposta, Jerônimo não nega o parto normal, mas o confirma. Ele se defende afirmando que nada disso era desonroso para Cristo, pois humilhação maior sofreu na cruz. No cap. 12, ele é ainda mais claro. Ao responder o argumento de que Jesus foi chamado de primogênito, ele o define não como necessariamente um filho único, mas como o primeiro filho a “abrir o útero da mãe”:

A palavra de Deus define "primogênito" como todo aquele que abriu o útero (...) À toda hora a Escritura assim fala do Salvador: "E quando chegou o dia de sua purificação, de acordo com a lei de Moisés, eles o levaram a Jerusalém para apresentá-lo ao Senhor [como está prescrito na lei do Senhor, todo macho que abre o útero deve ser consagrado ao Senhor] e para oferecer em sacrifício de acordo com o que é prescrito na lei do Senhor, um par de rolinhas ou duas pombas novas" (...) Mas visto que, como aquele que não tem irmãos mais novos, é sujeito à lei do primogênito, deduzimos que é chamado primogênito aquele que abre o útero da mãe (...)

Carol nos dá um relato da controvérsia causada por Helvídio:

Além disso, desde o início do seu episcopado, Ambrósio foi um fervoroso defensor da virgindade e das práticas ascéticas do monaquismo egípcio, feito conhecido no Ocidente por Santo Atanásio, que passou vários períodos de exílio em Treves, Roma e norte da Itália. Estes ideais e práticas não eram recebidos com favor universal. No ano 380, um certo Carterio entrou em Roma para abraçar a causa da virgindade e práticas monásticas. Ele formulou o argumento principal de sua afirmação a partir da virgindade absoluta e perpétua de Maria. Na época havia hostilidade acentuada em alguns círculos romanos contra essas práticas ascéticas, devido, provavelmente, a uma reação contra priscilianismo e maniqueísmo. O próprio Prisciliano visitou Roma e Milão nos anos 381-382, em uma tentativa de firmar suas visões doutrinárias. Entre certos grupos parece ter tido uma forte tentação para identificar e fixar em conjunto todos os defensores da vida ascética e da prática da virgindade com a facção priscilianista.

Carterio logo encontrou um claro oponente em Helvídio. Apesar das tentativas de St. Jerônimo para desacreditá-lo completamente, Helvídio era um homem de inteligência e de nenhuma maneira desprovido de boa formação teológica e literária. Ele escreveu um ensaio bem construído com a intenção de provar que Maria teve outros filhos além de Jesus, mas sem qualquer desejo malicioso de denegrir a Mãe de Cristo. Pelo contrário, sua intenção era exaltar o que ele considerava sua dupla grandeza - a virgindade admirável e milagrosa até o nascimento de Cristo e sua maternidade exemplar ao dar à luz aos irmãos e irmãs do Senhor mencionados nos Evangelhos. Seu propósito final era provar contra Carterio que a virgindade não é superior ao casamento, mas sim perfeitamente igual em perfeição; os dois estados de vida foram vividos com igual perfeição pela Mãe do Salvador.

Esse tratado de Helvídio impressionou o meio Romano profundamente e de forma tão eficaz que até converteu ao seu ponto de vista alguns dos principais promotores do ascetismo e da prática da virgindade. Entre os que permaneceram firmes em sua convicção da superioridade da virgindade havia grande ansiedade, mas a hierarquia não tomou parte no conflito. Nesta conjuntura, St. Jerônimo tomou a defesa contra Helvídio.

Esse relato nos os seguintes pontos importantes: 

(1) Helvídio não era um herege, mas sim um cristão ortodoxo com boa formação teológica e gozava de prestígio em Roma;

(2) A questão central não era a pessoa de Maria, mas um embate de visões sobre a superioridade da virgindade ao casamento. Isso só reforça o argumento de que a igreja não recebeu nenhuma sólida tradição a respeito da virgindade de Maria. O estado virginal da mãe de Jesus era o efeito e não a causa das ideias ascéticas;

(3) A hierarquia da própria igreja romana não se envolveu na questão. Não poderia haver evidência mais clara de que a virgindade perpétua não era um artigo de fé mesmo em Roma nesse período.

A defesa de Jerônimo fez sucesso. Ele conseguiu suprimir Helvídio e reanimar o ascetismo em Roma. Todavia, ainda restava oponentes. Carol prossegue:

No entanto, os adversários não foram de modo algum silenciados. Um pouco mais tarde, 389-390, eles renovaram o ataque mais uma vez em Roma. O papa São Dâmaso tinha morrido e foi sucedido pelo papa Sírico que estava longe de ser contados entre os amigos de Jerônimo. Na verdade, antes da eleição eles haviam sido rivais. Daí a situação de Jerônimo em Roma era completamente diferente dos dias de Dâmaso, e ele foi obrigado a fugir para o Oriente, fulminando profecias terríveis contra a Babilônia [Roma]. O novo ataque foi lançado por Joviniano que tinha por um tempo seguido a vida ascética, mas tinha cansado e relaxado em seus esforços. A partir deste momento, começou a zombar furtivamente de seus antigos companheiros, em palavras e por escrito. Agora, no entanto, a Santa Sé interveio prontamente.

A reação da igreja de Roma foi diferente contra Joviniano. Sírico condenou suas teses e contou com a ajuda de Ambrósio de Milão:

Imediatamente após a recepção do pedido do Papa, St. Ambrósio trouxe toda a matéria diante de um sínodo composto pelos bispos do norte da Itália. Este sínodo não só fez a sua própria condenação romana, mas mesmo a ultrapassou, por sinalizar como errônea a negação da virgindade de Maria no parto, que tinha passado em silêncio pela condenação de Roma a Joviniano. Esta negação foi considerada pelos bispos do norte da Itália como sendo tão grave quanto à negação da virgindade pós-parto de Nossa Senhora.

Toda essa questão gerou uma situação delicada. O sínodo de Milão afirmou como necessário a crença na virgindade no parto, no entanto, o próprio Jerônimo havia negado isso:

São Jerônimo, com a sua autoridade inquestionável e prestígio, tinha tomado a defesa de Maria contra Helvídio sem admitir que ela era virgem no nascimento de Cristo. Na verdade, sua descrição do nascimento de Cristo igualou-se ao realismo da descrição de Tertuliano. Sem dúvida, Jerônimo foi motivado por seu horror aos apócrifos e sua repulsa de aceitar a sua doutrina sobre o nascimento virgem.

Percebe-se que Jerônimo, um asceta e advogado ferrenho da virgindade pós-parto, não conseguia encontrar nenhum fundamento para a virgindade no parto nas Escrituras. Os documentos mais antigos a que se podia apelar era somente os apócrifos. Mas, pela delicadeza da questão, Jerônimo teve que a contragosto escrever uma resposta:

Tudo isto deve ter sido profundamente embaraçoso para St. Jerônimo. Sem dúvida, ele teria preferido declinar, mas as circunstâncias não lhe permitiria permanecer em silêncio. Ele finalmente escreveu seu "Contra Joviniano", um extenso trabalho em que ele passa a maior parte de seu esforço na defesa dos advogados da virgindade e das práticas ascéticas. Por outro lado, ele fala muito pouco da Virgem. De fato, seu papel é tão pequeno que um leitor que não sabia nada sobre as circunstâncias históricas nunca poderia suspeitar que a questão da sua virgindade no parto foi a única ocasião do trabalho. A única indicação disso está contida em poucas linhas misturadas a um desenvolvimento exegético.

Jerônimo claramente não estava convicto da virgindade no parto e não poderia considera-la um artigo da fé católica. Obviamente a resposta a Joviniano não satisfez os círculos ascéticos, mas Jerônimo não escreveu nenhum esclarecimento adicional:

A questão da visão real de São Jerônimo sobre o nascimento virginal, e do seu acordo ou desacordo com St. Ambrósio e o Sínodo de Milão, não foram elucidados além deste ponto. St. Ambrósio teve a caridade, bem como tato para perceber e apreciar a posição embaraçosa de St. Jerome (...)

Carol parece implicar que Jerônimo de fato nunca acreditou na virgindade no parto. Se fosse o caso, ele teria dado uma resposta clara e enérgica como fez contra Helvídio. Joviniano não seria o último oponente ocidental da “sempre virgem”. Ambrósio teria que enfrentar outro:

Nesse meio tempo, St. Ambrósio estava prestes a entrar em uma nova polêmica envolvendo Bonoso, o Bispo de Sardica na Ilíria, que pertencia à zona de penumbra em que o latim e línguas e culturas grega se misturavam. Por volta do ano 390, Bonoso tomou e espalhou a ideia de que Nossa Senhora não permaneceu virgem após o nascimento de Cristo. Nós já vimos que, durante este período, no Oriente, este ponto de vista poderia ser apresentado sem provocar qualquer escândalo, mesmo entre os católicos de Constantinopla. Não é, portanto, surpreendente que a mesma doutrina tenha alcançado o interior da Ilíria, e tenha encontrado um defensor. Mas a influência de Jerônimo, Ambrósio e dos sínodos de Roma e Milão eram muito poderosas e generalizadas para permitir que tais pontos de vista passassem em branco nesta fronteira do Leste. As alegações de Bonoso provocaram a reação hostil dos bispos vizinhos, que remeteram o assunto para um sínodo convocado em Capua durante o inverno de 391-392. Em vez de emitir uma decisão, este sínodo preferiu enviar o caso de volta aos Bispos da Ilíria, que um pouco mais tarde voltou-se para Milão em busca de orientação, como o próprio Bonoso tinha feito anteriormente. St. Ambrósio se recusou a julgar o assunto, já que Bonoso não estava sob sua jurisdição. No entanto, ele forneceu aos bispos de Ilíria as diretivas e argumentos para uma solução da crise.

O principal argumento de St. Ambrósio derivava da maternidade divina e suas exigências. Assim supridos com bem documentadas opiniões, os bispos da Ilíria não tardaram em solenemente na excomunhão de Bonoso e na classificação de sua doutrina como herética. Temos, assim, uma nova intervenção da autoridade eclesiástica sobre a questão da virgindade pós-parto de Maria; ocorrida em uma seção do mundo católico que tinha ligações naturais entre o Oriente e o Ocidente, e, portanto, não podia deixar de exercer uma influência muito superior ao que se poderia esperar de um sínodo puramente local. Pelo que vimos, a sua influência talvez não fosse completamente decisiva para a Igreja Oriental. Já para o Ocidente, limitava-se a enfatizar uma doutrina que já era totalmente aceita. (Ibid)

Somente no final do século IV é possível verificar a existência de sínodos locais condenando opiniões contrárias à virgindade perpétua como herética. Essa opinião se restringia a determinadas localidades da igreja. A parte Oriental ainda seria tolerante a essas opiniões. Destaca-se que Bonoso era bispo de uma importante igreja. Apesar de sua posterior condenação, ele não poderia ser contado como participante de algum grupo herético. Tratava-se da oposição de alguém da própria igreja. Agostinho por sua vez foi influenciado por Ambrósio e defenderia opiniões exatamente iguais:

St. Agostinho, sem hesitação, chamou tanto Helvídio como Joviniano de hereges, e a virgindade perpétua de Maria foi colocada para além de qualquer discussão ou dúvida no Ocidente.

No século V, a virgindade perpétua já estava solidificada no Ocidente. Os protestantes corretamente observam que o desenvolvimento dessa doutrina se deu sob uma base equivocada. Não foi por uma sólida exegese do texto bíblico ou uma confiável tradição histórica. Carol esclarece os motivos:

Neste desenvolvimento, temos observado constantemente a influência lenta, mas profunda dos ascetas sobre a doutrina da virgindade de Maria. Esta influência começou muito cedo, em grande parte devido a Orígenes. Seu efeito não pode ser devidamente avaliado, a menos que nós lembramos que a questão da virgindade de Maria nunca foi dissociada da questão da sua santidade pessoal na visão dos ascetas. Uma implicava a outra necessariamente, e elas eram inseparáveis. O movimento ascético aumentou imensamente no século IV.

O próprio Juniper Carol reconhece que sob uma base puramente histórica, nenhuma igreja poderia exigir fé dogmática na virgindade perpétua. O ponto de vista asceta era apenas um dentre outros vigentes historicamente na igreja. Essa sequer era uma visão muito antiga. Vimos que a primeira defesa explícita da virgindade perpétua só foi acontecer 300 anos depois dos apóstolos. O especialista católico escreve:

Sob a orientação infalível do Espírito Santo, o Magistério finalmente deu a sua decisão irrevogável em conformidade essencial com os pontos de vista primeiramente expostos e desenvolvidos pela escola ascética. Esta decisão nunca teria sido tomada, se a Igreja não tivesse reconhecido na sua doutrina uma verdadeira expressão de fé.

Esse é o único motivo razoável para alguém acreditar não apenas nesse, mas nos outros dogmas marianos. A evidência bíblica ou histórica não os favorece. Apenas a crença numa igreja infalível os torna aceitáveis. Ou seja, é preciso aderir a um equívoco para acreditar em outro equívoco. É importante mencionar que a virgindade perpétua só seria afirmada pelo Sexto Concílio Ecumênico em 680. Nenhum dos cinco concílios anteriores tratou da questão. Ainda assim, mesmo no século V, não se poderia falar de um consenso da igreja:

Esta plena consciência não se desenvolveu de forma consistente ou de forma uniforme em todas as partes do mundo católico. O período que acabamos de traçar revelou esta desigualdade, especialmente entre o Oriente e o Ocidente. O Ocidente, pouco antes do Concílio de Éfeso (431), tinha avançado muito além do Oriente e tinha chegado a uma convicção resolvida e inabalável a respeito santidade pessoal de Maria e de sua virgindade perpétua. No Oriente, nada absolutamente decisivo tinha sido aceito universalmente sobre estes dois pontos fundamentais da teologia mariana. Ainda havia adversários de sua virgindade, que não eram, por esta razão, considerados hereges.

Conclusão

Após esta longa viagem histórica, somos capazes de afirmar alguns pontos:

(1) A evidência histórica não favorece a virgindade perpétua de Maria;

(2) Apesar de se desenvolver rapidamente no século quarto e atingir um virtual consenso no quinto, isso se deveu a bases frágeis como literatura apócrifa de nenhum valor histórico ou preconceitos ascetas;

(3) Quando analisamos a evidência histórica mais antiga (especialmente do século II), verificamos um claro direcionamento para negação da virgindade perpétua.

2 comentários:

  1. Bruno, paz seja convosco. Sei que não tem a ver com o assunto desse artigo, mas um católico me mandou esse artigo em defesa dos livros apócrifos

    http://matt1618.freeyellow.com/deut.html#But

    Haveria a possibilidade de escrever uma resposta ao mesmo?

    Grato, Deus te abençoe.

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    Respostas
    1. Graça e Paz Thiago,

      Eu já conheço esses argumentos, principalmente a tentativa de apresentar pais da igreja que negaram o cânon romanista como advogados desse mesmo cânon. Eu pretendo sim escrever uma série de artigos sobre o cânon. Só vou necessitar de um pouco de tempo. No momento, estou escrevendo artigos sobre os dogmas marianos que pretendo publicar nas próximas semanas.

      Acredito que em até um mês eu comece a publicar artigos sobre o cânon. Já existe algum material de qualidade em português que você pode conferir abaixo:

      http://www.e-cristianismo.com.br/teologia/bibliologia/o-canon-dos-judeus.html (série de artigos excelente em relação ao cânon - é o melhor material disponível em português a respeito)

      http://www.e-cristianismo.com.br/teologia/bibliologia/o-canon-do-velho-testamento-da-era-da-igreja-a-jeronimo.html (Parte 2 que trata do cânon entre os pais da igreja)

      A parte 3 que trata do cânon na idade média ainda não foi traduzida para o português - pode ser vista em inglês aqui: http://www.christiantruth.com/articles/Apocrypha3.html.

      Essa parte é especialmente interessante porque mostra que muitos teólogos na idade média seguiram o mesmo cânon de Jerônimo. Os católicos geralmente apontam o concílio de Hipona e Cartago como aquele que definiu autoritativamente o cânon para toda a igreja. Mas ninguém após esses concílios acreditava nisso. A questão continuou em aberto por séculos.

      No site do Lucas tem alguns artigos que respondem os principais argumentos católicos:

      http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/search/label/C%C3%A2non%20B%C3%ADblico?updated-max=2015-02-11T05:53:00-02:00&max-results=20&start=9&by-date=false

      O site conhecereis a verdade também tem algum material:

      http://conhecereis-a-verdade.blogspot.com.br/

      Apesar de em português já termos material de boa qualidade, de fato ainda há muitos argumentos não tratados. Se você puder ler em inglês. Eu recomendo os seguintes sites que possuem material de muita profundidade:

      http://triablogue.blogspot.com.br/
      http://turretinfan.blogspot.com.br/
      http://www.christiantruth.com/articles_roman_catholicism.php
      http://beggarsallreformation.blogspot.com.br/

      Prometo trazer algo detalhado e de qualidade dentro de algumas semanas.

      Fique na PAZ!

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