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sexta-feira, 29 de abril de 2016

Justificação somente pela Fé (Sola Fide) nos Pais da Igreja - Parte 2


Jerônimo (347-420)

Deus justifica pela fé somente. (In Epistolam Ad Romanos, Caput X, v. 3, PL 30:692D)

Aquele que com todo o seu espírito tem colocado sua fé em Cristo, mesmo que ele morra em pecado, por causa de sua fé viverá para sempre. (Epistola CXIX, Ad Minervium et Alexandrum Monachos)

Não poderia ser mais oposto à teologia romana. Jerônimo tinha uma visão que não sendo totalmente parecida é muito semelhante à doutrina da perseverança dos santos. Todos aqueles que tiveram fé genuína, ainda que morram em pecado, serão salvos. Jacques Le Goff escreve:

S. Jerónimo, embora inimigo de Orígenes, é, no que diz respeito à salvação, o mais “origenista”. Exceto Satanás, os que negam Deus e os ímpios, todos os seres mortais, todos os pecadores serão salvos: “Assim corno cremos que os tormentos do Diabo, de todos os que o negam e de todos os ímpios que dizem no seu coração "não há Deus" serão eternos, assim, em compensação, pensamos que a sentença do juiz para os pecadores cristãos, cujas obras são postas à prova e expurgadas no fogo, será moderada e impregnada de clemência”. (The Birth Of Purgatory [Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1986], p. 61)

Jerônimo defende que as obras dos pecadores cristãos passarão pelo fogo e eles se salvarão. Esse parece um conceito semelhante ao purgatório, mas há um elemento da doutrina romanista que falta – todos os pecadores cristãos, mesmo aqueles que morreram em pecado mortal, serão salvos. A igreja romana diz que um cristão genuíno pode até o fim da vida cometer pecador mortal e caso o cometa, irá para o inferno sem direito ao purgatório. O erudito patrístico J.N.D. Kelly confirma essa opinião:

Jerônimo desenvolveu a mesma distinção, afirmando que, enquanto o Diabo e os ímpios que negaram Deus serão torturados sem remissão, aqueles que confiaram em Cristo, mesmo aqueles que pecaram e se afastaram, acabarão por ser salvos. O mesmo ensinamento aparece em Ambrósio, desenvolvido em mais detalhe. (Early Christian Doctrines [San Francisco, California: HarperCollins Publishers, 1978], p. 484)

Ambrósio de Milão (337-397)

Deus escolheu que o homem deveria buscar a salvação pela fé e não por obras, para que ninguém se glorie perante as suas obras e assim incorresse em pecado. (In Psalmum XLIII Enarratio, §14, PL 14:1097)

A implicação é que somos salvos somente pela fé.

Eu não tenho como me gloriar nas minhas obras. Eu não tenho nada para me gabar, por isso, eu vou me gloriar em Cristo. Eu não vou me gloriar porque eu sou justo, mas porque eu estou redimido. Eu não vou me gloriar porque eu estou livre do pecado, mas porque os meus pecados estão perdoados. Eu não me gloriarei porque tenho feito o bem a alguém ou alguém tem feito o bem para mim, mas porque Cristo é o meu advogado junto ao Pai e porque o sangue de Cristo foi derramado por mim. (George Finch, A Sketch of the Romish Controversy [London: G. Norman, 1831], p. 220)

Ambrósio não endossaria a ideia de que nossas boas obras acumulam méritos diante de Deus. Ele também parece concordar com a ideia da morte substitutiva de Cristo ao dizer que seu sangue foi derramado por ele.

Isaque sentiu o mau cheiro das vestes possivelmente significando que não somos justificados pelas obras, mas pela fé, uma vez que a fraqueza da carne é um obstáculo para obras, mas o brilho da fé, que merece o perdão dos pecados, derruba o erro das ações. (On Jacob and the Happy Life, Book 2, Chapter 2, Section 9)

Outras citações de Ambrósio a respeito poderiam ser trazidas, mas por questão de brevidade encerramos aqui. Destacamos que Ambrósio concordava com Jerônimo que todos os cristãos que tiveram fé seriam salvos.

João Crisóstomo (349-407)

Assistais a isto, vós que vêm para o batismo no fim da vida, para nós, na verdade, orem para que após o batismo tenhais também este comportamento (...) Pois, do que tu és justificado: É só da fé. Mas nós oramos para que tu possas ter bem a confiança que vem de boas obras. (NPNF1: Vol. XIII, On the Second Epistle of St. Paul The Apostle to the Corinthians, Homily 2, §8)

Crisóstomo é um dos pais da igreja em que afirmações sobre a Sola Fide são mais abundantes, apesar de ter sido inconsistente em alguns momentos.

Aqueles que eram inimigos, e pecadores, nem justificados pela lei, nem por obras, devem imediatamente através da fé somente ser avançado para o mais alto favor. Sobre este assunto em conformidade Paulo tem discursado longamente em sua Epístola aos Romanos, e aqui novamente em comprimento. "Esta é uma palavra fiel", diz ele, "e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores." Como os judeus foram principalmente atraídos por isso, ele convenceu a não darem ouvidos à lei, desde que não poderiam alcançar a salvação por Ele sem a fé. (NPNF1: Vol. XIII, Homilies on First Timothy, Homily 4, 1 Timothy 1:15, 16)

Para uma pessoa que não tinham obras ser justificada pela fé não era nada improvável. Mas para uma pessoa ricamente adornada com boas ações, não deve ser feito apenas a partir disso, mas de fé, isso é uma coisa que causa grande admiração e define o poder da fé numa forte luz. (NPNF1: Vol. XI, Homilies on the Epistle of Paul the Apostle to the Romans, Homily 8, Rom. 4:1,2)

A última citação afirma que uma pessoa pode ser justificada pela fé sem obras.

A missão de Deus não era salvar as pessoas para que permanecessem estéreis ou inertes. A Escritura diz que a fé nos salvou. Colocado de forma melhor: Uma vez que Deus quis isso, a fé nos salvou. Agora, neste caso, diga-me, a fé salva sem ela própria fazer absolutamente nada? A fé operante em si é um dom de Deus, para que ninguém se glorie. O que então Paulo está dizendo? Não que Deus proibiu obras, mas que ele nos proibiu de ser justificado pelas obras. Ninguém, diz Paulo, é justificado pelas obras, justamente para que a graça e benevolência de Deus possa se tornar aparente. (Homily on Ephesians 4.2.9. Mark J. Edwards, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VI: Galatians, Ephesians, Philippians [Downers Grove: InterVarsity Press, 1998], p. 134)

Não poderia haver uma declaração mais clara a favor da Sola Fide. Crisóstomo defende que somos justificados pela fé e não por obras. Isso se dá para que o homem não se glorie, pois a salvação e até mesmo a fé é um dom de Deus.

Ambrosiastro (366-384)

Ambrosiastro é um ator cristão desconhecido que escreveu comentários sobre as epístolas paulinas no séc. IV. Ele ficou conhecido por esse nome porque por muito tempo essa obra foi atribuída a Ambrósio.

[Em Romanos 3:24] Eles são justificados gratuitamente, porque eles não fizeram nada, nem deram nada em troca, mas somente pela fé que temos sido santificados pela dádiva de Deus. (Gerald Bray, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VI: Romans [Downers Grove: InterVarsity Press, 1998], p. 101)

[Em Romanos 3:27] Paulo diz para aqueles que vivem sob a lei, que eles não têm razão para se vangloriar baseando-se na lei e por ser da raça de Abraão, vendo que ninguém é justificado diante de Deus a não ser pela fé. (Ibid., p. 103)

Deus decretou que uma pessoa que crê em Cristo pode ser salva sem as obras. Pela fé, recebe o perdão dos pecados. (Gerald Bray, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VII: 1-2 Corinthians [Downers Grove: InterVarsity Press, 1999], p. 6)

[Em Romanos 4:6] Paulo corrobora esta afirmação [justificação sem obras] com o exemplo do profeta David, que diz que são abençoados aqueles os quais Deus decretou que, sem obras ou qualquer observância da lei, são justificados diante de Deus pela fé. (Gerald Bray, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VI: Romans [Downers Grove: InterVarsity Press, 1998], p. 113)

Como, então, os judeus pensam que eles foram justificados pelas obras da lei da mesma forma que Abraão, quando veem que Abraão não foi justificado pelas obras da lei, mas pela fé? Portanto, não há necessidade da lei quando o ímpio é justificado diante de Deus pela fé. (Gerald Bray, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VI: Romans [Downers Grove: InterVarsity Press, 1998], p. 112)

Todas são citações muito claras. É impressionante que alguém ainda insista que ninguém defendeu a justificação somente pela fé antes da Reforma. Em consonância à Sola Fide, Ambrosiastro tinha um conceito idêntico a Jerônimo – todos àqueles que tiveram fé serão salvos, embora os pecadores tenham que passar por uma purificação pós-morte. O mesmo comentário feito sobre Jerônimo é cabível aqui – não se pode falar em doutrina do purgatório – pois para essa, nem todo cristão pecador será salvo, mas apenas os que morreram em pecados não graves. Le Goff comenta:

Ambrosiastro, embora não traga grande coisa de novo em comparação com Ambrósio, tem de especial e de importante o fato de ser o autor da primeira autêntica exegese do texto de Paulo de I Coríntios 3:10-15. A este título, teve grande influência nos comentadores medievais deste texto essencial para a gênese do Purgatório, em especial nos primeiros escolásticos do século XII. Como Hilário e Ambrósio, ele distingue três categorias: os santos e os justos que irão diretamente para o Paraíso quando da ressurreição; os ímpios, os apóstatas, os infiéis e os ateus que irão diretamente para os tormentos do fogo do Inferno; e os simples cristãos que, embora pecadores, depois de terem sido purificados durante certo tempo pelo fogo e de terem pago a sua dívida, irão para o Paraíso porque tiveram fé. Comentando S. Paulo, escreve: “Ele (Paulo) disse: ‘mas como através do fogo’ porque esta salvação não existe sem sofrimento; e não disse: ‘Será salvo pelo fogo’; mas quando ele disse: ‘como através do fogo’ quis mostrar que essa salvação há de vir, mas que tem de sofrer as penas do fogo; para que, expurgado pelo fogo, seja salvo, e não como os infiéis (perfidi), atormentados pelo fogo eterno para sempre; se, por algum pedaço da sua obra, ele tem algum valor, é porque acreditou em Cristo”. (Op. Cit., p. 61)

J. N. D Kelly confirma:

Encontramos Ambrosiastro ensinando que, enquanto o realmente mau, “será atormentado com o castigo eterno", o castigo dos pecadores cristãos vai ter uma duração temporária. (Op. Cit., p. 484)

Nesse ponto alguém poderia dizer que Jerônimo e Ambrosiastro não teriam ensinado justificação somente pela fé já que eles também defenderam algum conceito de purificação pós-morte. Dada a clareza do que eles disseram sobre a justificação, proponho duas hipóteses mais prováveis de explicação:

(1) Eles foram inconsistentes. Isso é muito comum nos pais da igreja – o que é reconhecido por qualquer estudioso patrístico. Muitas vezes as pessoas detém uma ideia sem refletir sobre suas implicações e acabam tendo opiniões conflitantes;

(2) Uma segunda hipótese é que eles viam essa purificação pós-morte como um elemento somente santificador, sem ter nenhum tipo de punição em vista. Essa não é a posição da igreja romana quando ensina o purgatório, mas pode ser a opinião desses pais. A teologia reformada defende que Deus usa os sofrimentos dessa vida para santificar os crentes. Lemos em Hebreus 12:5-7:

E estais esquecidos da Palavra de encorajamento que Ele vos dirige como a filhos: “Meu filho, não desprezeis a disciplina do Senhor, nem desanimeis quando por Ele sois repreendido, pois o Senhor disciplina a quem ama, e educa todo aquele a quem recebe como filho”. Suportai as dificuldades, aceitando-as como disciplina; Deus vos trata como filhos. Ora, qual o filho que não passa pela correção do seu pai?

A diferença é que essa disciplina seria exercida também no pós-morte. Por motivos óbvios, a teologia protestante rejeita essa purificação pós-morte por sua natureza anti-bíblica (A Escritura trata exaustivamente do pós-morte sem fazer qualquer menção a uma purificação para além dessa vida). Todavia, a crença numa santificação (sem qualquer elemento punitivo) não é necessariamente inconsistente com a doutrina da justificação pela fé somente.

Cirilo de Alexandria (378-444)

Visto que a lei condenou os pecadores e por vezes impôs a pena suprema sobre aqueles que a desobedeceram de forma não misericordiosa, como foi a nomeação de um sumo sacerdote verdadeiramente compassivo e misericordioso não necessário para os habitantes da terra; aquele que iria revogar a maldição, examinar o processo legal e libertar os pecadores com o perdão da graça e comandos baseados na docilidade? "Eu", diz o texto, "Eu sou o que apago as tuas transgressões por meu próprio amor, e eu não lembrarei seus pecados" [Is. 43: 25]. Nós somos justificados pela fé, não por obras da lei, como a Escritura diz [Gal. 2: 16]. Pela fé em quem somos justificados? Não é naquele que sofreu a morte segundo a carne por nossa causa? Não é o único Senhor Jesus Cristo? (Against Nestorius in Norman Russell, Cyril of Alexandria [London: Rutledge, 2000], p. 165)

O enfoque da citação é cristológico (contra a concepção de Nestório), mas Cirilo acaba tratando da justificação. Ele afirma o ensino paulino de justificação somente pela fé, não pelas obras da lei. É muito improvável que a referência fosse apenas à lei cerimonial, pois Cirilo afirma que a lei condenou os pecadores. Um gentio, por exemplo, não poderia ser condenado pela lei cerimonial judaica, pois não lhe devia obediência. Dessa forma, tanto Paulo como Cirilo estavam apontando a lei como um tudo, incluindo os comandos morais.

Porque na verdade, a compaixão que veio do Pai é Cristo, quando ele tira os pecados, rejeita as acusações, justifica pela fé e recupera o perdido e o faz mais forte do que a morte. O que é bom e ele não dá? Portanto, o conhecimento de Deus é melhor do que sacrifício e holocaustos, pois ele leva à perfeição em Cristo. Porque por ele e nele temos conhecido o Pai, e nos tornamos ricos na justificação pela fé. (Commentary on Hosea. Alberto Ferreiro, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament XIV: The Twelve Prophets [Downers Grove: InterVarsity Press, 2003], p. 29)

Cirilo não faz uma oposição direta entre fé e obras, mas num contexto que fala de justificação, ele menciona apenas a fé.

Fulgêncio de Ruspe (468-533)

O abençoado Paulo argumenta que somos salvos pela fé, que ele declara não ser de nós, mas um dom de Deus. Assim, não há possibilidade de haver verdadeira salvação onde não há verdadeira fé, e uma vez que esta fé é divinamente habilitada, ela é sem dúvida dada por sua livre generosidade. Onde há verdadeira crença através da verdadeira fé, a verdadeira salvação certamente a acompanha. Qualquer pessoa que se afasta da verdadeira fé não possui a graça da verdadeira salvação. (On the Incarnation 1)

Fulgêncio afirma a suficiência da fé para a salvação. Ele está comentando Efésios 2:8 que diz que a fé é um dom de Deus. É justamente por essa fé ser de origem divina que “Onde há verdadeira crença através da verdadeira fé, a verdadeira salvação certamente a acompanha”. Em outras palavras, não há como alguém ter essa fé (um dom de Deus) e não ser salvo. Ele ainda afirma que se alguém se afasta dessa fé é porque nunca teve a graça da salvação. Isso contraria a soteriologia romana que afirma a possibilidade de um verdadeiro cristão perder a graça salvadora sempre que comete pecado mortal.

João Damasceno (675-749)

João é um pai da igreja tardio (às vezes considerado o último deles). Seu comentário sobre Tiago é especialmente importante para nosso assunto:

Cabe-nos, então, com toda a nossa força se manter puro das obras imundas, que podem como o cão voltar ao seu próprio vômito [2 Pedro 2:22], nos tornando novamente escravos do pecado. Pois a fé sem obras é morta, e assim são também as obras sem a fé, pois a  verdadeira fé é atestada pelas obras [Tiago 2:26]. (An Exposition of the Orthodox Faith, vol. 4, chapter 9, "Concerning Faith and Baptism” - PG 94:1121-22)

Essa é precisamente a interpretação protestante de Tiago. A fé genuína necessariamente produz frutos. Já Roma ensina que alguém pode ter fé genuína e não se “manter puro das obras imundas” ditas por João Damasceno.

Andreas (século VII)

Andreas não é considerado um pai da igreja, mas por ser um cristão que provavelmente viveu no século VII, seu testemunho tem valor:

Agora, alguém pode opor-se a isso e dizer: "Será que Paulo não usa Abraão como um exemplo de alguém que foi justificado pela fé, sem obras. E aqui Tiago está usando o mesmo Abraão como um exemplo de alguém que não foi justificado somente pela fé, mas também pelas obras que confirmam aquela fé?" Como podemos responder a isso? Como pode Abraão ser um exemplo de fé sem obras, e também de fé com obras ao mesmo tempo? Mas a solução está pronta para ser entregue a partir das Escrituras. O mesmo Abraão é em momentos diferentes um exemplo de ambos os tipos de fé. A primeira é a fé pré-batismal, que não necessita de obras, mas apenas da confissão e da palavra de salvação, pelas quais aqueles que creem em Cristo são justificados. A segunda é a fé pós-batismal, que é combinada com obras. Assim entendido, os dois apóstolos não contradizem um ao outro, mas um único e mesmo Espírito está falando através de ambos. (J. A. Cramer, ed., Catena in Epistolas Catholicas (Oxford: Clarendon, 1840), p. 16)

Ele comenta Tiago 2:21, a passagem comumente utilizada para afirmar que a justificação é também por obras. O comentário de Andreas é semelhante à visão protestante. A justificação se dá pela fé que é confessada ao se ouvir a palavra de salvação. Nesse momento, o indivíduo é justificado. Perceba que a justificação não é tratada como um processo, mas como um ato consumado. Essa fé que inicialmente justifica não vem sozinha, ela necessariamente se combina com obras. Era dessa segunda etapa que Tiago tratava. Quem diz ter fé, mas não a expressa em obras não possui a fé salvadora, mas uma fé morta. A fé que Deus dá é viva e operante.

Importa destacar que as obras que Tiago descreve não são sacramentais. Ele não está falando de confissão e penitência, batismo e eucaristia. Tiago se refere às obras de misericórdia que fazemos pelo próximo. Ou seja, se Tiago estivesse de fato ensinando justificação por obras, ainda assim estaria falando de um tipo de justificação diferente do conceito romanista. Esse é um ponto que os católicos não se atentam ao usar essa passagem.

Beda o venerável (672-735)

Embora o apóstolo Paulo tenha pregado que somos justificados pela fé sem as obras, aqueles que entendem por isto que não importa se levam uma vida malvada ou fazem coisas perversas e terríveis, desde que creiam em Cristo, porque a salvação é pela fé, cometeram um grande erro. Tiago aqui expõe como as palavras de Paulo devem ser compreendidas. É por isso que ele usa o exemplo de Abraão, a quem Paulo também usou como um exemplo de fé, para mostrar que o patriarca também realizou boas obras em função da sua fé. Por isso, é errado interpretar Paulo de modo a sugerir que não importava se Abraão colocou a sua fé em prática ou não. O que Paulo queria dizer era que não se obtém o dom da justificação com base em méritos derivados de obras realizadas de antemão, porque o dom da justificação vem somente pela fé. (Beda, Super Divi Jacobi Epistolam, Caput II, PL 93:22)

Beda corretamente identificou que Paulo ensinou a justificação somente pela fé. A forma como ele harmoniza Paulo e Tiago usa o mesmo argumento que o protestantismo – Tiago se referia à fé morta como àquela que não gera obras. A fé salvadora, aquela que Abraão professou, gerava boas obras.

Pseudo-Oecumenius (Séc. VIII)

Abraão é a imagem de alguém que é justificado pela fé somente, uma vez que ele creu e isso lhe foi creditado como justiça. Mas ele também é aprovado por causa de suas obras, já que ele ofereceu seu filho Isaque sobre o altar. É claro que ele não fez essa obra por si só. Ao fazê-lo, ele permaneceu firmemente ancorado na sua fé, crendo que através de Isaque a sua descendência seria multiplicada até que fosse tão numerosa quanto as estrelas. (Comentário sobre Tiago 2:23)

Tecnicamente não se trata de um pai da igreja, mas ainda é uma fonte antiga. Abraão foi justificado somente pela fé e as obras são resultantes de sua fé.

Bernardo de Claraval (1090-1153)

A fragrância de sua sabedoria vem a nós que ouvimos, pois se alguém precisa de sabedoria peça a Ti e Tu dará a ele. É bem sabido que você dá a todos livremente e de bom grado. Quanto à sua justiça, tão grande é a fragrância difundida que Tu és chamado não somente de justo, mas de a própria justiça, a justiça que torna os homens justos. Seu poder de fazer os homens justos é medido por sua generosidade em perdoar. Portanto, o homem que sofre pelo desejo do pecado e deseja a justiça, confie naquele que transforma o pecador num homem justo e sentenciado justo nos termos da fé somente. Ele terá paz com Deus. (Kilian Walsh, O.C.S.O., Bernard of Clairvaux On the Song of Songs II (Kalamazoo: Cistercian Publications, Inc.,1983), Sermon 22.8, p. 20.)

Bernardo foi um teólogo medieval e não um pai da igreja. Essa citação é oportuna porque mostra que mesmo entre os teólogos medievais, a doutrina da justificação somente pela fé foi ensinada. O concílio de Trento adotou como oficial apenas uma das várias teorias da justificação vigentes na idade média – obviamente condenando a doutrina luterana da justificação. O estudioso católico romano Franz Posset escreve:

A histórica doutrina da justificação de Lutero é idêntica a de São Bernardo. (The Real Luther: A Friar at Erfurt and Wittenberg; Exploring Luther with Melanchthon as a Guide [St. Louis: Concordia, 2011], pp. 127)

O que poderia o homem, o escravo do pecado, sujeito ao diabo, fazer de si mesmo para recuperar aquela justiça que ele tinha anteriormente perdido? Portanto, ele que não tinha justiça teve outra imputada a ele, e desta forma: O príncipe deste mundo veio e não encontrou nada no Salvador, e porque ele [o diabo] pôs as mãos sobre o Inocente, perdeu a maior parte daqueles a quem manteve em cativeiro. Ele [Jesus] que não devia nada à morte, legalmente libertou aqueles que estavam sujeitos a ela, tanto da dívida da morte como do domínio do diabo, pela aceitação da injustiça da morte. Com qual justiça aquela [a morte] poderia ser extraída do homem uma segunda vez? Era o homem que devia a dívida, foi um homem que a pagou. Pois diz S. Paulo, se alguém morreu por todos, logo todos morreram [2 Cor. 5:14], de modo que, como um suportou os pecados de todos, a satisfação de um é imputada a todos. Não é que um pagou a dívida e outro satisfez. A cabeça e o corpo são um - Cristo. O Chefe satisfez pelos membros, Cristo pelos Seus filhos, uma vez que, de acordo com o Evangelho de Paulo, pelo qual a falsidade de Pedro [Abelardo] é refutada: “Aquele que morreu por nós, nos vivificou juntamente com Ele, nos perdoando todas as ofensas, apagando o escrito de dívida de ordenanças que era contra nós, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz, despojando os principados e potestades” [Col. 2:13-14].

Bernardo expressa a substituição penal de Cristo na cruz, por meio do qual sua justiça é imputada a nós apagando todo escrito de dívida que havia em nosso nome. Infelizmente, um católico romano não pode fazer tal afirmação. Ele não pode dizer que toda a dívida foi paga na cruz. Para o fiel católico ainda resta muita dúvida a ser paga através das suas próprias obras expiatórias.
  
Sola Fide antes da Reforma e a opinião dos estudiosos

A respeito da reação do Concílio de Trento à Reforma Protestante condenando a justificação pela fé somente, o erudito patrístico Jaroslav Pelikan escreveu:

O mais trágico de tudo foi a reação romana àquilo que era mais importante para os reformadores - a mensagem e ensinamento da igreja. Isso tinha de ser reformado de acordo com a palavra de Deus. A menos que fosse, nenhum aperfeiçoamento moral seria capaz de alterar o problema básico. As reações de Roma foram os decretos doutrinais do Concílio de Trento e o catecismo baseado nesses decretos. Neles, o Concílio de Trento selecionou e elevou ao status oficial a noção da justificação pela fé mais obras, o que era apenas uma das doutrinas da justificação existentes nos teólogos medievais e antigos pais. Quando os reformadores atacaram esta noção em nome da doutrina da justificação pela fé somente, uma doutrina também atestada por alguns teólogos medievais antigos pais, Roma reagiu canonizando uma tendência em relação a todas as outras. O que era antes permitido (justificação pela fé e obras), agora se tornou obrigatório. O que era antes permitido também (justificação pela fé somente), agora tornou-se proibido. Ao condenar a Reforma Protestante, o Concílio de Trento condenou parte de sua própria tradição católica. (The Riddle of Roman Catholicism (New York: Abingdon Press, 1959), pp. 51-52)

Em outras palavras, a questão da justificação estava em aberto mesmo na igreja romana. Por isso, não é difícil achar teólogos medievais expressando opiniões semelhantes à de Lutero. Em sua oposição à Reforma, Roma condenou aquilo que em tempos mais antigos era uma opinião aceitável mesmo em seu próprio seio. Por isso o argumento apologético de que a igreja romana estava apenas preservando a fé sempre sustentada pela igreja é ingênuo e espúrio. Qualquer um que tenha estudado em detalhes a história da igreja sabe que diversidade de crenças foi uma marca constante do cristianismo. A doutrina da justificação seria um exemplo notável. O consenso existia apenas em questões hoje consideradas fundamentais pelos principais ramos do cristianismo (ortodoxos, romanistas e protestantes).

Pelikan também escreve:

Existiam lado a lado na teologia pré-reforma várias maneiras de interpretar a justiça de Deus e o ato de justificação. Eles variaram de visões fortemente moralistas que pareciam equiparar a justificação à renovação moral e visões ultra forenses, que viam a justificação como uma "imputação nua" que parecia possível à parte de Cristo, por um decreto arbitrário de Deus. Entre esses dois extremos estavam muitas combinações, e apesar de certos pontos de vista predominar no tardio nominalismo, não é possível falar de uma única doutrina da justificação. (Ibid)

Nick Needham escreve:

A linguagem da justificação ocorre com razoável frequência nos pais. O que a linguagem significa? Embora nem sempre tenha a mesma precisa conotação, parece claro que há uma vertente muito importante de uso em que ela tem um significado basicamente forense (...) A abordagem forense desta linguagem sobre justificação é ainda ilustrado por outra vertente do ensino patrístico que emprega o conceito de imputação - computar ou creditar algo na conta de alguém, uma síntese de metáforas legais e financeiras, onde os livros que estão sendo guardados são os "livros julgamento". (Bruce McCormack, ed., Justification In Perspective [Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2006] p. 27-28, 32)

O erudito patrístico D.H Williams escreve:

A doutrina da justificação pela fé não se originou no período da Reforma, nem é o ensino de um emblema exclusivo do protestantismo. Os estudiosos evangélicos Timothy George e Thomas Oden corretamente observaram que a justificação pela fé não era uma nova doutrina inventada pelos reformadores. Além de documentos do Novo Testamento, a justificação pela fé encontra suas raízes na igreja primitiva. Declarado positivamente, a exegese da justificação pela fé é um ensinamento católico e pré-reformado, e os reformadores encontraram precedentes para este ensinamento nos pais primitivos, mesmo quando eles foram para novas direções com essas idéias. (D.H. Williams, Evangelicals And Tradition [Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2005], p. 129)

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