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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Os Pais da Igreja sobre Sucessão Apostólica e Papado - Parte 4

O ataque ao gnosticismo e a igualdade dos apóstolos

Uma das formas de saber a doutrina ensinada pela Igreja num determinado período é verificar sua resposta às heresias. O herege Marcião ensinava que Paulo era o único apóstolo verdadeiro e os livros verdadeiros eram apenas as cartas paulinas e o evangelho de Lucas. Dizia que o Deus do Antigo Testamento era diferente do Novo. Por esse motivo, Orígenes enfatiza que o mesmo Espírito Santo inspirou ambos os testamentos. Se os Pais da Igreja sustentassem que Pedro tinha sido o chefe dos apóstolos, que tinha autoridade sobre os demais, qual seria a resposta à heresia de Marcião? Afirmar claramente a primazia jurisdicional de Pedro. Os pais começaram a explicitar o cânon cristão em contraposição ao cânon de Marcião, assim como desenvolveram a doutrina da sucessão nos termos aqui tratados em resposta aos gnósticos que alegavam terem a verdadeira sucessão, da mesma foram afirmaram o conteúdo da tradição apostólica em contraposição à tradição gnóstica. Os pais responderam que os apóstolos eram iguais em autoridade e que em todos eles o evangelho de Cristo era encontrado. A esse respeito, o erudito patrístico Jaroslav Pelikan escreveu:

A segunda forma de continuidade da tradição apostólica era a continuidade dos apóstolos uns com os outros como os fiéis mensageiros de Cristo. Orígenes falou de forma totalmente trivial sobre os “ensinamentos dos apóstolos” (De prencipiis, Prefácio 4), que como os profetas do Antigo Testamento, tinham sido inspirados pelo Espírito Santo. Essa definição de continuidade apostólica era dirigida contra o isolamento de um apóstolo da comunidade apostólica. Irineu descreveu isso como uma característica da heresia de que cada herege selecionava parte do testemunho apostólico como um todo e, depois de adaptá-los ao seu sistema, elevava sua autoridade acima dos outros apóstolos (...) A resposta da Igreja a essa elevação de Paulo foi a atribuição de autoridade apostólica a toda comunidade apostólica e ao cânon do Novo Testamento e, por conseguinte, à insistência de que não havia conflito entre o ensinamento de Paulo e dos outros apóstolos. “Pedro era apóstolo exatamente do mesmo Deus que o de Paulo” (Contra as Heresias 3:13:1); e Tertuliano afirmou que Pedro, no martírio, estava no mesmo patamar que Paulo (Prescrição contra os hereges 24:4). (Tradição Cristã: Uma história do desenvolvimento da doutrina, Vol. 1, Ed. Shedd, pp. 128-129)

Seria inexplicável a ausência da primazia petrina nas respostas dos pais à elevação de Paulo, se isso fosse crido por eles. As menções à Igreja romana no séc. II citavam Pedro e Paulo igualmente, pois ambos foram martirizados lá. A partir do séc. III, as menções a Paulo ficam menos frequentes devido à heresia marcionita.

Cipriano de Cartago (?-258)

Embora católicos tentem apresentar Cipriano como uma testemunha do papado, estudiosos da Igreja primitiva chegaram ao virtual consenso de que o bispo de Cartago era contrário à primazia jurisdicional do bispo de Roma. Alguns excelentes artigos já foram escritos por protestantes em português, por isso, recomendo a todos que os leiam aqui e aqui.

O autor trata dos temas de nosso estudo: papado e sucessão apostólica. Por isso, serei mais resumido sobre Cipriano, vou fazer apenas alguns pontos adicionais, pois julgo que o site mencionado já deu a melhor resposta.

Em resumo, Cipriano entendia que a Igreja foi fundada sobre Pedro, mas não acreditava que Pedro tinha autoridade sobre os demais apóstolos. Pedro teria sido o símbolo da unidade da Igreja e da indivisibilidade do episcopado. Cipriano escreveu uma obra chamada “Unidade da Igreja” em virtude de experiências cismáticas em Roma e Cartago. Existem duas versões do cap. 4 dessa obra, uma chamada versão papal que aparentemente favorecia as pretensões romanas e outra que não favorecia. Desde a Reforma, muitos consideraram a versão papista uma falsificação, mas um estudioso jesuíta chamado Maurice Bevenot descobriu que as duas versões eram verdadeiras – sendo essa a posição da maioria dos estudiosos atualmente. A versão papista era mais antiga, porém, vendo Cipriano que sua obra era utilizada para subsidiar as pretensões de autoridade do bispo romano sobre a Igreja de Cartago, ele reescreveu o cap. 4, criando a versão não papal.

A eclesiologia de Cipriano é oposta a romana. Ele entendia que todos os bispos são igualmente sucessores de Pedro, e todos tem igual autoridade sobre sua Igreja Local. Portanto, a autoridade do bispo romano era restrita à Igreja de Roma. Os conflitos doutrinários deveriam ser resolvidos por concílios. A controvérsia do batismo herético demonstra a rejeição de qualquer pretensão papista:

Dá gloria a Deus quem, sendo amigo de hereges e inimigo dos cristãos, acha que os sacerdotes de Deus que suportam a verdade de Cristo e a unidade da Igreja, devem ser excomungados? (Epístola 74, parágrafo 8)

Pois nenhum de nós coloca-se como um bispo de bispos, nem por terror tirânico alguém força seu colega à obediência obrigatória; visto que cada bispo, de acordo com a permissão de sua liberdade e poder, tem seu próprio direito de julgamento, e não pode ser julgado por outro mais do que ele mesmo pode julgar um outro. Mas esperemos todos o julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, que é o único que tem o poder de nos designar no governo de Sua Igreja, e de nos julgar em nossa conduta nela. (O sétimo concílio de Cartago sob Cipriano)

Essas foram palavras dirigidas ao bispo de Roma Estevão que queria impor seu costume à Igreja Norte Africana.

Sobre sucessão apostólica, Cipriano defendeu uma visão sacramental, mas estabeleceu qualificadores que tornariam a sucessão da Igreja romana inválida. O testemunho cristão era requerido do bispo ou presbítero ao ponto de Cipriano ensinar que os crentes deveriam se afastar de um sacerdote pecaminoso. Foi isso que os reformadores fizeram, se desligaram de uma instituição apóstata e dominada pelo pecado. Em conexão a isso, a participação da comunidade na eleição do bispo era condição para uma ordenação válida:

 O que também nós notamos vir de autoridade divina, que o sacerdote seja escolhido na presença do povo sob os olhos de todos, e deve ser aprovado digno e capaz por julgamento público e testemunho; como no livro de Números o Senhor comanda Moisés, dizendo, “Tome Aarão teu irmão, e Eleazar seu filho, e os coloque no monte, na presença de toda a congregação, e tire suas vestes e as coloque em Eleazar seu filho, e deixe Aarão morrer lá, sendo adicionado a seu povo”. Deus ordena o sacerdote ser apontado na presença de toda a assembleia, ou seja, Ele instrui e mostra que a ordenação de sacerdotes não seve ser celebrada exceto com o conhecimento do povo que está por perto, que na presença do povo ou os crimes do mau sejam revelados ou os méritos do bom sejam declarados, e a ordenação, que deve ser examinada pelo sufrágio e julgamento de todos, possa ser justo e legítimo. E isto é subsequentemente observado, de acordo com a instrução divina, nos Atos dos Apóstolos, quando Pedro fala ao povo da ordenação de um apóstolo no lugar de Judas. “Pedro,” ele diz, “se pôs de pé no meio dos discípulos e a multidão estava em um lugar”. (Epístola 67)

Nem deixe o povo se bajular por que estão livres do contágio do pecado, enquanto comunicam com um sacerdote que é um pecador, e dando seu consentimento ao episcopado injusto e ilegal de seu administrador, quando a reprovação divina através de Oseias o profeta ameaça, e diz, “Seus sacrifícios serão como o pão de pranteadores; todos que o comerem serão imundos”, ensinando manifestamente e mostrando que estão absolutamente ligados ao pecado todos aqueles que foram contaminados pelo sacrifício de um sacerdote profano e injusto (...) De cujo relato um povo obediente aos preceitos do Senhor, e temendo a Deus, deve se separar de um prelado pecaminoso, e não se associar com os sacrifícios de um sacerdote sacrílego, especialmente desde que eles mesmos possuem o poder ou de escolher sacerdotes dignos ou de rejeitar os indignos. (Ibid)

Cipriano claramente ensinou a subordinação da tradição à autoridade das Escrituras. Todas as doutrinas deveriam ser provadas pelos escritos inspirados:

De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos? Pois que aquelas coisas que estão escritas devem ser feitas, Deus testemunha e admoesta, dizendo a Josué o filho de Num: “O livro desta lei não deve se afastar de tua boca; mas tu deves meditar nele dia e noite, para que tu possas observar para fazer de acordo com tudo que está escrito ali”. Também o Senhor, enviando Seus apóstolos, os ordena para que as nações sejam batizadas, e ensinadas a observar todas as coisas que Ele comandou. Se, então, é ou prescrito no Evangelho, ou contido nas epístolas ou Atos dos Apóstolos, para que aqueles que vêm de alguma heresia não devam ser batizados, mas somente as mãos sejam impostas a eles em arrependimento, que esta divina e santa tradição seja observada. (Epístola 74, parágrafo 2)

O site e-cristianismo trouxe o testemunho de vários historiadores (a maioria católicos) expressando o consenso a respeito de Cipriano. Adiciono abaixo outros historiadores católicos que reforçam a opinião aqui defendida:

Desta forma, se pode verificar a partir do final do século II, as primeiras tentativas por parte da Igreja Romana de assumir uma responsabilidade no que diz respeito à Igreja universal. Neste sentido, podemos fazer a seguinte observação: essas primeiras tentativas chocam-se com a resistência e acabam num fiasco. Roma não consegue impor sua posição sobre a concepção e a prática de uma parte considerável da Igreja. As duas disputas mais importante deste tipo foram a discussão sobre a festa da Páscoa e a disputa sobre o batismo dos hereges, que refletem outras tantas etapas da criação da consciência de autoridade por Roma, ao mesmo tempo em que a resistência das igrejas contra as reivindicações de tal autoridade. (Klaus Schatz, Op. Cit., pp. 35)

No decurso desta controvérsia Estevão deve ter reivindicado ser o sucessor de Pedro no sentido de Mateus 16:18. Este é o primeiro exemplo conhecido em que Mateus 16:18 foi aplicado ao bispo de Roma (...) A carta de Firmiliano é uma controvérsia sustentada contra Estevão e os seus argumentos a favor da validade do batismo herético. O décimo sétimo capítulo contém as expressões "quem alega que tem a sucessão de Pedro, sobre quem foi estabelecido os fundamentos da Igreja" e "quem afirma que por sucessão, tem a Sé de Pedro", ambos dirigidos contra o bispo de Roma. Essas alegações são rejeitadas, mas não formalmente, porque, em princípio, nenhum bispo individualmente, nem mesmo o bispo de Roma pode fazer tal afirmação. Em vez disso, o recurso para Mateus 16:18 é dito ser injustificada neste caso porque Estevão, reconhecendo o batismo dos hereges, está "introduzir [ndo] muitas outras rochas", isto é, ele está traindo a unidade da Igreja e, portanto, agindo contrariamente ao sentido de Mateus 16:18 (e, portanto, da sucessão de Pedro) (...) Em vez disso, [Cipriano] escreve para Estevão que ele não deseja impor sua própria posição sobre ninguém, porque cada bispo é independente no governo de sua Igreja e é responsável perante Deus. (Klaus Schatz, Op. Cit., pp. 13-14)

Sobre os elogios de Cipriano a Igreja romana de Cornélio e a controvérsia envolvendo os dois bispos espanhóis que os católicos usam como evidência do papado, Schatz afirma:

A questão aqui era o 'reconhecimento de uma autoridade superior pertencente aos sucessores de Pedro, que não podiam ser adequadamente descritas em termos jurídicos. Em princípio, o bispo romano não tinha mais autoridade do que qualquer outro bispo, mas na hierarquia de autoridades, sua decisão tomou o lugar mais importante. Por outro lado, Cipriano considerava cada bispo como sucessor de Pedro, titular das chaves do reino dos céus e possuidor do poder de ligar e desligar. Para ele, Pedro encarna a unidade original da Igreja e do escritório episcopal, mas, em princípio, esses também estavam presentes em cada bispo. Para Cipriano, a responsabilidade por toda a Igreja e a solidariedade de todos os bispos também poderia, se necessário, voltar-se contra Roma. Há um exemplo marcante desta relação no mesmo período envolvendo dois bispos espanhóis, Basilides e Marcial. Durante a perseguição não tinham sacrificado aos ídolos, mas como muitos outros cristãos, haviam subornado funcionários para obter "certificados de sacrifício" (libelli). Como resultado, eles haviam perdido credibilidade em suas congregações e tinham sido expulsos. No entanto (na opinião de Cipriano por deturpar os fatos), eles conseguiram obter o reconhecimento de Estevão de Roma. Cipriano reagiu imediatamente chamando um Sínodo Africano para avisar as duas comunidades que rejeitassem a decisão de Estevão e se recusassem a readmitir os dois bispos. Infelizmente, não sabemos como o assunto foi resolvido. (Op. Cit, pp. 20-21)

Robert Eno escreve:

É claro que ele [Cipriano] não vê o bispo de Roma como seu superior, exceto numa forma de honra (...) é claro que na mente de Cipriano, uma conclusão teológica que ele não tiraria é que o bispo de Roma tinha autoridade superior à dos bispos africanos. (Robert Eno, Op. Cit., 59-60)

Em outro lugar eu argumentei em detalhes que a visão de Agostinho da autoridade na Igreja e que, na minha opinião, o concílio [não o Papa] foi o principal instrumento para a resolução de controvérsias (...) Eu acredito que Agostinho tinha grande respeito pela Igreja romana cuja antiguidade e origens apostólicas de longe ofuscaram outras Igrejas no Ocidente. Mas como em Cipriano, a tradição colegial e conciliar africana deviam ser preferidas a maior parte do tempo.  (Robert Eno, Op. Cit., pp. 79)

O católico conservador Ludwig Ott afirma:
São Cipriano de Cartago atesta a preeminência da Igreja de Roma (...) No entanto, a sua atitude na controvérsia em relação ao rebatismo dos hereges mostra que ele ainda não tinha chegado a uma concepção clara do âmbito de aplicação da primazia. (Fundamentals of Catholic Dogma [Rockford, Illinois: Tan Books and Publishers, Inc., 1974], p. 284)

O também católico William La Due escreve:

No contexto de sua vida e suas convicções refletidas em suas ações e seus escritos, a posição de Cipriano pode ser parafraseada da seguinte forma: Pedro recebeu o poder das chaves, o poder de ligar e desligar, antes que os outros apóstolos recebessem os mesmos poderes. Esta prioridade - em tempo - simboliza a unidade do poder episcopal, que é realizada por todos da mesma maneira. A única diferença é que a Pedro foi concedido o poder por um curto período de tempo antes que os outros. Deve ser dito que o impacto do simbolismo de Cipriano não é totalmente claro. Ele não era um teólogo especulativo, mas um pregador, treinado mais como advogado do que como retórico. Seu significado, a partir do contexto de sua conduta como bispo, parece bastante ambíguo. E aqueles que veem na unidade da Igreja Católica, à luz de toda a sua vida episcopal, uma articulação do primado romano - como temos vindo a conhecê-lo, ou mesmo como ele evoluiu especialmente a partir do quarto do século está lendo um significado em Cipriano que não existe. (William La Due, Op. Cit., p. 39)

Hans Küng disse:

Todos os bispos e teólogos importantes do Ocidente seguiram a mesma linha, especialmente Cipriano de Cartago, o líder espiritual da Igreja Norte-Africana e defensor da autonomia episcopal contra Roma, no século III. (The Catholic Church: A Short History, pp. 45)

Sullivan, o estudioso católico que baliza nosso estudo, dedicou um capítulo inteiro a Cipriano. Sobre as duas versões do cap. 4 da obra “Unidade da Igreja”, diz:

Pelo estudo cuidadoso da evidência manuscrita, Maurice Bévenot provou que isso [a versão papal] é o que Cipriano escreveu na versão original de seu De Unitate e que alguns anos mais tarde, durante a sua disputa com o papa Estevão, revisou essa parte de seu texto, omitindo a referência a "a primazia dada a Pedro" e a pergunta: "Se ele abandona a cátedra de Pedro sobre a qual a Igreja foi edificada, pode ainda acreditar que ele está na Igreja?" Enquanto estudiosos católicos consideravam esta versão como genuína, vendo nela um claro testemunho do primado papal, muitos estudiosos protestantes afirmaram que estas frases tinham sido posteriormente interpoladas em seu texto. Bévenot mostrou não só que esta versão era genuína, mas também que, quando Cipriano disse "a primazia dada a Pedro", ele via a expressão clara da intenção do Senhor em fundar uma Igreja que seria construída sobre a unidade dos apóstolos e dos bispos que seriam seus sucessores. Neste contexto "uma é a cátedra", que também é "a Cátedra de Pedro" e "um é o episcopado", pelo qual a unidade da Igreja é mantida. Bévenot explica: "Na mente de Cipriano, o bispo legítimo de cada sede ocupava um lugar na cátedra única" que Cristo inaugurou com Pedro. (Sullivan F.A, Op. Cit., pp. 196-197)

Cipriano colocava na comunhão dos bispos e não na subordinação ao bispo de Roma a unidade da Igreja. Por isso, era de suma importância identificar quem era um bispo válido, sendo a participação do povo na eleição fator indispensável:

Essa passagem [Carta 67:5:1] coloca uma ênfase ainda maior do que a anterior sobre o papel do povo na aprovação de um candidato ao cargo de bispo. Vale a pena notar que Cipriano atribuiu sua própria eleição a "voz do povo". Ele encontrou forte oposição de cinco dos presbíteros e, evidentemente, o entusiasmo da congregação moveu os bispos a ordená-lo, apesar de ele ser cristão há apenas cerca de quatro anos. (Sullivan F.A, Op. Cit., pp. 204)

Os termos utilizados por Cipriano aqui [Carta 59:14:1] - ad Petri cathedram atque ad eccle siam principalem unde unitas sacerdotalis exorta est - tem sido muitas vezes citado pelos católicos como prova de que Cipriano reconhecia o primado papal no sentido que mais tarde veio a ter. No entanto, enquanto por um lado o termo "cátedra de Pedro" significa claramente o episcopado romano, neste caso, deve também ser entendido como referindo-se a um episcopado inaugurado por Cristo quando fundou sua Igreja sobre Pedro. Por esta razão, Roma como a Igreja de Pedro, é a "fundamental" ou "original" Igreja da qual "a unidade do episcopado teve sua origem". Bévenot salienta o pretérito de exorta est; Cipriano está olhando de volta para o momento em que Cristo fundou a Igreja sobre Pedro. (Ibid., 210)

A ideia de que "todos os líderes eleitos tem em seu governo da Igreja a liberdade de exercer sua própria vontade e juízo" e que eram "responsáveis somente perante Deus" era um elemento básico do conceito de autoridade episcopal de Cipriano. Em sua opinião, a unidade da Igreja foi mantida pela preservação da harmonia entre os bispos, embora eles possam ser diferentes uns dos outros em matéria de disciplina. (Sullivan F.A, Op. Cit., p. 215)

O católico ortodoxo Veselin Kesich afirma:

Em sua controvérsia com bispo Estevão (254-257), Cipriano expressou a opinião de que qualquer bispo, seja em Roma ou em outro lugar, foi incluída na mensagem de Jesus a Pedro. Como Tertuliano, Cipriano não está disposto a aceitar a afirmação de autoridade exclusiva ao bispo de Roma, com base em Mt 16:18-19 (...) Pedro não é superior em autoridade aos outros apóstolos, pois de acordo com Cipriano todos eles são iguais. (The Primacy of Peter, John Meyendorff, editor [Crestwood, New York: St. Vladimir's Seminary Press, 1992], p. 63)

O anglicano J. N. D. Kelly afirmou:

Cipriano deixou claro que cada bispo tem o direito de manter seus próprios pontos de vista e administrar sua diocese em conformidade (...) [Na visão de Cipriano] Não há nenhuma sugestão de que ele [Pedro] possuía qualquer superioridade, muito menos a jurisdição sobre os outros apóstolos (...) enquanto ele [Cipriano] está disposto, em uma passagem bem conhecida, falar de Roma como 'a igreja líder', a primazia que ele tem em mente parece ser de honra. (Early Christian Doctrines [San Francisco, California: HarperCollins Publishers, 1978], pp. 205-206)

É o consenso dos historiadores contra a apologética católica.

Pais da Igreja mais tardios sobre sucessão apostólica

Atanásio (296-373)

Eu sei que, aliás, que não só essa coisa entristece, mas também o fato de que, enquanto outros obtiveram as igrejas por violência, você está expulso de seu cargo. Pois eles ocupam os cargos, mas você [tem] a fé apostólica. Eles estão, é verdade, nos cargos, mas fora da verdadeira fé; enquanto estiver fora dos cargos de fato, mas na fé, você está dentro. Vamos considerar o que é maior, o cargo ou a fé. É evidente que a verdadeira fé. Quem, então, perdeu mais, ou que possui mais? Aquele que ocupa o cargo ou que detém a fé? Na verdade bom é o cargo, quando a fé apostólica é lá pregada, santo ele [cargo] é se um santo habita lá (...) Mas sois abençoados, que pela fé estão na Igreja, habitam sobre os fundamentos da fé, e tem plena satisfação, até mesmo o mais alto grau de fé que permanece entre vocês inabalável. (Carta festiva 29)

Atanásio se refere a bispos que foram expulsos de suas sedes por não aderirem ao arianismo. Os bispos arianos também poderiam reclamar sucessão apostólica, no entanto, levavam os fiéis à heresia. O argumento de Atanásio soa bem protestante. O que define o verdadeiro do falso não é estar no cargo de suposto sucessor dos apóstolos, mas guardar a verdadeira fé. Mais importava sustentar a fé do que estar na Igreja. O vínculo desses bispos com a Igreja se dava pela fé que pregavam e não por sucessão sacramental.

Ambrósio (337-397)

Então a fé da Igreja deve ser procurada em primeiro lugar. Se Cristo habitar uma casa, ela sem dúvida deve ser escolhida. Mas para que um povo incrédulo ou professor herético não deforme sua casa, a Igreja deve evitar comunhão com os hereges e a sinagoga [herética] (...) Um pregador do evangelho deve tomar sobre si as fragilidades de um povo fiel, por assim dizer. Ele deve levantar e remover de suas próprias solas [de seus sapatos] ações sem valor, como se fossem poeira. Pois está escrito: "Quem é fraco e eu não sou fraco?” Qualquer Igreja que rejeita a fé e não possui os fundamentos da pregação apostólica deve ser abandonada para que não seja capaz de manchar outros com incredulidade. O apóstolo também claramente afirma isso dizendo "rejeite o homem herege após a primeira admoestação". (Ambrose, cited in Arthur A. Just Jr., ed., Ancient Christian Commentary On Scripture: New Testament III: Luke [Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 2003], p. 149)

Ambrósio desconhecia a ideia de que sucessão apostólica garantisse a apostolicidade de uma Igreja. Um cristão deve abandonar uma Igreja herética. Foi precisamente isso que os reformadores fizeram, eles não saíram da Igreja de Cristo, apenas abandonaram uma instituição apóstata que pregava um evangelho falso. Os pais da Igreja acreditavam que uma Igreja local poderia apostatar.

Por isso muitas vezes o clero cometeu erro; o bispo tem vacilado em sua opinião, os homens ricos aderiram aos príncipes terrestres do mundo em seu julgamento, enquanto isso somente o povo preservou a toda a fé. (Ambrose, cited in John Daille, A Treatise On The Right Use Of The Fathers [London: Henry G. Bohn, 1843], p. 158)

Ambrósio cita os erros do clero sem estabelecer aquela que seria a única e importante exceção – o bispo de Roma.

Jerônimo (347-420)

Eu sei que se deve diferenciar apóstolos de todos os outros pregadores. Os primeiros sempre falam a verdade, mas sendo os últimos homens às vezes se desviam (...) é por essas virtudes que eu e outros deixamos as nossas casas. É por essas que viveríamos em paz, sem qualquer contenção na batalha e sozinhos, dando a devida veneração aos pontífices de Cristo - desde que eles pregam a fé correta - não porque temos medo deles como senhores, mas porque os honramos como pais dando também aos bispos como bispos, mas recusando-se a servi-los sob compulsão, sob a sombra da autoridade episcopal, homens a quem não escolhemos a obedecer. Eu não tenho a mente cauterizada para não saber o que é devido aos sacerdotes de Cristo. Pois quem os recebe, não os recebe somente, mas a Ele, de cujos bispos são. Mas deixemos que eles se contentem com a honra que é deles. Que eles saibam que são pais e não senhores, especialmente em relação àqueles que desprezam as ambições do mundo e consideram paz e descanso as melhores de todas as coisas. (Jerônimo Carta 82:7 e 82:11)

Jerônimo reconhecia a autoridades dos bispos, mas não a considerava inquestionável. Nenhuma exceção foi feita ao bispo de Roma. Os apóstolos sempre pregavam a verdade, já os outros pregadores não. Ou seja, a infalibilidade era atributo exclusivo dos apóstolos. Ele testemunhou que no séc. IV, o arianismo quase dominou toda a Igreja. Os bispos arianos poderiam reclamar sucessão apostólica, será que seus fiéis deveriam obedecê-los por esse motivo? Os pais da Igreja seriam unânimes em responder não, pois atribuíam infalibilidade somente às Escrituras.

Gregório Nazianzo (329-390)

Assim, e por estas razões, pelo voto de todo o povo, e não na forma maligna que tem prevalecido desde então, nem por meio de derramamento de sangue e opressão, mas de uma maneira espiritual e apostólica, ele [Atanásio] é levado ao trono de São Marcos, para sucedê-lo na piedade, não menos do que no ofício; na última, na verdade a uma grande distância dele, no primeiro caso, que é o verdadeiro direito de sucessão, seguindo-o de perto. Pois a unidade na doutrina merece unidade no ofício; um professor rival estabelece um trono rival; um é um sucessor, na realidade, o outro no nome. Pois não é o intruso, mas ele [Atanásio] cujos direitos são invadidos, quem é o sucessor, não o transgressor, mas o legalmente nomeado, e não o homem de opiniões contrárias, mas o homem da mesma fé; se isso não é o que queremos dizer como sucessor, ele consegue no mesmo sentido tratar doença para saúde, trevas para a luz, acalmar para tempestade, e loucura para bom senso. (Oração 21:8)

Para Gregório, o verdadeiro sucessor é o homem piedoso, eleito por todo o povo e que mantém a verdadeira fé. Muitos papas não satisfizeram esses critérios. Como os protestantes vêm alegando há séculos, uma suposta sucessão histórica divorciada de preservação da doutrina é inútil. Também é mencionado o derramamento de sangue e a opressão na escolha de bispos. Essa foi a maneira como muitos bispos de Roma chegaram ao cargo. 

Um comentário:

  1. Os pentecostais clássicos assembleianos deveriam aprender com São Cipriano de Cartago a elegerem os seus líderes sacerdotes que são os pastores-presidentes na presença e com o voto do povo todo de Deus e não somente segundo a mente de um só pobre homem qualquer pecador. Tal atitude evitaria a corrupção eclesiástica pentecostal e/ou neopentecostal que hoje é a nova Roma corrupta que enlameia o nome de nós, protestantes, os evangélicos.

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