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sexta-feira, 26 de julho de 2019

Gênesis 3:15, os Pais da Igreja e Quem Esmagaria a Cabeça da Serpente




O texto de Gênesis 3:15 é frequentemente citado por apologistas católicas como uma referência mariana. Segundo eles, quem esmagaria a cabeça da serpente seria Maria. O argumento exegético é frágil e já há diversos artigos expondo a correta exegese do texto (aqui). Diante disso, os católicos costumam apelar à “tradição”. No fim das contas, tradição é tudo que Roma diz que é. Ainda que haja diferentes conceitos de tradição circulando na teologia romana, é comum apelar aos Pais da Igreja como evidência. O problema é que geralmente este apelo é seletivo ou enganoso. A grande questão é quem iria ferir a cabeça da serpente. Vejamos então a interpretação patrística do texto bíblico em ordem cronológica:

Justino Mártir (?-165) é as vezes citado como exemplo da interpretação mariana com base no texto abaixo:

Porque Eva, que era virgem e pura, tendo concebido a palavra da serpente, produziu desobediência e morte. Mas a Virgem Maria recebeu fé e alegria quando o anjo Gabriel anunciou as boas novas de que o Espírito do Senhor viria sobre ela, e o poder do Altíssimo a ofuscou: por isso o que é gerado por ela é o Filho de Deus; e ela respondeu: 'Seja para mim segundo a tua palavra'. Através dela Ele nasceu, a quem temos provado que tantas Escrituras se referem, e por quem Deus destrói a serpente e os anjos e homens que são como ela; mas opera a libertação da morte para aqueles que se arrependem de sua iniquidade e acreditam Nele. (Diálogo com Trifo 100:5-6)

Justino estabelece um paralelo entre Eva e Maria que muitas vezes é utilizado para referendar doutrinas marianas sem qualquer respaldo nos escritos do autor. Ele não é claro sobre a identidade da “semente da mulher”. Não há como afirmar certamente que era Maria ou Jesus, mas Jesus parece ser o melhor candidato. Ele menciona que Jesus “destrói a serpente”. Embora não seja uma referência direta a quem esmaga a cabeça da serpente, é no mínimo uma indicação de Jesus como aquele que vence a serpente. Ele alude a esta passagem outras vezes na mesma obra (91:4, 94:1, 100:5-6, 102:3, 103:5 e 112:12). Em nenhuma delas há alusão direta sobre quem esmaga a serpente.

Irineu de Lyon (?-220) faz várias alusões ao texto em questão:

Aquele que deveria nascer de uma mulher, [ou seja] da Virgem, à semelhança de Adão, foi proclamado como vigiando a cabeça da serpente. Esta é a semente da qual o apóstolo diz na Epístola aos Gálatas: “que a lei das obras foi estabelecida até que a semente viesse a quem a promessa foi feita.” Este fato é exibido mais claramente na mesma Epístola, onde ele fala assim: “Mas quando a plenitude do tempo chegou, Deus enviou Seu Filho, feito de uma mulher.” Pois, de fato, o inimigo não teria sido derrotado, a menos que um homem [nascido] de uma mulher o dominasse. (Contra as Heresias 5:21:1)

Ele claramente aduz ao texto de Gênesis 3:15 “proclamado como vigiando a cabeça da serpente” e o conecta à Epístola de Gálatas na qual Cristo é chamado de semente (Gal. 3:19). Logo, a “semente” da mulher que esmagou a cabeça da serpente é Cristo. Interessa notar que Irineu também fez uma analogia entre Maria e Eva na mesma obra (3:22:4 e 5:19:1), mas não identifica Maria como a mulher de Gênesis 3:15. Ele novamente identifica Jesus como aquele que pisou na cabeça da serpente em outro lugar:

Como também a Escritura nos diz que Deus disse à serpente: “E eu colocarei inimizade entre você e a mulher, e entre sua semente e sua semente dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”. E o Senhor recapitulou em Si mesmo essa inimizade, quando foi feito homem por uma mulher, e pisou em sua cabeça [da serpente], como eu indiquei no livro anterior. (Contra as Heresias 4:20:3)

Clemente de Alexandria (150-215) alude ao texto bíblico sem identificar aquele que esmagaria a serpente:

Um e o mesmo é também nosso auxiliador e defensor, o Senhor, que desde o princípio predisse a salvação na profecia. (Cohortatioad Gentes 1)

Orígenes (184-253) identifica a semente da mulher com a Igreja:

Vamos então orar para que nossos pés sejam tão formosos, tão fortes, para que possam esmagar a cabeça da serpente a fim de que ela não possa morder o nosso calcanhar (Gn 3:15) (...) Então você vê que quem luta debaixo de Jesus [Josué], deve retornar a salvo da batalha. (Homilias em Josué 12:2)

Em outro lugar, ele relaciona a inimizade predita no texto bíblico com o sofrimento de Jeremias:

É necessário que a amizade de Cristo gere inimizade contra a Serpente, e a amizade da Serpente traga inimizade contra Cristo. (Homilias em Jeremias 19:7)

Jeremias seria então um exemplo de semente da mulher. Isto é consistente com a ideia de que a Igreja é a semente da mulher, que, com a força de Cristo, esmaga a cabeça da serpente. Sendo a Igreja a semente, é improvável que ele interpretasse a mulher como sendo Maria, haja vista que Maria não é quem gera a Igreja.

Cipriano de Cartago (?-258), citando Isaías 7:10-15, interpreta a semente como sendo Jesus:

(...) o próprio Deus lhe dará um sinal. Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e tu chamarás o seu nome Emanuel. Manteiga e mel ele comerá, e antes que Ele saiba o que é preferir o mal, Ele deverá se voltar para o bem. Essa semente que Deus predisse que viria da mulher e que iria pisar na cabeça do diabo. Em Gênesis: "Então Deus disse à serpente: Feito isto, amaldiçoado és tu de todo tipo dos animais da terra. Sobre o teu peito e o teu ventre arrastarás e a terra será a tua comida todos os dias da tua vida. E colocarei inimizade entre ti e a mulher e sua semente. Ele considerará a tua cabeça, e tu olharás o seu calcanhar". (Três Livros de Testemunhos contra os Judeus 2:9)

Em outras partes, Cipriano identifica os membros da Igreja como aqueles que esmagam a cabeça da serpente, ou seja, uma interpretação coletiva:

Que nossos pés sejam calçados com o ensino do Evangelho e armados para que, quando a serpente começar a ser pisada e esmagado por nós, ela não possa ser capaz de nos morder e derrubar. (Carta 55:9)

Ele também aplica o mesmo a um cristão que não negou a fé sob tortura:

E embora seus pés estivessem amarrados com cordas, a cabeça da serpente [estava] esmagada e dominada. (Carta 39:2)

Dessa forma, vemos que, nestes testemunhos referentes aos primeiros três séculos da Igreja, não há nenhum pai da Igreja indicando Maria como aquela que esmagaria a cabeça da serpente. Isto está de acordo com o fato de que a devoção Mariana e a elevação da mãe de Jesus ao status que atualmente ocupa nas Igrejas de Roma ou Igrejas Orientais levaria ainda séculos para ocorrer, e não fazia parte do período mais primitivo da Igreja.

Serapião de Thumis (?-359), escrevendo no séc. IV, disse que a semente era Cristo:

Mas uma mulher não tem semente, só o homem tem. Como então foi dito da mulher? Está claro que foi dito a respeito de Cristo a quem a virgem pura gerou sem semente? Certamente, Ele é uma semente singular, não sementes no plural. (Tiburtius Gallus, S. J., Interpretatio Mariologica Protoevangelii [Gen. 3:15], Tempore postpatristico usque ad Concilium Tridentium [Rome: n.p., 1949], 24)

Cirilo de Jerusalém parece interpretar como sendo a Igreja (?-386):

Pois há também uma inimizade que é certa, como está escrito, eu porei inimizade entre ti e a sua semente, pois a amizade com a serpente opera a inimizade contra Deus e a morte. (Leituras Catequéticas 16:10)

Optato de Mileve (?-400) deu uma interpretação coletiva:

No começo do mundo, a inimizade começou com o Diabo. Foi quando a sentença de Deus colocou as duas sementes uma contra a outra em rivalidade hostil. Ele disse: "Vou colocar inimizade entre tua semente e a semente da mulher; ela (ipsa) ferirá a tua cabeça, e tu ferirá o seu calcanhar ” (Gn 3:15). Essa inimizade (...) derrama sangue santo desde o princípio. Logo depois, o justo Abel é assassinado por seu irmão (Gn 4). (In Natale Infantium qui pro Domino occisi sunt, 5; FG, 173-74; Unger cites source for text as A. Wilmart, RevScRel 2 (1922), 271-302; 283)

A semente da serpente seria representada pelo ímpio, e a da mulher pelo justo. O primeiro caso de inimizade entre as duas sementes seria Caim e Abel. Dessa forma, a mulher dificilmente seria Maria aqui, pois não faria sentido relacioná-la a Caim e Abel.

João Crisóstomo (?-400) indica os membros da Igreja como a semente da mulher. Num sermão sobre Gênesis 3, ele fala da inimizade entre as serpentes (no sentido natural) e a humanidade. É então que ele diz sobre Gênesis 3:15:

Deve ser levado muito mais em conta a serpente intelectual [o diabo], Pois também Deus o humilhou e o sujeitou debaixo de nossos pés e nos deu o poder para pisar em sua cabeça. (Homilias em Gênesis 17:7)

Jerônimo (?-420), o tradutor da vulgata. Esta tradução é em grande parte responsável pela confusão que se seguiu na interpretação da passagem, pois Jerônimo usou o pronome feminino (ipsa), em contraste a forma como havia traduzido numa obra exegética anterior (Quaestiones hebraicae), na qual ele traduziu: "Ele esmagará a sua cabeça e você esmagará o calcanhar". Em todo o caso, não há registros de que o próprio Jerônimo tenha identificado a mulher ou a semente da mulher como sendo Maria. Ele aplicou uma interpretação coletiva quando abordou a passagem.  Em seu comentário sobre Ezequiel, ele fala das águas que “alcançam os tornozelos que estão perto das solas e do calcanhar, e estão expostos às picadas da serpente (Comentário sobre Ezequiel 14.47:3). Ele comenta sobre a serpente mencionada em Eclesiastes 10:8 e diz que ela é a mesma “que enganou Eva no paraíso, a qual por ter destruído o preceito de Deus, expôs-se as suas mordidas e ouviu do Senhor: ‘Tu lhe ferirás a cabeça e ele (ille-coluber) ferirá o teu calcanhar" (Comentário em Isaías 16, 58:12). Nesta interpretação, a mulher seria Eva. Em suma, ele aponta Eva como a mulher e, ao se referir aos que são feridos pela serpente, adota uma interpretação coletiva, não indicando Maria individualmente. É razoável supor que ele interpretasse que os membros da Igreja esmagariam a cabeça da serpente.

Agostinho (354-430) identificou a semente como as boas obras:

Foi colocada inimizade entre a semente do diabo e a semente da mulher. A semente do diabo significa a sugestão perversa e da mulher significa o fruto da boa obra pela qual se resiste à sugestão perversa. Assim, ele vigia o pé da mulher para que, caso a mulher escorregue em algum prazer proibido, ele possa se aproveitar dela. Já ela vigia sua cabeça a fim de que possa evitá-lo já no início de qualquer tentação maligna. (Sobre o Gênesis contra os Maniqueus, cap. 18)

Em outro lugar, ele identifica Eva como a mulher e a Igreja como a semente:

Essa cabeça é a parte que recebeu a maldição, a saber que a semente de Eva deveria marcar a cabeça da serpente. Pois a Igreja foi admoestada a evitar o começo do pecado. Qual é o começo do pecado, como a cabeça da serpente? O começo de todo pecado é o orgulho. (Comentário sobre o Salmo 74, v. 14)

Aqui, fica claro que Igreja (a semente de Eva) deveria vigiar e evitar o pecado, ou seja, esmagar a cabeça da serpente. Em suma, Agostinho não aponta nem a semente da mulher nem a própria mulher como Maria. Ele faz alusões a Gênesis 3:15 em outros lugares (Comentários sobre os Salmos 36:12-13 e 49:6 – aqui), sem estabelecer qualquer relação da passagem com Maria.  João Cassiano ofereceu uma interpretação similar ao identificar a cabeça da serpente como o início do pecado e o calcanhar como o fim de nossas vidas (Institutas 4:37).

Um antigo manuscrito traz a interpretação de Pais da Igreja Sírios (ex. Teodoro de Mopsuestia e Efrém) sobre o Gênesis. Eles disseram sobre a cabeça e o calcanhar:

 (...) esta é uma figura do julgamento sobre Satanás, pois Deus o colocou muito abaixo de nós. Quanto a nós, se desejamos o bem, somos capazes de feri-lo através de ações poderosas. Contudo, ele também é capaz de nos ferir, uma vez que ele vigia nossos calcanhares, ou seja, nosso caminho, que são nossos atos. (Abraham Levene, The Early Syrian Fathers on Genesis: From a Syrian MS [London: Taylor’s Foreign Press, 1951], 24, 77-78.

Trata-se de uma interpretação coletiva na qual a semente da mulher é entendida como sendo os cristãos. Uma implicação dessa interpretação coletiva é que a mulher não poderia ser Maria. Eva seria uma candidata mais forte, uma vez que ela deu origem a raça humana. Em conclusão, vimos que a interpretação de que Maria esmagou a cabeça da serpente não encontra eco no pensamento patrístico. Mesmo a interpretação de que Maria seria a mulher que geraria a semente também não parece ter tido muitos apoiadores. Eu procurei em blogs católicos a fim de encontrar alguma citação patrística que afirmasse ser Maria aquela que esmagaria a serpente e não encontrei nada. Eles geralmente citam o paralelo entre Eva e maria feito por Irineu e Justino, mas já vimos que extrair daí a exegese de Gênesis 3:15 não faz jus aos escritos desses autores. O estudo mais detalhado sobre Gênesis 3:15 pode ser visto aqui.


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