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quarta-feira, 11 de maio de 2016

Respondendo objeções à Sola Scriptura (a questão bíblica e lógica) – Parte 1


Recentemente um católico postou alguns comentários em nosso blog “refutando” a doutrina da Sola Scriptura. Ele faz uso de argumentos bem populares no meio católico. Esses argumentos se baseiam em grande parte num espantalho da Sola Scriptura. Por isso, vamos respondê-lo nesse artigo. Recomendo aos leitores que vejam nosso artigo sobre Agostinho e a Sola Scriptura, pois vamos falar a respeito do testemunho desse pai da igreja. Os comentários do interlocutor católico estarão em vermelho:

Agostinho já dizia: Fé sem Razão é nula!

Concordamos com Agostinho. Interessante notar que o uso que ele fez da razão o levou a conclusões bem distantes da atual igreja romana.

A sola scriptura é uma doutrina sem a mínima razão e lógica. Primeiro que essa doutrina nem está na própria bíblia, ou seja, refuta a si mesma. A sola scriptura é por tanto anti bíblica!

Ocorre que a Sola Scriptura é uma implicação do que a própria Escritura ensina. Mas, suponhamos que a Escritura de fato não a ensinasse – isso quer dizer que ela necessariamente seria ilógica? Definitivamente não. Católicos e Protestantes concordam que a revelação especial de Deus cessou com os apóstolos. Ambos estão à procura do que os apóstolos ensinaram. Ambos concordam que a mensagem dos apóstolos é única e que todo o ensino da igreja deve estar de forma explícita ou implícita contido nessa pregação apostólica que se encerrou ainda no séc. I. A grande questão é – o que é ou não a doutrina apostólica? Católicos e Protestantes concordam que a Escritura contém registro inspirado pelo Espírito Santo da doutrina apostólica. Que a Escritura é infalível não é um ponto de discussão. Porém, os católicos defendem que existe uma tradição preservadora doutrinas que não foram registradas nas Escrituras (esse ponto é divergente no meio católico atualmente).

O ônus da prova recai sobre o apologista católico. Se ele diz que os apóstolos pregaram doutrinas que foram preservadas fora da Escritura, cabe a ele provar a afirmação. Ele deve nos dizer que doutrinas são essas, quem as passou, quem as recebeu e principalmente demonstrar que elas têm origem em algum apóstolo. Caso ele não consiga oferecer evidências positivas a favor dessa tradição, o protestante está racionalmente justificado em adotar a Sola Scriptura. Trata-se uma questão lógica, não precisei usar nenhum ensino bíblico para formular esse raciocínio. Todavia, a Sola Scriptura é o ensino bíblico. Antes de mostrar isso, precisamos defini-la acuradamente.

Uma definição simples da Sola Scriptura é que “ela é a única regra infalível de fé para a Igreja”. Perceba que não é dito que a Escritura é a única autoridade, mas a única autoridade infalível. As igrejas reformadas ensinam que a Igreja tem autoridade para ensinar, disciplinar e administrar os sacramentos, assim como também possuem tradições. Poderíamos citar a Confissão de Westminster que é considerada autoritativa por várias igrejas reformadas. A posição reformada em relação aos pais da Igreja é que eles devem ser lidos, estudados e suas opiniões possuem peso, mas como eles próprios ensinaram, seus escritos não possuem a mesma autoridade que os livros canônicos. Portanto, citar um pai da Igreja que apelava à tradição não é uma refutação à doutrina reformada, pois ele poderia considerar a Escritura como uma autoridade superior à tradição. A chave aqui é entender o conceito de hierarquia de autoridades. A igreja pode possuir mais de uma autoridade, porém, a Escritura é suprema e todas as outras lhe são subordinadas. Por isso, a tradição e os ensinos da igreja devem ser aceitos na medida em que se conformam ao ensino supremo da Escritura.

Mas o que torna a autoridade da Escritura suprema e infalível? A inspiração divina dos escritos canônicos (2 Tm. 3:16-17). A Escritura foi inspirada por Deus, logo é inerrante e infalível. Aqui precisamos fazer uma distinção entre infalibilidade e inerrância. Inerrância é a ausência de erro, mesmo uma autoridade falível pode fazer uma afirmação inerrante. Quando um muçulmano afirma que há um só Deus, ele está fazendo uma declaração inerrante, mas isso não implica que seja infalível. Infalibilidade é uma característica exclusiva de Deus. Por ser perfeito, Ele não pode cometer erros, e por ter inspirado a Escritura, ela não só não cometeu nenhum erro doutrinário como também não poderia ter cometido.

Outros dois conceitos estão embutidos na Sola Scritpura: suficiência formal e material. Por suficiência material, queremos dizer que a Escritura contém de forma explícita ou implícita todas as doutrinas que o cristão precisa para ser salvo e ter vida em Cristo. Essa posição foi negada pelo concílio de Trento que adotou a teoria das duas fontes, ou seja, Escritura e tradição seriam fontes distintas de revelação. No entanto, nos últimos tempos, cada vez mais teólogos católicos e até apologistas têm aderido à posição da suficiência material. Hoje, a principal divergência é a suficiência formal. Isso quer dizer que a Escritura não somente contém toda as doutrinas necessárias, mas que elas estão expostas de forma clara, não se fazendo necessário a assistência de um intérprete ou tradição infalível para se chegar a essas doutrinas.

Jesus Cristo e aos apóstolos citavam as escrituras do Antigo Testamento como a palavra de Deus. Os apóstolos, por sua vez, consideravam seus próprios escritos inspirados pelo Espírito Santo. Eles eram o fundamento da igreja (1 Coríntios 12:28, Efésios 2:20 e 4:11, 2 Pedro 3:2, Apocalipse 21:14). Eles foram comparados aos profetas do Antigo Testamento (2 Pedro 3: 2). Na carta que alguns consideram o mais antigo documento cristão que temos hoje, o apóstolo Paulo referiu-se a mensagem dos apóstolos como "a palavra de Deus" (1 Tessalonicenses 2:13). Em outro lugar, refere-se ao que ele está escrevendo como "o mandamento do Senhor" (1 Coríntios 14:37). Ele espera que os seus ensinamentos, oral e escrito sejam seguidos (2 Tessalonicenses 2:15) e espera que os cristãos se separem de quem não segue esses ensinamentos (2 Tessalonicenses 3:6, 3:14). Portanto, a infalibilidade e inspiração bíblica foi claramente ensinada por toda a Escritura. A suficiência material é ensinada explicitamente nas três passagens abaixo:

Porque desde criança você conhece as sagradas letras, que são capazes de torná-lo sábio para a salvação mediante a fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra. (2 Timóteo 3:15-17)

Paulo acreditava que Timóteo poderia se tornar sábio para salvação graças ao conteúdo da Escritura. Os católicos geralmente respondem que Paulo está se referindo apenas ao Antigo Testamento. Esse argumento tem os seguintes problemas:

(1) Ainda que seja o caso, isso não refuta o argumento da suficiência material. Se o Antigo Testamento era materialmente suficiente, então toda a Escritura seria mais do que suficiente. É importante notar que os apóstolos acreditavam que o evangelho já havia sido pregado pelos profetas. Cristo é o cumprimento de uma mensagem já pregada na antiga aliança. Portanto, o Novo Testamento nada mais é do que o evangelho já pregado no antigo, mas de forma mais detalhada e explícita;

(2) Paulo não está falando sobre as Escrituras hebraicas apenas. Ele tem em mente a natureza da Escritura. Por ser a palavra inspirada por Deus dada ao homem, ela necessariamente possui todas essas qualidades;

(3) Essa passagem também ensina a suficiência formal. Desde quando Timóteo conhecia as sagradas letras? Desde criança. A que magistério infalível Timóteo recorreu para saber as Sagradas Letras? Absolutamente nenhum. Um judeu que viveu 50 anos antes de Cristo não tinha acesso a nenhum magistério infalível para dizer o cânon da Escritura ou para declarar uma interpretação “infalível” do livro sagrado. Ele conseguiu chegar às verdades salvadoras sem ter que recorrer a nenhuma autoridade infalível.

Jesus, pois, operou também em presença de seus discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome. (João 20:30-31)

João afirmou a suficiência do que ele escreveu para fazer seus ouvintes crerem e terem em vida em Cristo. Esta é uma clara referência à suficiência material. Obviamente, os leitores de João tinham acesso ao Antigo Testamento (A.T). Portanto, A.T + Evangelho de João é suficiente materialmente. Dessa forma, necessariamente a Escritura com os dois testamentos contém os ensinamentos doutrinários suficientes para sermos salvos e termos vida em Cristo. Por isso, a igreja romana precisa provar pela Escritura suas doutrinas que diz serem necessárias para salvação (papado, dogmas marianos e etc).

Percebam também que João pressupõe que seus leitores poderiam ler seu evangelho e entende-lo. Ele não diz que eles precisarão recorrer a um intérprete infalível do seu evangelho para só então terem os benefícios aludidos. A ideia de que a Escritura é tão obscura que seus leitores não poderiam entendê-la é simplesmente blasfema. Equivale a dizer que Deus foi incompetente. Se Deus inspirou sua palavra escrita para guiar seu povo, e ela não pode guia-lo por ser muito obscura, Deus teria fracassado em seu objetivo.

Jesus e os autores bíblicos sempre entenderam que os ouvintes e leitores poderiam compreender corretamente seus ensinamentos orais ou escritos, inclusive as Escrituras do Antigo Testamento. Há uma quantidade enorme de passagens bíblicas que atestam isso:

Quando deres ouvidos à voz do Senhor teu Deus, guardando os seus mandamentos e os seus estatutos, escritos neste livro da lei, quando te converteres ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma. Porque este mandamento, que hoje te ordeno, não te é encoberto, e tampouco está longe de ti. (Deuteronômio 30:10-11)

Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro, e ilumina os olhos. (Salmos 19:8)

Lâmpada para os meus pés é tua palavra, e luz para o meu caminho. (Salmos 119:5)

À lei e ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, é porque não há luz neles. (Isaías 8:20)

Pois nada lhes escrevemos que vocês não sejam capazes de ler ou entender. E espero que, assim como vocês nos entenderam em parte, venham a entender plenamente que podem orgulhar-se de nós, assim como nos orgulharemos de vocês no dia do Senhor Jesus. (2 Coríntios 1:13-14)

Pois tudo o que foi escrito no passado, foi escrito para nos ensinar, de forma que, por meio da perseverança e do bom ânimo procedentes das Escrituras, mantenhamos a nossa esperança. (Romanos 15:4)

Deus deu sua palavra para ensinar, consolar, exortar. Se a Escritura não pode ser compreendida, a palavra de Deus seria ineficaz e o seu objetivo frustrado. Ao alegarem a insuficiência formal, os católicos não estão apenas minando a autoridade da Escritura, estão também minando a autoridade e capacidade do próprio Deus.  Dizer que a palavra de Deus é tão obscura que só pode ser entendida com ajuda do magistério implica dizer que Deus não fez um bom trabalho e não conseguiu cumprir seu propósito ao inspirar os livros canônicos.

Escrevo-lhes estas coisas a respeito daqueles que os querem enganar. (1 João 2:26)

Escrevi-lhes estas coisas, a vocês que creem no nome do Filho de Deus, para que vocês saibam que têm a vida eterna. (1 João 5:13)

João escreveu cartas para prevenir os crentes de falsos mestres. Se seu escrito não era claro, como poderia prevenir os cristãos da heresia?

Assim, quando vocês virem ‘o sacrilégio terrível’, do qual falou o profeta Daniel, no lugar santo — quem lê, entenda. (Mateus 24:15)

Pelo que, quando ledes, podeis entender a minha compreensão do mistério de Cristo. (Efésios 3:4)

Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim. (João 5:39)

Para um católico romano, não faz nenhum sentido examinar as Escrituras. Já que ela não podem falar por si mesma, mas apena pode dizer o que o magistério afirma que ela diz, só faz sentido examinar o que o próprio magistério ensina.

Os bereanos eram mais nobres do que os tessalonicenses, pois receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos os dias as Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo. (Atos 17:11)

O exemplo dos bereanos não poderia ser mais óbvio. Eles investigaram nas Escrituras a veracidade da pregação apostólica, e tal atitude foi elogiada. Se a Bíblia não era perspicaz, como eles poderiam chegar à verdade examinando as Escrituras? Qual católico pode submeter os ensinos dogmáticos da sua Igreja ao crivo das Escrituras? Ele não pode, sob pena de estar agindo como um protestante. Jesus também pressupunha que seus ouvintes pudessem entender o Antigo Testamento, caso contrário não o apontaria repetidamente como sua testemunha.

Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te foram ensinadas. (Lucas 1:3-4)

Lucas não escreveu um relato obscuro ou desconexo, mas escreveu um relato ordenado que pudesse dar a Teófilo a certeza das coisas que aprendeu. Ou seja, Teófilo poderia compreender corretamente o relato sem a necessidade de intérpretes adicionais. O que Lucas relatou poderia confirmar as coisas que Teófilo aprendeu. Como ele já era um cristão (acredita-se que há certo tempo), Teófilo já teria aprendido o evangelho de forma suficiente. Portanto, assim como João, Lucas está afirmando a suficiência material do seu evangelho – o que implica na suficiência da Escritura.

Jesus responsabilizou os fariseus por examinarem e compreenderem corretamente as Escrituras. Como ele poderia ter feito isso? Ele simplesmente deveria ter dito “você não serão capazes de entender corretamente”, “não examinem e interpretem por si mesmo” ou “apenas sigam o que eu disser”. Todo o argumento de Jesus pressupõe que eles poderiam por si próprios examinar a escritura e compreendê-la:

Então Jesus lhes esclareceu: “Vós estais equivocados por não conhecerdes as Escrituras nem o poder de Deus! (Mateus 22:29)

De que adiantaria conhecer as Escrituras sem o suposto magistério infalível? Absolutamente nenhum. Para mais detalhes sobre a suficiência formal veja aqui.

A Escritura se auto afirma como inspirada, infalível e suficiente materialmente e formalmente. Por outro lado, a Escritura não ensina que haveria um magistério infalível após os apóstolos. A ideia de algum “sucessor” dos apóstolos que seria o líder supremo da igreja e a preservaria do erro não era crida pelos apóstolos. Eles também não afirmaram que haveriam doutrinas preservadas apenas oralmente. Pelo contrário, isso é negado na medida que afirmam a suficiência do que escreveram para salvar e ter vida em Cristo. Assim, qual é a implicação lógica de todos esses dados? Ao se utilizar os dados bíblicos, nós temos evidência positiva apenas para a Escritura como uma autoridade infalível, inspirada e suficiente – isso é resumidamente a doutrina da Sola Scriptura. Se existem doutrinas fora da Escritura necessárias para a salvação ou se existe alguma interpretação (tradição) ou intérprete (magistério) infalível nos dias de hoje, cabe aos católicos provarem. Enquanto não fizerem isso, a Sola Scriptura está de pé.

Se Cristo queria fundar a religião do livro, então pra que a promessa do Paráclito (Jo 14,16.26; 15,26; 16,7.13) e seu efetivo derramamento (At-2)?

Para que precisaríamos do Espírito Santo, se tudo já está na Bíblia? O que Ele viria ensinar, se tudo já foi ESCRITO e pode ser interpretado corretamente por qualquer pessoa?

Basicamente, se o Espírito Santo é necessário, a Sola Scriptura é falsa. Essa é uma objeção que revela o desconhecimento da doutrina. A Escritura é suficiente porque ela tem todas as doutrinas que devem ser cridas de forma explícita ou implícita. Isso de forma alguma implica na não necessidade de atuação do Espírito Santo. Como o homem está naturalmente morto em seus delitos e pecados (Efésios 2), e sua mente está fechada para entender a palavra de Deus, se faz necessária a atuação do Espírito Santo regenerando e iluminando a mente do pecador.

A teologia protestante não afirma que qualquer homem tem a capacidade inata de compreender o evangelho. Os reformadores ensinaram a necessidade da ação iluminadora do Espírito Santo, pois o pecado cega o entendimento dos homens:

Eu o livrarei do seu próprio povo e dos gentios, aos quais eu o envio para abrir-lhes os olhos e convertê-los das trevas para a luz, e do poder de Satanás para Deus, a fim de que recebam o perdão dos pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim. (Atos 26:17-18)

O deus desta era cegou o entendimento dos descrentes, para que não vejam a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus. (2 Coríntios 4:4)

Na verdade as mentes deles se fecharam, pois até hoje o mesmo véu permanece quando é lida a antiga aliança. Não foi retirado, porque é somente em Cristo que ele é removido. (2 Coríntios 3:14)

Pois a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus. (1 Coríntios 1:18)

Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. (1 Coríntios 1:22-24)

Uma das que ouviam era uma mulher temente a Deus chamada Lídia, vendedora de tecido de púrpura, da cidade de Tiatira. O Senhor abriu seu coração para atender à mensagem de Paulo. (Atos 16:14)

Percebam como o Espirito Santo atuou através da palavra iluminando a mente de Lídia para que ela entendesse a mensagem. É esse o ensino católico romano? Definitivamente não. A promessa do Espírito Santo nunca é restrita a uma hierarquia que então trará a tona toda a verdade. A promessa é feita a todos os crentes. Todos os crentes são habitados pelo Espírito Santo. Isso quer dizer que todo o crente se torna um intérprete infalível da Escritura? Também não. O padre Paulo Ricardo disse que cada protestante se considera seu próprio papa, o que só evidencia seu desconhecimento sobre teologia protestante. O ensino reformado é que o Espírito Santo capacita o homem a entender o evangelho e através dos métodos exegéticos corretos compreender a mensagem. A iluminação é necessária, mas não suficiente. Por isso a Escritura repetidamente exorta os homens a estudá-la.

Além disso a Bíblia não caiu pronta do Céu com zíper e tudo. A Bíblia É uma síntese da pregação dos Apóstolos.

Que a Bíblia não caiu pronta de uma vez do céu concordamos. Todavia, esse é um argumento irrelevante. Além do mais, ele diz que a Bíblia é apenas uma síntese. Parece-me uma afirmação da insuficiência material. Vejamos se ele aponta o que falta e a apostolicidade desse algo a mais.

Se não fosse a Igreja Católica, com seus monges a copiarem manualmente as Escrituras durante 1.500 anos, onde estaria a Bíblia?

Mais um argumento irrelevante. Ele parece confundir causas primárias e secundárias. A causa primária da Escritura é ação de Deus. Foi pela ação e plano dele que ela veio à existência. Porém, Deus usa instrumentos. Ele usou homens para escrevê-la e também usou homens para preservá-la (os monges copistas). O fato de a Escritura ter sido preservada por copistas não implica que ela não seja a autoridade suprema e infalível. Da mesma forma, a tradição da igreja chegou até nós graças copistas. Até mesmo os documentos do magistério romano dependeram de copistas. Se o argumento dele fosse levado a efeito, a tríada romanista Escritura + tradição + magistério não seria suficiente também. Além do mais, esses copistas não eram em sua maioria católicos romanos. A igreja católica nunca se restringiu à igreja romana. A igreja romana nada mais é do que uma igreja que se desviou da fé católica primitiva. Ela se desviou dessa fé ao querer impor às igrejas irmãs suas pretensões megalomaníacas de poder. 

Se ela fosse suficiente, como saberíamos a lista dos livros canônicos, se ela não traz a lista deles? Para haver sola scriptura, necessariamente deveria existir uma lista dos livros inspirados existentes, sendo que a bíblia não é um livro, mas um conjunto de livros, sendo ainda que existia centenas de supostos livros inspirados como apocalipse de Pedro, apocalipse de Paulo, evangelho de Tome, etc etc etc.

Esse é o clássico argumento do cânon. Uma vez que a Escritura não possui uma lista inspirada de conteúdo, a Sola Scriptura é falsa. O argumento é uma cortina de fumaça. Se existisse um 28ª livro no Novo Testamento trazendo a lista de livros inspirados, ainda assim permaneceria a pergunta – como sabemos que esse 28ª é inspirado? No fim das contas, nós sempre teremos que usar da nossa capacidade investigativa para determinar se algo é verdade ou não. Esse argumento católico visa apenas um fim – gerar dúvidas para elevar a autoridade da igreja romana. O argumento romanista é que nós precisamos de uma declaração infalível sobre o cânon e que essa declaração foi feita pela igreja romana. Vamos analisar esse argumento através do método de perguntas e respostas:

(1) Se o cânon não está na Escritura, ela não seria insuficiente materialmente? Não. A suficiência material afirma que a Escritura contém todas as doutrinas que o cristão precisa acreditar para ser salvo. O cânon não é uma doutrina. É preciso acreditar no que o Evangelho de João ensina, mas não necessariamente acreditar que esse evangelho foi escrito por João. Isso se dá porque o cânon não é a revelação em si, mas o artefato da revelação;

(2) Ainda que o cânon não seja uma doutrina, ele não é um conhecimento necessário para os que desejam conhecer a Escritura? Sim. Nós precisamos de conhecimentos que estão fora da Escritura para conhecer e interpretar a própria Escritura. Isso não refuta a doutrina reformada porque não afirmamos que a Escritura é a única fonte de verdade, mas que ela é a única fonte inspirada de verdade doutrinal. Por exemplo, se você deseja saber o que o Paulo escreveu, ou precisará conhecer grego ou recorrer ao auxílio de alguém que conheça grego. Em todo o caso, a Escritura não apresenta um dicionário ou uma gramática grega. Esse é um conhecimento fora da Escritura necessário para entender a própria Escritura. Todavia, todos concordam que uma gramática grega não é uma doutrina. O cânon se encaixa na mesma categoria de conhecimento. A ideia de que precisamos de conhecimento extra bíblico para conhecer a Escritura foi claramente exposta pelo teólogo protestante Francis Turretin:

Em primeiro lugar, [filosofia] serve como um meio de convencer os gentios e prepará-los para a fé cristã. Clemente de Alexandria diz que "prepara o caminho para a doutrina mais verdadeira" (...) como é evidente a partir dos sermões de Paulo (...) e dos escritos dos pais contra os gentios (...) Então, Deus nos quer aplicar a todas as verdades das ciências inferiores à teologia e depois de resgatá-las dos gentios (como os titulares de uma má-fé) tomá-las e destiná-las a Cristo, que é a verdade, para a construção do templo sobrenatural (...) Em segundo lugar, ela pode ser um testemunho de consentimento em coisas conhecidas pela natureza .... Em quarto lugar, a mente pode ser preparada por esses sistemas de qualidade inferior para a recepção e manejo de uma ciência superior. Isso deve, contudo, ser feito com tanto cuidado que um demasiado amor à filosofia não possa nos cativar e não podemos considerá-la como uma senhora, mas como uma serva. (Compêndio de Teologia Apologética 1.13.5)

Uma ciência inferior (no caso a filosofia) prepara a mente para recepção e manejo de uma ciência superior (no caso a teologia que trata da revelação);

(3) Mas se o cânon é um conhecimento necessário, não precisamos de uma autoridade infalível para afirmá-lo? Não é por isso que precisamos de uma autoridade infalível além da Escritura? Não. Supunha que de fato houvesse uma igreja que infalivelmente determinou o cânon, isso resolveria o problema? Na verdade não. Nós apenas subiríamos mais um degrau, pois ainda restaria a questão – qual igreja? Há várias igrejas reivindicando terem guardado a fé apostólica, mas ensinando doutrinas substancialmente distintas. Por uma questão de argumento, citemos apenas a igreja romana e a ortodoxa (há outras também). Qual delas é a verdadeira? A não ser que o católico romano diga que é a igreja romana porque a própria diz que é (um argumento circular), não há nenhuma autoridade infalível para determinar a questão. Ou seja, na questão mais fundamental, nós ainda dependeríamos do nosso julgamento falível. A crença do católico romano de que sua igreja é a correta é em si uma crença falível;

(4) Sendo um conhecimento tão importante, como podemos ter certeza sobre o cânon? Ninguém precisa ter certeza infalível para justificadamente acreditar em algo. Como acabamos de ver, nenhuma autoridade infalível disse que a igreja romana é a igreja certa, ainda assim os católicos acreditam estarem certos em adotarem essa igreja. Da mesma forma, ninguém pode infalivelmente afirmar que o sol nascerá amanhã, todavia é tão provável que ele nascerá, que estamos justificados em acreditar que ele certamente nascerá. Nossa certeza a respeito do cânon advém do fato de que o mesmo Deus que inspirou esses livros também os preservou. Se eles foram inspirados para edificarem, exortarem e consolarem o povo de Deus, certamente Deus propiciaria meios para que eles fossem preservados e reconhecidos pela igreja;

(5) Quais os meios que Deus utilizou para isso? Como a igreja pode corretamente conhecer o cânon sem ter uma autoridade infalível? Na antiga aliança, os judeus chegaram ao cânon correto sem nenhuma declaração infalível. Jesus os responsabilizou por conhecerem e praticarem a Escritura, então como ele poderia exigir isso se eles dependiam de uma autoridade infalível para saber o que a Escritura era? Como um judeu que viveu 50 anos antes de Cristo poderia saber o conteúdo da Escritura? Eles puderam conhecê-lo sem apelar a uma autoridade infalível (que de fato não existia). Os cristãos podem conhecer o cânon por três meios basicamente:

(a) As qualidades divinas dos livros inspirados. Paulo afirmou que os gentios poderiam reconhecer a existência do criador através da revelação contida na natureza (Romanos 1). Assim, a revelação específica também teria as digitais do criador. Os livros bíblicos possuem incrível coerência e unidade, mesmo sendo escritos por homens diferentes de épocas diferentes em lugares diferentes. O impacto que eles causam em quem os lê é outra característica da autoria divina. Os apócrifos citados pelo interlocutor católico não tem nada disso. São livros repletos de histórias fantasiosas e contraditório entre si. Além disso, os cristãos já tinham as Escrituras do Antigo Testamento que estão em franca oposição a esses livros apócrifos que em sua maioria eram gnósticos. Um cristão do séc. II não precisaria sequer do Novo Testamento para saber que o gnosticismo era uma heresia. As doutrinas claramente expostas no A.T contrapunham o gnosticismo;

(b) As bases históricas. Nós temos boas razões históricas para acreditar que os livros são literatura do século I, foram escritos por apóstolos ou pessoas ligadas a eles ou receberam chancela de algum apóstolo. Outros candidatos que chegaram a confundir até alguns pais da igreja como o Pastor de Hermas, 1 Clemente ou Didaquê não satisfazem esses critérios. Os apócrifos muito menos. Ninguém hoje afirmaria que qualquer desses outros candidatos atenderia a esses critérios;

(c) O testemunho corporativo da igreja. Jesus disse “as minhas ovelhas ouvem a minha voz” (João 10:27-29). O Espírito Santo trabalhou no meio da igreja de forma que os livros inspirados fossem reconhecidos. Da mesma forma que na antiga aliança, não houve qualquer declaração de uma igreja infalível – o que não impediu a igreja de chegar ao consenso sobre os livros do Novo Testamento no séc. IV. Hoje, quase a totalidade da igreja cristã adota o mesmo cânon do N.T.

No próximo artigo, trataremos dos mesmos assuntos, mas com ênfase no testemunho dos pais da igreja.

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