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quinta-feira, 3 de março de 2016

Agostinho e o Catolicismo Romano - Parte 2 (A Autoridade da Tradição e dos Concílios)


A falibilidade dos concílios

Foi visto no artigo anterior que Agostinho considerava o concílio plenário e não o bispo de Roma a instância máxima de resolução de disputas na igreja. Contudo, não considerava mesmo o concílio plenário uma autoridade infalível:

Mas quem pode deixar de estar ciente de que a Sagrada Escritura canônica, tanto do Antigo como do Novo Testamento, está confinada dentro de seus próprios limites, e que ela está tão absolutamente em uma posição superior a todas as cartas posteriores dos bispos, e que sobre ela não podemos ter nenhum tipo de dúvida ou disputa se o que está nela contida é certo e verdadeiro, mas todas as cartas de bispos que foram escritas ou que estão sendo escritas são susceptíveis de serem refutadas, se há alguma coisa nelas contidas que se desvia da verdade, seja pelo discurso de alguém que sucedeu ser mais sábio no assunto do que eles, ou pela autoridade de maior peso e mais experiência aprendida de outros bispos, ou pela autoridade dos concílios. Além disso, os próprios concílios, que são realizados nos vários distritos e províncias, devem submeter-se, para além de qualquer possibilidade de dúvida, à autoridade dos concílios plenários que são formados por todo o mundo cristão; e que mesmo com os concílios plenários, os mais antigos são frequentemente corrigido por aqueles que os seguem, quando por alguma experiência atual, coisas que antes estavam escondidas são trazidos à luz. (Sobre o batismo, contra os donatistas, 2:3-4)

Se um concílio plenário posterior poderia corrigir um anterior, segue que eles são falíveis. Na mesma citação, ele afirma a infalibilidade da Escritura. Ele também diz que as cartas dos bispos poderiam ser refutadas, sem fazer nenhuma concessão especial ao bispo de Roma. O mesmo raciocínio é trazido em outro trecho da mesma obra:

Pois ambos os concílios posteriores são os preferidos entre as gerações posteriores aos [concílios] de data anterior, e o todo é sempre, com razão, visto como superior às partes. (Ibid., 2:9)

Agostinho tratou da questão da infalibilidade e somente a atribuiu à Escritura:

Só Deus jura de forma segura, porque só Ele é infalível. (NPNF1: Vol. VIII, St. Augustin on the Psalms, Psalm 89, § 4)

Mas a autoridade humana muitas vezes falha. (FC, Vol. 5, Saint Augustine On Divine Providence and the Problem of Evil, Book 2, Chapter 9, §27 (New York: CIMA Publishing Co., Inc., 1948), p. 305)

Como bispo, eu não devia precipitadamente suspeitar dele, e como sou apenas um homem, eu não posso decidir infalivelmente sobre coisas que estão escondidas de mim. Mesmo em assuntos seculares, quando um apelo é feito para uma autoridade superior, todo o procedimento persiste enquanto o caso aguarda a decisão da qual não há apelo, porque se alguma coisa for alterada enquanto o assunto está dependente da sua arbitragem, isto seria um insulto para o tribunal superior. E como é grande a distância entre mesmo a mais alta autoridade humana e a divina! (NPNF1: Vol. I, Letters of St. Augustin, Letter 77 - To, §2)

Roberto Eno, um estudioso católico romano especialista em Agostinho, escreve:

Ele também desprezou a linguagem inflada do concílio [donatista de Bagai], especialmente sua pretensão de falar com "voz infalível" (ore veridico), uma frase que ele repetiu constantemente, bem como a sua "inspiração divina". Ele se recusou a tomar tais conselhos a sério e aconselhou os correspondentes donatistas a não se preocuparem com eles também. Se o número de 310 bispos em Bagai impressionava alguém, essa pessoa deve considerar o tamanho do episcopado mundial católico. (Doctrinal Authority In Saint Augustine", Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, p. 160)

Sobre as controvérsias envolvendo a autoridade dos concílios, o bispo de Hipona escreve:

Nem eu para prejudicar-te devo argüir com o Concílio de Niceia, nem tu a mim deves argüir com o Concílio de Rímini, como se tivesse de decidir a questão antecipadamente. Nem estou sujeito à autoridade deste, nem estás sujeito à autoridade daquele. Pelas autoridades das Escrituras, não pelas pessoais de cada um desses dois Concílios, mas pelas que são comuns a um e ao outro, dispute coisa com coisa, causa com causa, razão com razão. (Contra Maximino e Ário, II, XIV, 3)

Nas disputas teológicas cada lado iria apelar ao concílio que lhe favorecia. Como Agostinho procedia? Ele dizia “o meu concílio é infalível e o seu não”? Não, ele apelava à única fonte infalível de fé que concebia – as Escrituras sagradas. Leve-se em conta que ele poderia apelar à Niceia, concílio que hoje a igreja romana considera infalível. Além do mais, a lista de concílios ecumênicos acreditados por Agostinho em seu tempo é diferente dos que hoje são reconhecidos pela igreja de Roma.

A autoridade da tradição

Nesse ponto já podemos estabelecer que Agostinho não sustentava nenhum magistério infalível, seja exercido pelo bispo de Roma ou pelos concílios. Os apologistas católicos quando lidam com a quantidade expressiva de citações em que o bispo de Hipona declara a Escritura como a autoridade suprema, trazem citações em que ele cita a tradição. Esse é um comportamento comum da apologética católica quando se trata da questão da autoridade nos pais da Igreja. Por isso, vamos a um breve resumo da doutrina da Sola Scriptura e demonstrar porque a autoridade da tradição não refuta em nada essa doutrina.

Uma definição simples da Sola Scriptura é que a “Escritura é a única regra infalível de fé para a Igreja”. Perceba que não é dito que a Escritura é a única autoridade, mas a única autoridade infalível. As igrejas reformadas ensinam que a Igreja tem autoridade para ensinar, disciplinar e administrar os sacramentos, assim como também possuem tradições. Poderiamos citar a Confissão de Westminster que é considerada autoritativa por várias igrejas reformadas. A posição reformada em relação aos pais da Igreja é que eles devem ser lidos, estudados e suas opiniões possuem peso, mas assim como os próprios ensinaram, seus escritos não possuem a mesma autoridade que os livros canônicos. Portanto, citar um pai da Igreja que apelava à tradição não é uma refutação à doutrina reformada, pois o mesmo pai poderia considerar a Escritura como uma autoridade superior à tradição. A chave aqui é entender o conceito de hierarquia de autoridades. A igreja pode possuir mais de uma autoridade, porém, a Escritura é suprema e todas as outras lhe são subordinadas. Por isso, a tradição e os ensinos da igreja devem ser aceitos na medida em que se conformam ao ensino supremo da Escritura.

Mas o que torna a autoridade da Escritura suprema e infalível? A inspiração divina dos escritos canônicos (2 Tm. 3:16-17). A Escritura foi inspirada por Deus, logo é inerrante e infalível. Aqui precisamos fazer uma distinção entre infalibilidade e inerrância. Inerrância é a ausência de erro, mesmo uma autoridade falível pode fazer uma afirmação inerrante. Quando um mulçumano afirma que há um só Deus, ele está fazendo uma declaração inerrante, mas isso não implica que seja infalível. Infalibilidade é uma característica exclusiva de Deus. Por ser perfeito, Ele não pode cometer erros, e por ter inspirado a Escritura, ela não só não cometeu nenhum erro doutrinário como também não poderia ter cometido.

Outros dois conceitos estão embutidos no princípio da Sola Scritpura: suficiência formal e material. Por suficiência material, queremos dizer que a Escritura contém de forma explícita ou implícita todas as doutrinas que o cristão precisa para ser salvo e ter vida em Cristo. Essa posição foi negada pelo concílio de Trento que adotou a teoria das duas fontes, ou seja, Escritura e tradição seriam fontes distintas de revelação. No entanto, nos últimos tempos, cada vez mais teólogos católicos e até apologistas têm aderido à posição da suficiência material. Hoje, a principal divergência é a suficiência formal. Isso quer dizer que a Escritura não somente contém toda as doutrinas necessárias, mas que elas estão expostas de forma clara, não se fazendo necessário a assistência de um intérprete ou tradição infalível para se chegar a essas doutrinas.

Dessa forma, se o apologista católico deseja refutar a Sola Scriptura nos pais da Igreja, ele precisa demonstrar que a tradição ou o magistério estavam nesse mesmo patamar. O pai teria que considerar o magistério ou a tradição uma regra infalível de fé ou negar alguns dos pressupostos mostrados acima. Situada a questão, veremos o testemunho de Agostinho sobre a tradição. O site apologistas católicos traz algumas citações sobre tradição e vaticina: “A Sola Scriptura recebe um golpe mortal com estas frases de Santo Agostinho”. Porém, longe disso, nenhuma citação trazida refuta qualquer aspecto da Sola Scriptura:

Mas com relação àquelas observâncias que seguimos cuidadosamente e que o mundo todo mantém, e que não vêm da Escritura, mas da Tradição, é-nos concedido compreender que foi ordenado e recomendado que a guardássemos ou pelos próprios apóstolos, ou pelos Concílios plenários, cuja autoridade na Igreja é mais útil. (Carta a Januário, I)

Mas que tradição é essa? Será que ela continha alguma peculiar doutrina romana que não encontramos nas Escrituras? Seria a assunção de Maria ou a infalibilidade papal? Vejamos a continuação:

... dentre elas a comemoração anual por especiais solenidades, da Paixão do Senhor, da ressurreição e ascensão, da descida do Espírito Santo do Céu e tudo o que está na forma como é observado por toda a Igreja, onde quer que tenha sido estabelecida.

Agostinho não está falando de doutrinas que devem ser cridas para a salvação, mas de meros costumes mantidos pela Igreja. Encorajo o leitor a ler essa carta aqui. Toda ela trata de costumes e não doutrinas. Ninguém acreditava que esses costumes eram necessários para a salvação. O argumento de Agostinho é que havia práticas na Igreja que não eram expressas na Escritura, porém eram tão generalizadas, que possivelmente ou os apóstolos as deixaram ou algum concílio plenário a determinou. Lembremos que os concílios não eram infalíveis para ele, portanto, essa tradição, além de não se referir a doutrinas, não poderia ser uma regra infalível de fé paralela às Escrituras. A Confissão de Westminster se refere a costumes dessa natureza da seguinte forma:

...que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas.

Há questões que não foram detalhadamente disciplinadas pela Escritura. A confissão recomenda a prudência e que sejam seguidos os princípios da Palavra. No cap. 2, Agostinho relata diversos costumes que eram variáveis entre as Igrejas como a frequência de celebração da eucaristia. Ele recomenda que não haja brigas por isso e que o costume de cada Igreja seja respeitado.

Por vezes tenho percebido, com extrema tristeza, muitas inquietações causadas aos irmãos fracos pela contenciosa obstinação ou erro supersticioso de alguns que, em matérias desse tipo não admitem a decisão final da autoridade da Sagrada Escritura, ou pela tradição da Igreja universal ou pela sua manifesta boa influência sobre condutas que levantam questões.

Mesmo nessas questões, ele coloca a autoridade da Escritura como suprema. Apenas quando a Escritura não disciplina um costume específico, é que a prática da Igreja universal entra em questão. Se Agostinho de fato fosse papista, colocaria em destaque a autoridade do bispo de Roma para dirimir a controvérsia, mas não é o caso. De nada adianta que o costume seja típico da igreja romana, se ele não for praticado igualmente pela igreja universal. Essa hierarquia de autoridades em questões práticas é aludida novamente no cap. 4. Vamos à próxima citação:

O Costume ... pode ter tido sua origem na Tradição Apostólica, assim como há muitas coisas que são observados por toda a Igreja e, portanto, são razoavelmente realizadas por terem sido ordenadas pelos Apóstolos, que ainda não são mencionados em seus escritos. (Sobre o Batismo, contra os donatistas 5:23)

O comentário da citação anterior se aplica aqui. Agostinho está falando de costumes e não doutrinas. Ele usa o mesmo raciocínio – se algo sempre foi praticado por toda a igreja, deve ter se originado nos apóstolos. Os donatistas eram um grupo cismático defensores de que a validade do sacramento dependia da dignidade do sacerdote. Um sacerdote pecaminoso não poderia ministrar um sacramento válido. Esse grupo se tornou muito influente na igreja norte-africana, e Agostinho se levantou contra eles. Os donatistas estavam usando o testemunho de Cipriano (que viveu no séc. III) em seu favor. Cipriano defendeu contra a posição do bispo de Roma Estevão o rebatismo dos hereges. Para ele, àqueles que aderiram a grupos heréticos precisariam ser rebatizados caso desejassem retornar à igreja. Nessa questão, Agostinho defendia o não rebatismo dos hereges e acreditava que essa era uma prática generalizada na igreja que deveria ter origens apostólicas. Vejamos em contexto:

Cipriano escreve também para Pompeu sobre esse mesmo assunto, e mostra claramente nessa carta que Estevão, como nós aprendemos, era então bispo da Igreja Romana, não só não concordo com ele sobre esses pontos antes de nós, mas escreveu e ensinou pontos de vista opostos. Mas Estevão certamente não se "comunicou com os hereges", simplesmente porque ele não se atreveu em contestar o batismo de Cristo, que ele sabia que permaneceu perfeito no meio de sua [dos hereges] perversidade. Pois, se ninguém tem o batismo de quem acolhe falsas sobre Deus, tem sido provado suficientemente, em minha opinião, que isso pode acontecer mesmo dentro da Igreja. "Os apóstolos," de fato, "não deram instruções sobre o ponto"; mas o costume, que se opõe a Cipriano, pode ser suposto ter tido sua origem na tradição apostólica, assim como há muitas coisas que são observadas por toda a Igreja e, portanto, são razoavelmente realizadas por terem sido ordenadas pelos Apóstolos, ainda que não sejam mencionados em seus escritos.

Que mesmo nessa questão de costumes, a Escritura ainda era a autoridade suprema fica claro a seguir:

Com que autoridade da Sagrada Escritura é que foi mostrado que "é contra o mandamento de Deus que as pessoas que vem da comunidade dos hereges, se eles já receberam o batismo de Cristo, não são batizados de novamente?" Mas é claramente demonstrado que muitos pretensos cristãos, embora eles não estejam unidos no mesmo vínculo da caridade com os santos, sem o qual nada santo que eles possam ter sido capazes de possuir é de algum lucro para eles, ainda têm o batismo em comum com os santos, como já foi suficientemente provado com a maior plenitude.

Antes de recorrer ao consenso da igreja universal sobre o costume, Agostinho analisou a questão à luz da Escritura. No capítulo 24, o bispo de Hipona discute diversos argumentos bíblicos a respeito. Apesar do costume de não rebatizar não estar explícito nas Escrituras, Agostinho cria que a prática era amparada pelos princípios bíblicos:

E deixe qualquer um, que é liderado pelo costume passado da Igreja, e pela autoridade subsequente de um Conselho plenário e por tantas provas poderosas da Sagrada Escritura, e por muita evidência do próprio Cipriano, e pelo raciocínio claro da verdade, entender que o batismo de Cristo, consagrado nas palavras do evangelho, não pode ser pervertido pelo erro de qualquer homem na terra. (Ibid., 5:24)

O costume generalizado da igreja e as decisões do concílio plenário só reforçavam sua interpretação da Escritura. Mas, a autoridade final para dirimir a questão era a própria Escritura. O apologista católico traz então outra citação da mesma obra referente à tradição apostólica:

Mas a advertência de que ele nos dá, “que devemos voltar à fonte, isto é, à Tradição Apostólica, e daí ligar o canal da verdade para os nossos tempos”, é excelentíssima, e deve ser seguido sem hesitação.

Duas perguntas precisam ser respondias. 1) Quem passou essa tradição apostólica? 2) Qual o conteúdo dessa tradição? Quem deu foi Cipriano. E o conteúdo dessa tradição que se encontra no contexto imediato é o seguinte:

É transmitido a nós, portanto, como ele mesmo registrou, pelos apóstolos, que há "um só Deus e um só Cristo, e uma esperança e uma só fé, e uma Igreja e um só batismo".

A tradição que o católico diz refutar a Sola Scriptura nada mais é do que uma tradição bíblica. Esse é um exemplo claro de como a apologética católica usa a tradição para “refutar” o princípio reformado. Os pais da Igreja se referiam a tradição como costumes, dados históricos, práticas litúrgicas, interpretações bíblicas e até mesmo a própria Escritura poderia ser chamada de tradição. O fato é que nenhum desses usos chega perto de refutar o princípio reformado. Lembremos também a posição de Agostinho em relação aos escritos de outros pais de Igreja, incluso Cipriano:

Em primeiro lugar, esta classe de escritos [dos Pais] deve ser considerado de menor autoridade, distinguindo-se da Escritura canônica. Pois tais escritos não são lidos por nós como um testemunho do qual seria ilegal manifestar qualquer opinião diferente, pois pode ser que as opiniões deles sejam diferentes daqueles que a verdade exige a nossa concordância [as Escrituras]. (Carta 93:10)

Você está encantado com a autoridade desse bispo e ilustre mártir Cipriano, que nós realmente respeitamos como eu disse, mas como bastante distinto da autoridade da Escritura canônica. (Ibid)

Ainda que a tradição de Cipriano a qual Agostinho se referia fosse materialmente distinta da Escritura, ela não poderia ser considerada uma regra infalível de fé, pois a fonte da tradição era considerada sujeita ao erro. É notável que Agostinho deu razão ao bispo romano nessa contenda com Cipriano, mas absolutamente em lugar algum, ele diz que Cipriano estava errado em se opor à autoridade de Roma. Esse seria o momento em que a doutrina da infalibilidade papal deveria aparecer. Cipriano supostamente estaria em pecado por resistir ao ensino do bispo Romano, mas essa insubordinação não é apontada pelo bispo de Hipona. O: estudioso católico Robert Eno escreve

Agostinho argumentou que Cipriano não estava a ser acusado de cometer um erro em uma questão complexa [batismo herético]. Ele viveu antes que um concílio plenário ou universal pudesse decidir a questão; se tal decisão fosse tomada durante a sua vida, não há dúvida de que ele teria aceitado isso desde que ele, ao contrário dos donatistas, era um amante da unidade da Igreja. A especulação de Agostinho sobre Cipriano parece um pouco distorcida quando se percebe que Agostinho acreditava que o costume geral da Igreja antes de Agripino era não batizar. (Doctrinal Authority In Saint Augustine", Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 161)

Ou seja, Cipriano não estava em erro porque a questão ainda não tinha sido decidida em concílio plenário. Mais uma vez, fica claro que autoridade da igreja era exercida de forma suprema não pelo papa, mas pelo concílio. Estevão não foi capaz de mudar a opinião de Cipriano, mas um concílio seria. Eno aponta também a improcedência do argumento de Agostinho. Se não rebatizar fosse uma prática universal, a igreja norte-africana e outras igrejas da Ásia não teriam se oposto. Católicos argumentam que a opinião do bispo Estevão prevaleceu nessa controvérsia e isso seria uma prova da sua autoridade universal. Esse argumento é falso porque a questão só seria decidida de forma definitiva em concílio plenário. Como Agostinho fala sobre a tradição se referindo a Cipriano, é oportuno saber a visão de Cipriano sobre a autoridade da Escritura e da tradição:

De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos? Pois que aquelas coisas que estão escritas devem ser feitas ... Se, então, é prescrito nos Evangelho, ou contido nas epístolas ou Atos dos Apóstolos, para que aqueles que vêm de alguma heresia não devam ser batizados, mas somente as mãos sejam impostas a eles em arrependimento, que esta divina e santa tradição seja observada. (Epístola 74)

Cipriano subordinava a tradição à autoridade das Escrituras. Uma tradição sem fundamentação bíblica deveria ser rejeitada. Quem estava do outro lado sustentando a posição contrária era o bispo de Roma, a quem Cipriano respondeu: “mais importa obedecer a Deus do que aos homens”. Sigamos:

Acredito que esta prática venha da tradição apostólica, assim como tantas outras práticas não encontradas nos escritos deles nem nos concílios de seus sucessores, mas que, porque são observadas por toda a Igreja em todos os lugares, acredita-se que tenham sido confiadas e concedidas pelos próprios apóstolos. (Batismo 1,12,20)

Essa citação trazida pelo católico está com a referência errada. Ela está no livro 2, cap. 7 e pode ser conferida aqui. Vejamos o contexto:

Cessem então de apresentar contra nós a autoridade de Cipriano em favor da repetição do batismo, mas agarrem-se conosco ao exemplo de Cipriano para a preservação da unidade. Pois, essa questão do batismo não tinha sido ainda completamente trabalhada, mas a Igreja observou o costume mais salutar de corrigir o que estava errado e não repetir o que já foi dado, mesmo no caso dos cismáticos e hereges: ela curou a parte ferida, mas não interviu com o todo. Esse costume chegou, eu suponho, da tradição (como muitas outras coisas que são mantidas que foram transmitidas sob sua sanção verdadeira, porque elas são preservadas em toda a Igreja, embora não sejam encontradas em suas letras ou nos conselhos de seus sucessores).

Resolvi traduzir novamente porque me parece que a tradução do católico não foi exata. Não há o adjetivo “apostólica” no texto em inglês. Ele também fez parecer que “em suas letras” se refere aos apóstolos, mas ao que parece, está se referindo à Igreja e não aos apóstolos. Não há também no texto em inglês o trecho: “tenham sido confiadas e concedidas pelos próprios apóstolos”. Além de todos esses problemas, a tradição a que Agostinho se refere é de não rebatizar os hereges ou cismáticos, o que já foi discutido amplamente na citação anterior. Os mesmo argumentos se aplicam aqui. A próxima citação é irrelevante para a questão:

Eles guardaram o que encontraram na Igreja; o que lhes foi ensinado, ensinaram; o que receberam dos pais, transmitiram aos filhos. (Contra Juliano, 2,10,33)

Nessa obra, Agostinho responde Juliano de Eclano, um seguidor de Pelágio. Essa citação consta do Livro II que pode ser visto aqui. Agostinho estaria apelando a alguma tradição extra bíblica oriunda dos apóstolos? Não. Ele estava apelando aos pais da Igreja contra o erro de Juliano. Ele argumenta que os pais anteriores tinham ensinado que o homem contraia o pecado original. Já vimos que Agostinho não atribuía infalibilidade aos escritos dos pais, mas considerava que suas opiniões tinham peso. Se uma crença foi unanimemente confessada pelos pais, a probabilidade de que seja correta aumenta bastante. Se os pais tivessem ensinado desde cedo que Maria foi assunta aos céus, a probabilidade do fato aumentaria consideravelmente, residindo ai um forte argumento em favor dessa doutrina. Sabemos que nesse caso, foi justamente o contrário – uma ausência absoluta dessa doutrina nos pais mais antigos. Que ele se referia aos pais fica claro abaixo:

E eu não tenho, com imaginação vã, inventado tais pessoas como se nunca tivessem existido e não existissem, ou cujos ensinamentos sobre o assunto que estamos discutindo fosse incertos, mas santos bispos famosos na Igreja santa, e eu os tenho citado pelo nome como convinha, homens versados na sagrada Escritura, não em platônicas, aristotélicas, estóicas ou outros tipo de estudos, sejam gregos ou latinos. (Contra Juliano, 2,10,34)

Percebam o qualificador “versados na sagrada Escritura”. Ao refutar os pelagianos, Agostinho nunca apelou a qualquer tradição doutrinária extra-bíblica, mas usou acima de tudo o ensino da Escritura. Um dos motivos que o fazia citar esses homens era o fato de serem versados nas Escrituras. Embora tais homens não fossem infalíveis, eram confiáveis.

Esta Igreja é santa, a única Igreja, a verdadeira Igreja, a Igreja Católica, lutando como o faz contra todas as heresias. Ela pode lutar, mas não pode ser vencida. Todas as heresias são expelidas dela, como galhos inúteis são podados de uma vinha. Ela permanece fixa à sua raiz, em sua vinha, em seu amor. As portas do inferno não a conquistarão. (Sermão aos Catecúmenos sobre o Credo, 6:14)

O bispo de Hipona está discorrendo sobre o trecho do credo apostólico que trata da igreja. O apelo católico romano a essa citação encontra uma série de problemas:

(1) Ele se refere à Igreja Católica de seus dias que não era romana. Como demonstramos na parte 1 e vamos continuar fazendo, Agostinho não poderia ser considerado um católico romano, pois não sustentava as doutrinas fundamentais do romanismo;
(2) Vimos na parte 1 que a eclesiologia de Agostinho mudou ao longo de sua vida. No fim da vida, ele acredita na Igreja como a comunhão de todos os eleitos, que poderiam inclusive não estar inserido na igreja visível e hierárquica num dado momento;
(3) Ele nunca ensinou que uma igreja local não poderia apostatar. Ele não atribuiu infalibilidade a nenhuma instância de autoridade dentro da igreja, sejam igrejas locais, concílios ou qualquer bispo. É notável que a igreja a que se refere Agostinho incluía os orientais. No entanto, a igreja romana de hoje diz que os orientais apostataram. Se isso poderia ter acontecido com a maior porção da igreja, porque não poderia ter acontecido com Roma? A única saída seria demonstrar que Roma tinha o singular privilégio de ser imune à apostasia, mas isso não foi ensinado pelo bispo de Hipona. A própria igreja a qual ele pertencia deixou de existir com as invasões islâmicas.

A posição de Agostinho é de que a Igreja nunca deixaria de existir e vencerá a batalha contra as heresias. Essa posição é acreditada pelos reformados. Em outras palavras, a heresia pode se infiltrar na igreja, a apostasia pode ser quase total como foi na igreja do antigo testamento. Houve um momento em que apenas sete mil não se dobraram a Baal, mas ela nunca deixou nem deixará de existir. Um remanescente fiel sempre será preservado por Deus, sem necessitar de qualquer autoridade humana infalível, como aconteceu com a igreja da antiga aliança. Atanásio e Jerônimo testemunham que o arianismo alcançou quase toda a igreja, mas um núcleo duro e ortodoxo sempre prevaleceu. Em todas as épocas, existiram crentes verdadeiros, embora em alguns momentos a apostasia apresentasse níveis grandiosos.  No fim da história, a igreja ganhará a guerra e as portas do inferno não terão prevalecido. Portanto, essa citação não refuta a sola scriptura, pois Agostinho não apelou a nenhuma outra autoridade infalível, e também não contraria a eclesiologia reformada.

É óbvio que se a fé permite e a Igreja Católica aprova, então deve ser crido como verdade. (Sermão 117:6)

A Sola Scriptura não elimina a autoridade da Igreja, apenas afirma estar acima dessa. Portanto, mostrar que Agostinho cria na autoridade da igreja não refuta a doutrina protestante, sendo ainda preciso mostrar que essa autoridade estava no mesmo nível das Escrituras e era também infalível. O sermão 117 pode ser visto aqui. Ele visava combater a heresia ariana e era baseado em João 1:1: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus”. Vejamos em contexto:

Eles então dizem assim: "Se Ele é o Filho de Deus, Ele nasceu". Isso confessamos. Pois Ele não seria um filho, se não tivesse nascido. É claro, a fé admite, a Igreja católica o aprova, é verdade. Eles então continuam: "Se o Filho nasceu do Pai, o Pai estava antes do Filho que nasceu dEle". Essa a fé rejeita, os ouvidos católicos rejeitam, sendo amaldiçoado, e todos aqueles que aceitam esta presunção estão fora, eles não pertence à irmandade e sociedade dos santos.

Agostinho estava tratando do argumento ariano de que o filho era uma criação do Pai e não eterno como Ele. A primeira parte do argumento era aceito pela igreja: “Se ele é o Filho de Deus, Ele nasceu”. A segunda parte que concluía que o filho não era eterno era rejeitada pela igreja. Note que antes de dizer que a igreja admite, ele apela à fé da igreja. De onde essa fé vinha? Em que estava fundamentada? Na palavra de Deus preservada nas Escrituras canônicas. Lembre-se que esse é um sermão sobre João 1:1. A base da crença de Agostinho em questão era o evangelho. Não há nada nessa citação que implique num magistério infalível da igreja, muito menos chefiado pelo bispo de Roma.

Encerramos a segunda parte. Tratamos das citações que os católicos geralmente usam para provar a tradição como regra infalível de fé em Agostinho. Observamos também que os concílios, embora seja a instância máxima de autoridade dentro da Igreja, eram falíveis e subordinados à Escritura. No próximo artigo, iremos abordar a citação mais usada em debates apologéticos quando se trata da relação entre Escritura e Igreja: “Eu não creria no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja católica”.

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