sexta-feira, 29 de abril de 2016

Justificação somente pela Fé (Sola Fide) nos Pais da Igreja - Parte 2


Jerônimo (347-420)

Deus justifica pela fé somente. (In Epistolam Ad Romanos, Caput X, v. 3, PL 30:692D)

Aquele que com todo o seu espírito tem colocado sua fé em Cristo, mesmo que ele morra em pecado, por causa de sua fé viverá para sempre. (Epistola CXIX, Ad Minervium et Alexandrum Monachos)

Não poderia ser mais oposto à teologia romana. Jerônimo tinha uma visão que não sendo totalmente parecida é muito semelhante à doutrina da perseverança dos santos. Todos aqueles que tiveram fé genuína, ainda que morram em pecado, serão salvos. Jacques Le Goff escreve:

S. Jerónimo, embora inimigo de Orígenes, é, no que diz respeito à salvação, o mais “origenista”. Exceto Satanás, os que negam Deus e os ímpios, todos os seres mortais, todos os pecadores serão salvos: “Assim corno cremos que os tormentos do Diabo, de todos os que o negam e de todos os ímpios que dizem no seu coração "não há Deus" serão eternos, assim, em compensação, pensamos que a sentença do juiz para os pecadores cristãos, cujas obras são postas à prova e expurgadas no fogo, será moderada e impregnada de clemência”. (The Birth Of Purgatory [Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1986], p. 61)

Jerônimo defende que as obras dos pecadores cristãos passarão pelo fogo e eles se salvarão. Esse parece um conceito semelhante ao purgatório, mas há um elemento da doutrina romanista que falta – todos os pecadores cristãos, mesmo aqueles que morreram em pecado mortal, serão salvos. A igreja romana diz que um cristão genuíno pode até o fim da vida cometer pecador mortal e caso o cometa, irá para o inferno sem direito ao purgatório. O erudito patrístico J.N.D. Kelly confirma essa opinião:

Jerônimo desenvolveu a mesma distinção, afirmando que, enquanto o Diabo e os ímpios que negaram Deus serão torturados sem remissão, aqueles que confiaram em Cristo, mesmo aqueles que pecaram e se afastaram, acabarão por ser salvos. O mesmo ensinamento aparece em Ambrósio, desenvolvido em mais detalhe. (Early Christian Doctrines [San Francisco, California: HarperCollins Publishers, 1978], p. 484)

Ambrósio de Milão (337-397)

Deus escolheu que o homem deveria buscar a salvação pela fé e não por obras, para que ninguém se glorie perante as suas obras e assim incorresse em pecado. (In Psalmum XLIII Enarratio, §14, PL 14:1097)

A implicação é que somos salvos somente pela fé.

Eu não tenho como me gloriar nas minhas obras. Eu não tenho nada para me gabar, por isso, eu vou me gloriar em Cristo. Eu não vou me gloriar porque eu sou justo, mas porque eu estou redimido. Eu não vou me gloriar porque eu estou livre do pecado, mas porque os meus pecados estão perdoados. Eu não me gloriarei porque tenho feito o bem a alguém ou alguém tem feito o bem para mim, mas porque Cristo é o meu advogado junto ao Pai e porque o sangue de Cristo foi derramado por mim. (George Finch, A Sketch of the Romish Controversy [London: G. Norman, 1831], p. 220)

Ambrósio não endossaria a ideia de que nossas boas obras acumulam méritos diante de Deus. Ele também parece concordar com a ideia da morte substitutiva de Cristo ao dizer que seu sangue foi derramado por ele.

Isaque sentiu o mau cheiro das vestes possivelmente significando que não somos justificados pelas obras, mas pela fé, uma vez que a fraqueza da carne é um obstáculo para obras, mas o brilho da fé, que merece o perdão dos pecados, derruba o erro das ações. (On Jacob and the Happy Life, Book 2, Chapter 2, Section 9)

Outras citações de Ambrósio a respeito poderiam ser trazidas, mas por questão de brevidade encerramos aqui. Destacamos que Ambrósio concordava com Jerônimo que todos os cristãos que tiveram fé seriam salvos.

João Crisóstomo (349-407)

Assistais a isto, vós que vêm para o batismo no fim da vida, para nós, na verdade, orem para que após o batismo tenhais também este comportamento (...) Pois, do que tu és justificado: É só da fé. Mas nós oramos para que tu possas ter bem a confiança que vem de boas obras. (NPNF1: Vol. XIII, On the Second Epistle of St. Paul The Apostle to the Corinthians, Homily 2, §8)

Crisóstomo é um dos pais da igreja em que afirmações sobre a Sola Fide são mais abundantes, apesar de ter sido inconsistente em alguns momentos.

Aqueles que eram inimigos, e pecadores, nem justificados pela lei, nem por obras, devem imediatamente através da fé somente ser avançado para o mais alto favor. Sobre este assunto em conformidade Paulo tem discursado longamente em sua Epístola aos Romanos, e aqui novamente em comprimento. "Esta é uma palavra fiel", diz ele, "e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores." Como os judeus foram principalmente atraídos por isso, ele convenceu a não darem ouvidos à lei, desde que não poderiam alcançar a salvação por Ele sem a fé. (NPNF1: Vol. XIII, Homilies on First Timothy, Homily 4, 1 Timothy 1:15, 16)

Para uma pessoa que não tinham obras ser justificada pela fé não era nada improvável. Mas para uma pessoa ricamente adornada com boas ações, não deve ser feito apenas a partir disso, mas de fé, isso é uma coisa que causa grande admiração e define o poder da fé numa forte luz. (NPNF1: Vol. XI, Homilies on the Epistle of Paul the Apostle to the Romans, Homily 8, Rom. 4:1,2)

A última citação afirma que uma pessoa pode ser justificada pela fé sem obras.

A missão de Deus não era salvar as pessoas para que permanecessem estéreis ou inertes. A Escritura diz que a fé nos salvou. Colocado de forma melhor: Uma vez que Deus quis isso, a fé nos salvou. Agora, neste caso, diga-me, a fé salva sem ela própria fazer absolutamente nada? A fé operante em si é um dom de Deus, para que ninguém se glorie. O que então Paulo está dizendo? Não que Deus proibiu obras, mas que ele nos proibiu de ser justificado pelas obras. Ninguém, diz Paulo, é justificado pelas obras, justamente para que a graça e benevolência de Deus possa se tornar aparente. (Homily on Ephesians 4.2.9. Mark J. Edwards, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VI: Galatians, Ephesians, Philippians [Downers Grove: InterVarsity Press, 1998], p. 134)

Não poderia haver uma declaração mais clara a favor da Sola Fide. Crisóstomo defende que somos justificados pela fé e não por obras. Isso se dá para que o homem não se glorie, pois a salvação e até mesmo a fé é um dom de Deus.

Ambrosiastro (366-384)

Ambrosiastro é um ator cristão desconhecido que escreveu comentários sobre as epístolas paulinas no séc. IV. Ele ficou conhecido por esse nome porque por muito tempo essa obra foi atribuída a Ambrósio.

[Em Romanos 3:24] Eles são justificados gratuitamente, porque eles não fizeram nada, nem deram nada em troca, mas somente pela fé que temos sido santificados pela dádiva de Deus. (Gerald Bray, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VI: Romans [Downers Grove: InterVarsity Press, 1998], p. 101)

[Em Romanos 3:27] Paulo diz para aqueles que vivem sob a lei, que eles não têm razão para se vangloriar baseando-se na lei e por ser da raça de Abraão, vendo que ninguém é justificado diante de Deus a não ser pela fé. (Ibid., p. 103)

Deus decretou que uma pessoa que crê em Cristo pode ser salva sem as obras. Pela fé, recebe o perdão dos pecados. (Gerald Bray, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VII: 1-2 Corinthians [Downers Grove: InterVarsity Press, 1999], p. 6)

[Em Romanos 4:6] Paulo corrobora esta afirmação [justificação sem obras] com o exemplo do profeta David, que diz que são abençoados aqueles os quais Deus decretou que, sem obras ou qualquer observância da lei, são justificados diante de Deus pela fé. (Gerald Bray, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VI: Romans [Downers Grove: InterVarsity Press, 1998], p. 113)

Como, então, os judeus pensam que eles foram justificados pelas obras da lei da mesma forma que Abraão, quando veem que Abraão não foi justificado pelas obras da lei, mas pela fé? Portanto, não há necessidade da lei quando o ímpio é justificado diante de Deus pela fé. (Gerald Bray, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VI: Romans [Downers Grove: InterVarsity Press, 1998], p. 112)

Todas são citações muito claras. É impressionante que alguém ainda insista que ninguém defendeu a justificação somente pela fé antes da Reforma. Em consonância à Sola Fide, Ambrosiastro tinha um conceito idêntico a Jerônimo – todos àqueles que tiveram fé serão salvos, embora os pecadores tenham que passar por uma purificação pós-morte. O mesmo comentário feito sobre Jerônimo é cabível aqui – não se pode falar em doutrina do purgatório – pois para essa, nem todo cristão pecador será salvo, mas apenas os que morreram em pecados não graves. Le Goff comenta:

Ambrosiastro, embora não traga grande coisa de novo em comparação com Ambrósio, tem de especial e de importante o fato de ser o autor da primeira autêntica exegese do texto de Paulo de I Coríntios 3:10-15. A este título, teve grande influência nos comentadores medievais deste texto essencial para a gênese do Purgatório, em especial nos primeiros escolásticos do século XII. Como Hilário e Ambrósio, ele distingue três categorias: os santos e os justos que irão diretamente para o Paraíso quando da ressurreição; os ímpios, os apóstatas, os infiéis e os ateus que irão diretamente para os tormentos do fogo do Inferno; e os simples cristãos que, embora pecadores, depois de terem sido purificados durante certo tempo pelo fogo e de terem pago a sua dívida, irão para o Paraíso porque tiveram fé. Comentando S. Paulo, escreve: “Ele (Paulo) disse: ‘mas como através do fogo’ porque esta salvação não existe sem sofrimento; e não disse: ‘Será salvo pelo fogo’; mas quando ele disse: ‘como através do fogo’ quis mostrar que essa salvação há de vir, mas que tem de sofrer as penas do fogo; para que, expurgado pelo fogo, seja salvo, e não como os infiéis (perfidi), atormentados pelo fogo eterno para sempre; se, por algum pedaço da sua obra, ele tem algum valor, é porque acreditou em Cristo”. (Op. Cit., p. 61)

J. N. D Kelly confirma:

Encontramos Ambrosiastro ensinando que, enquanto o realmente mau, “será atormentado com o castigo eterno", o castigo dos pecadores cristãos vai ter uma duração temporária. (Op. Cit., p. 484)

Nesse ponto alguém poderia dizer que Jerônimo e Ambrosiastro não teriam ensinado justificação somente pela fé já que eles também defenderam algum conceito de purificação pós-morte. Dada a clareza do que eles disseram sobre a justificação, proponho duas hipóteses mais prováveis de explicação:

(1) Eles foram inconsistentes. Isso é muito comum nos pais da igreja – o que é reconhecido por qualquer estudioso patrístico. Muitas vezes as pessoas detém uma ideia sem refletir sobre suas implicações e acabam tendo opiniões conflitantes;

(2) Uma segunda hipótese é que eles viam essa purificação pós-morte como um elemento somente santificador, sem ter nenhum tipo de punição em vista. Essa não é a posição da igreja romana quando ensina o purgatório, mas pode ser a opinião desses pais. A teologia reformada defende que Deus usa os sofrimentos dessa vida para santificar os crentes. Lemos em Hebreus 12:5-7:

E estais esquecidos da Palavra de encorajamento que Ele vos dirige como a filhos: “Meu filho, não desprezeis a disciplina do Senhor, nem desanimeis quando por Ele sois repreendido, pois o Senhor disciplina a quem ama, e educa todo aquele a quem recebe como filho”. Suportai as dificuldades, aceitando-as como disciplina; Deus vos trata como filhos. Ora, qual o filho que não passa pela correção do seu pai?

A diferença é que essa disciplina seria exercida também no pós-morte. Por motivos óbvios, a teologia protestante rejeita essa purificação pós-morte por sua natureza anti-bíblica (A Escritura trata exaustivamente do pós-morte sem fazer qualquer menção a uma purificação para além dessa vida). Todavia, a crença numa santificação (sem qualquer elemento punitivo) não é necessariamente inconsistente com a doutrina da justificação pela fé somente.

Cirilo de Alexandria (378-444)

Visto que a lei condenou os pecadores e por vezes impôs a pena suprema sobre aqueles que a desobedeceram de forma não misericordiosa, como foi a nomeação de um sumo sacerdote verdadeiramente compassivo e misericordioso não necessário para os habitantes da terra; aquele que iria revogar a maldição, examinar o processo legal e libertar os pecadores com o perdão da graça e comandos baseados na docilidade? "Eu", diz o texto, "Eu sou o que apago as tuas transgressões por meu próprio amor, e eu não lembrarei seus pecados" [Is. 43: 25]. Nós somos justificados pela fé, não por obras da lei, como a Escritura diz [Gal. 2: 16]. Pela fé em quem somos justificados? Não é naquele que sofreu a morte segundo a carne por nossa causa? Não é o único Senhor Jesus Cristo? (Against Nestorius in Norman Russell, Cyril of Alexandria [London: Rutledge, 2000], p. 165)

O enfoque da citação é cristológico (contra a concepção de Nestório), mas Cirilo acaba tratando da justificação. Ele afirma o ensino paulino de justificação somente pela fé, não pelas obras da lei. É muito improvável que a referência fosse apenas à lei cerimonial, pois Cirilo afirma que a lei condenou os pecadores. Um gentio, por exemplo, não poderia ser condenado pela lei cerimonial judaica, pois não lhe devia obediência. Dessa forma, tanto Paulo como Cirilo estavam apontando a lei como um tudo, incluindo os comandos morais.

Porque na verdade, a compaixão que veio do Pai é Cristo, quando ele tira os pecados, rejeita as acusações, justifica pela fé e recupera o perdido e o faz mais forte do que a morte. O que é bom e ele não dá? Portanto, o conhecimento de Deus é melhor do que sacrifício e holocaustos, pois ele leva à perfeição em Cristo. Porque por ele e nele temos conhecido o Pai, e nos tornamos ricos na justificação pela fé. (Commentary on Hosea. Alberto Ferreiro, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament XIV: The Twelve Prophets [Downers Grove: InterVarsity Press, 2003], p. 29)

Cirilo não faz uma oposição direta entre fé e obras, mas num contexto que fala de justificação, ele menciona apenas a fé.

Fulgêncio de Ruspe (468-533)

O abençoado Paulo argumenta que somos salvos pela fé, que ele declara não ser de nós, mas um dom de Deus. Assim, não há possibilidade de haver verdadeira salvação onde não há verdadeira fé, e uma vez que esta fé é divinamente habilitada, ela é sem dúvida dada por sua livre generosidade. Onde há verdadeira crença através da verdadeira fé, a verdadeira salvação certamente a acompanha. Qualquer pessoa que se afasta da verdadeira fé não possui a graça da verdadeira salvação. (On the Incarnation 1)

Fulgêncio afirma a suficiência da fé para a salvação. Ele está comentando Efésios 2:8 que diz que a fé é um dom de Deus. É justamente por essa fé ser de origem divina que “Onde há verdadeira crença através da verdadeira fé, a verdadeira salvação certamente a acompanha”. Em outras palavras, não há como alguém ter essa fé (um dom de Deus) e não ser salvo. Ele ainda afirma que se alguém se afasta dessa fé é porque nunca teve a graça da salvação. Isso contraria a soteriologia romana que afirma a possibilidade de um verdadeiro cristão perder a graça salvadora sempre que comete pecado mortal.

João Damasceno (675-749)

João é um pai da igreja tardio (às vezes considerado o último deles). Seu comentário sobre Tiago é especialmente importante para nosso assunto:

Cabe-nos, então, com toda a nossa força se manter puro das obras imundas, que podem como o cão voltar ao seu próprio vômito [2 Pedro 2:22], nos tornando novamente escravos do pecado. Pois a fé sem obras é morta, e assim são também as obras sem a fé, pois a  verdadeira fé é atestada pelas obras [Tiago 2:26]. (An Exposition of the Orthodox Faith, vol. 4, chapter 9, "Concerning Faith and Baptism” - PG 94:1121-22)

Essa é precisamente a interpretação protestante de Tiago. A fé genuína necessariamente produz frutos. Já Roma ensina que alguém pode ter fé genuína e não se “manter puro das obras imundas” ditas por João Damasceno.

Andreas (século VII)

Andreas não é considerado um pai da igreja, mas por ser um cristão que provavelmente viveu no século VII, seu testemunho tem valor:

Agora, alguém pode opor-se a isso e dizer: "Será que Paulo não usa Abraão como um exemplo de alguém que foi justificado pela fé, sem obras. E aqui Tiago está usando o mesmo Abraão como um exemplo de alguém que não foi justificado somente pela fé, mas também pelas obras que confirmam aquela fé?" Como podemos responder a isso? Como pode Abraão ser um exemplo de fé sem obras, e também de fé com obras ao mesmo tempo? Mas a solução está pronta para ser entregue a partir das Escrituras. O mesmo Abraão é em momentos diferentes um exemplo de ambos os tipos de fé. A primeira é a fé pré-batismal, que não necessita de obras, mas apenas da confissão e da palavra de salvação, pelas quais aqueles que creem em Cristo são justificados. A segunda é a fé pós-batismal, que é combinada com obras. Assim entendido, os dois apóstolos não contradizem um ao outro, mas um único e mesmo Espírito está falando através de ambos. (J. A. Cramer, ed., Catena in Epistolas Catholicas (Oxford: Clarendon, 1840), p. 16)

Ele comenta Tiago 2:21, a passagem comumente utilizada para afirmar que a justificação é também por obras. O comentário de Andreas é semelhante à visão protestante. A justificação se dá pela fé que é confessada ao se ouvir a palavra de salvação. Nesse momento, o indivíduo é justificado. Perceba que a justificação não é tratada como um processo, mas como um ato consumado. Essa fé que inicialmente justifica não vem sozinha, ela necessariamente se combina com obras. Era dessa segunda etapa que Tiago tratava. Quem diz ter fé, mas não a expressa em obras não possui a fé salvadora, mas uma fé morta. A fé que Deus dá é viva e operante.

Importa destacar que as obras que Tiago descreve não são sacramentais. Ele não está falando de confissão e penitência, batismo e eucaristia. Tiago se refere às obras de misericórdia que fazemos pelo próximo. Ou seja, se Tiago estivesse de fato ensinando justificação por obras, ainda assim estaria falando de um tipo de justificação diferente do conceito romanista. Esse é um ponto que os católicos não se atentam ao usar essa passagem.

Beda o venerável (672-735)

Embora o apóstolo Paulo tenha pregado que somos justificados pela fé sem as obras, aqueles que entendem por isto que não importa se levam uma vida malvada ou fazem coisas perversas e terríveis, desde que creiam em Cristo, porque a salvação é pela fé, cometeram um grande erro. Tiago aqui expõe como as palavras de Paulo devem ser compreendidas. É por isso que ele usa o exemplo de Abraão, a quem Paulo também usou como um exemplo de fé, para mostrar que o patriarca também realizou boas obras em função da sua fé. Por isso, é errado interpretar Paulo de modo a sugerir que não importava se Abraão colocou a sua fé em prática ou não. O que Paulo queria dizer era que não se obtém o dom da justificação com base em méritos derivados de obras realizadas de antemão, porque o dom da justificação vem somente pela fé. (Beda, Super Divi Jacobi Epistolam, Caput II, PL 93:22)

Beda corretamente identificou que Paulo ensinou a justificação somente pela fé. A forma como ele harmoniza Paulo e Tiago usa o mesmo argumento que o protestantismo – Tiago se referia à fé morta como àquela que não gera obras. A fé salvadora, aquela que Abraão professou, gerava boas obras.

Pseudo-Oecumenius (Séc. VIII)

Abraão é a imagem de alguém que é justificado pela fé somente, uma vez que ele creu e isso lhe foi creditado como justiça. Mas ele também é aprovado por causa de suas obras, já que ele ofereceu seu filho Isaque sobre o altar. É claro que ele não fez essa obra por si só. Ao fazê-lo, ele permaneceu firmemente ancorado na sua fé, crendo que através de Isaque a sua descendência seria multiplicada até que fosse tão numerosa quanto as estrelas. (Comentário sobre Tiago 2:23)

Tecnicamente não se trata de um pai da igreja, mas ainda é uma fonte antiga. Abraão foi justificado somente pela fé e as obras são resultantes de sua fé.

Bernardo de Claraval (1090-1153)

A fragrância de sua sabedoria vem a nós que ouvimos, pois se alguém precisa de sabedoria peça a Ti e Tu dará a ele. É bem sabido que você dá a todos livremente e de bom grado. Quanto à sua justiça, tão grande é a fragrância difundida que Tu és chamado não somente de justo, mas de a própria justiça, a justiça que torna os homens justos. Seu poder de fazer os homens justos é medido por sua generosidade em perdoar. Portanto, o homem que sofre pelo desejo do pecado e deseja a justiça, confie naquele que transforma o pecador num homem justo e sentenciado justo nos termos da fé somente. Ele terá paz com Deus. (Kilian Walsh, O.C.S.O., Bernard of Clairvaux On the Song of Songs II (Kalamazoo: Cistercian Publications, Inc.,1983), Sermon 22.8, p. 20.)

Bernardo foi um teólogo medieval e não um pai da igreja. Essa citação é oportuna porque mostra que mesmo entre os teólogos medievais, a doutrina da justificação somente pela fé foi ensinada. O concílio de Trento adotou como oficial apenas uma das várias teorias da justificação vigentes na idade média – obviamente condenando a doutrina luterana da justificação. O estudioso católico romano Franz Posset escreve:

A histórica doutrina da justificação de Lutero é idêntica a de São Bernardo. (The Real Luther: A Friar at Erfurt and Wittenberg; Exploring Luther with Melanchthon as a Guide [St. Louis: Concordia, 2011], pp. 127)

O que poderia o homem, o escravo do pecado, sujeito ao diabo, fazer de si mesmo para recuperar aquela justiça que ele tinha anteriormente perdido? Portanto, ele que não tinha justiça teve outra imputada a ele, e desta forma: O príncipe deste mundo veio e não encontrou nada no Salvador, e porque ele [o diabo] pôs as mãos sobre o Inocente, perdeu a maior parte daqueles a quem manteve em cativeiro. Ele [Jesus] que não devia nada à morte, legalmente libertou aqueles que estavam sujeitos a ela, tanto da dívida da morte como do domínio do diabo, pela aceitação da injustiça da morte. Com qual justiça aquela [a morte] poderia ser extraída do homem uma segunda vez? Era o homem que devia a dívida, foi um homem que a pagou. Pois diz S. Paulo, se alguém morreu por todos, logo todos morreram [2 Cor. 5:14], de modo que, como um suportou os pecados de todos, a satisfação de um é imputada a todos. Não é que um pagou a dívida e outro satisfez. A cabeça e o corpo são um - Cristo. O Chefe satisfez pelos membros, Cristo pelos Seus filhos, uma vez que, de acordo com o Evangelho de Paulo, pelo qual a falsidade de Pedro [Abelardo] é refutada: “Aquele que morreu por nós, nos vivificou juntamente com Ele, nos perdoando todas as ofensas, apagando o escrito de dívida de ordenanças que era contra nós, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz, despojando os principados e potestades” [Col. 2:13-14].

Bernardo expressa a substituição penal de Cristo na cruz, por meio do qual sua justiça é imputada a nós apagando todo escrito de dívida que havia em nosso nome. Infelizmente, um católico romano não pode fazer tal afirmação. Ele não pode dizer que toda a dívida foi paga na cruz. Para o fiel católico ainda resta muita dúvida a ser paga através das suas próprias obras expiatórias.
  
Sola Fide antes da Reforma e a opinião dos estudiosos

A respeito da reação do Concílio de Trento à Reforma Protestante condenando a justificação pela fé somente, o erudito patrístico Jaroslav Pelikan escreveu:

O mais trágico de tudo foi a reação romana àquilo que era mais importante para os reformadores - a mensagem e ensinamento da igreja. Isso tinha de ser reformado de acordo com a palavra de Deus. A menos que fosse, nenhum aperfeiçoamento moral seria capaz de alterar o problema básico. As reações de Roma foram os decretos doutrinais do Concílio de Trento e o catecismo baseado nesses decretos. Neles, o Concílio de Trento selecionou e elevou ao status oficial a noção da justificação pela fé mais obras, o que era apenas uma das doutrinas da justificação existentes nos teólogos medievais e antigos pais. Quando os reformadores atacaram esta noção em nome da doutrina da justificação pela fé somente, uma doutrina também atestada por alguns teólogos medievais antigos pais, Roma reagiu canonizando uma tendência em relação a todas as outras. O que era antes permitido (justificação pela fé e obras), agora se tornou obrigatório. O que era antes permitido também (justificação pela fé somente), agora tornou-se proibido. Ao condenar a Reforma Protestante, o Concílio de Trento condenou parte de sua própria tradição católica. (The Riddle of Roman Catholicism (New York: Abingdon Press, 1959), pp. 51-52)

Em outras palavras, a questão da justificação estava em aberto mesmo na igreja romana. Por isso, não é difícil achar teólogos medievais expressando opiniões semelhantes à de Lutero. Em sua oposição à Reforma, Roma condenou aquilo que em tempos mais antigos era uma opinião aceitável mesmo em seu próprio seio. Por isso o argumento apologético de que a igreja romana estava apenas preservando a fé sempre sustentada pela igreja é ingênuo e espúrio. Qualquer um que tenha estudado em detalhes a história da igreja sabe que diversidade de crenças foi uma marca constante do cristianismo. A doutrina da justificação seria um exemplo notável. O consenso existia apenas em questões hoje consideradas fundamentais pelos principais ramos do cristianismo (ortodoxos, romanistas e protestantes).

Pelikan também escreve:

Existiam lado a lado na teologia pré-reforma várias maneiras de interpretar a justiça de Deus e o ato de justificação. Eles variaram de visões fortemente moralistas que pareciam equiparar a justificação à renovação moral e visões ultra forenses, que viam a justificação como uma "imputação nua" que parecia possível à parte de Cristo, por um decreto arbitrário de Deus. Entre esses dois extremos estavam muitas combinações, e apesar de certos pontos de vista predominar no tardio nominalismo, não é possível falar de uma única doutrina da justificação. (Ibid)

Nick Needham escreve:

A linguagem da justificação ocorre com razoável frequência nos pais. O que a linguagem significa? Embora nem sempre tenha a mesma precisa conotação, parece claro que há uma vertente muito importante de uso em que ela tem um significado basicamente forense (...) A abordagem forense desta linguagem sobre justificação é ainda ilustrado por outra vertente do ensino patrístico que emprega o conceito de imputação - computar ou creditar algo na conta de alguém, uma síntese de metáforas legais e financeiras, onde os livros que estão sendo guardados são os "livros julgamento". (Bruce McCormack, ed., Justification In Perspective [Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2006] p. 27-28, 32)

O erudito patrístico D.H Williams escreve:

A doutrina da justificação pela fé não se originou no período da Reforma, nem é o ensino de um emblema exclusivo do protestantismo. Os estudiosos evangélicos Timothy George e Thomas Oden corretamente observaram que a justificação pela fé não era uma nova doutrina inventada pelos reformadores. Além de documentos do Novo Testamento, a justificação pela fé encontra suas raízes na igreja primitiva. Declarado positivamente, a exegese da justificação pela fé é um ensinamento católico e pré-reformado, e os reformadores encontraram precedentes para este ensinamento nos pais primitivos, mesmo quando eles foram para novas direções com essas idéias. (D.H. Williams, Evangelicals And Tradition [Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2005], p. 129)

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Justificação somente pela Fé (Sola Fide) nos Pais da Igreja - Parte 1


O conceito correto de Sola Fide

Sola Fide e Sola Scriptura são doutrinas fundamentais do protestantismo, não por acaso são as mais atacadas pela igreja romana. De forma similar ao debate sobre a Sola Scriptura, apologistas católicos criam um espantalho da Sola Fide ao afirmarem que ela significa salvação apenas pela fé sem nenhum envolvimento de boas obras no processo. É comum alguém dizer que para os protestantes uma pessoa só precisa ter fé e assim ela pode levar uma vida persistente no pecado sem que isso afete sua salvação. Diante disso, vamos então apresentar o verdadeiro significado dessa doutrina.

O protestantismo reconhece o ensino bíblico de que todos os homens estão em pecado e naturalmente separados de Deus. Qual seria então a causa da salvação? Deus olha para a fé do homem como se fosse uma obra e então o salva? Definitivamente não. A causa e mérito de nossa salvação estão em Cristo. Ao morrer na cruz ele suporta o castigo devido pelos nossos pecados e assim satisfaz a justiça de Deus. É na cruz que a justiça, a graça e a misericórdia de Deus se manifestam. A justiça porque Deus pune o pecado, a misericórdia porque ele pune o seu próprio filho e não o pecador, a graça porque esse perdão é oferecido como um presente ao pecador. A doutrina de que Cristo morreu na cruz para pagar pelos nossos pecados é chamada de substituição penal. Nossa dívida foi transferida para Cristo que por sua vez a pagou em nosso lugar. Percebam que a causa final de nossa salvação é a obra de Cristo e não a nossa fé. Mas onde entra a fé nesse processo? A fé é o meio pelo qual (causa instrumental) o pecador recebe esse presente (graça). Nesse momento, o pecador é justificado de seus pecados, ou seja, é declarado justo não por seu próprio mérito, mas porque a ele é transferida a justiça conquistada por Cristo (doutrina da imputação).

Outro detalhe importante é que essa fé não vem sozinha. A fé da qual falamos vem necessariamente acompanhada de boas obras. Essas não são a causa, mas o resultado de nossa salvação. Por isso a chamamos de fé salvadora. Não se trata apenas de uma aceitação intelectual da narrativa bíblica, mas também da confiança em Deus. O mero assentimento intelectual é a fé morta que Tiago critica em sua epístola. A justificação pela fé não é a única etapa da salvação. Há também a regeneração (a mudança das disposições pecaminosas do coração do homem em direção a Deus), a santificação (processo gradativo em que o crente fica cada vez mais parecido com Cristo se afastando do pecado e abundando na prática de boas obras) e a glorificação (etapa final em que qualquer resquício da natureza pecaminosa é retirado). A salvação é todo um processo comandando pelo Espírito Santo. O verdadeiramente salvo é habitado pelo espírito de Deus que garante a ocorrência desse processo. Por isso, fé salvadora e obras são os dois lados de uma mesma moeda. Elas necessariamente vêm juntas.

Conceito protestante vs católico romano e os pais da igreja

É comum os apologistas católicos afirmarem que nenhum pai da igreja defendeu a Sola Fide. Por outro lado, a justificação por obras teria sido ensinada por eles, o que seria um forte argumento histórico em favor da doutrina romanista. Ainda que isso fosse verdade, a doutrina protestante estaria de pé, pois a autoridade final é a Escritura e não os pais. Nossa defesa da Sola Fide está alicerçada na exegese do texto bíblico que expressa claramente a veracidade dessa doutrina. É difícil entender como alguém que leu cuidadosamente as epístolas paulinas pode duvidar disso.

Todavia, o fato é que alguns pais da igreja defenderam a justificação somente pela fé. É isso que este artigo pretende demonstrar. De fato, muitos pais da igreja defenderam algum tipo de justificação por obras, mas o que os apologistas católicos não dizem é que o tipo de justificação por obras defendido por eles é diferente do que defende a igreja romana. O romanismo não ensina simplesmente que basta ter fé e fazer obras para ser justificado. Na teologia romana, a justificação não é um ato legal, mas um processo que envolve obras sacramentais. Não basta que uma pessoa tenha fé e ajude os necessitados por exemplo, ela precisa recorrer ao sacramento da confissão auricular se cometer um pecado mortal. Por mais que alguém tenha fé em Cristo e tenha praticado obras de misericórdia em sua vida, se ela não recebeu um batismo considerado válido, sua salvação estará em risco. Por mais que alguém tenha abundado em ajuda aos necessitados, se ele morreu em pecado mortal (o que pode ser algo tão banal como faltar à missa aos domingos por preguiça), será condenado ao inferno. Por mais que alguém tenha sido piedoso, se morreu em pecado venial, terá que passar pelo purgatório para expiar as faltas que ainda restam.

A justificação no catolicismo romano envolve um sistema sacramental (batismo, confissão e penitência, eucaristia, purgatório e indulgências). A paz com Deus que esse sistema pode oferecer é extremamente precária. Se na última hora, o indivíduo morreu em pecado mortal, toda uma vida de boas obras será inútil para salvá-lo. O mais interessante de tudo é que esse sistema sacramental com todos esses elementos não é encontrado em nenhum pai da igreja. A doutrina das indulgências por exemplo é completamente desconhecida do período patrístico. O purgatório só foi defendido pela primeira vez por Agostinho (sec. V) como uma especulação teológica e não um artigo de fé – mais detalhes aqui. A doutrina da confissão e penitência atualmente praticada pela igreja romana não pode ser rastreada até o período patrístico (aqui). A ideia que a eucaristia é uma reapresentação do sacrifício de Cristo por nossos pecados é contrariada pela maioria dos pais igreja (aqui). A necessidade do batismo para a salvação bem como a regeneração batismal contam com alguns defensores, mas passa longe de ser um consenso patrístico (aqui). O fato é que a Sola Fide encontra algum apoio nos pais da igreja, enquanto esse sistema sacramental com todas as suas etapas e elementos não pode contar com nenhuma testemunha desse período.

Outro detalhe precisa ser mencionado – a doutrina da justificação não foi objeto de muita reflexão teológica no período patrístico. Vários pais da igreja tinham ideias sobre a justificação totalmente abandonadas nos tempos atuais como a teoria de que Jesus ao morrer na cruz estava pagando um resgate a satanás. O primeiro pai da igreja a trazer mais detalhes sobre o tema foi Agostinho (séc. V). O debate mais extensivo sobre a questão só iria acontecer no período da reforma (séc. XV). Alister Macgrath escreve:

Durante os primeiros trezentos e cinquenta anos da história da igreja, seu ensinamento sobre a justificação era incipiente e mal definido. (Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification (New York: Cambridge University Press, 2000), p. 23)

Clemente de Roma (? - 100)

E assim nós, tendo sido chamados pela sua vontade em Cristo Jesus, não nos justificamos a nós mesmos, ou por meio da nossa própria sabedoria ou entendimento ou piedade ou obras que tenhamos feito em santidade de coração, mas por meio da fé, pela qual o Deus Todo-poderoso justifica todos os homens que foram desde o princípio; ao qual seja a glória para sempre. Amém. (Carta aos Coríntios XXXII)

Em sua carta à Igreja de Corinto, Clemente reverbera o ensino paulino de que o homem não é justificado por obras, mas pela fé. Ao se depararem com textos como esse, os católicos costumam alegar que não há o termo “somente pela fé”. Ocorre que o somente é a conclusão lógica do texto. Se não é por obras e é pela fé, não há uma terceira categoria além de obras e fé. Então, é somente pela fé. Clemente é uma testemunha patrística bastante qualificada devido sua antiguidade e provável contato com apóstolos. Um tratamento mais extenso sobre o testemunho dele pode ser visto aqui
. Ele é também considerado um papa pelos romanistas. Assim, temos um suposto papa negando todo o sistema soteriológico da igreja romana.

Policarpo de Esmirna (70 – 155)

E vós sabeis que é pela graça que fostes salvos, não pelas obras, mas pela vontade de Deus, por meio de Jesus Cristo (...) Portanto, sem cessar, estejamos agarrados à nossa esperança e ao penhor de nossa justiça, isto é, Cristo Jesus, que carregou nossos pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro, ele que não cometeu pecado e em cuja boca não foi encontrada nenhuma falsidade, mas que tudo suportou por nós, a fim de que vivêssemos nele. (Aos Filipenses caps. 1 e 8)

Policarpo também repete o ensino paulino da salvação pela graça e não pelas obras. A igreja romana também diz que a salvação é pela graça, porém seu ensino é inconsistente. É uma graça que não é de graça, pois exige do cristão a prática de boas obras para ser justificado. Policarpo repudiaria esse conceito. Paulo disse claramente:

Porquanto, se é pela graça, já não o é mais pelas obras; caso fosse, a graça deixaria de ser graça. (Rm. 11:6)

Não é possível ensinar salvação pela graça e justificação pelas obras. Ou se escolhe uma ou outra. Policarpo também afirma que nossa justiça advém de Cristo que carregou nossos pecados na cruz. Ele claramente defende o ensino da substituição penal e da imputação da justiça de Cristo ao pecador quando afirma “de nossa justiça, isto é, Cristo Jesus, que carregou nossos pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro”.

A igreja romana não ensina a justiça imputada, mas a justiça inerente. Qual seria a diferença? A justiça é imputada não é nossa, ela é de Cristo. Os créditos de Jesus perante Deus são transferidos para nossa “conta”. Por causa disso, somos declarados justos perante Deus. Já a doutrina romanista defende que a justiça de Cristo é infundida no cristão. Mas ela por si só não o torna perfeitamente justo. Ele precisa aumenta-la e recuperá-la sempre que é perdida através das boas obras (incluso obras sacramentais). Uma analogia razoável seria dizer que a graça é como a gasolina de um carro. O cristão precisa realizar obras sacramentais para se “abastecer” dessa graça. No entanto só a gasolina não faz um carro andar, é preciso uma estrutura própria conduzida por um motorista que fará o movimento acontecer. Da mesma forma o cristão precisa cooperar com essa graça através de boas obras e recuperá-la quando perdida através de obras sacramentais. Essa é a justiça inerente, pois não se trata de uma justiça totalmente alheia, mas da própria pessoa que recebe uma ajuda externa (graça) que permite o aperfeiçoamento dessa justiça. Trata-se de ser tornado justo e não declarado justo. É um processo que dura toda a vida e pode durar até após a morte (purgatório). R.C Sproul dá uma ótima explicação sobre a diferença entre o conceito católico e protestante aqui.

Inácio de Antioquia (35-105)

Inácio enfatiza que os crentes vivem de acordo com a graça e centrados em Jesus Cristo:

Não vos deixeis enganar por doutrinas heterodoxas nem por velhas fábulas que são inúteis. Com efeito, se ainda vivemos segundo a lei, admitimos que não recebemos a graça. (Aos magnésios 8:1)

Inácio se refere à dicotomia lei e graça sem adicionar qualificadores à lei. Alguém pode afirmar que ele se referia apenas à lei cerimonial. Embora em suas cartas dê exemplos da lei cerimonial (a guarda do sábado), ele nunca afirma que a lei em questão se restringe ao aspecto cerimonial. Como a Lei incluía naturalmente aspectos morais, é provável que Inácio estivesse se referindo a salvação pela graça sem obras.

O evangelho, porém, tem algo mais especial: a vinda do Salvador, nosso Senhor Jesus Cristo, sua paixão e ressurreição. De fato, os amados profetas o haviam anunciado, mas o evangelho é a consumação da incorruptibilidade. Tudo é igualmente bom, se acreditardes no amor. (Aos Filadelfienses 9:2)

Quando ele afirma acreditar no amor, está se referindo a acreditar no evangelho. A parte negritada parece referendar a ideia de que as obras são fruto da fé. Crer no evangelho torna tudo bom, ou seja, a fé na obra de Cristo gera boas obras.
Para nada me serviriam os encantos do mundo, nem os reinos deste século. Para mim, é melhor morrer para Cristo Jesus do que ser rei até os confins da terra. Procuro aquele que morreu por nós; quero aquele que por nós ressuscitou. Meu parto se aproxima. (Aos Romanos 6:1)

Ele claramente defendeu a morte substitutiva de Cristo.

Que ninguém se engane: até para os seres celestes, a glória dos anjos, os principados visíveis e invisíveis, se não crerem no sangue de Cristo, haverá julgamento. (Aos Esmirniotas)

A fé é um elemento indispensável. Roma atualmente diz que pessoas que nunca exerceram fé em Jesus podem ser salvas.

Quando vos submeteis ao bispo como a Jesus Cristo, demonstrais a mim que não viveis segundo os homens, mas segundo Jesus Cristo, que morreu por nós, a fim de que, crendo em sua morte, possais escapar da morte. (Aos Tralianos 2:1)

Essa citação envolve fé e obras. Crer na morte de Cristo possibilita escapar da morte. No mesmo contexto ele diz que se submeter ao bispo demonstra um viver segundo Cristo. Parece haver uma conexão ai: fé que leva a viver segundo Cristo que leva à submissão ao bispo, ou seja, obras como fruto da fé.

Ele realmente ressuscitou dos mortos, pois o seu Pai o ressuscitou, e da mesma forma o seu Pai ressuscitará em Jesus Cristo também a nós, que nele cremos e sem o qual não temos a verdadeira vida. (Aos Tralianos 9:2)

Inácio não está explicitamente afirmando a Sola Fide aqui, mas num momento em que descreve os que serão ressuscitados, não menciona as obras, apenas a fé. De fato, não encontramos em Inácio uma afirmação explícita sobre a questão da justificação, mas há bons indícios de que ele se aproximava da salvação pela graça mediante a fé e absolutamente nenhum indício da salvação através de um sistema sacramental.

Epístola a Diogneto (séc. II)

Quando Deus dispôs tudo em si mesmo juntamente com seu Filho, no tempo passado, ele permitiu que nós, conforme a nossa vontade, nos deixássemos arrastar por nossos impulsos desordenados, levados por prazeres e concupiscências. Ele não se comprazia com os nossos pecados, mas também os suportava. Também não aprovava aquele tempo de injustiça, mas preparava o tempo atual de justiça, para que nos convencêssemos de que naquele tempo, por causa de nossas obras, éramos indignos da vida, e agora, só pela bondade de Deus, somos dignos dela. Também para que ficasse claro que por nossas forças era impossível entrar no Reino de Deus, e que somente pelo seu poder nos tornamos capazes disso. Quando a nossa injustiça chegou ao máximo e ficou claro que a única retribuição que poderiam esperar era castigo e morte, chegou o tempo que Deus estabelecera para manifestar a sua bondade e o seu poder. Oh imensa bondade e amor de Deus! Ele não nos odiou, não nos rejeitou, nem guardou ressentimento contra nós. Pelo contrário, mostrou-se paciente e nos suportou. Com misericórdia tomou para si os nossos pecados e enviou o seu Filho para nos resgatar: o santo pelos ímpios, o inocente pelos maus, o justo pelos injustos, o incorruptível pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais. De fato, que outra coisa poderia cobrir nossos pecados, senão a sua justiça? Por meio de quem poderíamos ter sido justificados nós, injustos e ímpios, a não ser unicamente pelo Filho de Deus? Oh doce troca, oh obra insondável, oh inesperados benefícios! A injustiça de muito é reparada por um só justo, e a justiça de um só torna justos muitos outros. Ele antes nos convenceu da impotência da nossa natureza para ter a vida; agora mostra-nos o salvador capaz de salvar até mesmo o impossível Com essas duas coisas, ele quis que confiássemos na sua bondade e considerássemos nosso sustentador, pai, mestre, conselheiro, médico, inteligência, luz, homem, glória, força, vida, sem preocupações com a roupa e o alimento. (Cap. 9)

Mathetes, personagem fictício escritor da epístola, ensina a justificação do homem com base unicamente na obra de Cristo. Ele exclui a possibilidade do homem realizar qualquer obra para ser justificado. A justificação é tratada como um fato consumado e não como um processo. A morte de Cristo é tratada como substitutiva. A luz dessas informações, apesar de não falar da fé expressamente, a hipótese mais provável é que Mathetes defendesse a Sola Fide. Sua abordagem exclui o ponto de vista católico romano e traz uma série de elementos da doutrina protestante. Se as obras eram excluídas do processo, só restaria a fé como causa instrumental da justificação.

Justino Mártir (100-165)

Se não havia necessidade da circuncisão antes de Abraão, ou da observância dos sábados, das festas e dos sacrifícios antes de Moisés; não há mais necessidade deles agora. Após isso, de acordo com a vontade de Deus, Jesus Cristo, o Filho de Deus nasceu sem pecado de uma virgem oriunda da linhagem de Abraão. Quando o próprio Abraão estava na incircuncisão, ele foi justificado e abençoado por causa da fé que ele depositou em Deus, como diz a Escritura. Além disso, as Escrituras e os fatos em si obrigam-nos a admitir que ele recebeu a circuncisão por um sinal, e não por justiça. (Diálogo com Trifão 23)

Trifo era um judeu que defendia a observância da lei para a salvação. A resposta de Justino lembra muito o ensino paulino de que Abraão foi justificado pela fé e não por obras. A circuncisão seria um sinal dessa fé e não a causa da justificação. Alguém pode argumentar que Justino se refere aos aspectos cerimoniais da lei. Isso é verdade, mas em todo diálogo ele nunca limita sua abordagem da lei apenas ao aspecto cerimonial. De toda forma, ele toma o exemplo de Abraão que teria sido justificado pela fé sem realizar nenhuma boa obra – que implica em justificação somente pela fé.

Toda a raça humana encontra-se sob uma maldição. Pois está escrito na lei de Moisés, "Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas que estão escritas no livro da lei" [Deuteronômio 27:26]. Ninguém tem feito tudo com perfeição, nem você vai se atrever a negar isso. Alguns mais e outros menos têm observado as ordenanças prescritas. Se aqueles que estão sob esta lei parecem estar sob uma maldição por não ter observado todos os requisitos, quanto mais estarão todas as nações que praticam a idolatria, seduzem jovens e cometem outros crimes? Se o Pai de todos desejou que seu Cristo tomasse sobre si a maldição de toda família humana, sabendo que depois de ter sido crucificado e morto Ele ressuscitou, por que você discute sobre Ele, que se submeteu a sofrer essas coisas de acordo com a vontade do Pai, como se Ele estivesse amaldiçoado, e nem sequer se lamenta por vocês mesmo. (Ibid., 95)

Justino claramente adota a visão protestante da substituição penal. Cristo tomou sobre si a maldição que estava sobre nós em virtude do pecado. Se ele anula essa maldição, nenhuma condenação pode permanecer sobre quem está em Cristo. O contrário disso seria afirmar a insuficiência do sacrifício de Cristo.

Tertuliano de Cartago (160-220)

E assim eles dizem "o batismo não é necessário pois para eles a fé é suficiente; além disso, Abraão agradou a Deus por um sacramento sem qualquer água, mas de fé". Em todo o caso, são as coisas posteriores que têm força probatória, e as subsequentes prevalecem sobre as antecedentes. Concedo que, em tempos passados, houve salvação por meio da fé nua, antes da paixão e ressurreição do Senhor, mas agora essa fé foi ampliada, e se tornou uma fé que acredita em seu nascimento, paixão e ressurreição (...) (Sobre o batismo 13)

Tertuliano de fato acreditava em justificação por obras, mas ele testemunha a existência de um grupo cristão defensor da justificação somente pela fé. Esse pai da igreja expressa o que falamos sobre aqueles que acreditavam num tipo justificação por obras diferente do conceito romanista. Ele concedeu que a justificação de Abraão foi pela fé, enquanto a igreja romana ensina que o patriarca foi justificado também por obras. Os católicos interpretam Tiago como dizendo que Abraão foi justificado por obras, já Tertuliano não sustentaria essa interpretação. Além do mais, Tertuliano acreditava que o perdão por pecados graves após o batismo estava disponível apenas uma vez, o que se choca com a teologia romana a respeito.

Vitorino (280-356)

Cada mistério que é promulgado por nosso Senhor Jesus Cristo exige apenas a fé. O mistério foi decretado naquela época por nossa causa e destina-se a nossa ressurreição e libertação, devemos ter fé no mistério de Cristo e em Cristo. Os patriarcas prefiguraram e predisseram que o homem seria justificado pela fé. Portanto, assim como foi creditado como justiça a Abraão que tinha fé, assim também nós se tivermos fé em Cristo e em cada um de seus mistérios, seremos filhos de Abraão. Toda a nossa vida será considerada como justa. (Epistle to the Galatians, 1.3.7. Mark J. Edwards, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament VI: Galatians, Ephesians, Philippians [Downers Grove: InterVarsity Press, 1998], p. 39)

Vitorino ensina a suficiência da fé para nossa justificação. Quem tiver fé em Cristo e em seus mistérios (aqui entendido como seu evangelho) se torna filho de Abraão (uma expressão que designa um cristão genuíno) e tem não somente uma parte, mas toda a sua vida considerada justa.

“Pois vocês são salvos pela graça mediante a fé". O apóstolo explicou claramente que deveria haver fé da nossa parte, mas devemos acreditar somente em Cristo. Esta [salvação] é nossa somente desta forma, não somos salvos pelo nosso mérito, mas pela graça de Deus. Para resumir, Paulo acrescenta o seguinte: "E isso não vem de vocês, é um dom de Deus; não vem de obras, para que ninguém se glorie". Nós fomos salvos pela graça, Paulo afirma, isso é de Deus. Então vocês também Efésios, porque vocês foram salvos, isso não é de vocês, é um dom de Deus. Também não é de suas obras, mas é a graça de Deus, é o dom de Deus - não pelo seu mérito. (Commentary on Ephesians (ed. A. Locher 152; also in CSEL 83,2); translation S.A. Cooper, Metaphysics and Morals in Marius Victorinus Commentary on the Letter to the Ephesians, New Yorketc., 1995, 67; see also his comments, 159-160)
A salvação é pela graça somente mediante a fé somente. Vitorino ao comentar Efésios 2:8 excluiu as obras do processo.

Sabemos que o homem não é justificado por obras da lei, mas que ele é justificado através da fé, isto é, a fé em Jesus Cristo. Desde que nós sabemos isso - diz ele - acreditamos em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé, não pelas obras da lei. Por pelas obras da lei nenhuma carne, isto é, nenhum homem que está na carne, será justificado (Rm. 3:20). Então, sabendo disso, nós acreditamos que a justificação se dá pela fé, estamos muito errados se retornarmos ao judaísmo, do qual viemos a fim de ser justificado não pelas obras, mas pela fé e pela fé em Cristo. Pois precisamente fé somente dá justificação e santificação. (Ed. Locher, 26. Sola fides also occurs in Marius Victorinus‟ comments on Gal. 3:2; 3:7; 3:21-22; 6:10; Eph. 2:14-15; 3:16-17; Phil. 1:29.)

Trata-se de uma exposição clara da Sola Fide.

Hilário de Poitiers (300-368)

Era perturbador para os escribas [em Mateus 9: 3] que o pecado fosse perdoado por um homem (eles consideravam que Jesus Cristo era apenas um homem) e que ele perdoasse o pecado, já que a lei não era capaz de garantir o perdão, uma vez que somente a fé justifica. (Comentário sobre Mateus 8:6)

Em outras palavras, o filho mais novo [em Mateus 21:30] declarou obediência, embora ele não a tenha realizado porque somente a fé justifica. Por esta razão, os publicanos e as prostitutas estarão em primeiro lugar no reino dos céus. (Ibid., 21:15)

Pela duplicação dos talentos [em Mateus 25:22] descobrimos que obras foram adicionados à fé. O que alguém acredita em sua mente, ele realiza através de atos e ações. (Ibid., 27:8)

As citações são claras. Nas duas primeiras é explicitamente afirmado que somente a fé justifica. Tenhamos em mente que Hilário está comentando passagens em que as pessoas foram salvas pela fé sem realizar nenhuma obra. A última afirma que obras são frutos da fé. Aquele que acredita de fato realizará boas ações.  O erudito patrístico D.H. Williams escreve:

Em todo o comentário há uma ênfase inequívoca na teologia que decorre das epístolas de Paulo, especialmente no que diz respeito ao conceito de ser justificado pela fé. Aqui, cerca de sessenta anos antes de Agostinho e sem as contribuições origenistas, Hilário segue pouco ou nenhum precedente. Cerca de vinte ocorrências da frase justificado pela fé (fidei iustificatio) são encontradas expressando uma interpretação pertinente da compreensão do Evangelho. Parece que o interesse de Hilário envolve muito mais do que meras reformulações de passagens paulinas. (Commentary On Matthew [Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 2012] pp. 30-31)

Dídimo o cego (313-398)

Mas como é que alguns dizem que porque o espírito dá vida ao corpo é mais honroso do que o corpo, portanto, as obras são mais honrosas do que a fé? Eu tenho olhado este assunto em detalhe e devo tentar explicar a minha posição. É sem dúvida verdade que o espírito é mais nobre do que o corpo, mas isso não significa que as obras podem ser colocadas antes da fé, porque uma pessoa é salva pela graça, não pelas obras, mas pela fé. Não deve haver nenhuma dúvida de que a fé salva e então vive para realizar suas próprias obras, assim as obras que são adicionadas para a salvação pela fé não são as da lei, mas de um tipo completamente diferente. (Gerald Bray, ed., Ancient Christian Commentary on Scripture: New Testament, Vol. XI, James, 1-2 Peter, 1-3 John, Jude [Downers Grove: InterVarsity Press, 2000] p. 34)

A afirmação não poderia ser mais clara – a salvação é pela graça mediante fé. Essa fé salvadora “vive para realizar suas próprias obras”, ou seja, uma fé que gera boas obras.

Basílio de Cesareia (330-379)

Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor, que Cristo para nós foi feito por Deus santificação, sabedoria, justificação, e redenção. Este é o perfeito e puro gloriar-se em Deus, quando alguém não se orgulha devido à sua própria justiça, mas sabe que é realmente indigno da verdadeira justiça e é justificado unicamente pela fé em Cristo. (Homilia XX, Homilia De Humilitate, §3, PG 31:529)

É autoexplicativo. Basílio assim como outros pais da igreja nem sempre foi consistente, mas é um fato que eles ensinaram a justificação somente pela fé.

Gregório de Níssa (335-394)

Abandonando a curiosidade da mente, Abraão, diz o texto, creu em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça [Romanos 4:3; cf. Gênesis 15: 6]. E isso, diz o Apóstolo, não foi escrito para Abraão, mas para nós, pois é pela fé e não pela sabedoria que os homens são considerados justos diante de Deus. A sabedoria tem um tipo de valor comercial, concedida apenas ao conhecedor. Mas isso não é assim na fé cristã. Pois é o firme fundamento das coisas que se esperam [Hebreus 11: 1], não de coisas que são conhecidas. Nós não esperamos pelo que já possuímos. Como diz o Apóstolo "porque o que alguém vê como o esperará?" [Romanos 8:24]. (Against Euonius - Book XII)

Apesar de não contrastar fé com obras, Gregório acredita que a fé é causa instrumental da justificação.